Resumo: O presente trabalho tem por escopo a análise da responsabilidade civil do Estado no que se refere às más condições dos presídios brasileiros, com fulcro na Teoria do Risco Criado. Com fundamento na responsabilidade civil objetiva do Poder Público, este tem o dever não só de indenizar o detento em razão da ofensa à sua integridade física e moral, mas também de reformar e contruir novos presídios, com a devida previsão orçamentária. Demonstrar-se-á, nesse desiderato, a sucumbência da reserva do possível em face do princípio da dignidade da pessoa humana, se não comprovada objetivamente a insuficiência de recursos públicos. Para isso, proceceder-se-á à uma análise jurisprudencial acerca do tema, com o intuito de atestar a progressiva judicialização do tema, com vistas a reverter o atual “Estado de Coisas Inconstitucionais” em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, com massiva violação dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Presídios; más condições; Estado; responsabilidade objetiva; jurisprudência.
Abstract: The present work aimes to analyse the civil responsibility of the State, regarding to the bad conditions of brazilian prisons, with a focus on the Risk Theory. Based on the objective civil responsability of the Public Power, it has the duty not only to indemnify the detainee because of his physical and moral strength, but also to reform and build new prisons, with the proper budgetary forecast. It will be demonstrated, in this objective, a fallacy of the reserve of the possible in the face of the principle of the dignity of the human person, if it is not proved objectively the insufficiency of public resources. To this end, a case-law analysis will be carried out on the subject, with the aim of verifying a progressive judicialization of the subject, with a view to reversing the current "State of Unconstitutional Things" in which it is in the Brazilian penitentiary system, with massive Violation of fundamental rights.
Key words: Jail; bad conditions; State; objective responsability; jurisprudence.
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. 1. Responsabilidade civil: aspectos gerais. 2. Responsabilidade do Estado. 2.1. Aspectos gerais. 2.2. Evolução histórica da responsabilidade do Estado. 2.3. Caracterização e pressupostos da responsabilidade do Estado. 3. Responsabilidade estatal quanto à situação dos presídios. 3.1. A reserva do possível em contraposição ao mínimo existencial. 3.2. Controle judicial das políticas públicas: inafastabilidade da jurisdição. 3.3. Da análise jurisprudencial do tema. 3.3.1. Possibilidade de o Judiciário impor a realização de obras em presídios para garantir direitos fundamentais (RE 592581/RS). 3.3.2. Dever do Estado de indenizar o preso que se encontre em situação degradante (RE 580252/MS). Conclusão. Referências.
Introdução
A responsabilidade civil do Estado no ordenamento jurídico brasileiro é disciplinada no art. 37, §6º, CF/88, o qual impõe às pessoas jurídicas de direito público e às de direito privado prestadoras de serviços públicos a responsabilização objetiva, isto é, independente de culpa, pelos danos causados a terceiros.
No entendimento da doutrina majoritária, essa responsabilidade é guiada pela Teoria do Risco Administrativo, que, diferentemente da Teoria do Risco Integral, admite excludentes de responsabilidade. No caso da omissão estatal, entretanto, a responsabilidade é em regra subjetiva, devendo o interessado demonstrar a má prestação do serviço (“faute du service”).
Mas a omissão estatal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, pode ser objetiva em determinadas circunstâncias em que o Estado cria situações de risco sem as quais não ocorreria o dano, assumindo, pois, grande risco de gerar dano a particulares. É o que ocorre no caso dos detentos de presídio, no qual se aplica a teoria do Risco Criado (risco suscitado), em que há responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados ao custodiado.
No âmbito dos presídios brasileiros, destarte, vigora um “Estado de Coisas Inconstitucional”, diante da existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia das autoridades públicas em modificar a conjuntura, tornando necessárias transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação das autoridades para modificar a situação inconstitucional.
Nesse diapasão, buscar-se-á, neste trabalho, uma reflexão crítica sobre a questão, em contraponto com argumentos apontados pelo Estado nas ações judiciais contra ele intentadas, afim de demonstrar a necessidade de promoção dos direitos fundamentais do preso, não obstante as limitações financeiras do Poder Público.
Desenvolvimento
1. Responsabilidade civil: aspectos gerais
Na forma consagrada pelo Código Civil de 2002, em seu art. 186, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. São quatro, pois, os elementos caracterizadores da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, nexo de causalidade e dano a outrem.
No que concerne à responsabilidade civil, ademais, pode esta se apresentar em duas diferentes modalidades: contratual e extracontratual (também chamada “aquiliana”). Quando deriva da prévia relação contratual existente entre as partes, seja em razão de inadimplemento total, seja por ocorrência de mora no cumprimento do estabelecido entre as partes, fala-se em responsabilidade contratual. Por outro lado, havendo tão somente a infringência de um dever legal, inexistindo vínculo jurídico entre a vítima e o causador, ocorre a responsabilidade extracontratual, alvo deste trabalho.
Em conformidade com as disposições do Código Civil, a culpa, em regra, é necessária para caracterização da responsabilidade, juntamente com o dano e o nexo causal entre este e a conduta. Não obstante, estabelece o parágrafo único do art. 927, CC/02 que:
“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
O supracitado dispositivo legal trata da chamada responsabilidade objetiva, na qual, para que haja o dever de indenizar, basta a comprovação da conduta e do nexo de causalidade entre esta e o dano, independentemente do elemento subjetivo do agente.
Para justificar a responsabilidade objetiva, a doutrina expõe a teoria do risco, segundo a qual determinadas atividades, quando exercidas, criam, por esse fato, risco de dano a terceiros, havendo o dever de indenizar ainda que a conduta seja desprovida de culpa. Assim explica Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 49):
“A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como “risco-proveito”, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como “risco criado”, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo”.
Importa ressaltar que a Constituição Federal de 1988 não adotou a teoria da responsabilidade objetiva sob a modalidade do risco integral como regra. Portanto, mesmo havendo responsabilidade objetiva, a existência de excludentes de responsabilidade afasta o dever de indenizar no caso concreto, como ocorre com as hipóteses de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, força maior, caso fortuito.
2. Responsabilidade do Estado
2.1. Aspectos gerais
A responsabilidade do Estado, diferentemente daquelas correntemente destacadas no Código Civil, direcionada aos particulares, é pautada por princípios específicos, os quais decorrem da posição jurídica que ocupa na sociedade, motivo pelo qual se afigura mais abrangente do que a responsabilidade decorrente de atos de pessoas privadas.
Esse dever do Estado de indenizar os particulares pelos danos causados em decorrência de sua atuação decorre da já explicitada responsabilidade extracontratual, vez que não advém de qualquer contrato ou vínculo jurídico prévio com a vítima.
Percebe-se a produção de danos mais intensos, quando ocasionados por atividades estatais, decorrentes, ainda, de situações corriqueiramente distintas das ensejadoras de responsabilidade civil dos particulares. A esse respeito, merecem transcrição as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestações multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão própria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato onímodo e constante com os administrados lhe propicia acarretar prejuízos em escala macroscópica, o certo é que a responsabilidade estatal por danos há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamento dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e bens jurídicos (2013, p. 1013”).
Igualmente, destaca-se que os particulares não dispõem de poder suficiente para impedir os efeitos da atuação danosa do Estado sobre seus bens, direitos e interesses, vez que a este cabe definir seus parâmetros de atuação e as correspondentes consequências jurídicas, a serem suportadas por aqueles em face do princípio da supremacia do interesse público, que pauta o regime jurídico-administrativo a que rege o Poder Público.
Assevera-se, ainda, que os danos causados pelo Estado são provenientes de sua atuação na satisfação do interesse público, isto é, seu desempenho em prol da coletividade em geral, em conformidade com seu interesse primário. Não se mostra justo, desse modo, que apenas algum ou alguns dos administrados sofram as consequências negativas das atividades desenvolvidas pelo Poder Público em proveito de todos.
Pelos motivos expostos, a responsabilidade do Estado obedece a regras próprias, que visam compatibilizar as peculiaridades da pessoa jurídica de direito público com os possíveis danos advindos de suas atividades, resguardando-se, o quanto possível, o patrimônio privado em face dos riscos ligados às ações e omissões estatais.
Ante o exposto, verifica-se, na história brasileira e no direito comparado, uma evolução da responsabilidade estatal, com sua progressiva ampliação, visando proteger, cada vez mais, os interesses privados lesados pelos atos públicos.
Atualmente, reconhece-se a responsabilidade do Estado até mesmo em face de atos legislativos, quando de efeitos concretos ou, no caso de leis formais, ou materiais, declaradas inconstitucionais, por controle concentrado de constitucionalidade, ensejando dano específico a alguém.
Até mesmo atos jurisdicionais podem ocasionar o dever de indenizar por parte do Estado, como no caso de erro judiciário, conforme expressa previsão constitucional no art. 5º, LXXV (“o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”).
Com a evolução da responsabilidade do Estado, conforme será demonstrado a seguir, passou-se da absoluta irresponsabilidade estatal e posterior responsabilidade subjetiva à responsabilidade objetiva, que, conforme explicitado anteriormente, independe da comprovação de dolo ou culpa, sendo bastante a conduta e o nexo de causalidade entre esta e o dano para a obrigação de indenizar a vítima.
2.2. Evolução histórica da responsabilidade do Estado
De fato, durante o século XIX, prevalecia a ideia de que o Estado era destituído de responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes, com a imposição absoluta do princípio da soberania. Vigorava a frase “the king can do no wrong”, isto é, o rei não comete erros, de forma que a atuação estatal era considerada sempre legítima, independentemente dos danos causados aos particulares.
Alguns países, como a França, foram admitindo a responsabilização do Estado quando leis específicas a previssem explicitamente, não mais representando, pois, completa desproteção dos administrados em face dos comportamentos estatais. Impera ressaltar que, nesse período, admitia-se o dever estatal de indenizar tão somente quando houvesse expressa previsão legal para o caso em espeque. Caso contrário, prevalecia a impunidade do governante.
Com o tempo foi-se abandonando a teoria da irresponsabilidade do Estado e surgindo a responsabilidade estatal por ação culposa do agente, na chamada doutrina civilista da culpa. Aqui, mostrava-se importante a distinção entre atos de império e atos de gestão, de modo que estes se assemelham aos atos privados, ao passo que aqueles decorrem da soberania estatal.
No caso da prática de atos de gestão, seria possível a responsabilização do Estado, se demonstrada culpa na atuação do agente, mas se a hipótese fosse de ato de império, continuava a inexistir a responsabilidade estatal, em atenção às regras tradicionais de direito público.
Evoluiu-se, então, para a teoria da culpa administrativa, na qual não mais se mostrava necessária a identificação do agente específico causador do dano, sendo suficiente a comprovação do mau funcionamento do serviço público. É a chamada culpa anônima ou falta do serviço, ainda hoje vigente para casos de omissão estatal. Acerca da matéria, explica José dos Santos Carvalho Filho:
“A falta do serviço podia consumar-se de três maneiras: a inexistência do serviço, o mau funcionamento do serviço ou o retardamento o serviço. Em qualquer dessas formas, a falta do serviço implicava o reconhecimento da existência de culpa, ainda que atribuída ao serviço da Administração. Por esse motivo, para que o lesado pudesse exercer seu direito à reparação dos prejuízos, era necessário que comprovasse que o fato danoso se originava do mau funcionamento do serviço e que, em consequência, teria o Estado atuado culposamente. Cabia-lhe, ainda, o ônus de provar o elemento culpa” (2014, p. 556).
Por fim, passou-se a consagrar a responsabilidade objetiva do Estado, dispensando-se aferimento de culpa ou dolo por parte do agente para reconhecimento do dever estatal de indenizar. Não obstante, ressalta-se a possibilidade de exclusão da responsabilidade por eventos que rompam o nexo de causalidade, como ocorre com a culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, força maior ou caso fortuito.
2.3. Caracterização e pressupostos da responsabilidade do Estado
Em decorrência de fundamentos políticos e jurídicos, relacionados à supremacia do Estado em face dos particulares, alastrou-se a teoria da reponsabilidade objetiva no âmbito do direito público. Nesse sentido, esclarece José dos Santos Carvalho Filho:
“Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou plenamente perceptível que o Estado tem maior poder e mais sensíveis prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica, política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário, tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras normas do ordenamento jurídico. Sendo assim, não seria justo que, diante dos prejuízos oriundos da atividade estatal, tivesse ele que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação de danos” (2013, p. 556).
Em face desse poder conferido ao Estado, teria ele que arcar com os riscos decorrentes de suas atividades, em consonância com a teoria do risco administrativo, que fundamenta a responsabilidade objetiva do Poder Público. Diferencia-se essa teoria da do risco integral, pois nesta não se admite excludentes de responsabilidade, tal como ocorre no âmbito dos danos ao meio ambiente.
Outrossim, verifica-se a repartição de encargos como fundamento, também, da responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que este, ao ser condenado à reparação de determinado prejuízo, se utilizaria dos valores provenientes das contribuições da sociedade, a qual, afinal, é a beneficiária dos poderes e das prerrogativas estatais.
Nesse sentido, dispõe o CC/02, em seu art. 43:
As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.
Da mesma forma, a CF/88, no art. 37, §6º, estabelece:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Desses dispositivos depreendem-se os pressupostos básicos para caracterização da responsabilidade do Estado. De início, verifica-se que este só pode ser obrigado a reparar o dano caso o agente tenha agido nessa qualidade, isto é, no exercício de suas funções ou, ao menos, a pretexto de exercê-la. Caso contrário, a responsabilidade seria pessoal do agente e regida pelo direito civil, não havendo de ser imputada ao Estado.
Nesse caso, não importa, para fins de responsabilidade estatal, se o agente agiu de forma culposa ou dolosa, mas apenas se a sua qualidade de agente público fora determinante para a conduta lesiva. O elemento subjetivo da conduta do agente tem relevância apenas para eventual ação de regresso do Estado em face deste, pois que necessária a comprovação de culpa ou dolo na hipótese.
Tem-se como pressuposto, ademais, da responsabilidade objetiva do Estado, a ocorrência de fato administrativo, consubstanciado em conduta comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima do Poder Público, por meio do agente que atua como tal. Além disso, requer-se a prova do prejuízo, já que se o lesado não provar que a conduta estatal tenha lhe causado dano, inexiste reparação a ser postulada. Por fim, deve ser demonstrada a relação de causalidade entre o fato administrativo e o dano.
Assim, existindo fatos imprevisíveis que rompam o nexo de causalidade, ou, ainda, participação do lesado, de maneira que, se ele tiver sido o único causador de seu próprio prejuízo, ou caso tenha contribuído de alguma forma para a ocorrência do dano, pode-se excluir ou atenuar a responsabilidade estatal por sua reparação.
Por fim, impera destacar que, para a responsabilização do Estado, é necessário que a vítima, ao propor ação reparatória, se desincumba do ônus de provar suas alegações, comprovando a presença, no caso, dos pressupostos essenciais caracterizadores da responsabilidade do Poder Público (conduta, nexo causal e dano). Ao Estado, por sua vez, cabe a contraprova de tais alegações.
3. Responsabilidade estatal quanto à situação dos presídios
Quando o Estado recolhe um indivíduo ao presídio, passa a ter responsabilidade sob sua guarda, na condição de garantidor, devendo-lhe assegurar condições de segurança e saúde. Assim, torna-se obrigatória uma atuação estatal positiva, assegurando os direitos dos presidiários, inclusive no que concerne à estrutura do estabelecimento prisional, a fim de que não lhes ofenda o mínimo existencial inerente à sua dignidade.
O Estado, portanto, deve garantir ao preso sua integridade física e moral durante a segregação, conforme art. 5º, inciso XLIX, CF/88, o que se mostra incompatível com celas superlotadas e destituídas de mínimas condições de higiene. Não sendo cumprido o dever estatal, haverá sua responsabilização.
3.1. A reserva do possível em contraposição ao mínimo existencial
O mínimo existencial decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental e informador de todo o ordenamento jurídico brasileiro, elencado no art. 1º, III da Constituição Federal de 1988 como fundamento da República Federativa do Brasil. Inviabiliza-se, em razão dele, atuação estatal lesiva injustificada violadora dos direitos fundamentais.
Esse postulado, pois, vem sendo alegado constantemente em demandas judiciais para questionar as condições em que vivem os detentos nos presídios brasileiros. Requer-se do Estado, nesse âmago, a realização de reformas em presídios e a indenização de presos por submeterem-se a condições degradantes, tudo com vistas à proteção do mínimo existencial destes.
Conforme exposto, a preservação da dignidade dos presidiários, essencial à satisfação dos preceitos constitucionais, deve ser garantida. Não obstante, merece destaque também a chamada “reserva do possível”, alegada pelo Estado em defesa à busca judicial pela melhoria das condições dos presídios.
Trata-se de uma barreira à plena satisfação de todas as necessidades sociais pelo Estado, uma vez que a prestação positiva por parte deste encontra limite naquilo que se pode razoavelmente dele esperar. O Poder Público, nesse ínterim, não possui disponibilidade financeira suficiente para arcar com todo e qualquer gasto, devendo haver uma seleção daqueles considerados mais essenciais à sociedade.
Destarte, a reserva do possível tem seu fundamento básico na Lei 4.320/64, que estatui as normas gerais do direito financeiro e veda que o Estado proceda à realização de receitas e despesas não contidas previamente nas leis orçamentárias. Visa-se, com isso, impedir que a deterioração do erário com valores imprevistos.
De fato, com a crescente valorização dos direitos fundamentais e do ideal da dignidade da pessoa humana, a falta de recursos do Estado se mostrou como uma barreira à plena satisfação das necessidades individuais e coletivas. Haveria, nesse sentido, uma limitação à satisfação dos direitos fundamentais prestacionais.
Por evidente, essa barreira fundada na capacidade econômica do Estado não há de ser desconsiderada, uma vez que este não pode, a partir de sua reserva orçamentária, atender a toda e qualquer situação de necessidade dos indivíduos, numa espécie de meta utópica de universalidade. Esta, invariavelmente, encontrará seu teto na reserva do possível.
Deve haver por parte do Estado, destarte, uma organização financeira, com a devida previsão orçamentária, de modo a garantir, na forma determinada pela Constituição Federal, a proteção dos direitos fundamentais dos detentos. Não o fazendo, cabe ao Poder Judiciário intervir, para satisfazer os direitos que, de forma inconstitucional, foram desconsiderados.
3.2. Controle judicial das políticas públicas: inafastabilidade da jurisdição
Nesse âmbito, é comum falar-se na atuação excessiva do Judiciário no que tange à criação de políticas públicas, em substituição ao Poder Executivo, alegando este que aquele estaria desrespeitando a esfera de discricionariedade administrativa, área na qual não deveria se imiscuir, diante da separação dos poderes. A satisfação do mínimo existencial dos detentos, entretanto, justifica a intervenção judicial no caso.
No julgamento do RE 592581, que será analisado em seguida, o ministro relator Ricardo Lewandowski, explica, sobre o tema:
“Basta lembrar, nesse sentido, que uma das garantias basilares para a efetivação dos direitos fundamentais é o princípio da inafastabilidade da jurisdição, abrigado no art. 5o, XXXV, de nossa Constituição, segundo o qual “a lei não subtrairá à apreciação do poder judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito”. […]
Ora, salta aos olhos que, ao contrário do que conclui o mencionado aresto, existe todo um complexo normativo de índole interna e internacional, que exige a pronta ação do Judiciário para recompor a ordem jurídica violada, em especial para fazer valer os direitos fundamentais – de eficácia plena e aplicabilidade imediata – daqueles que se encontram, temporariamente, repita-se, sob a custódia do Estado”.
Não se defende, importa destacar, a implementação das políticas públicas diretamente pelo Poder Judiciário, em clara ofensa à separação dos poderes, mas sim de dar concretização aos direitos fundamentais, expostos na Constituição da República, ante a omissão do Poder Público na satisfação das necessidades básicas detentos. Ao contrário, como exposto, vem-lhes sendo impostas condições desumanas nos presídios, com celas superlotadas e sem padrão mínimo de higiene.
Destarte, devidamente provocados, cabe aos magistrados atuar na garantia de direitos fundamentais básicos ignorados pelo Estado, não se transmudando, aqueles, em administradores públicos, mas tão somente exercendo sua atribuição constitucionalmente garantida, de satisfação das pretensões resistidas postas em litígio. Para isso, cabe ao Poder Judiciário determinar ao Poder Público a inclusão orçamentária das reformas nos presídios.
3.3. Da análise jurisprudencial do tema
Postas essas questões, passar-se-á a uma análise jurisprudencial do tema, de acórdãos recentes do Supremo Tribunal Federal, em que se resolveu pela possibilidade de o Judiciário impor a realização de reformas em presídios, bem como determinar a indenização ao presidiário, pelo Estado, em razão das condições degradantes destes.
Nesse âmbito, verificar-se-ão os conceitos de mínimo existencial em contraposição à reserva do possível, aliados à questão da interferência do Judiciário na satisfação dos direitos fundamentais dos presidiários.
3.3.1. Possibilidade de o Judiciário impor a realização de obras em presídios para garantir direitos fundamentais (RE 592581/RS)
O recurso extraordinário 592581 foi interposto pelo MP/RS contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no âmbito de Ação Civil Pública, que entendeu pela impossibilidade de o Poder Judiciário adentrar em matéria reservada à Administração Pública, não podendo aquele determinar a esta a realização de obras em estabelecimento prisional, sob pena de indevida invasão em seu campo decisório.
Não obstante o reconhecimento, por parte do TJ local, de que a precariedade das condições a que estão submetidos os detentos do Albergue Estadual de Uruguaiana, alvo da ação, constitui violação de sua integridade física e moral, atentando contra os princípios constitucionais, decidiram os julgadores por manter entendimento jurisprudencial até então prevalecente, no sentido exposto.
Segundo o acórdão em questão, embora o texto constitucional disponha sobre os direitos fundamentais do preso, deve-se destacar a dificuldade na técnica de efetivação desses direitos, a saber se a obrigação imposta ao Estado constitui norma programática ou impositiva. Segundo o referido TJ, trata-se de disposição não autoexecutável, não cabendo ao Judiciário determinar ao Poder Executivo a realização de obras em prol do direito constitucional do preso, sob pensa de substituir o administrador em sua atuação, de forma indevida.
A reserva do possível, no entendimento do supracitado tribunal, no que diz respeito aos direitos de natureza meramente programática, relaciona-se à possibilidade material do Estado e, ainda, com o poder de disposição por parte da Administração, no âmbito de sua discricionariedade.
Segundo o MP/RS, entretanto, a reserva do possível não se mostra como justificativa suficiente para o Executivo abster-se de suas obrigações constitucionais. Para alegar tal cláusula, seria necessária a demonstração de justo motivo, devendo, por outro lado, ser ela afastada quando implicar violação ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. No caso concreto, não havendo sido contestado o péssimo estado de conservação do albergue, nem demonstrada a inexistência de recursos orçamentários, não merece prosperar alegação de insuficiência de recursos do Estado.
Nesse mesmo sentido foi fixada a tese de repercussão geral no STF, em 2015, no seguinte sentido:
“É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016)”.
3.3.2. Dever do Estado de indenizar o preso que se encontre em situação degradante (RE 580252/MS)
O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 580252/MS, reconheceu a responsabilidade civil do Estado por danos morais comprovadamente causados aos presos em razão da superlotação prisional e do encarceramento em circunstâncias desumanas ou degradantes. O descumprimento do dever estatal na garantia de condições dignas de encarceramento relaciona-se a uma deficiência crônica de políticas públicas, a qual há e ser suprida pelo Judiciário.
Segundo entendimento da Suprema Corte, o princípio da reserva do possível não pode ser considerado no âmbito da responsabilidade civil do Estado, mas apenas em hipóteses de concretização de direitos fundamentais prestacionais, dependentes da atuação positiva do Estado.
Nesse âmbito, não se poderia manter a impunidade das constantes violações aos direitos básicos dos presos, sob fundamento de que a indenização seria incapaz de eliminar o problema prisional, uma vez que tal argumento teria por consequência tão somente consolidar a situação desumana em que se encontram os presidiários no país.
Considerando-se, pois, que é dever do Estado a manutenção dos presídios conforme padrões mínimos de humanidade, configura responsabilidade sua, na forma do art. 37, § 6º da Constituição da República, o ressarcimento dos danos materiais e morais causados aos detentos ante a falta de condições legais de encarceramento.
A alegação da teoria da reserva do possível implicaria, no caso, uma negativa aos presos de direitos inerentes à integridade física e moral, como a proibição do tratamento desumano ou degradante, bem como das penas cruéis, conforme a CF de 1988. Ademais, não merece ser alegada a reserva do possível em casos que levem à anulação de direitos fundamentais conferidos pela Constituição.
Entendimento contrário ao esposado na tese fixada em repercussão geral opõe-se à indenização dos presidiários em face das condições precárias das penitenciárias, por não constituir resposta efetiva aos danos morais por eles suportados, uma vez que o detento permanecerá submetido às condições desumanas após a condenação do Estado.
Outrossim, tal como alegam os estados e municípios em suas defesas, a reparação monetária tem o condão de acarretar a multiplicação de demandas idênticas, levando a sucessivas condenações no mesmo sentido, agravando e perpetuando a violação à dignidade humana dos presos, ante a escassez dos recursos estatais.
Verifica-se, da análise de ambos os posicionamentos estampados, que a salvaguarda dos direitos fundamentais dos detentos de fato não será garantida por meio de indenizações pelas más condições dos presídios. Os escassos recursos do Estado devem ser direcionados a reformas efetivas dos presídios, na forma determinada pela tese fixada no recurso extraordinário 592581, anteriormente analisado, a fim de promover mudanças efetivas nas suas condições, privilegiando a dignidade dos presidiários.
O pagamento de indenização a indivíduos determinados, além de ofender o princípio da autonomia, impõe ao Estado a posição de garantidor universal, a qual não pode ser sustentada, ante a impossibilidade material deste de arcar com todo e qualquer dano sofrido por particulares.
Afigura-se necessário, pois, analisar detidamente a natureza e a gravidade da situação carcerária no país, para trilhar soluções que efetivamente garantam aos presos condições adequadas, conforme os padrões da Constituição Federal.
Conclusão
Diante do “Estado de Coisas Inconstitucional” atualmente vigente no país, reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, verifica-se, no âmbito dos presídios brasileiros, uma violação massiva e generalizada dos direitos fundamentais de um número incontável de pessoas, ocasionada pela persistente omissão da Administração Pública no cumprimento de suas obrigações constitucionais.
É, por conseguinte, dever do Estado se organizar financeiramente para arcar com os custos das melhorias substanciais a que fazem jus os presídios brasileiros, com vistas à proteção dos direitos fundamentais dos detento. Sendo omisso o Poder Público, é possível ao Judiciário intervir, excepcionalmente, no âmbito de atuação daquele, para garantir o mínimo existencial dos carcerários.
Não se visa sustentar, por meio deste trabalho, a substituição da Administração Pública pelo Judiciário na implementação das políticas públicas, o que ofenderia o princípio da separação dos poderes, mas tão somente a satisfação do mínimo constitucional aos detentos, para satisfação de suas necessidades essenciais. Para isso, busca-se a efetivação de medidas estruturais, a fim de que haja uma mudança substancial no quadro de violação generalizada que domina os presídios no país.
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