Resumo: O presente trabalho objetiva analisar o papel da segurança jurídica e da proteção às legítimas expectativas dos particulares frente aos atos da Administração Pública. Inicialmente, serão feitas considerações preliminares acerca dos referidos princípios para, em seguida, tratar-se do surgimento das legítimas expectativas dos particulares e da configuração de sua legitimidade. Após, o artigo abordará a relação da Administração Pública frente às legítimas expectativas, diferenciando-se os efeitos nos casos de manutenção de condutas administrativas inválidas geradoras de legítimas expectativas da manutenção de condutas válidas, igualmente geradoras de expectativas. Finalmente, será analisada a questão da auto-vinculação da Administração Pública, elencando os pressupostos para a mudança de orientação da Administração Pública caso a caso.
Palavras-chave: Segurança jurídica – Legítimas Expectativas- Administração Pública – Auto-vinculação – Mudança de Orientação.
Sumário: Introdução;I- Segurança jurídica, princípio da confiança e legítimas expectativas: considerações iniciais;II- Proteção às legítimas expectativas; II.A- Surgimento das legítimas expectativas; II.B – Configuração de “legitimidade” das expectativas; III- Administração Pública e as legítimas expectativas; III.A – Manutenção de condutas administrativas inválidas geradoras de expectativas legítimas; III.B -Manutenção de condutas administrativas válidas geradoras de expectativas legítimas; IV – Auto-vinculação da Administração Pública; Conclusão; Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Em uma era de rápidas e irrefreáveis mudanças, a certeza e a estabilidade, cada vez mais raras, tornam-se valores de difícil consecução. Sua necessidade é, entretanto, inquestionável na busca do desenvolvimento almejado pelo Estado e pela sociedade, cujas relações devem se apoiar sobre uma base sólida e firme que, apesar da imprevisibilidade de certas transformações, mantenha certa coesão e estrutura. Sem tal alicerce, os vínculos e as relações estabelecidas entre o Estado e os particulares seriam cercados de instabilidade e de conseqüente fragilidade e, neste sentido, “a segurança jurídica torna-se valor fundamental do Estado de Direito, pois o capitalismo e o liberalismo necessitam de certeza, calculabilidade, legalidade e objetividade nas relações jurídicas e previsibilidade na ação do Estado” (TORRES, 2005).
A segurança jurídica constitui, portanto, o princípio que garante um certo grau de previsibilidade acerca das condutas da Administração pública perante os indivíduos, a certeza de que estes não serão – ou pelo menos não deveriam ser- subitamente surpreendidos por uma mudança de orientação na ação do Estado, especialmente se esta lhes for prejudicial. Neste sentido, Maria Zanella di Pietro explicita a importância da segurança jurídica no âmbito do Direito Administrativo, afirmando que:
“O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública”. (DI PIETRO, 2001, P.85)
Assim, o presente artigo abordará a temática da segurança jurídica, da proteção das legítimas expectativas sua relação com a Administração Pública. O trabalho tecerá, inicialmente, breves considerações acerca do princípio da segurança jurídica, da proteção à confiança e às legítimas expectativas. Em seguida, o foco passará para a questão da proteção específica das legítimas expectativas, seu surgimento e configuração. Após, será abordada a questão da Administração Pública e da proteção às legítimas expectativas para, finalmente, tratar da autovinculação da Administração Pública.
I- Segurança jurídica, princípio da confiança e legítimas expectativas: considerações iniciais
A configuração de todos os aspectos do princípio da segurança jurídica exigiria uma exposição muito mais aprofundada e extensa do que o presente trabalho, que pretende apenas esboçar algumas idéias acerca da segurança jurídica para posteriormente relacioná-la com os demais temas abordados. Inicialmente, cumpre salientar que, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da segurança jurídica “não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo. Enquadra-se, então, entre os princípios gerais de Direito” (BANDEIRA DE MELLO, 1993, P.112).
Almiro do Couto e Silva, cujo pioneirismo no estudo do tema em nosso país é notório, esclarece a natureza do princípio da segurança jurídica, declarando que
“A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (…). A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação” (COUTO E SILVA, 2005, p. 3-4).
É sobre esta face subjetiva, de proteção à confiança e, em especial, às legítimas expectativas dos particulares, que versará o presente trabalho e, neste contexto, são pertinentes os ensinamentos de Judith Martins-Costa:
“A confiança, traduzida nos deveres de agir com boa-fé e com adstrição à lealdade implicará, por evidente, a relativa restrição de certos poderes da administração pública. Considera-se que, quando órgãos ou autoridades públicas provocam, com suas declarações no mundo jurídico, o nascimento de legítimas expectativas, devem essas ser tuteladas, ocorrendo mesmo, por vezes, o dever de não revogar ou revisar atos lícitos, porém inoportunos, ou mesmo o dever de não invalidar atos ilegais, se já consolidadas no tempo certas situações, tendo-se, então, por sanada a invalidade originária. Trata-se aí da eficácia negativa do princípio de proteção da confiança, impondo à Administração deveres de não fazer” (MARTINS COSTA, 2002, p.237-9).
Portanto, a face subjetiva do princípio da segurança jurídica, ou seja, a confiança, implica na proteção das legítimas expectativas dos particulares frente às ações do poder público. Não é concebível que, uma vez constituída uma expectativa no administrado em função das atitudes da Administração, este reste sem proteção frente às mudanças de posicionamento da mesma. É precisamente este tema que será abordado a seguir, ou seja, o resguardo das legítimas expectativas dos administrados.
II. Proteção às legítimas expectativas
Humberto Ávila afirma existirem três dimensões de proteção às legítimas expectativas dos contribuintes, a saber: a proteção procedimental[1], a proteção substancial e a proteção compensatória[2]. A primeira traduz-se no devido processo jurídico, ou seja, “Em primeiro lugar, para exercer a prerrogativa de rever seus atos, dentro dos limites substanciais estabelecidos pelo ordenamento jurídico, a administração deve seguir um procedimento. Tratando-se de ato administrativo que repercute na esfera individual, é vedada a revisão unilateral da administração” (ÁVILA, 2006). Assim, a presunção de legitimidade dos atos da administração impõe a necessidade de procedimento prévio[3] para rechaçá-la. Tal procedimento deve, na visão do autor, atender aos requisitos de regularidade formal (condução por juiz imparcial, garantia de ampla-defesa e contraditório e preservação da publicidade dos atos) e material (proporcionalidade e razoabilidade)[4]
A proteção substancial das legítimas expectativas, segunda categoria elencada por Ávila, residiria, na visão do autor, nos princípios da proteção da confiança e da boa-fé, idéia compartilhada por outros juristas renomados. Desta forma, é incontestável que, nas célebres palavras de Judith Martins-Costa,
“A Administração Pública está sujeita a observar conduta segundo a boa-fé, restando adstrita a conduzir-se com lealdade no trato com os particulares.[…] a Administração deve respeitar a legítima expectativa criada, por sua conduta, nos administrados” (MARTINS COSTA, 2002, p.230).
“Ao invés de apenas privilegiar o poder de império, a ação estatal deve levar em conta outros fatores, como as expectativas legitimamente despertadas por sua conduta, e assim mantê-las, em respeito à confiança despertada na sociedade. […] Daí que, objetivamente gerada a confiança por atos, palavras ou comportamentos concludentes, esta se incorpora ao patrimônio jurídico daqueles a quem são dirigidos esses atos, palavras ou comportamentos: o Ordenamento jurídico tutela os efeitos produzidos pela ação geradora de confiança em quem nela legitimamente confiou, coibindo ou limitando a ação administrativa, ou impondo deveres à administração” (MARTINS COSTA, 2002, p. 236).
Na doutrina estrangeira, este pensamento encontra albergue na notória obra de Jesus Gonzalez Perez, que afirma
“A boa-fé significa confiança, segurança e honorabilidade baseadas nela, pois se refere sobretudo ao cumprimento da palavra dada; especialmente a palavra fé, fidelidade, quer dizer que uma das partes se entrega confiadamente a conduta leal de outra no comportamento de suas obrigações, crendo que esta não o enganará” (GONZALEZ PEREZ, 1989, p. 51).
“A aplicação do princípio da boa-fé permitirá ao administrado recobrar a confiança que a Administração não lhe exigirá mais do que o estritamente necessário para a realização dos fins públicos que em cada caso concreto persiga. E que isto não lhe será exigido no lugar, momento ou forma mais inadequados, em atenção a suas circunstâncias pessoais e sociais, e às próprias necessidades públicas. Confiança, legítima confiança de que não vai se impor uma prestação que só poderá ser cumprida superando-se dificuldades extraordinárias. Nem em lugar em que, razoavelmente, não se cabia esperar. Nem antes de que o exijam os interesses públicos nem quando não era concebível o exercício de um poder administrativo” (GONZALEZ PEREZ, 1989, p. 69).
Assim, configurada a necessidade inegável de proteção às legítimas expectativas dos particulares, tanto pela via procedimental, traduzida no respeito ao devido processo jurídico quanto, substancialmente, pelos princípios da boa-fé e da confiança, compre analisar, a seguir, como se opera o surgimento de tais expectativas.
II. A. Surgimento das legítimas expectativas
Segundo Ávila a expectativa pode ser gerada de duas maneiras: a) criada em virtude de um ato jurídico de cunho geral, impessoal e abstrato, havendo, portanto a incidência do princípio da confiança, ou b) criada com base em ato jurídico de caráter individual, pessoal e concreto, recebendo a incidência da boa-fé objetiva (ÁVILA, 2005). Como conseqüência de ambos os casos, depreende-se que a Administração não pode agir de forma errática e inconseqüente, frustrando as legítimas expectativas criadas nos particulares em virtude de suas ações. Cabe no entanto indagar quando tais expectativas podem realmente ser consideradas legítimas, sob quais circunstâncias elas passam a ter consistência suficiente, ou seja, quando elas merecem a proteção e a tutela do Direito? Que critérios cada uma das espécies de expectativa deve preencher para ser considerada como legítima? Estes questionamentos serão objeto de estudo do próximo tópico.
II.B – Configuração de “legitimidade” das expectativas
Luis Roberto Barroso aponta uma possível resposta para auferir a legitimidade da expectativa prevista no item “a” anterior, ou seja, aquela cuja criação se dá em função de ato jurídico de caráter geral, impessoal e abstrato, elencando os requisitos que considera necessários para tal enquadramento (BARROSO, 2006, p. 278-9). Seguindo a classificação do autor, será legítima, fazendo jus à proteção, a expectativa que atender aos seguintes critérios:
a) Ser a expectativa decorrente de um comportamento objetivo do poder Público[5]. Desta forma, o autor afirma que esta não deve ser apenas “uma esperança inconseqüente sem vínculo com os elementos reais e objetivos da atuação estatal” (BARROSO, 2006, p. 278) e que um discurso do Chefe do Executivo, por exemplo, não gera, por si só, uma expectativa legítima, mas que tal manifestação poderá ser posteriormente justificada por decreto. É este o caso do exemplo trazido por Gonzalez Perez em sua obra:
“Infringe-se o princípio quando a Administração outorgou uma razoável esperança de obtê-las (referindo-se a subvenções), já que estavam contidas na normativa específica ao caso, promovida por uma campanha publicitária oficial, produzindo nos destinatários a crença proporcionada pela boa-fé de obter uma resposta positiva, sob cuja perspectiva os empresários e o autor se comprometeram aos correspondentes gastos de inversão e contratação do pessoal para o que prometeu o benefício que finalmente lhes é negado pela única razão de não haver consignação financeira….aparece uma conduta administrativa criadora de uma decisão no administrado, que sob os parâmetros da boa-fé, não pode ficar desamparada” (GONZALEZ PEREZ, 1989, p.52).
b) A conduta estatal que originou a expectativa deve ter duração razoável[6], e não ser efêmera, tendo consistência suficiente para imprimir um caráter minimamente estável que conduza o administrado a executar atividades com base no procedimento do Estado[7].
c) Finalmente, deve-se averiguar se o administrado tinha ou não condições de presumir o perigo de posterior mudança do ato do Poder Público.
Já no tocante à expectativa “b”, ou seja, aquela resultante de ato jurídico de caráter individual, pessoal e concreto, Ávila afirma que a incidência e proteção conferidas pelo princípio da boa-fé objetiva estarão presentes quando preenchidos os seguintes requisitos:
“1) relação entre o Poder Público e o contribuinte baseada em ato ou contrato administrativo cuja validade seja presumida; 2) relação concreta envolvendo uma repetição de comportamentos, de forma continuada, uniforme e racional por uma pluralidade de agentes fiscais que executam o ato ou contrato administrativo como se válido fosse; 3) relação de confiança envolvendo as partes e terceiros; 4) relação de causalidade entre a confiança do administrado e os atos praticados pelo Poder Público; 5) situação de conflito entre o comportamento anterior e o atual por parte do Poder Público; 6) continuidade da relação por um período inversamente proporcional à importância do ato ou contrato administrativo aplicado” (ÁVILA, 2005).
Scaff também enumera, em sua obra, os requisitos que considera necessários para a responsabilização estatal em virtude do descumprimento de seus compromissos[8]: “Assim, temos que as promessas governamentais necessitam dos seguintes critérios para serem consideradas passíveis de responsabilizar o Estado pelo seu descumprimento:a) serem firmes, claras e precisas;b) serem formuladas por quem, no momento, tenha poderes para sua implementação; c) serem exeqüíveis: e d) levar os agentes privados a tomarem atitudes imbuídas da crença de que aquelas promessas seriam efetivadas” (SCAFF, 1990, p. 105).
Diante do exposto, percebe-se que nem todas as expectativas são dignas da tutela do direito. Para serem consideradas legítimas, elas devem atender aos requisitos elencados acima, sob pena de não serem consideradas aptas a receberem proteção legal.
Entretanto, uma vez configuradas como legítimas, as expectativas devem ser preservadas pela Administração, como veremos a seguir.
III. A Administração Pública e as legítimas expectativas
O artigo 2º da lei 9.784/99 estabeleceu o marco normativo de proteção à segurança jurídica no âmbito administrativo, e seu inciso IV traz a exigência de atuação da Administração baseada na boa-fé, assim dispondo:
“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;”
Assim, cumpre analisar como são tratadas as legítimas expectativas dos administrados, oriundas tanto de atos inválidos como de condutas válidas da Administração:
III .A – Manutenção de condutas administrativas inválidas geradoras de expectativas legítimas
Uma questão que se apresenta é como tratar a proteção às legítimas expectativas criadas no administrado quando estas forem fruto de atos administrativos inválidos. Primeiramente, faz-se mister salientar que, para ser merecedora de proteção, a expectativa deve enquadrar-se como legítima, respeitando os critérios supramencionados. Assim, a preservação destes atos apresenta caráter excepcional (MAFFINI, 2005, p. 132), visto que indiscutível a regra de que Administração Pública possui poder-dever de invalidar seus atos quando contrários à lei ou aos princípios de Direito Administrativo[9].
O marco normativo desta autotutela atemporal da Administração encontrava-se no artigo 114 da Lei 8.112/90, cuja redação dispunha que “a administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade”. Entretanto, o artigo 54 da lei 9784/99 trouxe uma limitação temporal para este poder, ao estatuir:
“O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Assim, as lições de Almiro do Couto e Silva são essenciais no presente tema, esclarecendo:
“No referente ao art. 54, o legislador determinou que após o transcurso do prazo de cinco anos sem que a autoridade administrativa tivesse exercido o direito de anulação de ato administrativo favorável, ela decairia desse direito, a menos que o beneficiado pelo ato administrativo tivesse agido com má-fé.
Como se trata de regra, ainda que inspirada num princípio constitucional, o da segurança jurídica, não há que se fazer qualquer ponderação entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica, com o anteriormente à edição da regra era necessário proceder. O legislador ordinário é que efetuou esta ponderação, decidindo-se pela prevalência da segurança jurídica, quando verificadas as circunstâncias perfeitamente descritas no preceito. Atendidos os requisitos estabelecidos na norma, isto é, transcorrido o prazo de cinco anos e inexistindo a comprovada má-fé dos destinatários, opera-se de imediato a decadência do direito da Administração Pública federal de extirpar do mundo jurídico o ato administrativo por ela exarado, quer pelos seus próprios meios, no exercício da autotutela, quer pela propositura de ação judicial visando a decretação de invalidade daquele ato jurídico. Com a decadência, mantém-se o ato administrativo com todos os efeitos que tenha produzido, bem como fica assegurada a continuidade de seus efeitos no tempo” (COUTO E SILVA, 2005, p.19).
Portanto, conclui-se que a Administração Pública está limitada em seu poder de anular seus atos ilegais ao período de cinco anos[10], não estando mais o administrado sujeito ao alvedrio ilimitado do Poder Público. Os atos ilegais contestados pela Administração antes do referido prazo ficarão a critério do julgador, que deve levar em conta a proteção das legítimas expectativas criadas em função do ato.
Vale salientar ainda o disposto no art. 2º da referida lei, que determina a vedação de aplicação retroativa de nova interpretação:
“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de
XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”
III. B -Manutenção de condutas administrativas válidas geradoras de expectativas legítimas
O tema da aplicação da proteção da confiança no tocante à preservação de atos administrativos válidos geradores de expectativas legítimas nos administrados é muito bem abordado por Maffini, que afirma aplicar-se a tais situações o limite temporal do artigo 54 da lei 9784/99. O autor ainda salienta que
“somente se pode falar em decadência da revogabilidade de atos administrativos em relação a atos administrativos ampliativos, ou seja, que produzem efeitos benéficos aos seus destinatários. Como já referido, não se poderia cogitar de aplicação do princípio da proteção da confiança para fins de se preservar atos administrativos ablativos, prejudiciais aos seus destinatários” (MAFFINI, 2005, p. 216).
O segundo limite explicitado pelo autor para a invalidação de atos administrativos válidos assenta-se na aplicação analógica da teoria da quebra da base objetiva do contrato, típica do Direito Privado, coadunada com o respeito ao princípio da confiança, ou seja, “Se as bases fáticas, bem assim a sua apreciação jurídica, forem as mesmas que havia quando da prática do ato administrativo, não será possível, sob pena de ferimento ao princípio da proteção da confiança, a revogação do ato administrativo, mesmo que se invoque a abstrata fórmula –quase mítica, como já dito- do interesse público” (MAFFINI, 2005, p. 214-5). O autor condiciona, portanto, o exercício da prerrogativa administrativa de revogação dos atos administrativos à alteração das circunstâncias, das bases fático-determinantes da prática de tal conduta. Conclui-se, portanto, que a mudança de orientação da administração demandará uma alteração significativa para se tornar justificável e, mantidas as mesmas circunstâncias, a proteção à confiança repele modificações que venham a prejudicar o administrado.
IV – Auto-vinculação da Administração Pública
Finalmente, cumpre abordar, mesmo que sucintamente, a questão da auto-vinculação da Administração Pública, noção estudada de forma mais aprofundada pela doutrina alemã e cuja configuração começa a delimitar-se em nosso país. A questão do efeito vinculativo dos precedentes decisórios da Administração relaciona-se, assim, com a proteção da confiança, no sentido de que o núcleo fundamental da força vinculante encontra-se no princípio da proteção da confiança (MAFFINI, 2005, p.223).
Cumpre também salientar que “não se pode negar que a força vinculante dos precedentes administrativos tenha como um de seus fundamentos a noção jurídica intrínseca ao princípio da igualdade”(MAFFINI, 2005, p.223). Neste sentido, é pertinente a relação esboçada por Barak-Erez:
“A proteção das expectativas liga-se à proteção da igualdade. A experiência do passado é geralmente crucial na formulação de expectativas, e a informação sobre comportamentos passados específicos é uma base para crermos que, sob as mesmas circunstâncias, estes comportamentos ocorrerão novamente. Expectativas tendem a ser frustradas quando circunstâncias semelhantes resultam em comportamentos diferentes. A conduta distinta necessariamente contrariará, assim, as expectativas. Então, leis proibindo distinções protegem as expectativas de tratamento igualitário. A proteção das expectativas de um tratamento igualitário é assim uma dimensão significante do direito à igualdade” (BARAK-EREZ, 2005, p. 589)
Assim, frente às mesmas circunstâncias (consagradas, no caso, no precedente administrativo), é lógico que o administrado espere decisões idênticas, confiando no tratamento igualitário que deve ser conferido pelo Poder Público. Como conseqüência, “As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição” (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 17).
Por vezes, o tratamento originalmente igualitário dos particulares vem a ser modificado em virtude de posterior mudança na orientação da administração, configurando-se, portanto, uma desigualdade superveniente, cujas conseqüências podem ser prejudiciais ao administrado. Esta superveniência de um estado de desigualdade criado pela administração é, em regra, vedada em virtude da proteção à confiança e à igualdade, devendo tal situação excepcional ser justificada e fundamentada, conforme as palavras de Humberto Ávila:
“Surge a questão de saber se, dentro do conteúdo normativo da igualdade, também se situa a proibição de o Poder Legislativo ou o Poder Judiciário criarem um estado superveniente de desigualdade, isto é, tornar desigual o que inicialmente era igual por meio de uma modificação legislativa ou mediante uma decisão judicial. A igualdade incorpora, sim, este dever. Com efeito, a igualdade exige tratamento isonômico dos contribuintes, só podendo haver diferenciações baseadas em medidas de comparação que mantenham uma relação fundada e conjugada de pertinência com a finalidade que justifica sua utilização. O tratamento igualitário, pelo uso da medida de comparação e da finalidade, exterioriza a concepção de igualdade do Poder Legislativo. Essa noção de igualdade, porém, só é válida enquanto baseada em distinções justificadas e, não, arbitrárias. A validade da relação de igualdade depende, pois, da permanência da sua justificação. Em decorrência disso, há violação da igualdade a partir do momento em que o próprio Poder, que estabeleceu os pressupostos da relação de igualdade em dado momento, se distancia deles sem uma razão ou justificativa. Ele até pode mudar, mas deve fundamentar a sua orientação prática” (ÁVILA, 2008, p. 121-2).
Decisões fundamentadas pressupõem, assim, a execução coerente e sem contradição dos preceitos normativos. Impõe-se ao administrador, portanto, um dever de conseqüência ou coerência sistemática, uma relação de pertinência entre a mudança de orientação e o sistema normativo e suas finalidades. A excepcional desigualdade criada demanda fundamentação e, como resultado, não pode o legislador se afastar do sistema harmônico inicialmente adotado, salvo mediante justificativa condizente, sob pena de violação da igualdade e da segurança jurídica.
Os princípios da igualdade e da proteção à confiança constituem, assim, barreiras ao alvedrio da Administração, que, conseqüentemente, deve abster-se de adotar condutas que produzam um estado de disparidade entre os administrados em igual situação, panorama que geraria insegurança jurídica em razão da diferença de tratamento dispensada a cada um dos particulares. A confiança gerada no administrado restaria prejudicada caso a Administração pudesse mudar sua orientação sem justificativa ou fundamentação, ou seja, instauraria- se um quadro geral de instabilidade e descrédito para com o Poder Público.
Frente a tal quadro, percebe-se que o reconhecimento de efeitos vinculativos aos precedentes administrativos seria de grande auxílio no fomento da segurança jurídica, pois o administrado, ao analisar decisões anteriores em casos similares ao seu, saberia que tratamento esperar por parte da Administração, não sendo surpreendido em sua confiança por resoluções divergentes para hipóteses iguais. É oportuno questionar, portanto quais seriam os requisitos necessários para se reconhecer a um precedente administrativo efeitos auto-vinculantes, ou seja, quais condições o conjunto de decisões deve atender para que possa se falar em vinculação. A questão, como anteriormente mencionado, não é pacífica e foi pouco abordada pelos autores pátrios. Neste sentido, Maffini corajosamente desafia o tema na doutrina nacional, elencando os seguintes critérios para atribuição de efeitos auto-vinculantes aos precedentes da Administração:
a) Que a diretriz decisória inerente ao precedente possa ser encontrada em um número significativo de casos. Assim, é necessária uma quantidade expressiva de decisões em um mesmo sentido para a atribuição de efeitos vinculativos ao precedente.
b) Necessidade de reiteração da diretriz decisória, ou seja, a reiteração das decisões sempre em um mesmo sentido ou direção. Desta forma, as posições e interpretações adotadas no conjunto de decisões devem ser as mesmas, não podendo ser divergentes.
c) Validade das decisões reiteradas, ou seja, elas não podem ferir a ordem jurídico-constitucional vigente. De tal afirmação apreende-se que, embora possa haver proteção da confiança do administrado em caso de condutas inválidas, tal proteção não poderá configurar um precedente que possua efeitos vinculantes.
d) Publicidade e transparência das decisões, fornecendo os elementos que ajudarão na formação da confiança, por parte do administrado, no precedente administrativo (MAFFINI, 2005, p.224-230).
Atendidos os requisitos acima elencados, Maffini acredita ser possível vislumbrar efeitos vinculantes aos precedentes administrativos, o que fomentaria a consolidação da segurança jurídica e do princípio da confiança nesta seara ao fornecer ao administrado uma base sólida na qual pautar sua conduta. Igualmente, o particular saberia que decisão esperar da Administração em seu caso, não ficando à mercê do livre-arbítrio da mesma.
O último questionamento abordado pelo presente trabalho diz respeito à possibilidade de modificação, por parte da Administração, da diretriz decisória subjacente ao precedente administrativo (MAFFINI, 2005, p. 228), ou seja, à mudança de orientação por parte da Administração. Por óbvio, a proteção das legítimas expectativas, da confiança e da segurança jurídica como um todo não podem ter o condão de petrificar e imutabilizar as condutas administrativas, sob pena de comprometer o atendimento dos fins visados pela Administração Pública e atrapalhar no desempenho de suas atividades. Entretanto, é necessária a presença de certas condições que afastem o puro alvedrio da Administração ao fazê-lo.
E quais seriam, portanto, as condições para o afastamento do precedente? Ávila aponta a necessidade de “existência de razões suficientemente fortes. Nesses casos, o julgador até pode se afastar dos precedentes, mas o afastamento deverá ser um afastamento argumentado”. O autor conclui sua explanação afirmando que “há, portanto, uma proibição (relativa) de afastamento do precedente (Abweichungsverbot) com a conseqüente obrigação de indicar os critérios que irão substituir os anteriormente aplicados (Vorlagenpflicht)” (ÁVILA,2004, p. 10).
Maffini reafirma tal posição em sua obra, dispondo que
“Inexistindo qualquer alteração, seja nas circunstâncias fáticas, seja nas bases jurídicas que foram utilizadas para a concepção de um determinado precedente decisório da Administração Pública, essa não poderá, mesmo que sob uma abstrata alegação de “interesse público”, alterar o posicionamento interpretativo inerente ao precedente em relação a processos levados à sua apreciação, sob pena de ferimento imediato do princípio da proteção da confiança e, mediato, do princípio da igualdade. Poder-se-ia falar, nesse sentido, em uma “teoria da base objetiva do precedente administrativo”, numa paráfrase à já referida teoria da base objetiva do negócio jurídico” (MAFFINI, 2005, p.228).
Portanto, a mudança de orientação na interpretação da Administração Pública é possível, mas exige a ocorrência de que haja modificação expressiva nas bases normativas e fáticas responsáveis pela consolidação do precedente, ou seja, uma alteração notória no conjunto de circunstâncias que levaram à formação do precedente. Exige-se, ainda, que esta mudança seja devidamente fundamentada e justificada, opinião compartilhada por José Roberto Pimenta Oliveira:
“Através da fundamentação da decisão, será possível aquilatar o seu grau de conformidade com o sistema jurídico, incluindo a verificação da compatibilidade da obra administrativa com as exigências normativas, nestas incluídas as emanadas da razoabilidade. A motivação afasta o puro arbítrio da atividade administrativa ao exigir da Administração que produza um discurso justificativo de suas decisões. É garantia do exercício da competência com objetividade e imparcialidade, tendo enorme relevância para o administrado pela conexão mantida com o seu direito de ampla sindicabilidade dos atos do Poder Público e de efetividade da tutela judicial requerida em face dos atos da Administração” (OLIVEIRA, 2006, p. 277).
CONCLUSÕES:
1. O princípio da segurança jurídica traduz-se em uma face objetiva, ligada à proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, e outra subjetiva, que relaciona-se com a proteção da confiança dos particulares frente às condutas do Estado.
2. O princípio da confiança decompõe-se também na proteção das legítimas expectativas criadas pelo Estado nos particulares, que se dá em três dimensões: a proteção procedimental, a proteção substancial e a proteção compensatória.
3. As expectativas podem surgir de duas formas: a) criada em virtude de um ato jurídico de cunho geral, impessoal e abstrato (incidência do princípio da confiança), ou b) criada com base em ato jurídico de caráter individual, pessoal e concreto (incidência da boa-fé objetiva).
4. Para serem consideradas legítimas e, portanto, merecerem a proteção do direito, as expectativas devem preencher alguns requisitos:
5. Como conseqüência da proteção às legítimas expectativas surge excepcionalmente o dever da Administração não revogar atos lícitos porém inoportunos, e não invalidar atos ilegais se já consolidadas certas situações, numa tradução da eficácia negativa do princípio da confiança.
6. A manutenção de condutas administrativas inválidas geradoras de expectativas legítimas, de caráter excepcional, impõe à Administração o limite temporal de 5 anos, conforme redação do art. 54 da lei 9784/99, para que proceda à anulação de seus atos inválidos.
7. Quanto à manutenção de condutas administrativas válidas geradoras de expectativas legítimas, a Administração deve obedecer não só ao supra referido prazo de 5 anos para contestar tais condutas, como também deve haver alteração das circunstâncias, das bases fático-determinantes da prática de tal conduta.
8. O reconhecimento de efeitos vinculativos aos precedentes administrativos auxiliaria no fomento da segurança jurídica, pois o administrado, ao analisar decisões anteriores em casos similares ao seu, saberia que tratamento esperar por parte da Administração, não sendo surpreendido em sua confiança por resoluções divergentes para hipóteses iguais.
9. São necessários, entretanto, critérios para se conferir efeitos vinculativos aos precedentes administrativos, a saber: a) Que a diretriz decisória inerente ao precedente possa ser encontrada em um número significativo de casos; b) Necessidade de reiteração da diretriz decisória, ou seja, a reiteração das decisões sempre em um mesmo sentido ou direção; c) Validade das decisões reiteradas, ou seja, elas não podem ferir a ordem jurídico-constitucional vigente; d) Publicidade e transparência das decisões, fornecendo os elementos que ajudarão na formação da confiança, por parte do administrado, no precedente administrativo.
10. A orientação da Administração e, em conseqüência, a diretriz decisória do precedente, pode mudar, mas desde que haja modificação expressiva nas bases normativas e fáticas responsáveis pela consolidação do precedente, ou seja, uma alteração notória no conjunto de circunstâncias que levaram à formação do precedente. Exige-se, ainda, que esta mudança seja devidamente fundamentada e justificada.
Ex-aluna de graduação em Direito na UFRGS. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Arbitragem e a Convenção de Viena sobre Compra e Venda de Mercadorias, sob orientação da Prof. Dr(a) Véra Fradera. Estudante de pós-graduação, no Programa de Pós Graduação em Direito UFRGS, Área Fundamentos da Integração Jurídica – profª Drª Martha Jimenez. Bolsista CAPES. Membro da Equipe UFRGS para o Vis Moot 2008/2009 em Vienna, Áustria
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