Resumo: O presente trabalho demonstra que ainda que não esteja expresso como direito fundamental, o direito à saúde reprodutiva está implicitamente abarcado no direito fundamental à saúde e, assim como este, deve ser respeitado e garantido pelo Estado. Porém, devido à ausência de lei regulamentadora, tal direito ficou a mercê do fenômeno da judicialização, que tomou conta dos tribunais brasileiros nos últimos tempos. [1]
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Reprodução Assistida. Judicialização.
Resumen: Este estudio muestra que aunque no estea expresamenteprevisto cómo un derecho fundamental, el derecho a la salud reproductiva es abrazado implícitamente el derecho fundamental a la salud y, como tal, debe ser respetado y garantizado por el Estado. Sin embargo, debido a la falta de ley reglamentaria, este derecho se queda a merced del fenómeno de la judicialización, que ha tomado los tribunales brasileños en los últimos tiempos.
Palabras clave: Derechos Fundamentales. Reproducción Asistida. Judicialización.
Sumário: Introdução. 1. Direito Fundamental à reprodução assistida ?. 1.1 Direito à saúde como direito fundamental. 1.2. Direito à reprodução assistida como direito fundamental. 2. A normatização da reprodução humana assistida no Brasil. 3 O Judiciário brasileiro enfrenta o tema. 3.1 Judicialização e o ativismo judicial. 3.2 Ativismo judicial no âmbito da oferta da reprodução assistida pelo Sistema Único de Saúde. Conclusão. Referências.
Introdução
A sociedade brasileira enfrenta várias questões polêmicas que se tornam ainda mais sensíveis pelo fato de não possuírem regulamentação legislativa. Este trabalho tem como objeto um destes temas, a reprodução humana assistida, prevista no país apenas pela Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que possui caráter deontológico e é direcionada aos médicos e clínicas que realizam referido procedimento.
Sabe-se que o direito ao planejamento familiar é garantido tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na Lei 9.263/96, contudo, a obrigatoriedade de oferta da reprodução assistida pelo Estado, gratuitamente, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), gera discussões pelo fato de a mesma não estar expressa no texto constitucional e por ser algo que demandaria grande quantidade de recursos públicos para a sua concretização.
Devido às várias mudanças que ocorreram nos últimos tempos em relação ao papel das mulheres na sociedade, muitas acabaram por retardar o sonho da maternidade e, quando se viram preparadas para a concretização deste projeto, acabaram se deparando com problemas de cunho reprodutivo que as impediram de gerar um filho. Somada a esta perspectiva cultural, as mulheres enfrentam doenças que não eram muito frequentes no passado e que hoje aumentaram significativamente, como a endometriose[2], por exemplo.
Esta realidade não está restrita às mulheres. Estima-se que no Brasil 30% dos casos de infertilidade se devem ao fator masculino. Isto se deve a fatores intrínsecos (produção de hormônios, de espermatozóides e de vários tipos de câncer, por exemplo) e a fatores extrínsecos (exposição à radiação, uso de drogas e anabolizantes, por exemplo)[3].
Assim, no momento em que tais pessoas descobrem a impossibilidade ou dificuldade de gerar filhos pela via tradicional – através de relações sexuais –, resta às mesmas buscar a reprodução assistida. Contudo, referidos tratamentos são caros e não estão ao alcance de grande parte da população. Consequentemente, estas pessoas de parcos recursos materiais recorrerem ao SUS para que seu problema reprodutivo seja remediado e a resposta que lhes é dada normalmente não é boa: poucos hospitais públicos oferecem reprodução assistida e, dos que oferecem, alguns estão com as inscrições suspensas e outros possuem filas de espera enormes, com estimativa de que o paciente precise aguardar em torno de 4 a 5 anos para fertilização in vitro e de 2 a 5 anos para a realização de inseminação intra-uterina, conforme dados fornecidos pelo Hospital Regional da Asa Sul em Brasília (HIMB).
Sendo assim, alguns casais que já estão na fila de espera ou que não conseguiram realizar sua inscrição em programas do tipo, vêem suas esperanças se esvaírem com o passar do tempo e não possuem outra alternativa senão pleitear que o Judiciário obrigue o Estado a oferecer o tratamento, ainda que seja através de custeio de tratamento particular, se for o caso.
De um lado tem-se a alegação de que o direito à reprodução assistida seria considerado fundamental e, de outro, o argumento da “reserva do possível” utilizado pelo Estado no sentido de que não há recursos públicos para garantir este procedimento de forma gratuita.
É neste cenário que o presente estudo se situa, tendo se desenvolvido através de uma pesquisa qualitativa, essencialmente bibliográfica, documental e interdisciplinar, a partir do diálogo entre Biodireito e Direito Constitucional.
1 Direito fundamental à reprodução assistida?
Nos dias atuais, observa-se corriqueiramente as expressões direitos humanos e direitos fundamentais sendo confundidas como se fossem sinônimas, bem como que os mesmos devem ser garantidos a todos, sem qualquer restrição ou limitação. Segundo Sarlet, há uma grande diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos:
“a pertinência da diferenciação conceitual entre direitos humanos e fundamentais se fundamenta no sentido de que os direitos humanos, antes de serem reconhecidos e positivados nas Constituições (quando então se converteram em direito positivado e assumiram a condição de direitos fundamentais), integravam apenas uma espécie de moral jurídica universal, de tal sorte que os direitos humanos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato de ser pessoa humana) ao passo que os direitos fundamentais (positivados nas Constituições) concernem às pessoas como membros de um ente público concreto” (2015).
Diante disso, analisar-se-á se os direitos à saúde e à reprodução humana assistida podem ser considerados direitos fundamentais. Contudo, antes de adentrar nesta seara, faz-se mister um breve panorama do surgimento das gerações de direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais tem sua origem em teorias históricas e filosóficas que buscavam a proteção das liberdades dos indivíduos. Com a positivação dos direitos humanos no cenário internacional, estes começaram a ser validados pelos Estados internamente, gerando a coincidência entre alguns direitos humanos e direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais foram divididos em direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração, porém, com o aumento das pesquisas científicas “e com o fenômeno da globalização, alguns doutrinadores e estudiosos acreditam que poderá ocorrer o surgimento de novas gerações como o de quinta, sexta e sétima geração” (PINHEIRO NETO, 2012, p. 49).
Os direitos de primeira geração são aqueles ligados à liberdade do indivíduo, onde não deve haver a intervenção do Estado. Ou seja, são os direitos civis e políticos, “tem por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributo da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (BONAVIDES, 2014, p. 578).
Esta geração de direitos foi uma reação aos ditames do poder absolutista e, fez com que surgissem questionamentos ao limite do poder estatal. Tais direitos só se aperfeiçoaram a partir das primeiras Declarações de Direitos, em meados do século XVIII.
Os direitos de primeira geração são aqueles que apresentam como característica “à resistência e oposição ao Estado” (SARLET, 2003, p. 126). Ou seja: “Representaram historicamente a positivação da superação do absolutismo através do estabelecimento do estado liberal de direito, que se instituiu em função e para preservar direitos do indivíduo face ao Estado” (SARLET, 2003, p. 126). São considerados direitos que valorizavam o homem individual, primeiramente.
Com a positivação desses direitos, ocorreu o surgimento de um sistema em que a economia de mercado livre acabou por criar imensa desigualdade social entre os indivíduos, já que o Estado somente representava os interesses dos mais abastados, não se preocupando em salvaguardar os mais fracos daquela sociedade.
Diante desse cenário surgiram reivindicações sociais, que acabaram por servir de base para a segunda geração de direitos. Estes direitos nasceram abraçados ao Princípio da Igualdade e, como ocorreu com os direitos fundamentais de primeira geração, sofreram especulações, mas acabaram sendo confirmados em diversas Constituições, principalmente no período pós-guerra.
É certo que sua eficácia foi tida como duvidosa, já que estes dependem diretamente do aparato estatal para que possam ser cumpridos na vida do indivíduo e, muitas vezes, essa prestação esbarra na “carência ou limitação essencial de meios e recursos” (BONAVIDES, 2014, p. 579).
Os direitos de segunda geração englobam os direitos sociais, culturais e econômicos. Neste caso, é imprescindível a intervenção do Estado para que as desigualdades entre os indivíduos, possam ser reduzidas. Surge, então, a ideia da igualdade material: “o estado se obriga, mediante retificação na ordem social, a remover as injustiças encontradas na sociedade” (SARLET, 2003, p. 129).
Diante de um mundo dividido entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, surgiu a necessidade da busca por uma terceira geração de direitos, geração esta assentada na fraternidade e não somente naqueles direitos que protegiam o indivíduo e a coletividade. Tais direitos se fortaleceram no final do Século XX e possuem a finalidade única de proteger o ser humano, afirmando assim uma verdadeira evolução na consumação dos direitos fundamentais, já que estes surgiram de reflexões relacionadas “ao desenvolvimento, a paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade” (BONAVIDES, 2014, p. 584).
Em resumo, entende-se que “os direitos de terceira geração dizem respeito à coletividade, aos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído” (BOBBIO apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 47).
Há que se destacar que o direito ao desenvolvimento do Estado é considerado por alguns como direito de terceira geração (ETIENE apud BONAVIDES, 2014, p. 584).
O neoliberalismo e a crescente globalização com sua política econômica de poder e dominação, que enfraquece a soberania e doutrina a despolitização da sociedade, já era uma realidade e, diante disso, surge a quarta geração de direitos. Segundo Bonavides:
“São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles dependendo a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, (…).”Para ele, “os direitos de quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem- sem, todavia, removê-la -a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os de primeira geração” (2014, p. 586).
Com a universalidade dos direitos fundamentais estes passaram a afigurar no mais alto degrau de juridicidade, pois é através da universalidade de direitos, que todos os outros direitos são fortalecidos e, com seu fortalecimento, consequentemente. ocorrerá a sua efetivação e positivação através das diversas Convenções e Constituições dos Estados.
1.1 Direito à saúde como direito fundamental
Conforme definição apresentada anteriormente, o direito à saúde pode ser considerado como um direito fundamental, já que se encontra positivado na Constituição Federal. Contudo, antes disso, em 1946, o Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde já previa que:
“A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”.
Ademais, desde 1948 o Brasil assinou na ONU a Declaração Universal dos Direitos do Homem que prevê, em seu art. 25, que:
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, ao vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.
Além disso, em 1969 aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos que em seu art. 4° expressa que “toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”.
Com isso, pode-se observar que o Brasil se ligou ao constitucionalismo democrático e social que se deu no Pós-Guerra, porém tal positivação de direitos só se deu efetivamente com a promulgação da Constituição de 1988.
“Antes de 1988, a proteção do direito à saúde ficava restrita a algumas normas esparsas, tais como a garantia de “socorros públicos” (Constituição de 1824, art. 179, XXXI) ou a garantia de inviolabilidade do direito à subsistência (Constituição de 1934, art. 113, caput). Em geral, contudo, a tutela (constitucional) da saúde se dava de modo indireto, no âmbito tanto das normas de definição de competências entre os entes da Federação, em termos legislativos e executivos (Constituição de 1934, art. 5º, XIX, “c”, e art. 10, II; Constituição de 1937, art. 16, XXVII, e art. 18, “c” e “e”; Constituição de 1946, art. 5º, XV, “b” e art. 6º; Constituição de 1967, art. 8º, XIV e XVII, “c”, e art. 8º, § 2º, depois transformado em parágrafo único pela Emenda Constitucional nº 01/1969), quanto das normas sobre a proteção à saúde do trabalhador e das disposições versando sobre a garantia de assistência social (Constituição de 1934, art. 121, § 1º, “h”, e art. 138; Constituição de 1937, art. 127 e art. 137, item 1; Constituição de 1946, art. 157, XIV; Constituição de 1967, art. 165, IX e XV)” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).
A saúde provida pelo Estado até meados de 1970 tinha a sua operabilidade questionada, pois era ligada a Previdência Social e “o fato de prestar saúde àqueles que efetivamente contribuíam para a previdência causava severo incômodo, sobretudo em um pais desigual e com relevantes índices de desemprego como o Brasil” (SABINO, 2016, p. 153). Sendo assim, a partir da:
“(…) redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a universalização dos serviços públicos de saúde e com a atuação do movimento sanitarista, durante a Assembléia Constituinte, deu-se a criação do SUS. A Constituição estabeleceu e passou a prever em seu artigo 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, além de instituir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (BARROSO, 2007, p. 98).
De fato, a Constituição de 1988 foi audaciosa, pois além de dizer que saúde é um direito de todos, garantiu o mesmo por meio do poder estatal, com o intuito de promover o acesso igualitário e universal aos tratamentos de saúde. Diz-se que foi audaciosa, pois em muitos países não se observa tal direito como garantia constitucional. Em muitos destes, o acesso da população a alguns serviços de saúde são limitados e só garantidos por meio de algum tipo de pagamento (Tailândia e EUA, por exemplo).
Desta maneira, a partir de 1988, qualquer indivíduo, independente de classe social, cor, sexo ou se havia contribuído para a Previdência ou qualquer outro órgão estatal, passou a ter acesso aos serviços de saúde e qualquer tratamento disponibilizado pelo Estado, garantia inscrita no artigo 194, I e II da CF/88, que estabeleceu a universalidade e a uniformidade e equivalência dos serviços e ações à toda população.
A partir do momento em que a saúde foi garantida no texto constitucional, tornou-se necessário que o legislador constituinte determinasse diretrizes e meios para que a mesma fosse efetivamente implementada e, nos artigos 198 e 200 do referido texto constitucional, foi definido o instrumento que teria a responsabilidade de executar as políticas de saúde pública no Brasil, denominado Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS é regido por uma lei própria, a Lei 8080/90 que, além de regê-lo, confirma a universalidade das ações e serviços de saúde.
Tal direito ainda se confirma com a leitura do artigo 7° da Lei 8080/90 no sentido de que as ações e os serviços de saúde devem ser universais e em todos os níveis, devendo ser prestados tanto pela rede pública quanto pela rede privada conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Sarlet,
“Por mais estranho que possa parecer, muitas pessoas ainda questionam a razão pela qual um direito à saúde (como de resto boa parte dos direitos sociais) encontra-se previsto na Constituição. Da mesma forma, há quem questione até mesmo o fato de advogados, promotores, defensores públicos e juízes estarem a se ocupar com essa temática, que por certo, a prevalecer esse ponto de vista, deveria ser da competência dos médicos, governos, dos hospitais ou das empresas de planos de saúde!” (2007).
Tal indagação é respondida através da observação de que a Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar o direito à saúde como um direito fundamental da pessoa humana e não só este, mas, também, o direito à educação, à alimentação, à proteção à maternidade e à infância, entre outros.
Krell salienta que os direitos sociais, normalmente chamados de segunda geração (ou dimensão), são direitos de prestações normativas e materiais do Estado para realizar o princípio elementar da igualdade entre os diferentes membros da sociedade, revelando, ao mesmo tempo, “uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas” (2009, p. 109). Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal de 1988 reconhece o direito à saúde como direito fundamental, “é necessário referir, em primeiro lugar, que as normas que o garantem têm aplicação imediata, na forma do § 1º do art. 5º do próprio texto constitucional” (SARLET apud LIMA, 2006).
Além do que, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, elencado em seu artigo 1°, está diretamente ligado ao direito à saúde: o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
A propósito, Clève (apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 69) defende a supremacia da dignidade da pessoa humana sobre o Estado, pois este seria uma realidade instrumental, composta por órgãos constitucionais, cujo objetivo é a plena realização dos direitos da pessoa humana. Neste sentido, Sarlet destaca que
“uma das funções exercidas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, é o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional,(…). (…), a Constituição , a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que , por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado(…)” (2012, p. 91).
Sarlet acrescenta que,
“Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), (…). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade (…) (2012, p. 101-102).
Por fim, Bontempo completa:
“(…) são autênticos os direitos fundamentais, dotados de eficácia e plenamente exigíveis judicialmente (…). Partindo do pressuposto, portanto, que os direitos sociais são direitos fundamentais, submetem-se eles à principiologia e lógicas próprias dessa categoria de direitos. Vale dizer: devem ser interpretados de modo a garantir a dignidade da pessoa humana; seus efeitos devem ser maximizados ou otimizados, nos termos do principio da aplicabilidade imediata e são intangíveis (…)” (2005, p. 192).
Dessa forma, vê-se que o Direito à saúde não é simplesmente um direito garantido na CF/88 em seus artigos finais, mas um direito que pode ser visto no decorrer de todo o texto constitucional, o que acaba por calar qualquer pretensão ou tentativa de que seja tolhido do indivíduo, uma vez estar diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
1.2. Direito à reprodução assistida como direito fundamental
Em 1978 nasceu Louise Brown, o primeiro bebê gerado por fertilização in vitro no mundo (FIV). A partir daí, começaram as técnicas de Reprodução Humana Assistida (RHA) se desenvolverem e virarem uma realidade. O primeiro bebê de proveta do Brasil nasceu em 1984 (LEITE; HENRIQUES, 2014, p. 31).
Hoje, em 2016, a RHA ainda não é muito familiar à maioria da população, causando estranheza e até mesmo preconceito, já que existem grupos que são contra tais técnicas por acreditarem que somente os filhos gerados de maneira convencional seria o correto, segundo suas convicções religiosas.
Deixando de lado julgamentos religiosos contra a RHA, passar-se-á à análise sobre se o acesso à mesma pode ser considerado um direito fundamental. Tal investigação passará, obrigatoriamente, pela análise de se o direito à procriação também seria um direito fundamental.
Primeiramente, importa ressaltar que a Constituição Federal prevê que “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito” (art. 226, §7o).
Regulamentando este dispositivo constitucional, a Lei de Planejamento Familiar (Lei 9263/96) considera o mesmo parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde (art. 3o.). Para tanto, garante um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal (art. 2o).
Frise-se que o parágrafo único do art. 3o. prevê expressamente que
“As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I – a assistência à concepção e contracepção;
II – o atendimento pré-natal;
III – a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato;
IV – o controle das doenças sexualmente transmissíveis;
V – o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis”.
Nota-se, portanto, que a Lei de Planejamento Familiar visa à saúde reprodutiva de todo indivíduo e garante que para o exercício deste direito “serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitas, e, que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção” (art. 9o).
Fica claro, assim, que a Lei de Planejamento Familiar promove a saúde reprodutiva para que os indivíduos possam elaborar o planejamento familiar garantido na Constituição, que pode ser traduzido como projeto parental. Em outras palavras, a tentativa de garantir a saúde reprodutiva de todas as pessoas potencializa o livre desenho do projeto parental de cada uma delas.
De qualquer forma, mesmo com a saúde reprodutiva totalmente garantida, a Constituição condiciona o livre planejamento familiar a ser elaborado pelo casal à dignidade da pessoa humana e à paternidade responsável. Daí conclui-se que o direito à procriação não é um direito de exercício individual, nem é absoluto, uma vez condicionado à dignidade da pessoa humana e à paternidade responsável.
Desta conclusão pode-se chegar a outra: a assistência à concepção proporcionada pela reprodução assistida só será garantida pelo SUS como política pública voltada à garantia da saúde reprodutiva. Assim, conforme explica Pinheiro Neto,
“(…) retumba plausível que o direito à saúde alberga o direito de acesso às técnicas de reprodução humana assistida, com o intuito de promover a plenitude da saúde sexual e da dignidade da pessoa humana, constituindo um dever do Estado a sua promoção ante a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais” (2012, p. 53).
Isso quer dizer que apenas casais que não conseguirem ter filhos em virtude de problemas de saúde reprodutiva poderiam exigi-la do SUS. Como salienta Straube (apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 66),
“A capacidade de perpetuar a espécie representa uma essência para a realização do ser humano, em todos os tempos, em todos os povos. A preocupação com a fecundidade vem se desenrolando na história de tal modo que a incapacidade de gerar representou, sempre, uma ameaça, um temor que poderia significar motivo de degradação nos grupo familiar e social. Ser infértil resulta em um mal-estar, fonte de sofrimento e dissabores como frustração, culpa, inferioridade, pois significa ser portador de um estigma que marca e discrimina quem se desvia dessa ordem social estabelecida”.
No mesmo sentido, Krell entende que
“Pode-se afirmar que o desejo compreensível de gerar seus próprios filhos com o fito de constituir uma família com prole, aliado ao planejamento familiar adequado às necessidades do casal, é fator elementar que justifica o pretenso direito fundamental à Reprodução Assistida” (2009, p. 109).
Embora muitos defendam que a reprodução assistida não possa ser considerada direito fundamental garantido ao indivíduo (pois se assim o fosse teria que ser garantida pelo SUS a todas as pessoas, indiscriminadamente, com ou sem problemas de saúde reprodutiva), acredita-se que a mesma constitua uma faceta do direito fundamental à saúde reprodutiva. Importante ressaltar que sendo a infertilidade um estigma social, a reprodução assistida promoveria tanto a saúde reprodutiva quanto a saúde emocional.
A Organização Mundial de Saúde diz que saúde não é somente a ausência de doenças, mas um bem estar físico, mental e espiritual. Relatos clínicos contam que as pessoas que não conseguem ter filhos podem desenvolver transtornos psicológicos e alguns atentam contra a própria vida pelo fato de não terem a possibilidade de gerar uma criança. Tais distúrbios, se não forem evitados, poderão, também, gerar demandas ao SUS.
Conclui-se que o direito à reprodução assistida não seria, por si só, um direito fundamental. Ele estaria situado no âmbito do direito fundamental à saúde e só seria garantido gratuitamente aos cidadãos que efetivamente possuíssem problemas de saúde reprodutiva.
Tal conclusão pode parecer simples e óbvia, mas a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dispõe sobre a reprodução assistida no Brasil, bem como aquelas que lhe precederam e que regulavam a mesma matéria, traz um leque infinitamente maior de possíveis beneficiários de tal procedimento. Isso gera a ilusão errônea de que todos os casos mencionados em tal Resolução poderiam ensejar pedido de RHA formulados ao SUS.
No capítulo seguinte será apresentada referida Resolução para que tal confusão deixe de existir, facilitando a análise sobre a obrigatoriedade do SUS de ofertar tratamentos de reprodução assistida.
2 A normatização da reprodução humana assistida no Brasil
Primeiramente, antes de adentrar na análise da normatização da reprodução assistida no Brasil, serão tecidas algumas considerações sobre tal procedimento que abriga várias técnicas, cada uma indicada para uma situação peculiar.
Normalmente, quando se fala de Reprodução Humana Assistida, todos acreditam que esta se limita à inseminação artificial e à fertilização in vitro, mas isso não procede. Existem tratamentos onde não se manuseiam gametas, que se restringem ao uso de medicamentos, sob supervisão médica, para que se estimule a ovulação, por exemplo.
As técnicas de RHA utilizadas no Brasil hoje se resumem em intracorpóreas (inseminação artificial), extracorpórea (fertilização in vitro), homólogas (utilizam gametas do próprio casal) e heterólogas (gametas masculino ou feminino, ou ambos, de doadores). Temos ainda a gestação de substituição (mais conhecida como “barriga de aluguel”). Neste último caso o CFM estabelece que a doadora genética tem que ter algum problema que a impossibilite de gerar o bebê, que a doadora temporária do útero seja parente até o 2° grau e que a doação seja gratuita (SOUZA, 2010, p. 350-351).
Como mencionado anteriormente, no Brasil não há lei que regulamente a reprodução humana assistida, ainda que existam vários Projetos de Lei sobre a temática em trâmite. Muito provavelmente, isso ocorra em virtude dos conflitos éticos e religiosos que o tema desperta.
Destaca-se, aqui, o PL 5624/2005 do deputado Neucimar Fraga (PL-ES) que “cria programa de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde e dá outras providências.”
Em termos de normatização sobre reprodução assistida, o que se tem, hoje, é a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina e a Portaria 2048/09 do Ministério da Saúde que garante os tratamentos necessários àqueles que possuem algum problema que os impede de gerar filhos.
Por meio de tal portaria o SUS se compromete a realizar desde os mais simples até os mais complexos tratamentos, inclusive serviços de assistência em média e alta complexidade em Reprodução Humana Assistida.
Ao se fazer uma leitura da Portaria, vemos que com ela o Ministério da Saúde deu poderes aos entes federados para expedirem normas suplementares e complementares e, com isso regular o atendimento àqueles que buscam pela reprodução humana assistida. Entretanto, o que se observa é que poucas instituições públicas oferecem ou estão capacitadas a oferecer os tratamentos quando são solicitados pela população.
Importante destacar que o Ministério da Saúde, por meio da Comissão sobre Acesso e Uso do Genoma Humano, instituída pela Portaria n.º 1679/GM, de 28 de agosto 2003, vem discutindo proposta em relação à regulamentação para o emprego de técnicas de reprodução humana assistida. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coordenou um grupo de trabalho para elaboração de proposta de normatização para o funcionamento dos bancos de células e tecidos germinativos. Esta norma técnica encontra-se em fase final de confecção e deveria ser publicada em 2005 (revogada pela Portaria 2048/09). Foi criado, em agosto de 2004, um grupo de trabalho para elaboração de uma proposta de atenção integral em reprodução humana assistida na rede SUS para os casais com infertilidade conjugal e para os casais que convivem com o HIV que desejam ter filhos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005).
Com relação à Resolução 2121/2015, importante ressaltar que referido documento levou em consideração os seguintes fatos, todos consignados em seu preâmbulo: 1) a infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la; 2) que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários problemas de reprodução humana; e 3) que o pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu e qualificou como entidade familiar a união homoafetiva.
Na parte de seus princípios gerais, explica que as técnicas de reprodução assistida possuem a função de ajudar na resolução de problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação. Para saber quais seriam estes problemas, basta ler toda a Resolução.
Na parte que trata dos beneficiários da técnica, há previsão de que estes podem ser todas as pessoas capazes que tenham solicitado o procedimento e que cuja indicação não se afaste dos limites da própria Resolução. Além disso, há menção expressa de que é permitido o uso das técnicas a pares homoafetivos e pessoas solteiras, ressaltando-se que é permitida gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade.
No item que dispõe sobre diagnóstico genético pré-implantatório, garante que as técnicas de reprodução assistida podem ser aplicadas para a realização de seleção embrionária submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo, neste caso, serem destinados ao descarte ou à pesquisa. Outra função da reprodução assistida consiste na utilização para tipagem do sistema HLA do embrião para garantir embriões HLA-compatíveis com algum filho do casal já nascido e afetado por doença cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco.
Por fim, a reprodução assistida também pode ser utilizada, conforme estabelece a Resolução 2121/2015, para a realização da procriação post mortem, quando houver autorização específica de uma pessoa falecida para usar seu material biológico congelado (criopreservado).
Nota-se, portanto, que a Resolução 2121/2015 do CFM prevê muito mais hipóteses de utilização da reprodução assistida do que a garantia da saúde reprodutiva, promovendo o direito fundamental à saúde. Como ressaltou José Hiran da Silva Gallo, membro do CFM “é natural que o CFM amplie o alcance das normas e faça alterações para garantir tanto a segurança do paciente quanto o escopo do trabalho do médico” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2015).
3 O Judiciário brasileiro enfrenta o tema
O objetivo deste capítulo é demonstrar como o Poder Judiciário enfrenta a questão da judicialização das políticas públicas no Brasil, já que, cada vez mais aumenta o número de ações interpostas contra o Estado nesse sentido, colocando-se em xeque o Princípio da Separação dos Poderes. Segundo Ferreira,
“Se por um lado é certo que a função de concretizar estes direitos herdados do Estado Social coube ao Poder Executivo, é certo também que o Poder Judiciário passou a ganhar espaço e importância como fiscalizador desta implementação de direitos, e principalmente como agente dessas políticas públicas, (…) por meio de decisões que tem obrigado o Estado a fornecer os meios necessários para a efetivação destes direitos” (2014, p. 11).
É importante destacar, também, que um dos fatores que reafirmaram a judicialização, foi a doutrina da efetividade, “uma consequência da força das normas constitucionais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988” (BARROSO apud CASTRO, 2012, p. 20). Barroso explica que
“essa doutrina vem para proteger a tutela do direito ou bem jurídico que foi violado por ação ou omissão do Estado, desta forma garantindo a ordem jurídica. Afirmando que a essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e indiretamente, na extensão máxima de sua efetividade. Nesse sentido de imperatividade é que surge a corrida ao judiciário para que seja cumprido o que está determinado na norma constitucional, provocando a judicialização” (BARROSO apud CASTRO, 2012, p. 20).
Desta forma, o Poder Judiciário começa a tomar decisões que influenciam não somente um indivíduo, mas, muitas vezes, toda a sociedade. Nascem os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial que, embora não sejam exclusividade do Brasil, se manifestam de forma peculiar no país em virtude da extensão e do modo como se instalaram. Como salienta Barroso:
“Circunstâncias diversas, associadas à Constituição, à realidade política e às competências dos Poderes alçaram o Supremo Tribunal Federal, nos últimos tempos, às manchetes dos jornais. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira (…). Mas não só este, como todo o Judiciário”.
Diante deste panorama a judicialização ganha cada vez mais força na sociedade, já que por meio das decisões judiciais o Estado vê-se forçado a concretizar o direito do cidadão, muitas vezes postergado ou negado por aquele, fato que poderia ser chamado de “transmutação do Estado Legislativo para o Estado Judiciário” (ALMEIDA; BITTENCOURT, 2008, p. 247).
Por sua vez, a judicialização acabou provocando o ativismo judicial. Em casos de demandas que envolvem a efetivação do direito à saúde, especificamente, indaga-se se os magistrados teriam capacidade e conhecimento técnicos para avaliar se o tratamento ou medicamento requerido é realmente necessário ou se é o que melhor se encaixa na situação do paciente. Diante disso, muitos juízes acabam por decidir de acordo com o que consta no parecer médico, principalmente por serem demandas relacionadas ao direito à saúde, que na maioria das vezes não podem esperar.
Alguns tribunais, com o intuito de auxiliar os magistrados na tomada de decisões relacionadas a pedidos desta natureza, criaram núcleos de assessoria técnica em ações judiciais de saúde, o NAT. Esta ideia surgiu no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e o núcleo conta com profissionais das mais diversas áreas da saúde.
Importante salientar que o NAT é só um instrumento de avaliação técnica para o auxílio do magistrado e que este não é obrigado a recorrer ao núcleo sempre que sentenciar alguma questão inerente a pedidos relacionados ao direito à saúde.
Por fim, fica confirmado que tanto a judicialização quanto o ativismo judicial são fenômenos que serão uma constante nos tribunais brasileiros, pelo menos por um bom tempo e por isso é necessário esclarecer as características de cada um.
3.1 Judicialização e ativismo judicial
Com é sabido, o Brasil enfrenta vários desafios, tanto na área econômica, quanto na área social. A falta de políticas públicas eficazes acaba por não garantir ao indivíduo alguns direitos fundamentais expressos na Carta Magna de 1988.
Diante disto e de uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, resta ao indivíduo recorrer ao Poder Judiciário, já que acredita que em tal esfera seus direitos básicos poderão ser confirmados e garantidos. Surgem, então, os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial.
A judicialização, segundo Barroso, ocorre quando:
“algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso nacional e o Poder Executivo.(…), a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade”.
É algo complexo que, visto sob a perspectiva institucional, traduz-se na ocorrência da “transferência decisória dos Poderes Executivos e Legislativo para os magistrados e tribunais, que passam dentre outros temas controversos, a revisar e implementar políticas públicas e rever as regras do jogo democrático” (VIERA; CAMARGO; SILVA, 2009, p. 1). Sob o enfoque sociológico, seria o modo como a sociedade resolveria questões, coletivas ou não. E, por último, poderia ser visto pelo ponto de vista lógico-argumentativo, difundindo suas normas “para fóruns políticos, institucionais ou não, representando, assim, a completa domesticação da política e das relações sociais pela “linguagem dos direitos” e, sobretudo, pelo discurso constitucional” (VIERA; CAMARGO; SILVA, 2009, p. 1).
Portanto, é sistema jurídico vindo a amparar a Lei Maior, reconhecendo o que está escrito no texto constitucional com o objetivo não só de “regulamentar a vida em sociedade, mas também de integrá-la, amoldá-la e modificá-la” (ALMEIDA; BITTENCOURT, 2008, p. 252).
Dentre as causas da judicialização no Brasil temos a redemocratização do país a partir da Constituição de 1988, a constitucionalização abrangente[4] e o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade[5]. Sendo assim, a judicialização não ocorreu porque o magistrado assim o desejou, mas por um cenário brasileiro favorável ao surgimento deste fenômeno.
E com o ativismo judicial não foi tão diferente. Conforme explica Barroso,
“a Judicialização e o Ativismo são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. (…)A judicialização é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou,(…).(…), o Judiciário decidiu porque era oque lhe cabia fazer, sem alternativa.(…).Já o Ativismo Judicial é uma atitude, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”.
O ativismo judicial pode ocorrer de duas maneiras: a primeira, quando ocorre por meio de alguma prestação jurisdicional e a outra, não menos conhecida, que se faz presente no dia a dia da população, quando há pronunciamentos de magistrados na mídia, por exemplo.
Tal fenômeno tem um viés positivo, já que o Judiciário passou a satisfazer necessidades da população que até então aguardavam uma ação dos outros Poderes. Porém, ao mesmo tempo, demonstra o quão os outros dois poderes estão inertes em relação às suas funções e isso pode gerar uma crise institucional, com riscos para a legitimidade democrática (juízes e magistrados não são eleitos pelo povo) e o risco de politização da justiça.
Além do que, com o aumento da procura pelo Poder Judiciário, a justiça se sobrecarregou a tal ponto que não tem conseguido dar conta do imenso volume de processos que são distribuídos todos os dias, o que acaba contribuindo para sua morosidade e ineficácia, apesar de ser enxergada “como canal de representação de minorias e grupos sociais excluídos” (VERÍSSIMO, 2008, p. 411).
Especificamente em relação a prestação de direitos sociais, especialmente no que concerne ao direito à saúde, o ativismo se tornou intenso.
Segundo explica o jurista francês Antonie Garapon,
“A judicialização surge pelo enfraquecimento dos poderes legislativo e executivo e torna o judiciário um crescente ator político, que diretamente interfere nas decisões de políticas publicas e sendo visto como ultimo refúgio para uma democracia idealizada, e na mesma medida que cresce o crédito na justiça, diminui a confiança e o interesse na política. (…) a cooperação entre os diferentes atores da democracia não é mais assegurada pelo Estado, mas pelo direito, que se coloca, assim, como a nova linguagem política na qual são formuladas as reivindicações políticas. justiça tornou-se em um espaço de exigibilidade da democracia. Ela oferece potencialmente a todos os cidadãos capacidade de interpelar seus governantes, de tomá-los ao pé da letra e de intimá-los a respeitarem as promessas contidas na lei” (GARAPON apud CASTRO, 2012, p. 26).
No entanto, o ativismo judicial em excesso poderia fazer nascer uma verdadeira ditadura de juízes, e, que os verdadeiros legitimados a criar políticas públicas estariam sendo tolhidos da sua função. Ocorreria talvez, com isto, a possibilidade de conferir poder constituinte aos magistrados, fazendo com que, no fim, o próprio legislativo criasse políticas públicas de acordo com as convicções e ideias desses juízes.
Porém, em decisão proferida pelo STF no Agravo Regimental 175, o Ministro Gilmar Mendes salientou que “ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento”[6].
Destaca-se, também, como consequência da judicialização, o fato de que ao se beneficiar uma pessoa com certos tipos de tratamento ou medicamento de valores altíssimos, estar-se-se-ia prejudicando o restante da sociedade diante do comprometimento do orçamento estatal. A titulo de ilustração, CASTRO (2012, p. 14) aponta que
“No Rio Grande do Norte, por exemplo, somente no ano de 2008 foram gastos cerca de 14 milhões de reais com demandas envolvendo a saúde, e a previsão do orçamento era de três milhões. Em São Paulo apenas no primeiro semestre de 2010 tinham 25 mil ações tramitando pela justiça com pedidos na área da saúde, e os gastos chegam a 25 milhões de reais, por mês para cumprir essas liminares. No Rio Grande do Sul são 4,5 mil ações referentes à saúde por semestre, e o gasto é demais de 6,5 milhões mensais. No Espírito Santo, de janeiro a setembro de 2009 existia360 ações judiciais envolvendo a saúde. Esses casos ilustrativos mostram o quanto o judiciário tem sido mobilizado pela população para reivindicar seu direito à saúde”.
A partir disto, podem surgir várias outras indagações, como por exemplo: a saúde é só para os que recorrem ao Judiciário? E aqueles que não possuem meios para isso? O magistrado teria a capacidade de definir quem deve ou não viver? E esse direito individual estaria lesionando o coletivo? São questões e problemas vivenciados quase que todos os dias pelos juízes Brasil afora.
Independente das questões negativas que o Ativismo Judicial possa gerar, na atual conjuntura está sendo, talvez, o único caminho para aqueles que precisam da efetivação completa de um direito fundamental que está sendo negado pelo Estado.
3.2 O ativismo judicial no âmbito da oferta da reprodução assistida pelo Sistema Único de Saúde
Nos últimos tempos houve um aumento significativo de ações judiciais no Brasil em busca da efetivação do direito à saúde. Neste contexto inserem-se as demandas em que pleiteia-se o acesso gratuito às técnicas de reprodução assistida.
Normalmente o pedido tem como fundamento tratar-se de direito fundamental que só estaria sendo colocado à disposição de quem pode custear tais tratamentos. Em contrapartida, a maioria dos magistrados nega o pedido com base no Princípio da Reserva do Possível, do Mínimo Existencial e na não evidência que a não realização deste tipo de tratamento acarrete ofensa à vida ou á saúde dos requerentes.
A teoria da reserva do possível originou-se por volta dos anos 70, na Alemanha. Conforme explica Sarlet e Figueiredo,
“(…) a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. (…), passou a traduzir ( tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público” (2007, p. 188).
No Brasil, o princípio da Reserva do Possível se liga ao Princípio da Razoabilidade, ou seja, deve-se tentar equacionar eficácia com eficiência, pois desse modo se garante vários direitos a toda a coletividade. Barcellos (apud CUNHA, 2011, p. 11) define Reserva do Possível como
“(…) a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre finitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que, além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise, da sociedade, já que é esta que o sustenta – é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos”.
O Princípio da Reserva do Possível, então, estabelece a viabilidade e a amplitude do poder estatal na concretização de certos direitos fundamentais e sociais e, como condição para tal efetivação, é necessário que haja recursos públicos disponíveis. Tal princípio sempre é citado quando de decisões judiciais relacionadas à concessão de direitos sociais que podem onerar os cofres públicos demasiadamente.
A teoria do mínimo existencial também surgiu na Alemanha. No Brasil se fortaleceu na última década, sendo este “compreendido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável” (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p. 184).
Ou seja, o princípio do mínimo existencial estaria diretamente ligado aos direitos e garantias fundamentais necessários para que o indivíduo possa usufruir de uma vida plena e livre, sem qualquer intervenção e garantida pelo ente estatal.
Como bem observa Torres,
“Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas. O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos Direitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão. Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não-fundamental (direito à saúde, à alimentação etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável” (1989, p. 29).
As decisões judiciais que concedem o pedido de acesso gratuito às técnicas de reprodução assistida se sustentam na ideia de que a infertilidade é problema de saúde e que é direito do cidadão o planejamento familiar. Por outro lado, as decisões que rejeitam este pleito fundamentam-se na reserva do possível e no mínimo existencial, acima explicitados.
Conclusão
O trabalho em questão tentou demonstrar que a reprodução assistida pode ser considerada parte integrante do direito fundamental à saúde, devendo seu pleito, para tanto, estar atrelado a um problema de saúde de cunho reprodutivo.
Conforme restou demonstrado, no Brasil não há lei que regulamente a realização da reprodução assistida, apenas a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina que abre muito o leque de possibilidades de quando e quem pode recorrer à mesma. Em várias hipóteses não há problema de saúde reprodutiva, mas impossibilidade natural de engravidar do marido falecido, engravidar do(a) companheiro(a) do mesmo sexo em casos de pares homoafetivos ou engravidar sem que se tenha um parceiro(a) para manutenção de relações sexuais, como no caso das “produções independentes”, por exemplo.
Nestes casos, portanto, não há que se falar no direito fundamental à reprodução assistida, que sempre este deve ser analisado, obrigatoriamente, no contexto do direito fundamental à saúde e, portanto, à saúde reprodutiva.
Quando a Lei de Planejamento Familiar prevê a disponibilização da reprodução assistida no Sistema Único de Saúde o faz dentro de um conjunto de políticas públicas de atenção à saúde reprodutiva, devendo restringir-se a este âmbito particular sua oferta à população.
Partindo desta premissa de que haja problema de saúde reprodutiva, não haveria nada mais justo do que oferecer a este meios e tratamentos para a restauração de sua saúde. Ressalte-se que problemas de infertilidade, quando não tratados, podem desencadear transtornos mentais e psicológicos.
Diante da inércia do poder legislativo em criar uma lei que regulamente a reprodução assistida e de onde sairiam os recursos para tal implementação, está cabendo aos magistrados interpretar se a mesma é ou não um direito fundamental que deve ser prestado pelo Estado e se este direito do particular pode se sobrepor ao direito da coletividade.
É imprescindível, com todo o avanço de tais técnicas, que o Estado brasileiro regulamente o uso das mesmas, principalmente no âmbito de sua oferta gratuita a usuários do SUS, para que tal política pública seja implantada com sucesso, sem causar prejuízo à outras áreas da saúde pública que já enfrentam problemas relacionados à falta de recursos.
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Notas:
Advogada, Graduada em Direito pela Faculdade Doctum de Juiz de Fora, Técnica em Enfermagem
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