Anne Elisa Soares Neres[1]
Resumo: A presente pesquisa discute a responsabilidade da imprensa na incidência de dano moral, relativo a divulgações de nomes e imagens de indivíduos associados a fatos considerados crime. Realizou-se pesquisa bibliográfica exploratória, a fim de se buscar o melhor entendimento legal, doutrinário e jurisprudencial sobre o tema. O foco da pesquisa diz respeito a aparente antinomia das normas reguladoras do direito de personalidade com as que regem o direito de imprensa. O trabalho tem por escopo, evidenciar os limites da atividade da imprensa frente a direitos individuais à honra, à imagem e à vida privada. A conclusão pretende elucidar a possibilidade ou não de cabimento de responsabilização da imprensa por dano moral, na publicação de notícias sobre fatos criminosos.
Palavras-chave: direito de imprensa; responsabilidade; direitos da personalidade; dano moral; direito penal.
Abstract: The present research discusses the responsibility of the press in the incidence of moral damages related to the disclosures of names and images of individuals associated with facts considered to be crimes. Exploratory bibliographic research was carried out in order to seek the best legal, doctrinal and jurisprudential understanding on the subject. The focus of the research concerns the apparent antinomy of norms regulating the right of personality with those governing press law. The purpose of this work is to highlight the limits of the activity of the press against individual rights to honor, image and private life. The conclusion is intended to elucidate the possibility or otherwise of accountability of the press for moral damages in the publication of news about criminal events.
Keywords: press rights; responsibility; personality rights; moral damage.
Sumário: Introdução. 1. O direito Constitucional de Imprensa no Brasil. 2. Os direitos de personalidade e direito à honra, à imagem e à vida privada. 2.1. Direito à honra, à imagem e à vida privada. 3. Conflito entre Direito de imprensa e Direitos da personalidade e hipótese de dano moral na divulgação de fato criminoso.
INTRODUÇÃO
Comum encontrar nos noticiários[2] menção a nomes e divulgação de imagens de pessoas que cometeram ou supostamente cometeram crime. Esse direito de veicular fatos sociais é consagrado no Brasil pela nossa Carta Republicana e pretende assegurar a ordem pública por meio de acesso a informações que sirvam, entre outras aplicações, para prevenir atos criminosos e garantir o controle social tanto de ações privadas quanto de atos do poder público.
Algumas vezes, essa divulgação acontece mesmo antes da apuração conclusiva dos fatos, pondo em risco a honra objetiva e subjetiva de um suspeito que poderá provar-se inocente. Mas também pode ocorrer de ser o indivíduo, ao final de um processo, considerado culpado e condenado por sentença.
Em qualquer caso, no entanto, há de se verificar se houve, na divulgação do fato, abuso que cause violação indevida de direitos da personalidade dos envolvidos na reportagem, pela exposição de sua imagem ou publicação de seu nome em associação a fato criminoso, ferindo a honra, denegrindo a imagem ou invadindo a esfera de sua vida privada e causando dano moral.
Os direitos de personalidade estão fincados no ordenamento jurídico pátrio como parte indispensável dos fundamentos do estado democrático de direito. Entre eles se destacam o direito à honra, à imagem e à vida privada (Conf. CRFB/1988, art. 5º, inc. X). Esses direitos, no entanto, não se apresentam independentes nem absolutos, devem ser conjugados no sistema normativo em concordância com outros que podem lhe ser contraditórios, mas que também compõem esse sistema e gozam da mesma hierarquia. Entre esses últimos merece nota a garantia de livre manifestação de pensamento e a livre expressão da atividade de comunicação independentemente de licença ou censura (incisos IV e IX, art. 5º, CRFB/1988).
No exercício dessa conjugação, no entanto, os destinatários da norma e mesmo o operador do direito encontrarão um conflito de aplicação, uma aparente antinomia, a qual só se dissolve por meio de uma hermenêutica sistemática e principiológica.
No quadro que se desenha há um confronto entre direitos de personalidade e liberdade de imprensa, ambos resguardados na Constituição Federal no mesmo patamar, no capítulo dos Direitos Fundamentais, mas, necessariamente, uns devem ter primazia para que se alcance harmonia no ordenamento jurídico.
Diante dessa realidade, o problema atacado pelo presente artigo se perfaz na seguinte pergunta: os agentes da imprensa poderão ser responsabilizados por dano moral nos casos de associação e exposição de nome e imagem de pessoas na veiculação de fato criminoso?
A pesquisa justifica-se em razão da importância da elucidação do tema para a correta aplicação da atividade jornalística, assim como para a defesa de direitos daqueles que são expostos em reportagens de fatos criminosos. Considerando a abundância de notícias dessa natureza, que se veicula pelos mais diversos meios de comunicação, é de fundamental importância realçar a tênue linha limítrofe entre direito de imprensa e de informação e direito à honra, à imagem e à vida privada, importantes matrizes do direito constitucional brasileiro.
Encontrar equilíbrio nessa relação, de modo a não se banalizar os direitos individuais da personalidade, coibindo abusos por parte dos agentes da mídia e, ao mesmo tempo, não se rechaçar a livre manifestação do pensamento, a garantia coletiva de acesso à informação e os direitos de comunicação social é imperioso para o fortalecimento da cidadania e da democracia, vetores do estado democrático de direito.
Para elucidar a questão, o presente trabalho valeu-se de pesquisa bibliográfica exploratória em livros e artigos científicos (esses últimos disponíveis na rede mundial de computadores).
Na primeira fase selecionou-se o material bibliográfico para realização da revisão de literatura, utilizando-se tanto de bibliotecas físicas quanto virtuais.
Na pesquisa virtual, usando os descritores “direito de imprensa, responsabilidade, direitos da personalidade e dano moral” encontrou-se mais de 18 mil resultados.
Na fase seguinte elegeu-se o material de interesse, tendo como critério de seleção a pertinência temática e o ano de publicação, evitando-se trabalhar com artigos com data anterior ao ano 2000.
Além da pesquisa em livros e artigos, figura como principal fonte de fundamentação os dispositivos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nas leis específicas sobre o tema e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, vale informar que a pesquisa não possui cunho terminativo, pretende tão somente lançar luz sobre a intrincada relação entre direitos de personalidade e liberdade de imprensa e abrir caminho para novas investidas acadêmicas nesta seara.
Ao constituir entre seus princípios fundamentais a forma republicana fincada no regime democrático, ao estabelecer, dentre outros, a cidadania e a dignidade do ser humano como fundamentos e a construção de uma sociedade livre como um de seus objetivos fundamentais, a Lei Magna brasileira abre o caminho que deve, necessariamente, ser pavimentado por uma série de direitos e garantias que conduzam a liberdades civis individuais e coletivas capazes de assegurar esse ideal, dentre eles está a proposta de uma imprensa livre, cujas balizas se lançam a partir do artigo 220 da Lei Suprema.
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
[…]
É com esteio nesse olhar constitucional que se pretende lançar luz sobre o alcance e os limites da liberdade de imprensa, entendendo, desde logo, que se trata de elemento fundamental para a manutenção de liberdades necessárias à prevalência do regime democrático e de direitos individuais e coletivos.
Na clara dicção do art. 220, a CRFB/1988 permite pontuar quatro pilares da liberdade inerente à comunicação social: a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação.
Das lições do douto Ministro Gilmar Mendes (2015, p.3) se compreende que a liberdade de expressão é o continente onde se abriga a liberdade de impressa. Nesse mesmo prisma destaca o renomado Professor Luís Roberto Barroso (2004, p. 18), para quem a liberdade de imprensa se relaciona às liberdades constitucionais de informação e de expressão.
É de propósito que a liberdade de imprensa vem albergada dentro de valores maiores, dos quais ela se faz instrumento de garantia (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009), pois, vez por outra, esse poder social sofre retaliações dos que ascendem ao governo e, mesmo tendo bom intuito, editam leis que tendem à uniformização da opinião pública e à fragilização do controle social das ações governamentais, ferindo o princípio democrático.
Foi assim no caso da Lei 5.250 de 9 de fevereiro de 1967, que trazia em seu bojo uma série de restrições à liberdade de expressão e à atividade jornalística e de imprensa, incluindo pena de prisão a jornalistas por fato que fosse considerado calúnia, injúria ou difamação (art. 67 a 70 da lei 5.250/1967[3]). Esse diploma legal, em que pese sua contrariedade aos preceitos constitucionais de 1988, vigorou até o ano de 2009, quando foi derrogado por força de decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 130, de 2008, com julgamento no ano de 2009.
Essa decisão veio consolidar o que já estava posto no Capítulo V da Constituição Federal de 1988, pondo a salvo, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, as liberdades necessárias à efetivação dos ideais republicanos e democráticos.
Dessa forma, é mais que salutar a compreensão de que a Carta Republicana brasileira protege os direitos inerentes à atividade jornalística e de imprensa, assegurados em seu Capítulo V, artigos 220 a 224, como braço dos próprios direitos da personalidade e de densificação da dignidade humana (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009).
Para Karan, citado por Peruzzo (2002, p.7), a atividade jornalística é instrumento de defesa da informação como um bem público e social, apesar das condições que se impõem pelo sistema capitalista. Desse ponto de vista, insurge-se o direito de imprensa contra os desmandos tanto de governos como de grupos detentores do capital e afirma-se como instituição pública defensora de informações úteis e indispensáveis ao bem viver social.
Esse entendimento, que eleva a liberdade de imprensa a um instituto jurídico revestido da mais alta importância para a defesa do interesse público, além de abraçado pela doutrina, está também plenamente consolidado na jurisprudência dos tribunais superiores. Marco simbólico desse magistério jurisprudencial foi a já citada ADPF 130, mas depois dela diversos outros julgados caracterizam o direito de imprensa como segmento das garantias abrigadas no art. 5º da Lei Maior. Veja-se, a exemplo disso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4451 MC-REF / DF – DISTRITO FEDERAL, 2012.
Como se vê, portanto, a Constituição “radicaliza e alarga o regime de plena liberdade e atuação da imprensa” e apresenta tal liberdade na ordem constitucional vigente como corolário da própria democracia e como esteio dos mesmos direitos de personalidade que muitas vezes entram em colisão com ela. (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009; AI 705.630 AgR, 2011).
Mas, em que pese sua importância, tal liberdade não se mostra absoluta, pois ao seu exercício se impõe a proibição de abusos e excessos, limites desenhados na própria Constituição Federal, especialmente na esfera da proteção à honra, à imagem e à vida privada das pessoas, direitos da personalidade adiante abordados.
Os direitos da personalidade têm seu nascedouro na origem do próprio direito, remontando as civilizações mais antigas, visto que são inerentes à própria existência da pessoa e necessários à preservação da espécie humana. É esse o entendimento do insigne jurista Caio Mario da Silva Pereira (2010, p.202), para quem a proteção aos direitos de personalidade nunca faltou na tradição romano-cristã.
Pereira evidencia que os conceitos do direito, normativos ou teóricos, sempre asseguraram condições, ainda que elementares, de respeito ao indivíduo como pessoa e como componente da sociedade.
Entre os documentos mais antigos a consagrar esses direitos está a Carta Magna de 1215, da legislação britânica, um dos primeiros instrumentos legais de efetiva defesa dos direitos de personalidade de que se tem conhecimento no mundo ocidental. Mas no processo civilizatório esses direitos sempre tenderam a se aprimorar. De um ponto de vista histórico pode-se afirmar que seu processo de incorporação sistemática nos ordenamentos jurídicos teve início na França com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789; Com o Bill of Rights de 1776 nos Estados Unidos; E, por fim, consolidou-se com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, em 1948 (Idem, ibdem, p. 203 e 205).
No Brasil, ensina Piovesan (2015, p. 91,92), foi com a Constituição de 1988 que os direitos de personalidade foram sistematizados e institucionalizados, correspondendo à maioria das prerrogativas elencadas no Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Lei Maior. Em toda a sua extensão, a iniciar em seu preâmbulo, a Carta Constitucional se propõe a assegurar o pleno exercício de direitos individuais e sociais, além de colocar esses mesmos direitos como parte dos fundamentos e objetivos do estado democrático, além disso, reconhece a existência de direitos da mesma natureza, previstos em pactos e tratados internacionais, ainda que nela não positivados.
Para Caio Mario da Silva Pereira (2010, p.202) esses direitos se perfazem na proteção à vida, à incolumidade física e à integridade moral. É dizer que a ordem jurídica “reconhece a existência de faculdades atribuídas ao homem, imbricadas na sua condição de indivíduo e de pessoa”. Enquanto esse autor associa os atributos da personalidade àqueles direitos classificados como fundamentais no art. 5º da Constituição, Flávia Piovesan (2015, p.103, 104) dá aos mesmos o status de direitos humanos.
Seguindo esse raciocínio, os direitos da personalidade podem ser definidos como o conjunto de caracteres humanos passíveis de ser individualizados como bens inerentes à dignidade da pessoa, de cunho não econômico, merecedores de proteção jurídica.
Albergados em toda a extensão da nossa Constituição Federal, notadamente no artigo 5º, os direitos de personalidade irradiam da própria condição de humanidade da pessoa e se tornam o ferramental necessário à garantia da dignidade humana, fundamento da República.
2.1 Direito à honra, à imagem e à vida privada
No rol não taxativo dos direitos de personalidade a Carta Constitucional brasileira declarou que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (CRFB/88, art. 5º, X) e ainda assegura o direito de indenização em caso de dano, tanto material quanto moral, decorrente de sua violação.
A vida privada diz respeito à salvaguarda de um espaço íntimo e à própria imagem do indivíduo, suficiente para repelir intromissões não autorizadas por ele. Essa proteção, ensina Alexandre de Moraes (2015, p. 154, 155), pode ser oposta aos meios de comunicação em massa, como televisão, jornais e rádios.
O direito à honra se refere à consideração própria (honra subjetiva) e à consideração social da qual desfruta um indivíduo (honra objetiva). A palavra é proveniente do latim honor e designa a própria dignidade da pessoa (Marques, 2010).
A imagem, por sua vez, é conceito autoexplicativo. Está associada a qualquer forma de reprodução dos caracterizes físicos capazes de individualizar a pessoa, e sua proteção inclui fotografias, vídeos ou mesmo pinturas não autorizadas.
Alexandre de Morais incluiu esses direitos, entre os que chamou de direitos humanos fundamentais e os distinguiu de modo especial ao demonstrá-los como consequência inevitável do princípio da dignidade da pessoa humana (Moraes, 2013, p.48). Nesse diapasão, importante destacar, portanto, que a vida privada, a honra e a imagem das pessoas se apresentam como elementos inerentes à própria existência da personalidade, merecedores de toda proteção do ordenamento jurídico.
Para consagrar essa importância a norma constitucional formula o direito de resposta e a indenização por dano material ou moral sofrido, previstos no art. 5º, inc. V da CRFB/1988. “A norma pretende a reparabilidade da norma jurídica lesada (…) não permite qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade da indenização por dano moral…” (Moraes, 2013, p.137).
Desse prisma é visível que o direito à honra, à imagem e à vida privada estão resguardados na Constituição Federal de forma fundamental e a compensação pela violação desses direitos se encontra plenamente assegurada, seja pelas vias econômicas ou por meio de resposta proporcional ao agravo.
Vale, agora, realizar a análise conjunta desses direitos para elucidar o seu ponto de conflito objeto do presente trabalho: a divulgação de fato criminoso e a possibilidade de dano moral.
O jornalismo pressupõe o dever de comunicação e informação por parte de quem o exerce, por isso esses profissionais estão sempre em busca de fatos que se mostram relevantes do ponto de vista do interesse coletivo, seja para toda a sociedade ou parcela dela. É notório que dentre os acontecimentos que mais despertam a curiosidade da população estão aqueles relacionados ao crime, razão pela qual pululam tais informações nos meio de comunicação.
Ocorre que ao noticiar fato criminoso a imprensa, geralmente, vincula ao fato um sujeito que supostamente (ou comprovadamente) é seu autor. Ao publicar a notícia a imagem e a honra do suspeito ou acusado é inevitavelmente atingida de maneira direta e, muitas vezes, irreversível, violando seus direitos de personalidade.
Nesse caso, a matéria jornalística terá invadido a esfera de direito particular de outrem e atingido sua dignidade, tão cara no ordenamento jurídico. Esse fato poderá produzir a responsabilidade do veículo de comunicação em face dos direitos que violou.
A responsabilidade, conforme Pablo Stolze Gagliano (p.53-61), pode ser contratual, aquela que decorre de convenção entre as partes, ou aquiliana, advinda de ato ilícito em razão de violação de uma norma legal, conceito pacífico entre na doutrina e positivado pelo nosso Código Civil, artigos 186 a 188 e 927 do Diploma Civil Brasileiro.
Resta verificar, se na sistemática constitucional vigente, essa prática da imprensa constitui ato ilícito, apesar de inequivocamente invadir a esfera de direitos individuais de um terceiro, suspeito ou acusado de crime.
Alexandre de Moraes, na obra Direitos humanos fundamentais, trata desse tema. Ali o célebre constitucionalista ilustra casos em que há limitações à liberdade de imprensa face aos direitos de personalidade. Por exemplo, comenta, não pode a imprensa “converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação” (Moraes, 2013, p.155).
Noutro exemplo, extraído de julgado do Superior Tribunal de Justiça, Moraes assinala, mais uma vez, os limites do direito de imprensa, pontuando que o direito de informar deve ser conjugado com a proteção relativa ao direito de imagem. No REsp 794.586-RJ, foi condenada por danos morais emissora de TV que veiculou imagens, sem autorização, de funcionário e de empresa de assistência técnica durante orçamento para conserto de televisão cujo defeito era apenas um fusível queimado e o prestador dos serviços incluíra outros (Moraes, 2013, p.138, 139). O que ocorreu aqui foi o abuso do direito de imprensa, com a violação indevida do direito de imagem.
Nenhum desses casos, porém, tangenciam veiculações relacionadas a fato criminoso, pois nesse particular a liberdade de imprensa goza de maior proteção, em virtude do envolvimento do interesse público no fato. Assim decidiu a 4ª Turma do STJ no REsp 42.844-0/SP: “Não responde civilmente o órgão de divulgação que, sem ofender a vida privada dos figurantes de fatos, noticia crimes, apurados em inquérito policial” (Moraes, 2013, p. 156).
No caso, o que ocorre é uma interpretação constitucional principiológica, que, no dizer de Barroso (2004, p. 4) “expressa valores a serem preservados ou fins públicos a serem realizados”. Na mesma lição, assevera o nobre Professor, esse tipo de interpretação não despreza o modelo hermenêutico tradicional da subsunção, mas a ele se agrega para materializar o direito nas diversas situações concretas em que a mera aplicação da letra não encontra solução razoável.
Nesse sentido, o autor leciona que a liberdade de imprensa atende “ao inegável interesse público da livre circulação de ideias, corolário e base de funcionamento do regime democrático, tendo portanto uma dimensão eminentemente coletiva” (Idem, ibdem, p.19).
Barroso elenca alguns fundamentos pelos quais entende que não comete ato ilícito o veículo de comunicação que publica fato de interesse coletivo, mesmo que em detrimento da esfera de direitos individuais de alguém. Afirma que se o fato veiculado já ingressou no domínio público, poderia ser conhecido por outra fonte regular de informação ou se restringe a mera reprodução, não restará configurada ilicitude (Barroso, 2004, p.14).
O constitucionalista continua sua dissertação ressaltando que o embate entre proteção à honra de acusados e a divulgação de fatos criminosos, durante ou depois da investigação, é matéria recorrente na doutrina e na jurisprudência, havendo já sido pacificada no sentido de que existe interesse público na divulgação dessas notícias, “sendo inoponível a ela o direito do acusado à honra” (Barroso, 2004, p. 15).
A propósito, como já se mencionou neste trabalho, tal conflito já foi matéria de discussão no Supremo Tribunal Federal por ocasião da ADPF 130 de 2009, cujo julgamento consolidou o desejo constitucional de dar primazia à liberdade de imprensa quando em confronto com os direitos de personalidade, como pode-se ler do excerto:
“no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009)”.
Daí é possível afirmar que o direito de imprensa se sobrepõe no tempo aos direitos de personalidade, sendo inexigível qualquer responsabilização dos órgãos de mídia, salvo em caso de excesso ou abuso punível.
É assim sua aplicação em função do próprio regime adotado pela Constituição Federal, a qual optou por privilegiar a liberdade de manifestação do pensamento como um sobre direito da personalidade do qual decorre o direito de imprensa (Moraes, 2013, p. 138) e a livre circulação de ideias como um dos principais mecanismos de positivação das liberdades individuais e coletivas de seu povo. É desse postulado que nasce e se sustenta o direito de imprensa. Mas, nesse mesmo diapasão, a Carta Republicana não deixou de impor limites ao exercício desta liberdade, como a obrigação de responder nas diversas esferas e de conceder direito de resposta proporcional. Da já mencionada ADPF 130 se extrai o seguinte trecho que corrobora a assertiva:
“a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa. (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009)”.
Portanto, nos casos de notícia relacionada a fato criminoso, ainda que com violação à honra, à imagem ou à vida privada de outrem, dificilmente se verificará ato ilícito por parte da imprensa, este configurado apenas no caso de prova do abuso.
Verificado o abuso no caso concreto, será possível a responsabilização dos veiculadores da informação, mas com atenuante no quantum indenizatório, à vista das propriedades inerentes à liberdade de informação, pois se perfazem em instrumento de materialização do sobredireito de livre expressão do pensamento. Se de outra forma fosse, mitigado estaria essa liberdade pelo receio de duras sanções patrimoniais.
Do emblemático Acórdão da ADPF 130 se pode conferir que o quantum do dano moral no caso de abusos da imprensa não se calcula pela mesma equação que nos demais casos:
“A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido. Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque, senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de robustez da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e de esqualidez dessa liberdade. (BRASIL, STF, ADPF 130, 2009)”.
Portanto, no que se refere a notícias divulgadas pelos meios midiáticos, relacionadas a fatos criminosos, em favor do princípio prevalente do interesse público e da aplicação do sobredireito de livre manifestação do pensamento, a doutrina e a jurisprudência brasileira, na mais alta interpretação dos ditames constitucionais, consolidaram o entendimento de que a liberdade de imprensa deve gozar, verdadeiramente, de liberdade na realização de seu mister. Não deixa, contudo, de pôr a salvo os direitos de personalidade, entre eles a honra, a imagem e a vida privada, assegurando a possibilidade de resposta proporcional e de indenização por danos morais, mas somente na verificação de abusos ou excessos ilícitos.
CONCLUSÃO
O presente trabalho analisou o conflito entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade, relacionados à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, quando da divulgação de fatos criminosos. Buscou-se compreender o lugar de cada um no ordenamento jurídico e verificar os limites, as convergências e as divergências na aplicação simultânea desses postulados constitucionais.
A veiculação, na imprensa, de fatos criminosos se apresenta como uma das principais situações em que os direitos de personalidade dos acusados ou suspeitos são violados, mas o nosso sistema jurídico-constitucional consagrou diferentes facetas desses direitos. Uma delas diz respeito à livre manifestação do pensamento e de informação, que se materializa tanto no seu viés particular quanto no seu caráter público, este encarnado na liberdade de imprensa e de atividade jornalística. Outra faceta apresenta os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.
A liberdade de imprensa tem seu embrião no próprio princípio democrático e sua raiz se encontra na ideia de liberdade de expressão e de informação, liberdades essas reguladas no Capítulo V da CRFB/1988, denominado “Da Comunicação Social”, considerado pela jurisprudência uma extensão dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º.
Os direitos de personalidade, em que pese sua inerência à própria condição do ser humano, constituem-se conquista histórica no que se refere à sua institucionalização e sistematização nos ordenamentos jurídicos ocidentais.
No Brasil, eles se encontram consagrados principalmente no art. 5º da Constituição, não obstante sua presença em toda a extensão constitucional e sua garantia de existência em normas de direito internacional. Dentre esses direitos está assegurada a proteção à honra, à imagem e à vida privada, faces integrantes da própria dignidade humana.
Quando do exercício da atividade jornalística na divulgação de fatos criminosos esses direitos de personalidade tendem a sofrer violação, já que é comum que tais fatos associem o nome ou a imagem de alguém como suspeito ou acusado do delito.
Nesses casos, ao adentrar a esfera de direito privado de outrem é possível que o agente sofra responsabilização se agir com abuso ou excesso, mas nada sofrerá enquanto se mantiver vinculado ao objetivo da atividade jornalística de informar fatos socialmente relevantes. Dentro desses limites o ordenamento protege a atividade da imprensa como legítimo instrumento de materialização da liberdade democrática de informação e de manifestação do pensamento.
Portanto, no conflito entre direitos de personalidade e liberdade de imprensa, apenas em excepcionais situações caberá ao atingido pela reportagem direito à indenização por dano moral. Ainda mais raramente essa possibilidade se realizará quando se tratar de notícia de fato criminoso, dada a prevalência do interesse público que envolve a matéria.
O que se tem consolidado no ordenamento jurídico pátrio é uma fórmula hermenêutica que permite reconhecer a proeminência das normas e princípios relacionadas à liberdade de imprensa, as quais visam ao gozo da livre expressão do pensamento, ao direito coletivo de informação e à proteção do interesse público, quando confrontadas com direitos meramente particulares. No entanto, a Carta da República salvaguarda os limites do razoável, para que abusos sejam devidamente punidos pelas vias indenizatórias ou do direito de resposta.
De resto, oportuno concluir que o que hoje se encontra consagrado no ordenamento jurídico perfaz a fórmula constitucional de resolução do conflito aqui posto, mas oportuno lembrar que o direito é uma ciência social, portanto dinâmico e mutável. Vale considerar que o tema é bem mais abrangente do que o aqui abordado e merece continuar sendo explorado por muitos outros vieses.
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[1] Anne Elisa Soares Neres – Acadêmica de Direito da FACTO Faculdade Católica do Tocantins. E-mail: anneesoares25@gmail.com
2 Igor de Andrade Barbosa – Mestre em Direito Econômico. Professor de Direito Penal da FACTO Faculdade Católica do Tocantins. Defensor Público Federal de 1ª Categoria na Defensoria Pública da União do Estado do Tocantins. E-mail: dpuigor@gmail.com
[2] Vide, por exemplo, https://g1.globo.com/busca/?q=crime; https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/ e outros portais de notícia. (Ambos acessados em 14/09/2018.
[3] Conteúdo da legislação disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5250.htm. A Lei 5.250 de 1967, alvo da ADPF 130 no Supremo Tribunal Federal, protocolada no ano de 2008 e julgada em 25/03/2009, foi declarada não recepcionada pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, considerada inconstitucional. Íntegra do acórdão disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411
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