Situação jurídica patrimonial e existencial

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Resumo: Este artigo objetiva tratar das Situações Jurídicas nos seus aspectos patrimonial e existencial à luz da dignidade da pessoa humana. Para tanto serão trazidas noções históricas sobre o assunto. O enfoque será dado aos séculos XVIII e XIX sobretudo na Europa. Ainda na abordagem histórica para uma melhor compreensão das situações jurídicas faz-se necessário resgatar o conceito de direito subjetivo desde seu surgimento na sociedade liberal até os dias de hoje. Em seguida o tema a ser explorado versará sobre o conceito de situações jurídicas e trataremos do binômio situação jurídica patrimonial e existencial. Questão importante é a referente às situações jurídicas e à autonomia privada; analisaremos os limites à liberdade individual e contratual frente às regulamentações legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro sobretudo com foco no valor e princípio norteador do sistema jurídico pátrio: a dignidade da pessoa humana.

Sumário: Introdução; 1 Situação Jurídica Patrimonial e Existencial; 2. Situação Jurídica e Autonomia Privada; 2.1. Distinções Terminológicas Importantes; – Liberdade Jurídica Autonomia da Vontade Autonomia Privada e Autonomia Negocial; 2.2 Autonomia Privada e as Situações Jurídicas Existenciais; – Conclusão; Referências.

1.Introdução    

O objetivo deste trabalho é analisar as situações jurídicas patrimoniais existenciais, ou seja, as situações jurídicas da ordem do ter e da ordem do ser, em uma perspectiva voltada para o princípio fundante de nossa ordem jurídica: a dignidade da pessoa humana.

Abordar-se-á o tema da personalização do direito que é central neste estudo, uma vez que propõe a leitura, a interpretação e a aplicação dos institutos jurídicos à luz da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, deverá também ser revisitado o conceito de direito subjetivo que dá lugar hodiernamente às situações jurídicas, as quais, por sua vez, dividem-se em existencial e patrimonial.

Para se atingir estes objetivos ter-se-á como referência a legislação pátria vigente, tanto no que diz respeito às normas constitucionais como as infraconstitucionais, assim como a doutrina jurídica nacional que trata do tema ora analisado, bem como de temas afins.

O método empregado será o raciocínio dedutivo para estabelecer uma relação direta entre o princípio da dignidade humana e as situações jurídicas patrimoniais e existenciais.

2 Situação Jurídica Patrimonial e Existencial

Para tratarmos da questão das situações jurídicas é preciso que se vislumbre uma perspectiva histórica em que se resgate o conceito de direito subjetivo.

De fato, desde os séculos XVIII e XIX o direito subjetivo é um conceito central e tem sido o pilar de sustentação de grande parte dos institutos jurídicos.

Surgido num ambiente em que floresciam e dominavam as concepções liberalistas e individualistas, como era o da Europa oitocentista, o direito subjetivo encontrou nos Estados Modernos a estrutura ideal para se instalar e desenvolver, figurando como elemento nuclear do direito, sobretudo do direito privado.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ocorrida na França em 1789 consagrou os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Ocorre que o entendimento acerca destes ideais restou por se traduzir em garantias para a classe burguesa vitoriosa da revolução.

Os ideais revolucionários se prestaram somente ao tráfego comercial entre um grupo econômico limitado: a burguesia. A maioria da população continuava alijada dos processos econômicos, sociais, políticos e jurídicos.

Esta combinação produziu uma massa de cidadãos excluídos, uma vez que a sociedade desta época somente atendia àqueles que já eram proprietários e os que ocupavam a posição de acumuladores de grandes riquezas.

Assim, a liberdade se resumia na menor limitação possível para contratar. A igualdade também era adstrita ao equilíbrio entre as partes contratantes. E a fraternidade, por não se prestar a nenhuma facilitação comercial, não se concretizou.

De fato, com o passar do tempo, surgiu a necessidade de se repensar a ideia de indivíduo como aquele ser dotado de poderes para fazer valer suas vontades com pouca ou nenhuma limitação por parte da ordem legal vigente à sua época.

 Com o direito subjetivo no centro, a lógica jurídica era entendia com base na presença reduzida de freios e na maior amplidão das liberdades individuais e daí também numa maior possibilidade de consecução da felicidade para os seres humanos. A autodeterminação, neste tipo de estruturação, não encontrava maiores entraves legais.

 Os abusos e distorções se fizerem crescentes e flagrantes, exigindo do direito uma solução. Daí o surgimento da noção de situação jurídica como significativa de uma ordem inovadora que atribui direitos, mas também exige contrapartidas dos seus titulares.

A passagem do Estado liberal para o Estado social abriu espaço para a possibilidade de se ponderar os direitos privados e as necessidades públicas, considerando a massa de cidadãos excluídos pelos processos históricos e econômicos.

 Gradativamente a noção de direito subjetivo tornou-se insuficiente para abarcar e explicar os fenômenos jurídicos em toda a sua complexidade crescente com o passar dos anos.

 Novas formulações se fizeram necessárias, chegando-se ao instituto da situação jurídica. Novos desafios se apresentaram no mundo fático e, consequentemente, no jurídico.

 Segundo Marcelo Benacchio:

“Havendo, portanto, a imposição normativa de vários comportamentos para que o participante de uma relação jurídica possa opor os direitos de que é titular, temos por insuficiente a justificação disso pela noção antiga de direito subjetivo, que normalmente, considera apenas as vantagens do seu titular perante os demais, sem a necessária conformação de obrigações”. (BENACCHIO, , p.198)

 Vejamos o que aduz Marcelo Benacchio sobre a noção contemporânea de direito subjetivo:

“(…) para as compreensões contemporâneas, o direito subjetivo fornece ao seu titular uma esfera de proteção jurídica contra atos dos não-titulares, havendo, nesse âmbito, dois lados, um interno, voltado contra aquele a quem o direito subjetivo é exercido, e outro externo, referentemente à garantia da própria existência do direito subjetivo em si.” (BENACCHIO, , p.195)

 Vejamos também a formulação de Orlando Gomes, para quem direito subjetivo é “um interesse protegido pelo ordenamento jurídico mediante um poder atribuído à vontade individual”.[1]

 Neste mesmo sentido é o entendimento de Vicente Rao. Senão vejamos:

“O direito subjetivo é o poder de ação determinado pela vontade que, manifestando-se através das relações entre as pessoas, recai sobre os atos ou bens materiais ou imateriais e é disciplinado e protegido pela ordem jurídica a fim de assegurar a todos e a cada qual o livre exercício de suas aptidões naturais, em benefício próprio, ou outrem, ou comunhão social.” (Apud. BENACCHIO, 2008, p.192-193)

O direito subjetivo, concepção clássica que norteou grande parte dos institutos jurídicos, passa então por reformulações de modo que já não é mais possível vê-lo, hodiernamente, com o mesmo olhar de tempos passados.

Com efeito, a noção de situação jurídica vem com a missão de revisitar as construções jurídicas doutrinárias e os diplomas legais a fim de conferir novo entendimento acerca dos direitos reais e obrigacionais, assim como dar novo sentido aos conceitos e acepções que já não revelam um significado que corresponda à realidade e necessidades modernas.

As situações jurídicas podem ser de duas ordens distintas: da ordem do ser ou da ordem do ter. O critério para se aferir se uma determinada situação jurídica pertence a uma ou outra ordem é a patrimonialidade do objeto em questão. Se este objeto tiver caráter patrimonial, ou seja, se guardar relação direta com um valor pecuniário, esta situação será da ordem do ter.

Na prática é difícil separar estas duas categorias completamente. No dia a dia, muito comumente elas se confundem e se complementam. Mas é importante destacar que as situações jurídicas patrimoniais servem à realização das faculdades humanas e desenvolvimento das personalidades individuais.

Nas palavras da autora Rose Melo Vencelau Meireles: “Assim, deve-se entender por patrimonial a situação jurídica subjetiva que tenha equivalente pecuniário, ou seja, que possa ser expresso em dinheiro no momento de formação da relação jurídica”. (MEIRELES, 2009, p.33)

Ao contrário, se não for possível estabelecer diretamente um valor em dinheiro para este objeto, ele será não patrimonial, da ordem do ser.

Importante destacar que nem todas as situações não patrimoniais são existenciais pois, nem todas dizem respeito a direitos da personalidade. Assim, existem as situações não patrimoniais lato sensu e stricto sensu. A primeira englobando as situações personalíssimas e as não aferíveis materialmente e a segunda só as personalíssimas ou existenciais.

Vejamos a elucidativa assertiva de Rose Melo Vencelau Meireles:

“As situações existenciais pertencem à categoria do ser, na qual não existe dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica. A pessoa, portanto, é elemento interno e externo da relação jurídica, embora seja mais que isso, porque alcança patamar de valor. Com efeito, dizem-se existenciais as situações jurídicas pessoais ou personalíssimas no momento em que titularidade e realização coincidem com a existência mesma do valor”. (MEIRELES, 2009, p.36)

 Tanto as situações existenciais quanto as patrimoniais contribuem para o desenvolvimento da personalidade, uma vez que não há relação jurídica (mesmo as patrimoniais) que seja completamente dissociada dos interesses e da proteção da pessoa humana. [2]

 Os autores Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias sintetizam da seguinte maneira a questão: “Os bens, a propriedade e o patrimônio são instrumentos de uma vida digna”. (FARIAS & ROSENVALD, 2009, p.181)

 Para se classificar uma situação como pertencente à ordem patrimonial ou não patrimonial é preciso inseri-la num contexto que considere a sociedade na qual estes critérios são estabelecidos.

 Neste sentido, vejamos as palavras de Rose Melo Vencelau Meireles:

“(…) a caracterização da patrimonialidade da prestação independe da subjetiva apreciação das partes e deve-se ter em consideração o ambiente jurídico-social, além do momento histórico no qual a relação jurídica se realiza. Uma dada situação que se julgue não patrimonial em determinado momento histórico social pode tornar-se patrimonial em outro.” (MEIRELES, 2009, p.29)

 As situações jurídicas existenciais gozam de posição privilegiada em comparação às situações jurídicas patrimoniais. Isto não quer dizer uma importância pequena das questões relativas ao patrimônio, ao tráfego comercial, ao lucro e às riquezas em geral.

 Significa, isto sim, que em caso de conflito entre as duas ordens, deve-se preconizar o ser humano com sua especial dignidade, valor fundante e estruturante de todo o nosso ordenamento jurídico.

 Neste sentido, aduz o autor Gustavo Tepedino:

“(…) há de se diferenciar, em primeiro lugar, as relações jurídicas patrimoniais das relações jurídicas existenciais, já que fundadas em lógicas díspares. Tal diversidade valorativa deve preceder, como premissa metodológica, à atividade interpretativa. A pessoa humana é o centro do ordenamento, impondo-se assim tratamento diferenciado entre os interesses patrimoniais e os existenciais. Em outras palavras, as situações patrimoniais devem ser funcionalizadas às existenciais”. (TEPEDINO, 2009, p. 32)

O autor português José Oliveira Ascensão distingue as situações jurídicas em patrimoniais e pessoais[3]. Diz que as situações jurídicas pessoais são aquelas intransmissíveis (critério insuficiente), não patrimoniais (critério negativo: pessoais são as não patrimoniais), obrigacional (ou que não é real) e, por fim, estreitamente ligadas à personalidade.

Já as patrimoniais seriam aquelas transmissíveis, que não são pessoais, suscetíveis de avaliação pecuniária e que se integram ao patrimônio. E conclui: As situações jurídicas pessoais são aquelas em que há prevalente aspecto ético, e as patrimoniais aquelas cuja essência é compatível com a redução a um valor pecuniário”(ASCENSÃO, 2010, p.19).

Estas categorias não são estanques, confundindo-se muitas vezes nas relações jurídicas. Mesmo porque não há situação patrimonial que seja completamente dissociada dos interesses existenciais, sendo que a diferença se estabelece na forma mediata ou imediata que incidem.

Consoante a ideia kantiana de dignidade humana, “no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade.” Se é possível atribuir a uma coisa um preço, então ela é substituível. Ao contrário, quando não há equivalente para uma determinada coisa, então ela tem dignidade.[4]

3 Situação Jurídica e Autonomia Privada

3.1 Distinções Terminológicas Importantes – Liberdade Jurídica, Autonomia da Vontade, Autonomia Privada e Autonomia Negocial

 É comum na doutrina a confusão entre liberdade jurídica, autonomia da vontade, autonomia privada e autonomia negocial. Contudo, é fundamental distinguir os termos para compreensão do tema proposto nesta monografia.

 Liberdade jurídica significa o agir humano dentro dos parâmetros jurídicos previamente traçados. É a esfera de atuação dos seres humanos dentro dos limites legais.

 Vejamos a definição de Rose Melo Vencelau Meireles:

“A liberdade jurídica corresponde a toda manifestação de liberdade tutelada pelo ordenamento jurídico. Para os particulares, ser livre juridicamente significa ter a faculdade de agir licitamente, a qual existe sempre que não haja vedação, o que se resume na máxima: o que não é proibido, é permitido” (MEIRELES, 2009, p. 64).

 Já a autonomia da vontade diz respeito a um aspecto interno, subjetivo das pessoas, consistindo em meio de expressão da vontade humana.

 A autora Rose Melo Vencelau Meireles esclarece: “A função da autonomia da vontade, pode-se afirmar, era a de garantir a própria vontade do sujeito, por ser considerada a única fonte de efeitos obrigacionais”(MEIRELES, 2009, p. 66)

 Seguindo a linha da autora Rose Melo V. Meireles abordaremos a autonomia privada sob os enfoques técnico e axiológico.

 Sob o ponto vista técnico, considerado este como produtor de efeitos jurídicos, a autonomia privada pode ser definida como um poder de determinar vicissitudes jurídicas. Vicissitudes jurídicas são os efeitos produzidos por um ato jurídico no sentido de modificá-lo, constituí-lo ou extingui-lo.

 Assim, a autonomia privada, neste sentido, consiste no poder de definir as consequências dos atos jurídicos.

 Vejamos o que aduz Rose Melo Vencelau Meireles sobre este assunto: “A autonomia privada, assim concebida, seria substrato para a criação, modificação ou extinção de situações jurídicas subjetivas, sempre na moldura formada pelo ordenamento jurídico”. (MEIRELES, 2009, p. 68)

 No aspecto axiológico a autonomia privada pode ser entendida como uma forma de assegurar valores objetivados na produção dos efeitos jurídicos.

 A autora Rose Melo Vencelau Meireles traz a definição de Pietro Perlingieri sobre autonomia negocial. É a seguinte:“(…) é o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito, privado ou público, de regular com a própria manifestação de vontade interesses privados ou público, porém não necessariamente próprios.”[5]

3.2 Autonomia Privada e as Situações Jurídicas Existenciais

A palavra autonomia tem origem etimológica no grego e significa governar a si mesmo, ou seja, a prerrogativa de cada indivíduo de ditar regras próprias para si.

Grande questão é a convivência entre o espaço de liberdade individual de regramento da própria vida e a ordem legislativa existente com suas limitações a todos imposta de maneira genérica, impessoal e sistemática.

Com o movimento de repersonalização do direito civil, a dignidade da pessoa humana, consagrada constitucionalmente, passou a ocupar o centro do ordenamento jurídico, conforme já foi dito, devendo toda leitura das normas infraconstitucionais ser realizada de maneira a guardar a maior efetividade e respeito ao referido princípio fundante.

Assim, apresenta-se como ponto nuclear a discussão relativa à ponderação e ao equilíbrio entre o respeito à dignidade humana positivada em nossa Carta Magna e a autonomia privada.

O autor Gustavo Tepedino bem destaca a questão da seguinte maneira:

“A inclusão dos institutos de direito civil, como contrato, propriedade e família, na agenda atinente à ordem pública associa-se à irradiação dos princípios constitucionais nos espaços de liberdade individual. Com efeito, a partir da interferência da Constituição no âmbito antes reservado à autonomia privada, uma nova ordem pública há de ser construída, coerente com os fundamentos e objetivos fundamentais da República” (TEPEDINO, 2009, p. 4)

Mais adiante completa este mesmo autor:

“(…)deve-se observar que direito civil assistiu ao deslocamento de seus princípios fundamentais do Código Civil para a Constituição. Tal realidade reduzida por muitos a fenômeno de técnica legislativa, ou mesmo à mera atecnia, revela profunda transformação dogmática, em que a autonomia privada passa a ser remodelada por valores não patrimoniais, de cunho existencial, inseridos na própria noção de ordem pública. Propriedade, empresa, família, relações contratuais tornam-se institutos funcionalizados à realização dos valores constitucionais, em especial da dignidade da pessoa humana, não mais havendo setores imunes a tal incidência axiológica, espécies de zonas francas para a atuação da autonomia privada. A autonomia privada deixa de configurar um valor em si mesma, e será merecedora de tutela somente se representar, em concreto, a realização de um valor constitucional” (TEPEDINO, 2009, p. 6)

A questão é complexa e assume acepções diversas. Difícil é a combinação entre a proteção à dignidade humana e a liberdade de autodeterminação, de modo a respeitar o âmbito de contratação sem implicar em uma situação de degradante para as partes contratantes.

 Outra questão é a relativa ao que se constitui uma situação degradante e quem estabelece isso. Seria a própria parte contratante, alguma autoridade como o magistrado ou o senso comum dado pela sociedade? Estabeleceu-se, assim, uma espécie de confronto entre dignidade da pessoa humana e autonomia privada.

 Sobre este assunto é imperioso lembrar o clássico caso do “arremesso de anão.” Em linhas gerais trata-se de episódio ocorrido na França, já em fins do século XX, quando uma empresa resolveu adotar como entretenimento, em casas noturnas de várias cidades, o lançamento (daí o termo ‘arremesso’) de uma pessoa de pequena estatura: o anão.

 Inconformado com esta situação, o prefeito de uma destas cidades, administrativamente, cancelou os chamados espetáculos, valendo-se de sua condição de guardião da ordem pública, invocando a repugnância que a situação causava. A empresa responsável em litisconsórcio ativo com o anão ingressou com uma ação para anular a ato do prefeito.

 A seguir o aspecto mais relevante deste caso paradigmático: os argumentos da própria parte interessada (o deficiente), a quem o Estado, sob o manto da dignidade da pessoa humana argumentou proteger. Alegava, assim, que nada via de humilhante em suas apresentações, que eram sempre voluntárias e remuneradas. Portanto, tudo não passava de um trabalho como outro qualquer. Além disso, diante de suas limitações físicas, não era muito fácil encontrar lugar no mercado de trabalho. Diante disto concluiu que proibi-lo de exercer tal atividade era alijá-lo de seu direito inalienável ao trabalho.[6]

 Apesar disto, O Conselho de Estado decidiu, em última instância, que era o caso de atentado contra a dignidade da pessoa humana e determinou definitivamente o encerramento das apresentações.[7]

 Em nome da proteção à pessoa ocorreram limitações ao campo de autodeterminação e liberdade no âmbito contratual, ou seja, restringiram-se as possibilidades de escolha no momento de se estabelecer objetos, modos e termos do contrato, sob o pretexto de afronta à pessoa e à sua dignidade.

 Se o Estado ou a sociedade estão mais habilitados para dizer o que desrespeita a pessoa e sua dignidade mais do que a própria pessoa, permanece ponto tormentoso. A ideia do indivíduo poder ter sua atuação restringida sob o argumento de ser protegido de si mesmo, mesmo no gozo de suas faculdades mentais, pode resultar desastroso. Quem estabelece o que é atentatório à dignidade da pessoa humana resta uma questão problemática.

 Em algumas situações esta interferência na vida das pessoas, denota uma suposição de que o envolvido não tem condições de avaliar o potencial do que foi avençado, e que por isso, estaria ocorrendo uma afronta à sua dignidade, mesmo que presente o seu assentimento.

 Importante é a lição de Maria Celina Bodin de Moraes: “Ao paternalismo contido na máxima segundo a qual “as pessoas devem ser protegidas de si próprias”, deve ser oposta a presunção que vigora nas sociedades democráticas: a liberdade de escolha do próprio destino não pode ser exceção”. (MEIRELES, 2009, p.134-135)

 É possível perceber que o que configura uma situação atentatória à dignidade da pessoa humana varia muito conforme a época, o lugar e a cultura de cada sociedade. O que é tolerável em um determinado cenário pode ser extremamente ofensivo em outro.

 O que não se pode ignorar é que no caso brasileiro, após a Constituição de 1988, o espaço de manifestação das vontades individuais ficou relativizado, pois desde então é preciso ponderar também os valores sociais.

 Nas palavras da autora Rose Melo Vencelau Meireles:

“Assim, a atuação da vontade individual após a Constituição de 1988 é remodelada pela observância dos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade integram o Estado social de Direito delineado pelo constituinte”. (MEIRELES, 2009, p.83)

 Assim, é preciso que se tenha em vista o caso concreto para que seja possível estabelecer o potencial de ofensa à dignidade da pessoa que determinada situação pode acarretar. Em respeito à dignidade da pessoa humana, as situações jurídicas existenciais passam a ocupar lugar de primazia no ordenamento pátrio.

 Esta nova organização manifesta-se através de leis, doutrinas e decisões judiciais, chegando a interferir no campo de atuação individual das pessoas, sob o argumento de afronta à sua própria dignidade.

 Em caso de conflito entre as duas ordens, deve-se preconizar o ser humano com sua especial dignidade, valor fundante e estruturante de todo o nosso ordenamento jurídico.

4. Conclusão

As situações jurídicas se apresentam nos dias atuais como uma nova expressão linguística incumbida de reformular a noção clássica de direito subjetivo, uma vez que este termo não é mais suficiente para designar a tônica das interações jurídicas que se estabelecem entre as pessoas nas sociedades contemporâneas.

 O ordenamento passa a tender a um maior equilíbrio e demonstra mais preocupação com o coletivo e com a inserção dos titulares de direitos na comunidade, consoante a concepção solidarista do direito.

 As situações jurídicas existenciais gozam de posição privilegiada em comparação às situações jurídicas patrimoniais. Isto não quer dizer uma importância pequena das questões relativas ao patrimônio, ao tráfego comercial, ao lucro e às riquezas em geral.

 Em uma sociedade e num tempo em que se busca a maturidade das questões sociais e jurídicas, a autonomia dos indivíduos deve ser sempre valorizada e respeitada. A capacidade de autodeterminação não deve ser presumidamente desqualificada para se preencher o espaço de liberdade dos cidadãos com regulamentações estatais inadequadas, que restariam por significar uma ingerência exagerada e desnecessária na vida das pessoas.

 

Referências
1. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral. Relações e Situações Jurídicas. 2ª edição. Vol. 3. Ed. Saraiva. 2010.
2. BENACCHIO, Marcelo. Direito subjetivo – situação jurídica – relação jurídica. In: Lotufo, Renan; Nanni, Giovanni Ettore (Coord.). Teoria geral do direito civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 186-217.
3. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2ª edição. Rio de Janeiro. ed. Renovar. 2006.
4. FARIAS, Cristiano Chaves de e Rosenvald, Nelson. Direitos Reais. 6ª edição. Rio de Janeiro: ed. Lumen Juris, 2009.
5. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: ed. Renovar. 2009.
6. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos de Direito Civil-Constitucional. 1ª edição. Rio de Janeiro. ed. Renovar. 2010.
7. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8ª edição. Porto Alegre. ed. Livraria do Advogado. 2010.
8. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo 3. Rio de Janeiro. ed. Renovar. 2009.
Notas:
[1] Apud. Marcelo Benacchio.
[2]Meireles, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana
[3] José de Oliveira Ascensão. Relações e Situações Jurídicas. Direito Civil. Vol. 3. Teoria Geral.
[4] Sarlet, Ingo Wolfgang. “Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988”.
[5] Apud. Meireles, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. P.71.
[6] Moraes, Maria Celina Bodin de. Constituição e direito civil: tendências.
[7] Idem.

Informações Sobre o Autor

Vanessa Drumond Patrus Ananias

Professora da ESA/DF e da Fundação Dom Cabral. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


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Equipe Âmbito Jurídico

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