O objetivo deste pequeno trabalho é tentar identificar se há alguma seletividade social na norma penal, especificamente na quantidade da pena imposta aos autores dos mais variados delitos.
A rigor, a norma penal é dirigida a todas as pessoas, não importando muito a classe social a que pertença. Por óbvio, as pessoas mais abastadas sempre conseguirão se defender melhor das acusações estatais. Mas não é esse o ponto em que desejo tocar. O que aqui vai importar é a indagação: a própria norma penal já distingue os autores dos crimes segundo suas classes sociais?
A idéia de que a pena é imposta na defesa da sociedade parece enraizada na maioria dos grandes doutrinadores do ramo criminal. Grosso modo, alega-se que a pena defende a sociedade na medida em que o crime viola bens e interesses relevantes (éticos, morais, etc.).
Há uma clara vinculação entre a pena e o interesse majoritário da sociedade em ver restabelecida a ordem. E. Magalhães de Noronha afirma:
“Com efeito, e Estado, como já se disse mais de uma vez, tem como finalidade a consecução do bem coletivo, que não pode ser alcançado sem a preservação do direito dos elementos integrantes da sociedade, e, portanto, quando se acham em jogo direitos relevantes e fundamentais para o indivíduo, como para ele próprio, Estado, e as outras sanções são insuficientes ou falhas, intervém ele com o jus puniendi, com a pena, que é a sanção mais enérgica que existe, pois, como já se falou, pode implicar até a supressão da vida do delinqüente.” [1]
Também M. Foucault alega que:
“…o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime, entendidas como uma série de desordens que este é capaz de abrir.” [2]
Pode-se citar, ainda, E. R. Zaffaroni e J. H. Pierangeli quando asseguram que:
“…o direito penal deve cumprir um objetivo de segurança jurídica que não se diferencia, substancialmente, da defesa social bem entendida. (…)Portanto, também, o direito penal tem uma aspiração ética: aspira evitar o cometimento e repetição de ações que afetam de forma intolerável os bens jurídicos penalmente tutelados.” [3]
Vê-se que é bastante nítida a menção a bens, interesses, valores, todos tidos como relevantes socialmente e merecedores, por essa relevância, da proteção da norma penal.
Dessa forma, tem-se uma valoração anterior ao estabelecimento do crime e das penas, mensuração essa que deveria espelhar o que a sociedade prioriza para um convívio harmônico.
A qualidade e, principalmente, a quantidade da pena cominada têm direta relação com a relevância do bem ou interesse jurídico protegido, pois as desordens provocadas pelo delito no seio social têm também íntima comunicação com a violação destes. A comunidade fica em maior ou menor grau aturdida, também tendo em conta o bem ou interesse que se violou, na medida da relevância social desses bens.
Pode-se afirmar que nesse processo de concreção da norma penal há uma verdadeira e límpida transferência dos valores sociais para a norma penal, com a conseqüente punição do que mais se repugna com penas mais graves? No meu entender, a resposta é negativa.
Francisco Muñoz Conde já aponta uma incongruência entre a função motivadora da norma penal e da norma social, asseverando que:
“…determinadas classes ou grupos sociais desenvolvem estratégias de contenção ou neutralização das normas penais, quando estas podem afetar seus interesses de classes. Podemos citar o caso dos delitos econômicos, em que slogans como `economia de mercado’, ‘liberdade de imprensa’etc., às vezes são utilizados como pretexto, justificação ou escusa dos mais graves atentados aos interesses econômicos coletivos.” [4]
Ora, a função motivadora da norma penal deveria ter íntima ligação com a função motivadora da norma social. Todavia, muitas vezes há uma incongruência entre as motivações apontadas e esses desencontros não são inocentes.
Um bom exemplo disso é a violação do patrimônio privado, que revela uma punição bem mais eficaz e exacerbada que a violação ao patrimônio público. Alguns doutrinadores indicam que a violação ao patrimônio público é apenada de forma mais branda porque o próprio povo não sente tal crime de forma gravosa. Ou seja, se é seu relógio ou seu automóvel que é subtraído, o cidadão sofre bem mais com esse fato em comparação com o seu pesar quando sabe pelo noticiário que foram desviados milhões de reais dos cofres públicos ou que tal empresário sonegou mais alguns milhões em impostos.
Mas é de se perguntar: esse noticiário, a impressa em geral, quando fornece a informação do desvio de dinheiro público e, principalmente, quando informa sobre sonegação fiscal de grande monta, correlaciona esses fatos com o número de mortos por desnutrição no nosso país ou com as mortes de pessoas em filas para atendimento em hospitais públicos? Alerta que o dinheiro sonegado ou desviado evitaria milhares de mortes, melhoraria os serviços de saúde, educação e os benefícios previdenciários? Não é o que vejo quando leio ou assisto os jornais de maior incisão social.
A incongruência acima referida tem um de seus fundamentos na forma de representação democrática acolhida por nossa Constituição da República e também na legislação eleitoral.
Na verdade, não há uma representatividade dos interesses da maioria do povo no Congresso Nacional e nem mesmo no Poder Executivo (Assembléia Legislativa de Rondônia? Prefeitos de Alagoas?). Como se pode defender nossa democracia representativa como sendo legítima, quando o processo eleitoral reserva espaços para propaganda política incrivelmente díspares aos candidatos na fase de campanha eleitoral e essas campanhas têm financiamento privado? Os líderes de bairro e de favelas vão financiar seus candidatos? E seus candidatos, se existissem, poderiam durante a propaganda política demonstrar seus objetivos políticos expondo-os analiticamente? Ou, na verdade, somente poderiam dizer: “O meu nome é José!”.
Ora, sejamos menos cínicos! A mídia hoje exerce papel fundamental na estruturação dos valores e bens socialmente relevantes. A propaganda eleitoral também tem papel central na definição das eleições [5]. Grande parte dos eleitos não está ali por terem sintonia com os desejos populares, mas sim lá estão por contarem com o apoio decisivo das elites econômicas que dominam também, por óbvio, as principais empresas de comunicação.
Desse modo, as penas impostas aos mais variados crimes revelam indisfarçável comprometimento do legislador com as classes mais abastadas, em detrimento das classes oprimidas, logicamente.
Para exemplificar, transcrevo parte do magistério de Amilton Bueno de Carvalho, que afirma:
“(…) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles comportamentos que ofendem mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior desagrado: a ofensa à honra (injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma pessoa com grave ameaça que subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em primeiro lugar a honra, após o corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis meses ou multa (art. 140 do CP); detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez anos (art. 157), respectivamente. Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração de coisa móvel mediante grave ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres praticam, o de roubo não! Para quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena?
c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de uma a seus meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, a subtração de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas preocupados com a segurança do país e propõem a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo virá;
d) o pobre que não trabalha é contraventor, pois não coloca no mercado de trabalho a sua força para ser explorada (art. 59 da LCP). E o rico?” [6]
A casuística seria interminável, inclusive passando pela legislação extravagante. A seletividade social da norma penal é indiscutível e pode ser creditada, pelo menos parcialmente, à falta de representatividade dos membros do Congresso Nacional. E essa seleção ataca justamente a parcela mais carente da população. Definitivamente, não se pode dizer que a norma penal protege os bens de maior relevância social. Protege, isso sim e às escâncaras, os interesses da classe dominante.
Vale, ainda, transcrever trecho da lição de Juarez Cirino dos Santos, quando expõe os fins da pena privativa de liberdade:
“1) o controle repressivo dos inimigos de classe do Estado capitalista (as classes dominadas, em geral, e os marginalizados do mercado de trabalho, em especial); 2) a garantia da divisão de classes, mediante a separação força de trabalho/meios de produção, origem das desigualdades sociais, característica das relações de produção capitalista; 3) a produção de um setor de marginalizados/criminalizados (reincidentes e rotulados como criminosos, em geral), marcados pela posição estrutural (fora do mercado de trabalho) e institucional (dentro do sistema de controle), como amostra do que acontece aos que recusam a socialização pelo trabalho assalariado. Em síntese, os objetivos da pena criminal (e do aparelho carcerário) podem ser definidos por uma dupla reprodução: reprodução das desigualdades sociais fundadas na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, e reprodução de um setor de marginalizados/criminalizados (no circuito da reincidência criminal), cuja função é manter a força de trabalho ativa integrada no mercado de trabalho, como força produtiva dócil e útil, intimidados pela ‘inferiorização’ social resultante da insubordinação à disciplina do trabalho assalariado”. [7]
De alarmar é que, até mesmo instrumentos de reação doutrinária e jurisprudencial contra essa seletividade, como, por exemplo, o princípio da insignificância, sejam utilizados para excluir a possibilidade de punição de membros das elites econômicas. Espantaria e agrediria o senso comum, se algum magistrado absolvesse alguém por ter furtado R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) de alguma loja de comércio ou de algum cidadão, alegando que se trataria de crime de bagatela, valor esse suficiente para nutrir uma família de miseráveis brasileiros por alguns meses. Mas com o dinheiro público, pode-se tudo, até mesmo absolver alguém com base no disparate mencionado. Com a vênia devida, posto que considero totalmente equivocada a decisão, transcrevo a seguinte ementa de acórdão:
“2609-DESCAMINHO- Habitualidade criminosa. Existência de registros anteriores. Princípio da insignificância. Aplicabilidade. Havendo prática de descaminho com a ilusão de impostos em valor não superior ao patamar de R$ 2.500,00, da L. 10.522/02, é possível a aplicação do princípio da insignificância penal. A habitualidade exigida para afastar-se o princípio da bagatela não pode ser vista, simplesmente, como mais um processo ou registro de prática idêntica, sendo necessárias várias práticas de descaminho, assim compreendidas, no mínimo, três incursões no tipo penal. Precednetes desta Corte. (TRF 4 R. SER 2003.71.04.011330-3-RS 7 T.- Rel. Des. Fed. p/c Maria de Fátima Freitas Labarrère-DJU 05-05-2004).” [8]
Ora, ao revés do que dizem os que admitem a orientação jurisprudencial acima transcrita, o Estado não pode perdoar dívida alguma, eis que o erário tem por característica sua indisponibilidade. Se não cobra valor que lhe é devido, até certo limite imposto por lei, é por falta de estrutura nos seus quadros e não propriamente por estar perdoando tal dívida.
Nem se diga que tal jurisprudência estaria beneficiando membro da classe mais reprimida socialmente, pois somente pode “iludir” tal monta de impostos quem detém patrimônio suficiente para manutenção de sua vida, e de sua família, com dignidade, o que não acontece com a maioria da população brasileira.
Atribuo tal tipo de decisão a uma completa incompreensão de que os recursos públicos são do povo e sua ausência é responsável por milhares de mortes por desnutrição em todo o Brasil. Repita-se: quando se sonega impostos ou se subtrai de qualquer modo recursos públicos, o que se está fazendo é matando milhares de brasileiros de fome e de doenças das mais simples, mas isso rende reflexões para outro artigo.
Constatada a seletividade social da norma penal, não se pode simplesmente se ver tudo isso e nada fazer. Salvo os que projetaram, concretizaram e mantêm esse sistema, todos os demais cidadãos devem se insurgir. A gravíssima situação carcerária nacional, que é problema sem priorização alguma num governo neoliberal como o presente, invoca-nos também à reação. Esta pode vir de várias formas, como, por exemplo, com utilização de conceitos doutrinários como o princípio da insignificância, mas, sem dúvida alguma, um melhor sistema eleitoral, que proporcione uma verdadeira representação popular no parlamento, é o caminho mais seguro para a resolução do problema.
Juiz de Direito do TJPE. Ex- procurador Federal. Pós-graduando em ciências criminais.
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