Nayanne Vinnie Novais Britt – Advogada, bacharela em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes. (nayanne@gabino.adv.br)
Resumo: O presente trabalho visa travar uma discussão sobre a responsabilidade civil do Estado sobre os danos que seus agentes públicos causarem quando atuarem nessa qualidade. O dilema envolvendo a responsabilidade civil estatal se refere à superação (ou não) da tese da dupla garantia. Tal discussão foi alavancada principalmente por novos julgamentos nas cortes superiores, segundo os quais haveria possibilidade do particular ingressar com ação indenizatória diretamente em face do próprio agente público. Assim, após a realização de uma análise de doutrinas e jurisprudências, buscou-se realizar levantamento bibliográfico jurisprudencial sobre tal assunto, debatendo os mais atuais entendimentos sobre o referido tema.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil do Estado. Teoria da Dupla Garantia. Cortes Superiores.
Abstract: This work seeks to discuss about civil liability of State on the damages that their agents may cause while acting in this position. The main question about civil liability of State revolves around the possible overcoming of the thesis of “warranty in double”. This thesis refers to the possibility of the particular file a lawsuit directly against the agent that provoked the damage. After the analysis of legal literature and multiple verdicts on the matter, the work proceeded to gather the main views on the subject.
Keywords: Civil Liability of State. Thesis of “warranty in double”. High courts of appeal.
Sumário: Introdução. 1. Etapas pelas quais passou a construção doutrinária sobre a responsabilidade civil do Estado. 2. Responsabilização administrativa, civil e penal do agente público. 3. Responsabilidade civil por atos legislativos e por atos jurisdicionais. 3.1. Responsabilidade civil por atos legislativos. 3.2. Responsabilidade civil por atos jurisdicionais. 4. Prazo prescricional da ação de reparação e prazo prescricional da ação de regresso. 5. Responsabilidade do agente público. 5.1 Denunciação à lide do agente público. 6. Ação regressiva contra o agente causador do dano: tese da dupla garantia e sua possível superação. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
No direito brasileiro, um indivíduo, ao praticar um ato, pode vir a sofrer consequências (sanções) em três esferas distintas, a saber, cível, penal e administrativa; tais esferas são independentes entre si, sem que haja prejuízo de aplicação de penalidades cumulativamente. Na seara criminal, uma conduta pode ser enquadrada como crime ou contravenção, ao passo em que na esfera administrativa, o ato ou fato ilícito pode-se enquadrar como infração às normas administrativas e, por fim, na esfera cível, tal conduta pode ensejar uma responsabilização patrimonial ou extrapatrimonial (dano moral).
Especificamente quanto à responsabilidade civil do Estado – também denominada de responsabilidade extracontratual do Estado -, trata-se da responsabilidade estatal em relação ao dano provocado pelo comportamento dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ao tratar-se de responsabilidade do Estado, busca-se a responsabilização na esfera cível – ou seja, uma responsabilização pecuniária. Atualmente entende-se por responsabilidade extracontratual do Estado a atribuição de responsabilidade do ente público por todos os atos comissivos que os agentes públicos vierem a ocasionar, nesta qualidade, a algum particular (conforme redação do artigo 37, §6º, da Constituição da República Federativa do Brasil[1] [BRASIL, 1988]).
O grande dilema envolvendo tema da responsabilização do Estado se refere à duvida sobre a possibilidade (ou não) do indivíduo lesado, responsabilizar somente no polo passivo da demanda a Fazenda Pública ou de também poder acionar como sujeito passivo de uma demanda, o agente que praticou uma conduta e causou um dano a um determinado individuo.
Note-se que o § 6º do artigo 37, CFRB/1988, é expresso ao dispor sobre a responsabilidade da Fazenda Pública em responder sobre os danos que seus agentes causarem quando atuarem, nessa qualidade, garantindo, todavia, à Fazenda Publica sua chance em intentar uma ação de regresso em face do agente causador do dano.
Este entendimento é, inclusive, adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), através da chamada tese da dupla garantia, expressão que significaria garantir ao particular a chance de demandar em face da Fazenda Pública, esta que possuiria patrimônio – através dos pagamentos por precatório – para realizar a solvência do debito, ao passo em que iria também garantir ao servidor público, a segurança de somente ser demandado administrativamente e civilmente, através do Estado, por meio de uma ação de regresso.
O termo “dupla garantia” foi registrado pela primeira vez há alguns anos, em um julgamento da Primeira Turma do STF, o Recurso Extraordinário 327.904, relatado pelo Ministro Carlos Britto (BRASIL, 2006c). Registram-se, ainda, outros julgamentos paradigmáticos sobre o tema, a exemplo dos Recursos Extraordinários 344.133 e 720.275 (BRASIL, 2008, 2013b).
Em oposição ao entendimento anteriormente consagrado pelo STF, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.325.862, da Quarta Turma, relatado pelo Min. Luis Felipe Salomão (BRASIL, 2013a), apresentou entendimento de que seria cabível, em tese, a possibilidade do lesado ingressar com ação somente em face do agente publico causador de um dano e/ou em face da Fazenda Pública e do agente, como litisconsórcio passivo. Tal posição é, também, a adotada por alguns doutrinadores, como Celso Antônio Bandeira de Melo e José dos Santos Carvalho Filho.
O posicionamento adotado pelo STJ acabou por ensejar questionamentos e inseguranças, vez que não há consenso sobre a superação (ou não) da tese da dupla garantia, razão pela qual o presente artigo visa ampliar o debate sobre o assunto, por meio de revisão bibliográfica e breve estudo de julgamentos de cortes superiores.
1. ETAPAS PELAS QUAIS PASSOU A CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
A responsabilidade civil do Estado não era admitida nos primórdios dos primeiros Estados, tratando-se de uma construção doutrinária e legislativa. Assim sendo, a doutrina vislumbra que, inicialmente, havia uma teoria de não responsabilização (ou irresponsabilidade) do Estado, bastante difundida no bojo dos Estados absolutistas e que se baseava na ideia de soberania, ou seja, se baseava em adágios como “o rei nunca errava” ou, ainda, na ideia de que “aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei”.
Destaca De Mello (2010), todavia, que tais assertivas não significavam uma completa irresponsabilidade estatal, já que alguns compilados legislativos admitiam a responsabilidade da Administração Pública em situações específicas, já contempladas pela lei. Salienta-se, ainda, que “[d]emais disso, o princípio da irresponsabilidade do Estado era temperado em suas consequências gravosas para os particulares pela admissão da responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal, seu” (DE MELLO, 2010, p. 1001).
De toda sorte, a referida teoria foi superada, alcançando-se, pouco a pouco, o entendimento de que o Estado deve responder por seus atos comissivos e omissivos que venham a causar um dano à terceiro. Registra-se, ainda, que na legislação brasileira não havia norma que isentasse totalmente o Estado da responsabilidade, embora seja conhecido que o Brasil foi, por muitos anos, colônia de Portugal, país governado por monarquia até o início do século XX.
Vale, todavia, o destaque de que se registrava, na constituição do Império de 1824, norma que imputava aos agentes públicos a responsabilidade pelo dano que provocassem no exercício da função. A Constituição republicana de 1891 possuía igual previsão, compreendendo parte da doutrina da época, ainda, que haveria solidariedade do Estado (DE MELLO, 2010).
Ainda segundo De Mello (2010), a responsabilidade do Estado pelos danos causados a particulares teve como marco o caso Blanco, do Tribunal de Conflitos francês; tal julgamento consubstanciou-se em marco porque reconheceu que, mesmo à míngua de previsão legal expressa, diante de certos critérios o Estado deveria ter responsabilizado por atos praticados pelos agentes públicos que gerassem prejuízos aos cidadãos.
Assim, a teoria da responsabilidade por culpa comum objetivava equiparar o estado ao indivíduo, de forma que atuando o estado por meio dos seus agentes, caberia ao particular lesionado provar que o agente público agiu com os elementos subjetivos dolo ou culpa. Tal responsabilidade se daria de forma subjetiva, notadamente porque se leva em conta a conduta do causador do dano.
Com o passar dos anos surgiu, ainda, a teoria da responsabilidade por culpa administrativa, também conhecida como teoria da culpa do serviço. Para a caracterização da culpa administrativa, também conhecida por culpa do serviço ou também como culpa anônima, deve existir a presença de alguns elementos: dano, acrescido de nexo causal e, ao fim, deve existir uma falha no serviço. No Brasil, tal teoria consagrou-se com o Código Civil de 1916 (MELLO, 2010).
Importante frisar que a falha no serviço, em verdade se refere à ausência de prestação do serviço ou prestação ineficiente, ou com atraso, sendo da vitima o ônus da prova de atestar a ocorrência da alegada falha do serviço. Segundo De Mello (2010, p. 1003), “[e]m suma: a ausência do serviço devido ao seu defeituoso funcionamento, inclusive por demora, basta para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes em agravo dos administrados”.
Vale lembrar, ainda, que esta teoria não se baseia na ideia de culpa do agente, e sim no serviço como um todo, por isso a presente teoria também é conhecida por “culpa anônima”.
A teoria do risco administrativo, também conhecida como teoria da responsabilidade objetiva, é a atualmente adotada no Brasil, tendo sido primeiramente positivada na Constituição de 1946 (MELLO, 2010). Tal tese preconiza que acaso o Estado, através da conduta comissiva dos seus agentes, cause um dano a outrem, caberá ao Estado responder e indenizar o particular que for comprovadamente lesado uma vez que reste comprovada a existência do dano e o nexo causal.
Sobre o tema, Mello (2010, p. 1005 – 1006), conceitua no seguinte sentido: “a responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incube a alguém em razão de um procedimento licito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem”. Neste sentido, deve ser observado que o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), é expresso ao dispor sobre a responsabilidade da Fazenda Pública, em responder sobre os danos que seus agentes causarem quando atuarem nessa qualidade. Deve ser ressaltado que os danos podem ser gerados tanto por atos omissivos quanto comissivos, à exemplo da regra geral em matéria de responsabilidade civil.
O artigo 43 do Código Civil (BRASIL, 2002) estabelece, no mesmo sentido, que a responsabilidade do ente público se configura de maneira objetiva, conforme se infere de sua transcrição: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.
Assim sendo, conclui-se que, conforme preconiza a teoria do Risco Administrativo, não há necessidade do particular lesado comprovar a existência do elemento subjetivo para se valer do seu direito, bastando apenas que exista o dano decorrente da atuação administrativa. Assim, um dos fundamentos da responsabilização repousa no princípio da Legalidade. Merece relevo, ainda, que existe uma forma de excluir a responsabilidade estatal, cabendo ao Estado o ônus da prova, de que o suposto dano ao particular se deu por caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.
Vale frisar que, se muito embora a responsabilidade do Estado se impute de forma objetiva, no que toca à responsabilidade do agente causador do dano, esta se imputa de modo subjetivo, fazendo-se necessário, portanto, averiguar a existência de dolo ou culpa.
Por fim, registra-se, ainda, a teoria do risco integral, que se assemelha à teoria do risco administrativo e é, também, uma modalidade de responsabilidade objetiva. Comparada à teoria do risco administrativo, todavia, nota-se esta não admite nenhuma excludente. Embora não comum na legislação brasileira, nota-se sua prevalência no âmbito do direito ambiental.
2. RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, CIVIL E PENAL DO AGENTE PÚBLICO
No ordenamento jurídico brasileiro, um indivíduo, ao praticar um ato ilícito, pode vir a sofrer consequências em três esferas, a saber, cível, penal e administrativa. Tais esferas são independentes entre si, podendo ser aplicadas as três penalidades também cumulativamente. Especificamente quanto ao agente público federal, essa regra encontra-se prevista no art. 125, Lei nº 8.112/1990 (BRASIL, 1990).
Na seara penal, uma conduta pode ser enquadrada como crime ou contravenção, ao passo em que, na esfera administrativa, pode-se enquadrar um ato ou fato como infração às normas administrativas ou infração disciplinar. Por fim, na seara cível, tal conduta pode ensejar uma responsabilização patrimonial ou moral (extrapatrimonial), conforme já elucidado no curso do presente artigo.
A responsabilização na órbita criminal, a conduta imputada ao servidor pode possuir os seguintes resultados, a saber, a condenação criminal do servidor, a sua absolvição por inexistência de fato ou por negativa de autoria e, por fim, absolvição por ausência de tipicidade ou de culpabilidade penal, insuficiência de provas ou por qualquer outro motivo.
Deve ser destacado, ainda, que acaso um servidor pratique um crime ou contravenção no exercício de sua função e que venha a se enquadrar na seara administrativa como infração disciplinar e, além disso, causar dano patrimonial a terceiro, a condenação criminal do servidor, após ser transitada em julgado, implicará em responsabilidade automática do servidor nas demais searas (cível e administrativa). O mesmo não se opera quanto à condenação cível ou administrativa, que não serve como meio de prova à condenação criminal.
De outro lado, acaso o servidor público seja absolvido pela inexistência de fato ou pela negativa de autoria, a absolvição também irá refletirá nas demais searas (cível e administrativa), haja vista que toda a investigação criminal é extremamente minuciosa e cautelosa, motivo pelo qual não haveria como se sustentar o contrário nas outras esferas.
Neste sentido, verifica-se que, na hipótese do servidor ter sido exonerado de seu cargo por fato discutido na esfera penal e que resultou na absolvição pela inexistência de fato ou pela negativa de autoria, terá o agente o direito de reintegração à sua atividade anterior, tornando-se sem efeito condenações administrativas e cíveis oriundas do mesmo fato.
Vale destacar, todavia, que o mesmo não se opera, todavia, quanto à absolvição no âmbito penal por ausência de tipicidade ou de culpabilidade penal, por insuficiência de provas, ou por qualquer outro motivo, não é motivo suficiente para absolver nas demais esferas – civil e administrativa.
Sobre o tema Alexandrino e Paulo (2011, p. 403) afirmam que “[j]á a absolvição penal por mera insuficiência de provas ou por ausência por ausência de tipicidade ou culpabilidade penal, ou por qualquer outro motivo, não interfere nas demais esferas. A doutrina e a jurisprudência utilizam a expressão “falta residual” para aludir ao fato que não chega a carretar condenação na órbita penal, mas configura ilícito administrativo ou cível, ensejando a responsabilização do agente nessas esferas. É pertinente ao tema a Súmula 18 do STF […]”.
Assim, tem-se que, de igual sorte, caso o agente público seja absolvido no âmbito penal porque sua conduta não configurou crime ou contravenção, não se exclui a hipótese de que o fato enseje responsabilização administrativa e/ou cível. Deve ser destacado que a expressão “falta residual” aplica-se quando a conduta não configurou crime ou contravenção, ocorrendo, todavia, responsabilização na seara administrativa e/ou cível.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATOS LEGISLATIVOS E POR ATOS JURISDICIONAIS
3.1. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATOS LEGISLATIVOS
A função de legislar, se enquadra dentre uma das mais importantes no Estado Moderno, sobretudo por se tratar da própria criação do direito. A função legislativa, de seu turno, transcende a materialização das leis, para alcançar o status que espelha o exercício da soberania estatal, com a instituição de normas para disciplina social.
Em regra geral, no que toca à responsabilidade civil por atos legislativos, tem-se que não se atribui responsabilidade civil ao Estado, sobretudo porque a edição de leis, por si só, não possui o condão de acarretar danos indenizáveis à coletividade. Admite-se, todavia, a possibilidade de responsabilização civil estatal, em decorrência de atos legislativos, em casos de leis inconstitucionais e de efeitos concretos.
Quanto às leis inconstitucionais, a doutrina compreende, em sua maioria, que é pressuposto prévio para responsabilização do Estado pelos danos causados aos particulares a declaração de inconstitucionalidade.
Neste contexto, pertinente a abordagem de Moraes (2001, p. 615): “Em relação a amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a regra geral consiste em que a decisão tenha efeito erga omnes, decretando-se, conforme já analisado, a nulidade total de todos os atos emanados do Poder Público com base na lei ou ato normativo inconstitucional. Além disso, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarreta a repristinação da norma anterior que por ela havia sido revogada, uma vez que norma inconstitucional é norma nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos”.
Desse modo, um indivíduo que sofreu com a aplicação da lei que foi declarada inconstitucional, deverá ingressar com uma ação especifica objetivando ser indenizado pelos danos advindos da lei declarada inconstitucional.
As leis de efeitos concretos, de seu turno, são aquelas que, embora se apresentem como leis sob o aspecto formal, constituem-se, materialmente, como meros atos administrativos, não irradiando efeitos gerais, abstratos e pessoais. Tais legislações atingem esferas jurídicas de indivíduos determinados, motivo pelo qual se dizem ser concretos os seus efeitos.
Di Pietro (2004, p. 556), sobre o tema, assevera que “[c]om relação às leis de efeitos concretos, que atingem pessoas determinadas, incide a responsabilidade do Estado porque, como elas fogem às características da generalidade e abstração inerentes aos atos normativos, acabam por acarretar ônus não suportado pelos demais membros da coletividade. A lei de efeito concreto, embora promulgada pelo Legislativo, com obediência ao processo de elaboração das leis, constitui, quanto ao conteúdo, verdadeiro ato administrativo, gerando, portanto, os mesmos efeitos que este quando cause prejuízo ao administrado, independentemente de considerações sobre a sua constitucionalidade o não”.
Cabe destacar que a doutrina já informou que tais leis podem ser impugnadas através de ações em geral, e inclusive através de mandado de segurança, sendo assegurado a um individuo possivelmente lesado – por tal lei – o direito à reparação de tais prejuízos. Tal reparação deve ser intentada, naturalmente, pela via ordinária, já que o mandado de segurança não admite dilação probatória, prestando-se somente a fazer cessar o ato que ameaça direito líquido e certo.
3.2. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATOS JURISDICIONAIS
Como regra, admite-se responsabilidade civil por atos jurisdicionais quando restar configurada a ocorrência de erro judiciário, exclusivamente na esfera penal. Nesse sentido, registra-se, inclusive, o art. 5º, LXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso por tempo além do tempo fixado na sentença” (BRASIL, 1988).
O art. 37, §6º, CF/88, de seu turno, estabelece que a responsabilidade civil do Estado é, em regra, objetiva. A interpretação conjunta dos dispositivos permite inferir, portanto, que a obrigação de indenizar do Estado independe da culpa ou dolo do magistrado.
Neste sentido, verifica-se o julgamento do Recurso Extraordinário nº 505.393/PE (BRASIL, 2007), no qual o STF adotou o posicionamento de, considerando que, em regra, o Estado é tido como irresponsável pelos atos jurisdicionais, a regra constitucional do art. 5º, LXXV, representa um mínimo a ser garantido ao jurisdicionado. Curiosamente, o próprio julgamento ressalva que não há impedimento para que a lei ou até mesmo a doutrina, com o passar do tempo, venha a reconhecer existência de responsabilidade civil do Estado em outras situações decorrentes de atos jurisdicionais.
Em que pese a irresponsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, em regra, é importante recordar que há responsabilidade do juiz quando proceder com dolo, ou fraude, ou até mesmo quando recusar omitir ou retardar, sem justo motivo, providencia que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte. Em tais casos, todavia, a responsabilidade do juiz de reparar os eventuais prejuízos que causou, advindos de condutas dolosas, é pessoal, não havendo aí, portanto, qualquer exceção à regra geral estabelecida acima.
4. PRAZO PRESCRICIONAL DA AÇÃO DE REPARAÇÃO E PRAZO PRESCRICIONAL DA AÇÃO DE REGRESSO
No que tange à prescrição da ação, se a ré for entidade federativa ou autárquica (incluídas as fundações de direito público), consumava-se a prescrição no prazo de 5 anos, tornando impossível o pedido de indenização no âmbito administrativo ou através de ação judicial após tal prazo, conforme se infere no Decreto nº 20.910/32 (BRASIL, 1932). Se a parte ré for, todavia, pessoa jurídica de direito privado, conta-se o prazo prescricional conforme a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24/08/2001, que inseriu o artigo 1º-C na Lei nº 9.494, de 10/9/1997. Esta norma consigna que prescreve em cinco anos o direito de obter indenização por danos causados por pessoas de direito publico e pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público (BRASIL, 2001).
O Código Civil (BRASIL, 2002), todavia, instituiu algumas modificações quanto aos prazos prescricionais em gerais. Uma delas foi a fixação do prazo de 3 anos para a prescrição da pretensão de reparação civil, é dizer, caso um individuo sofra algum determinado dano, este individuo possuirá o prazo de 3 anos para ingresso da ação, sob pena de prescrição. O Superior Tribunal de Justiça, de seu turno, no julgamento do Recurso Especial nº 698.195, relatado pelo Ministro Jorge Scartezzini (BRASIL, 2006b), adotou o entendimento de que o advento do Código Civil teria importado em revogação dos demais diplomas descritos alhures que tratem sobre reparação civil, ressalvado, todavia, os prazos iniciados antes da vigência do Código Civil na forma do art. 2.028 das disposições transitórias do dito código.
Deve ser notado, todavia, que a legislação que prevê o prazo prescricional de cinco anos para reparação civil contra a Fazenda Pública está previsto em legislação especial, pelo que deve ser aplicado o prazo do Decreto nº 20.910/32 (BRASIL, 1932); todavia, a prescrição da pretensão de terceiros contra os agentes públicos e as de direito privado prestadoras de serviços públicos é aquela prevista no Código Civil, ou seja, trienal.
Quanto ao prazo prescricional para o Estado intentar a ação de regresso, o art. 37, § 5º, da CF/1988 dispõe que o estabelecimento de tais prazos é de competência legislativa, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, ressalvadas as ações de ressarcimento referentes a dano ao erário, imprescritíveis.
Especificamente quanto às ações de ressarcimento acima mencionadas, previstas no at. 37, §4º e §5º da Constituição, por serem entendidas como imprescritíveis, não se cogita, evidentemente, em prazo para que o Poder Público possa ingressar com ação em face do seu agente para perquirir ressarcimento devido pelos danos causados. Esta imprescritibilidade alcança apenas as pessoas jurídicas de direito público, ou seja, pessoas federativas, as autarquias, as fundações autárquicas, não se estendendo às pessoas jurídicas de direito privado.
Destaca-se, todavia, que caso o causador do dano seja terceiro não vinculado ao Estado, será observada a regra geral de prescrição de reparação civil de 3 (três) anos, conforme preceitua o artigo 206 § 3º, V, do Código Civil.
Deve ser ressaltado, todavia, que mesmo no caso de ato doloso de improbidade, somente se cogita em imprescritibilidade da pretensão civil, havendo prescrição, na forma estabelecida em lei, quanto a eventuais pretensões administrativas e penais.
5. RESPONSABILIDADE DO AGENTE PÚBLICO
Como já exposto, a responsabilidade extracontratual do Estado se refere à responsabilização do Ente Público por todos os atos comissivos que os agentes públicos vierem a ocasionar nesta qualidade, a algum particular. Entretanto, para se responsabilizar a conduta do servidor publico, é necessário se auferir a relação entre o dano, a conduta comissiva do agente e o nexo causal.
No que toca à conduta do agente, tem-se que este somente deve responder diretamente desde que reste comprovada a ocorrência do dolo ou da culpa, para, a partir da aferição destes elementos, comprovar a existência da ocorrência da negligencia, imprudência ou imperícia do servidor estatal. Sobre a responsabilidade do agente público, Carvalho (2015, p. 341) é claro ao dispor que “[…] não há qualquer relação entre o agente público e o particular prejudicado, haja vista o fato de que quando o agente causou o prejuízo, não o fez na condição de particular, o fez em nome do Estado. Em outras palavras, a conduta do agente público não deve ser imputada à pessoa do agente, mas sim ao Estado que esta atuando por meio dele. Essa faceta do principio da impessoalidade nada mais é do que a aplicação da teria do órgão, ou teoria da imputação volitiva”.
Assim, conclui-se que o Estado não pode, mesmo mediante ação regressiva, responsabilizar objetivamente a figura do seu agente público, na medida em que tal conduta violaria a norma constitucional do art. 37, §6º, da CF/88, que concede ao servidor público a garantia de somente ser responsabilizado pela Administração através de ação regressiva se comprovado o dolo ou a culpa (imprudência, negligencia e imperícia) do causador do dano.
5.1 DENUNCIAÇÃO À LIDE DO AGENTE PÚBLICO
Como já discutido no curso do presente estudo, o art. 37, §6º, da CF/88 é taxativo ao dispor sobre a responsabilidade da Fazenda Pública para responder sobre os danos que seus agentes causarem quando atuarem de forma comissiva, nessa qualidade, sendo garantida à Fazenda Pública a oportunidade de intentar uma ação de regresso em face do agente causador do dano.
De outro lado, tem-se que o art. 125 do Código de Processo Civil admite a de denunciação à lide contra aquele que “estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo” (BRASIL, 2015). Assim, partindo de tal premissa, pode-se se levantar a seguinte reflexão: é possível realizar denunciação à lide contra o servidor público, em ação de indenização ajuizada pelo particular?
Primeiramente, é importante destacar que, quando se pleiteia a realização da denunciação à lide, em verdade busca-se a entrega da celeridade processual, bem como garantir ao denunciado à lide o contraditório e à ampla defesa, de forma que seu direito de defesa na ação regressiva não seja prejudicado. No caso ora discutido, em que se refere à responsabilização da Fazenda Pública, todavia, a denunciação à lide poderia resultar um atraso na ação de reparação ajuizada pelo particular em face do Estado.
Na ação de reparação ajuizada pelo particular em face do Estado a responsabilidade do ente público é objetiva, bastando somente a análise do ato comissivo do agente e o dano propriamente dito. Acaso realizada uma denunciação à lide do agente público, haveria uma necessidade de dilação probatória maior nesta ação de reparação, para que seja possível analisar, justamente, a existência de dolo ou culpa, elementos subjetivos para condenar um agente.
Nesse sentido, se faz importante destacar o posicionamento dos doutrinadores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, segundo os quais “[p]ercebe-se que, se fosse cabível a denunciação da lide ao agente público pela Administração, haveria inegável prejuízo para o particular que sofreu o dano, porque seria retardado o reconhecimento do seu direito a reparação. Com efeito, a Administração será condenada a indenizar o particular que sofreu o dano com base na responsabilidade objetiva. Diferentemente, se tivesse que ser discutida, na mesma ação de indenização, eventual responsabilidade do agente perante a Administração – o agente está sujeito a responsabilidade subjetiva na modalidade culpa comum -, ficaria o litígio na dependência de demonstração, pela Administração de que o agente atuou com dolo ou culpa, e só lhe causaria transtorno, por atrasar a solução final do litígio […]” (ALEXANDRINO, PAULO, 2011, p. 781).
O Superior Tribunal de Justiça também se posiciona, em sua maioria, no mesmo sentido, citando-se como julgamento paradigmático o Recurso Especial nº 770.590, segundo o qual a denunciação da lide visa resguardar a economia e a celeridade processual, não devendo ter lugar quando colocar em risco tais princípios (BRASIL, 2006a). Assim, ainda segundo este julgamento, a denunciação da lide, nas ações versando sobre responsabilidade civil do Estado, precisamente por implicar em prejuízo à celeridade e à economia processual, não deve ter lugar.
Conclui-se, portanto, que permitir a denunciação à lide nesse tipo de ação indenizatória seria extremamente prejudicial ao particular/vítima, notadamente porque tal discussão resultaria em maior instrução probatória, que acabaria por violar a celeridade na prestação jurisdicional.
6. AÇÃO REGRESSIVA CONTRA O AGENTE CAUSADOR DO DANO: TESE DA DUPLA GARANTIA E SUA POSSÍVEL SUPERAÇÃO
O entendimento pela possibilidade de ação de regresso, a ser proposta pelo Estado, contra o funcionário público causador do dano, sempre fora o adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na denominada tese da “dupla garantia”. Esta tese representa garantir ao particular a chance de demandar em face da Fazenda Pública, que possuiria patrimônio e paga suas condenações, em regra, através dos pagamentos por precatório ou requisição de pequeno valor, conforme for o caso, garantindo-se a solvência do débito, ao passo em que garante ao servidor público a segurança de somente ser demandado administrativamente e civilmente através do Estado, por meio de uma ação de regresso.
O termo “dupla garantia” foi adotado há alguns anos em um julgamento da Primeira Turma do STF, o Recurso Extraordinário nº 327.904/2006 (BRASIL, 2006c). Merecem nota, ainda, os julgamentos dos Recursos Extraordinários de números 344.133 (BRASIL, 2008) e 720.275 (BRASIL, 2013b).
Em oposição ao entendimento anteriormente consagrado pelo STF, todavia, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.325.862-PR, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão (BRASIL, 2013a), adotou a tese de haver possibilidade do lesado ingressar com ação somente em face do agente público causador de um dano ou em face da Fazenda Pública e do agente, em litisconsórcio passivo.
O julgamento, que versava sobre uma sentença erroneamente publicada ajuizada em desfavor de uma serventuária, adotou a tese de que a servidora, naquele caso específico, seria legitimada para figurar no polo passivo e que a decisão de demandar contra o Estado ou diretamente contra o servidor pertenceria, unicamente, ao lesado, renunciando, todavia, à responsabilidade objetiva e ao regime de precatórios ao assim optar. Nada obstante, no caso concreto, afastou a responsabilidade subjetiva da serventuária, compreendendo ter havido, no caso, mero aborrecimento.
Assim, o entendimento apontado alhures pelo Superior Tribunal de Justiça, por ter sido um dos últimos julgamentos nos tribunais superiores sobre o referido tema, conduziu a questionamentos, entre juristas, a respeito de uma possível superação (ou não) da tese da dupla garantia.
Para que se melhor compreenda a controvérsia, é necessário refletir a respeito dos propósitos constitucionais ao instituir as garantias estipuladas no art. 37, §6º, CF/88. De fato, o texto da CRFB visa dar segurança ao servidor público, de forma que este só possa ser acionado em ação de regresso manejada pelo Estado. Por outro lado, a norma também objetiva dar segurança ao particular para que possa manejar ação contra a Fazenda Publica, que possui liquidez em seu patrimônio para adimplir a condenação judicial.
Por outro lado, deve ser notado que a tese adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, facultando que a demanda seja ajuizada diretamente contra o funcionário público, também possui vantagens, malgrado considerando que tal entendimento importa em dizer que o particular lesado não necessitaria aguardar a formação do precatório e a habilitação do crédito em uma fila, nos moldes do art. 100, CF/88, para que ele pudesse ser indenizado.
Neste sentido, registra-se que alguns doutrinadores defendem que a tese adotada pelo STF acaba por trazer lentidão ao processo, já que, apesar de uma demanda ser manejada contra o Estado, sem necessidade de se provar o dolo e a culpa, haveria, em contrapartida, uma demora na satisfação do débito, que deve ser adimplido por meio de precatório, conforme art. 100, CF/88.
Por outro lado, parte da doutrina compreende que, ao se intentar a ação contra o servidor público, o demandante atrairá para si o ônus de provar que o agente público agiu com dolo ou culpa. Ademais, caso o particular seja vitorioso, deve ser considerada, ainda, que o referido agente pode não possuir solvência suficiente para quitar o débito. Em contrapartida, todavia, os trâmites até a sentença de mérito e trânsito em julgado seriam, em tese, mais rápidos, já que os prazos contra a Fazenda Pública são, em regra, contados em dobro, ao que provoca um aumento substancial na demora da tramitação processual.
Não há, ainda, como se afirmar que a tese da dupla garantia foi superada, haja vista as Cortes Superiores não mais se pronunciaram acerca do tema, não existindo, portanto, uma definição se, a tese da dupla garantia foi, de fato, superada. Deve ser destacado, todavia, que o mais importante regramento jurídico que rege a responsabilidade civil do Estado se encontra no art. 37 da CF/88 e que a sua interpretação literal parece coadunar-se melhor com o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
O art. 37, §6º, CF/88, é expresso ao dispor sobre a responsabilidade da Fazenda Pública, em responder sobre os danos que seus agentes causarem quando atuarem, nessa qualidade, em face do particular. Como visto no curso deste trabalho, a responsabilidade da Fazenda Pública é objetiva, independentemente de se auferir a existência de dolo ou culpa, com base no que preconiza a teoria do Risco Administrativo. Nada obstante, o mesmo dispositivo garante ainda à Fazenda Publica sua chance de intentar uma ação de regresso em face do agente causador do dano, após a verificação da existência dos elementos subjetivos dolo ou culpa no ato praticado por esse agente.
O Supremo Tribunal Federal (STF) adotou a tese da “dupla garantia”, expressão essa que significaria garantir ao particular a chance de demandar em face da Fazenda Pública, sem necessitar provar a existência de dolo ou culpa. Tal tese representa, ainda, garantia ao servidor público, a segurança de somente ser demandado administrativamente e civilmente, através do Estado, por meio de uma ação de regresso, após aferição da existência dos elementos subjetivos (dolo ou culpa).
O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, trouxe à tona uma também vantajosa tese, vez que a referida Corte entendeu sobre a possibilidade do lesado ingressar com ação somente em face do agente publico causador de um dano. Tal entendimento visava também dar uma celeridade ao particular, haja vista que o mesmo não necessitaria aguardar que o credito fosse habilitado em uma fila de precatório para que ele pudesse ser indenizado. Além disso, os prazos não iriam ser computados em dobro, o que também traria uma maior celeridade processual.
Nada obstante, nota-se que a questão está longe de uma resolução, eis que não existem muitos julgamentos no sentido apontado pelo Recurso Especial nº 1.325.862, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão (BRASIL, 2013a). Não há, portanto, como se afirmar que a tese da dupla garantia foi superada, mesmo porque a literalidade do art. 37 da CF/88 não permite sua superação por completo. A questão deve, portanto, ser enfrentada pela doutrina e pela legislação infraconstitucional, de forma a sanar-se os principais problemas e questões oriundos dos entendimentos exarados pelas Cortes Superiores do país.
REFERÊNCIAS
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[1] Art. 37 […] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
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