THEORIES ON THE FORMS OF GOVERNMENT AND THE CONFLICT OF ITS APPLICATION IN THE POST-MODERNITY
André Faustino
Ivy Helene Lima Pagliusi
Resumo: As teorias que explicam as formas de governo buscam evidenciar duas manifestações importantes desse tipo de fenômeno ligado à atividade efetiva do Estado. A primeira relaciona-se com a efetiva explicação e conceituação do que seriam essas formas de governo e a segunda como elas devem funcionar ou, de certa, funcionaram ao longo da história. Principalmente no que tange à relação do funcionamento dessas formas de governo é importante ressaltar que desde a antiguidade os conceitos que bem definem são trabalhados em Platão e Aristóteles, com o passar do tempo outros filósofos trataram do assunto, onde se destacam Maquiavel, Hobbes, Bodin e Montesquieu, todos eles com uma concepção mais moderna. Todas essas perspectivas são baseadas no livro de Norberto Bobbio A Teoria das Formas de Governo. Por fim será analisado o descolamento existente entre os conceitos dessas formas concebidas na antiguidade e modernidade, quando contextualizadas e aplicadas em um contexto social completamente diferente da pós-modernidade.
Palavras–chave: Formas de governo; Pós-modernidade; Filosofia do direito.
Abstract: The theories that explain the forms of government seek to highlight two important manifestations of this type of phenomenon linked to the effective activity of the State. The first relates to the actual explanation and conceptualization of what these forms of government would be and the second how they should work or, indeed, have worked throughout history. Especially as regards the relation of the functioning of these forms of government, it is important to emphasize that since antiquity the concepts that define well are worked on in Plato and Aristotle, over time other philosophers have dealt with the subject, where Machiavelli, Hobbes, Bodin and Montesquieu, all of them with a more modern design. All these perspectives will be based on Norberto Bobbio’s book The Theory of Forms of Government. Finally, we will analyze the existing detachment between the concepts of these forms conceived in antiquity and modernity, when contextualized and applied in a social context completely different from postmodernity.
Keywords: Forms of government; Postmodernity; Philosophy of law.
Sumário: Introdução. 1. Formas de Governo na Antiguidade. 1.1. Platão. 1.2. Aristóteles. 2. Formas de governos na Idade Média. 3. Formas de Governo na Modernidade. 3.1. Maquiavel. 3.2. Bodin. 3.3 Hobbes. 3.4 Montesquieu. 4. Contexto pós-moderno e uma crítica às formas modernas de governo. Conclusão. Referências.
Introdução
A concepção de Estado como uma estrutura social complexa dotada de poder que rege as relações sociais através do monopólio da força, detendo a sua prerrogativa, bem como possuindo a capacidade de regular a disputa pelo poder político, circunda o espectro de observação dos filósofos desde a antiguidade.
Uma organização de funcionamento complexo e sistêmico desse tipo possui nuances e características que irão variar conforme o contexto social em que está situada, sendo necessária a avaliação do tipo de sociedade no qual o Estado está situado para buscar a definição ou evidenciação do tipo de governo possível.
Para a administração e condução desse tipo de governo do Estado existirão inúmeras possibilidades, porém todas serão produto do próprio tecido social em que estão inseridas e embora exista uma distância histórica de mais de dois mil anos entre as concepções antigas de formas de governo e Estado, elas irão dialogar e possuir pontos de convergência com a sociedade atual.
No contexto da antiguidade serão tratados os conceitos de formas de governo evidenciados por Platão no livro A República e por Aristóteles no livro A Política, buscando mostrar a diferença no entendimento nas formas de governo do Estado e na própria concepção dos atores que irão compor o Estado, que servirão de base para o desenvolvimento das teorias que buscam explicar as minucias do funcionamento do Estado.
Passando pela época moderna serão tratados os conceitos de forma de governo trabalhados por Bobbio no livro Teoria das Formas de Governo quando ele procura explicar as teorias desenvolvidas por Hobbes, Maquiavel, Bodin e Montesquieu, cada um com suas características marcantes e que definiram outras formas de governos possíveis e aplicáveis no contexto social em que surgirão.
Por fim será analisada a atual situação das formas de governo desenvolvidas na antiguidade e modernidade e que são aplicadas até os dias atuais, dentro de um contexto social pós-moderno, porém segundo conceitos trabalhados há mais de 200 anos como se a sociedade não sofresse mutações ao longo desse período, o que provoca um descolamento entre o Estado idealizado e o efetivo anseio social em relação ao funcionamento desse mesmo Estado.
A antiguidade marca o surgimento das primeiras cidades com organização social mais complexa e da constituição embrionária do que se entende por Estado até hoje, principalmente para o mundo ocidental. Contido nesse conceito de Estado está a ideia do monopólio da força e da direção política da sociedade, porém desde a antiguidade confunde-se a ideia de Estado com a própria ideia de sociedade, como se o Estado fosse efetivamente a sociedade.
Weber[1] irá tratar bem essa questão da confusão de Estado com sociedade, porém irão existir alguns pressupostos fundamentais para a efetiva definição do que é Estado. A primeira grande base é a necessidade de dominação desse Estado, quer seja no campo político, quer seja efetivamente na prerrogativa do uso da força, que será limitado à finalidade da existência desse Estado, que terá ligação com a existência de seres humanos por trás dessa organização desse Estado. A segunda é que o Estado é o meio e não o fim, devendo corresponder aos próprios anseios da sociedade que o legitima e o terceiro e último seria a territorialidade.
Nesse sentido Weber cria um conceito de Estado da seguinte maneira:
Uma ‘organização governante’ será chamada ‘política’ na medida em que sua existência e ordem forem continuamente salvaguardadas dentro de uma dada área territorial pela ameaça e aplicação de força física por parte do órgão administrativo. Uma organização política compulsória com operação contínua será chamada de ‘estado’ na medida em que seu órgão administrativo sustentar satisfatoriamente a alegação do monopólio da legitimidade do uso da força física para proteger sua ordem[2].
Portanto o Estado nada mais é do que o próprio poder e está colocado de forma superior aos indivíduos que legitimaram ou não esse poder, independente da sua vontade em alguns casos, já que o Estado irá existir independente da vontade individual e irá se sobrepor, justamente, a esse tipo de vontade, não representando apenas uma soma de vontades individuais, mas uma manifestação independente da própria vontade geral[3].
1.1 Platão
Em Platão irá surgir uma definição bastante importante sobre as formas de governo do Estado, elas serão um ponto de partida fundamental para o desenvolvimento de outras teorias que buscaram definir efetivamente a questão de como governar de forma sistêmica o Estado.
O seu pensamento se desenvolve partindo de uma premissa idealizada sobre o próprio conceito de Estado, uma república ideal que terá como objetivo a garantia da justiça social de acordo com as próprias valias de cada indivíduo que constituía essa sociedade e por consequência esse Estado.
Existiriam três grandes categorias de indivíduos que iriam compor essa sociedade ideal, existindo os governantes dotados de capacidade de pensamento teórico, guerreiros – muito presentes naquele momento social – e os indivíduos que se dedicariam ao trabalho produtivo, qualquer que fosse. Essa constituição social e de uma república nunca existiu na história da humanidade, fazendo parte de um mundo idealizado muito característico no pensamento de Platão.
Bobbio bem evidencia essa questão:
O diálogo de A República é, como todos sabem, uma descrição da república ideal, que tem por objetivo a realização da justiça entendida como atribuição a cada um da obrigação que lhe cabe, de acordo com as próprias aptidões. Consiste na composição harmônica e ordenada de três categorias de homens – os governantes-filósofos, os guerreiros e os que se dedicam aos trabalhos produtivos. Trata-se de um Estado que nunca existiu em nenhum lugar[4]
Para esse filósofo irão existir quatro tipos de forma de governo cada uma com a sua característica particular, porém bem representada sempre por grupos de indivíduos marcados por traços determinantes para a sua conceituação. Em qualquer um desses tipos é possível identificar a existência de linhas marcantes sempre voltadas para uma cerca incapacidade da efetiva gestão da coisa pública e do próprio Estado, inclusive Platão não prevê a existência de duas formas de governos marcantes, a monarquia e a aristocracia, mais uma vez Bobbio bem mostra essa questão:
As constituições corrompidas que Platão examina demoradamente no livro oitavo são, em ordem decrescente, as quatro seguintes: timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Vê-se logo que faltam nessa enumeração duas das formas tradicionais – a monarquia e a aristocracia.[5]
Platão considera como as quatro formas de governo possíveis a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania, cada uma representando uma manifestação específica, porém a timocracia seria justamente uma forma de transição para as últimas três formas, pois representa o viés menos técnico e mais passional, sendo constituída por um governo marcado pela honra, pela exaltação da qualidade pessoal do guerreiro. Os seus integrantes têm bom desempenho no campo do desenvolvimento da força ou da guerra, defendendo a propriedade privada, buscando no desenvolvimento do poder do Estado uma possibilidade de desenvolvimento do poder individual, sendo que ele confundido com o próprio poder do guerreiro integrante desse Estado.
Platão explica no livro a República a questão da timocracia:
O tema não foi perfeitamente desenvolvido, mas se não há dúvida de que a constituição ideal é dominada pela alma racional, é indubitável que a constituição timocrática (que exalta o guerreiro, mais do que o sábio) é dominada pela alma passional. As outras três formas são dominadas pela alma apetitiva: o homem oligárquico, o democrático e o tirano são todos eles cúpidos de bens materiais, estão todos voltados para a Terra – embora apresentem aspectos diversos. A passagem mais interessante onde se surpreende o critério para a distinção entre as várias formas, com base nas respectivas almas, é aquela que descreve o nascimento do homem timocrático como filho rebelde do homem aristocrático.[6]
A segunda forma de governo seria a oligarquia que nada mais é do que a prevalência dos ricos sobre os pobres, desconsiderando a própria valia individual, indo no oposto da timocracia que levaria em conta aspectos pessoais e até passionais. A oligarquia desconsidera todo tipo de nuance que possa existir em cada individuo, prevalece apenas a ideia de capacidade atrelada à posse de bens materiais, ligados ao lucro, aspectos apenas financeiros.
O Estado nesse tipo de forma de governo irá relacionar-se com a capacidade financeira de seus governantes, o Estado oligárquico irá, justamente, cisalhar a capacidade de unificação dos membros da sociedade, já que por essência separa a sociedade em dois grupos distintos, os ricos e os pobres.
Mais uma vez Platão bem evidencia essa questão:
O peculiar ao governo oligárquico é adotar o censo como medida de capacidade para o exercício do poder. Mas o absurdo deste critério, que priva o Estado de grande número de talentos aptos a servi-lo, quase não carece de demonstração. Ousar-se-ia escolher o piloto de um navio segundo o censo, com abstração das qualidades e conhecimentos profissionais requeridos ao manejo do timão? Assim, a oligarquia repousa sobre um princípio vicioso. Dividindo os cidadãos em dois clãs adversos, dos ricos e dos pobres, quebra irremediavelmente a unidade do Estado cuja segurança é, alias, incapaz de garantir. Seus magistrados devem, com efeito, ou armar a multidão, e neste caso tudo temer da sua parte, ou restringir-se a uma milícia pouco numerosa, composta de membros da classe dirigente, e sem valor guerreiro, porquanto, nesta classe, a primazia do espirito de lucro e de vil negócio sucedeu ao primado da coragem.[7]
A terceira forma de governo seria a definida por democracia que seria uma espécie de decorrência da própria oligarquia, uma consequência, que devido a sua capacidade de segregar, de desaglutinar a sociedade, criando a divisão ricos e pobres, gera instabilidade social, forçando os indivíduos a buscarem uma possibilidade de ascenderem ao poder, de chegarem até o Estado.
Esse tipo de forma de governo representaria uma espécie de malefício, pois como seria uma reação à crueldade da oligarquia, seria uma consequência ruim, pois a massa revoltada com o primado da oligarquia e da separação de classes e consequente dano no tecido social (fome, miséria, endividamento, etc.) buscaria sua ascensão ao poder, onde a democracia nada mais seria que a tirania da maioria sobre a minoria e embora representasse um ganho sob o ponto de vista social, era, ainda, uma forma má de governo, embora considerada política.
O grande prejuízo da democracia[8] seria uma aproximação do governo do Estado à uma anarquia, já que como representa a vontade da maioria e essa maioria teria sido esmagada pela minoria no contexto oligárquico, existiria uma certa forma de pendor ao não cumprimento das normas que assegurassem uma ordem social mínima, a revolta da maioria representaria a ruina da paz social, bem como um excesso de liberdade individual.
Com a imagem de que os governos democráticos governam e existem para o povo, ou seja, direcionados para aqueles que serão governados, governantes devem trabalhar em busca da satisfação do interesse do povo, que representa uma maioria, mesmo que isso representasse uma visão contrária a própria ideia de democracia de Platão.
Nesse sentido o filósofo bem evidencia essa questão:
O terceiro grau de decadência corresponde a democracia. Ela é o produto dos mesmos fatores que a oligarquia, porem elevados, se se pode dizer, a maior potencia. A oposição entre ricos e pobres cresce dia a dia, sem que a classe dirigente, preocupada unicamente em enriquecer, cuide de conjurar os temíveis efeitos desse antagonismo. Bem depressa os “zangões armados de ferrões” – gente sobrecarregada de dividas ou manchada de infâmia – assumem a chefia do povo e o incitam a revolta.[9]
Por fim a ultima forma de governa seria a tirania que estaria ligada ao rei ou a um monarca e estaria relacionada com a projeção sobre o conceito de bem comum ou, de certa forma, da possibilidade de posse desse bem comum. Na tirania apenas um individuo irá ser o detentor desse bem comum, que passará a ser o próprio bem único, ou seja, a coletividade irá sucumbir à vontade individual de um tirano e, justamente, o excesso de liberdade contido na democracia é que irá vincular o Estado à vontade de apenas uma pessoa, a tirania não seria uma forma política de relação da forma de governo com o Estado e consequentemente como reflexo da vontade da sociedade. Esse tipo de forma de governo bem evidencia o primado de que o excesso de liberdade irá representar um excesso de escravidão[10].
1.2 Aristóteles
Aristóteles teve como mestre Platão, portanto a sua base teórica para explicar as formas de governo será a mesma do seu mestre, contando com algumas nuances a respeito da evolução das formas boas de governo para formas más de governo, vale ressaltar que esse filósofo já trabalha com o conceito de tripartição dos poderes, existindo o judiciário, executivo e o poder deliberativo (responsável por tomar as decisões relativas à polis).
Antes de entender o pensamento aristotélico ligado às formas de governo vale ressaltar que dentro da sua filosofia a política irá possuir ligação direta com a moral e com o conceito de virtude (uma espécie de “prisão” na qual os indivíduos deveriam exercer e trabalhar encima daquilo que nasceram para fazer de melhor). Esse conceito de virtude irá derivar para o Estado que trabalhará com a moral e política, onde a moral estará ligada ao contexto coletivo e a política ligada ao contexto do individuo, portanto o Estado possuirá superioridade ao indivíduo, prevalecerá a vontade coletiva e dessa forma atingindo a virtude.
Dessa forma Aristóteles cria o conceito das formas de governo baseadas em três formas boas, sendo ele entende por governo o exercício supremo do poder pelo Estado, que estariam representadas na monarquia, na aristocracia e no governo constitucional (democracia), bem como nos seus desvios, ou seja, governos maus, representados na tirania, oligarquia e no governo constitucional (democracia – demagogia).[11]
No livro A Política Aristóteles irá usar muito o termo constituição, mas que não tem relação com o termo jurídico que conhecemos como a carta magna de um país ou a norma fundamental no topo da pirâmide, como preceitua Kelsen. Para o filósofo constituição terá ligação direta com o termo politeia que terá relação com o conceito de forma de governo latu sensu, dessa forma quando ele se refere à constituição está na verdade tratando das formas de governo[12].
A divisão proposta por Aristóteles é clássica no sentido de explicar seis formas de governo, porém existem divisões importantes, já que três formas são principais e as outras três formas são deformações das três formas boas, são desvios que não alteram a essência de virtude. Basicamente a conceituação proposta irá flutuar entre critérios bem definidos pautados no binômio de quem irá governar e como irá governar, já que esses dois critérios é que definirão a natureza fundamental de cada forma de governo proposta.
Assim surgem os conceitos ligados às formas de governo propostas onde as formas boas são monarquia, aristocracia e politia (governo constitucional) representando, respectivamente, o poder na mão de uma única pessoa, o poder na mão de poucas pessoas ou o poder na mão de muitas pessoas, sendo o desvirtuamento traduzido em tirania, oligarquia e a democracia (demagogia).
Nesse sentido Bobbio bem elucida essa questão dos tipos de formas de governo para Aristóteles:
Em poucas linhas, o autor formula, com extrema simplicidade e concisão, a célebre teoria das seis formas de governo. Fica bem claro que essa tipologia deriva do emprego simultâneo dos dois critérios fundamentais – “quem” governa e “como” governa. Com base no primeiro critério, as constituições podem ser distinguidas conforme o poder resida numa só pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia) e em muitas (“politia”). Com base no segundo, as constituições podem ser boas ou más, com a conseqüência de que às três primeiras formas boas se acrescentam e se contrapõem as três formas más (a tirania, a oligarquia e a democracia).[13]
Nesse contexto, Aristóteles afirma que na oligarquia, os magistrados são nomeados pelas rendas, o critério é primeiramente ligado à riqueza, capacidade econômica, já na aristocracia relaciona-se com a capacidade de educação dos agentes do Estado, que irá diferenciar-se da monarquia que é um regime que manda um só, mas que pode ser através da realeza (segundo uma ordem) ou quando não encontrará limites, que receberá o nome de tirania.
Aristóteles bem explica essa questão na definição das formas de governo:
Alem da democracia e da oligarquia ainda há duas formas de governo; uma delas é reconhecida e considerada por todos como uma das quatro espécies de constituição (estas quatro são monarquia, a oligarquia, a democracia e a quarta é a chamada aristocracia), há, porém, uma quinta, designada pelo nome comum a todas eles, pois é chamada governo constitucional, mas como ela não se apresenta com frequência é negligenciada pelos que tentam enumerar as formas de constituição.[14] (1293, b)
As formas boas de governo serão consideradas dessa forma, pois buscam a satisfação do interesse e do bem da coletividade, sendo que na monarquia e na aristocracia a participação popular seria menos efetiva, por isso que Aristóteles acreditava que a melhor seria a democracia, onde a participação da população seria mais ativa.
O próprio desenvolvimento das monarquias clássicas criou a possibilidade de desenvolvimento das funções do próprio Estado e criaram uma nova forma de circulação do poder, pois possibilitaram manter o poder efetivo de forma mais fácil, menos custoso, sem maiores transtornos sociais, pois até então esses governos só se mantinham através da violência[15].
Já as formas impuras ou más de governo assim são consideradas por será desvios das formas boas no sentido de que o interesse dos governantes é que seriam primeiramente atendidos, principalmente na oligarquia e na tirania, centralizadas, respectivamente, nas mãos dos ricos ou nas mãos dos tiranos e por ultimo a demagogia que seria uma suposta participação popular, mas com o governo ainda concentrado na mão de poucos.
Dentro dessas formas propostas por Aristóteles existe esse diálogo entre as formas boas e as formas más ou impuras e isso que irá marcar o pensamento desse filósofo, sempre relacionado a questão de quem e como esse alguém irá exercer o poder no Estado, por isso o surgimento da distorção onde o interesse pessoal irá sobrepujar os interesses coletivos, essa forma de pensamento explica muito bem as deformações que as formas de governo mais recentes sofrem quando manipulados com a finalidade de atender os interesses individuais, marca muito importante dos totalitarismos vividos no século XX.
Apesar de não ter havido grandes contribuições doutrinárias nesta época, vale fazer algumas considerações a respeito das ideias vigorantes no período medieval. Norberto Bobbio faz alusão a este tempo como intervalo porque a obra a Política de Aristóteles havia se perdido pela crise da cultura antiga, a qual somente foi redescoberta no fim do século XIII. Os escritores cristãos desta fase não tiveram acesso à teoria clássica do bom e mau governo.
Na Era Medieval o governo, que geralmente se estabelecia pela forma de monarquia absoluta, servia para justificar a nítida desigualdade entre classes – senhores e servos – ditame referendado pela Igreja Católica – que tinha como premissa que nem todos os homens eram bons (senhores e clero), de modo que o Estado existia exatamente para controlar os homens ruins (servos e não cristãos).
Neste viés, o servo nasceria nesta condição por razões divinas, devidamente fundamentadas pela Igreja Católica. No entanto, o objetivo por detrás almejado era a dominação da plebe pelo terror, mantendo-se a nobreza e o clero em posição privilegiada na sociedade.
Daí decorre a teoria do Estado negativo proposta por Bobbio, que tinha por objeto “remediar a natureza má do homem, vendo-o sobretudo como uma dura necessidade, considerando-o particularmente no seu aspecto repressivo (simbolizado pela espada).”[16]
Tendo em vista a maldade humana, o governo deveria exercer sua coerção sobre o povo a fim de manter a ordem em sociedade, inclusive podendo se valer de meios violentos para tanto. A dicotomia Estado-Igreja assegurava o combate ao mal, ou seja, que os não cristãos não praticassem injustiças, ao mesmo passo que garantia a salvação destes homens perante Deus.
3.1 Maquiavel
A Modernidade marca a transição entre o teocentrismo e o antropocentrismo. Embora os dogmas da Igreja Católica continuem a influenciar o modo de Governo, a razão conquista força, balizando as atitudes do governante.
De acordo com Maquiavel, somente duas seriam as formas de governo existentes: monarquia e república, diferente da teoria clássica tripartida. Este filósofo tampouco faz menção às formas degradadas de governo. Sob esta perspectiva, o principado corresponderia ao reino, governo pautado pela vontade de uma única pessoa, o monarca, enquanto a república, tanto à aristocracia quanto à democracia, a depender se a vontade era manifestada por poucos ou muitos.
Para ele, a adoção da monarquia ou da república dependeria do contexto social vivenciado, ou seja, referir-se-ia a um posicionamento volátil em sede de um único Estado, tendo por propósito a manutenção no poder. Se fosse uma época de paz e estabilidade institucional, então teria lugar a forma de governo monárquico. Acaso se tratasse de momento de sérios conflitos em sociedade, o ideal seria a república.
Nesta toada, não seria a forma de governo, por si só, que determinaria o critério de bom ou mau governo, mas a finalidade almejada pelo governante. Assim, se o príncipe estivesse imbuído a perseguir os anseios da sociedade, tanto monarquia, quanto república seriam boas formas de governo. Se, todavia, o propósito fosse guiar-se por interesses pessoais, então o governo seria considerado deteriorado.
Acrescenta Maquiavel que para satisfazer o interesse público e o bem comum, o príncipe estaria autorizado a praticar todos os atos que estivessem ao seu alcance para atingir dito objetivo. Quando relata isso, Maquiavel defende inclusive os meios mais extremos, entre eles a prática de violência, o cometimento de arbitrariedades ou abusos e até mesmo usar de artimanhas para ludibriar o povo.
Daí decorre a célebre frase, cuja autoria lhe é imputável – “os fins justificam os meios” – embora Maquiavel jamais tenha escrito esta assertiva de maneira literal, esta ideia é perpetuada por meio de uma construção interpretativa de seu discurso, vez que o importante para este filósofo é o resultado obtido, a despeito da natureza das ações que o governante seja obrigado a tomar.
Maquiavel ainda aconselha que, para manter o poder, o príncipe deve ter virtú (capacidade, preparo para o exercício do cargo) e “fortuna” (contar com a sorte). Estes preceitos são aplicados nos dias atuais para qualquer agente político que exerça parcela do poder. Acaso não tenha a qualificação necessária, mesmo que com sorte, dificilmente terá êxito em seu mandato, isto é, capacidade em manter a estabilidade estatal.
3.2 Bodin
Bodin defende a existência de um poder soberano para se falar há um Estado. Poder soberano, contudo, não significa que o poder seja ilimitado. Partindo da ideia que o soberano “não pode dar ordens a si mesmo” por intermédio das leis que ele mesmo institui no plano terrestre, está sujeito somente às leis naturais e divinas.
Neste sentido, ele afirma: “Se o príncipe soberano não tem o poder de ultrapassar os limites das leis naturais, estabelecidas por Deus – de que ele é uma imagem – só poderá tomar os bens alheios se tiver motivo justo e razoável: mediante compra, troca ou confisco legítimo; ou para a salvação do Estado… Não havendo as razões mencionadas, o rei não poderá apropriar-se da propriedade alheia, dispondo da mesma sem o consentimento do proprietário.”[17]
Para este pensador, embora tenha inclinação pela monarquia, considera três as formas possíveis de governo: monarquia, aristocracia e democracia, as quais não se confundem com o modo de governo.
Assim, a monarquia pode ser democrática se o soberano permitir o exercício do poder pelo povo. De igual maneira pode ser aristocrática, quando franquia a alguns a participação do poder, e assim por diante, a depender do regime pelo qual a soberania é desempenhada.
Tendo em vista ser a soberania indivisível, Bodin nega o governo misto por ser inconciliável com a sua estrutura. O fundamento para se averiguar o bom ou mau governo é o modo de exercício e não quem exerce o poder.
3.3 Hobbes
Assim como Bodin, Hobbes não aceita a distinção entre as formas boas e más, tendo em vista tratar-se de conceito subjetivo, variando de acordo com a opinião individual de cada um. Por não ser este um critério preciso, o mesmo não pode embasar a diferenciação acima aludida.
Hobbes, ainda, defende a legitimidade do poder soberano absoluto, divergindo de Bodin na medida em que sustenta que as leis divinas e naturais servem apenas de parâmetro ao soberano, pois não há uma força superior que lhe possa constranger a observá-las, afinal, ou o poder é ou não é dotado de supremacia.
Outra diferença em relação ao seu entendimento é a que enquanto Bodin defende a propriedade privada como um direito natural, o qual deve ser respeitado por todos, inclusive pelo soberano, excetuadas determinadas hipóteses que envolvam interesse coletivo, para Hobbes este direito somente torna-se factível de ser exercido pela intervenção estatal, afinal, é o Estado quem garante o direito de propriedade entre os particulares.
O Estado, portanto, estaria calcado, de maneira racional, no pacto social, a fim de conferir segurança e proteção aos indivíduos em sociedade, uma vez que, como é cediço, tal garantia não é passível de ser alcançada no estado natural. Nesta toada, somente o Estado teria o condão de proporcionar a paz social, atributo que não corresponderia necessariamente à felicidade de seus membros.
A questão da legitimidade do governante, para este filósofo, estaria atrelada à sua aceitação pelos súditos, ao consentimento destes na manutenção do poder pelo soberano, mesmo quando o poder tivesse sido obtido por intermédio da força.
Quanto às formas de governo, Hobbes aceita a monarquia, a aristocracia e democracia, porém rechaça a viabilidade de governos mistos por uma razão basilar: o poder soberano não pode ser fracionado, sob pena de não ser mais qualificado como soberano, o que teria por consequência a instabilidade do Estado.
Norberto Bobbio leciona que a crítica feita por Hobbes ao governo misto na verdade refere-se à teoria da separação dos poderes, consistente na separação das funções principais do Estado. Em verdade se cada uma das funções estatais fosse exercida simultaneamente e em conjunto por cada uma das classes sociais – rei, nobres e povo – todos estariam representados, diferente do defendido por Hobbes que se referiria a um Estado dividido em três facções, administradas cada qual por uma das castas. [18]
3.4 Montesquieu
Na visão de Montesquieu as leis positivadas exercem um papel fundamental no respeito das leis universais em sociedade. Isso porque os ditames naturais são destituídos de coercibilidade, fazendo-se necessário o seu reforço pela autoridade competente, o poder soberano, a fim de serem aperfeiçoadas pela razão humana. Tais leis seriam divididas em leis aplicadas entre Estados soberanos, entre os súditos e o Estado e entre os súditos entre si.
Em relação às formas de governo, entende serem de três naturezas: republicana, monárquica e despótica. Interessante notar que os conceitos de governo republicano, enquanto desenvolvido por alguns (aristocracia) ou muitos (democracia), e de governo monárquico, empreendido por uma única pessoa, se aproxima bastante do sentido que nos conduz Maquiavel.
Segundo Montesquieu:
Há três espécies de governo: o ´republicano´, o ´monárquico´ e o ´despótico´. Estou pressupondo três definições – ou melhor , três fatos: o governo republicano é aquele no qual todo o povo, ou pelo menos uma parte dele, detém o poder supremo; o monárquico é aquele em que governo uma só pessoa, de acordo com leis fixas e estabelecidas; no governo despótico, um só arrasta tudo e a todos com a sua vontade e caprichos, sem leis ou freios.[19]
Questão a ser enfrentada é quanto à classificação do governo despótico como categoria autônoma, que em verdade diz respeito ao modo do exercício do poder ou a um modo de monarquia degradada, assemelhando-se à tirania, e não a uma forma de governo propriamente dita. O governo despótico seria aquele arbitrário, empreendido pelo monarca sem obediência às leis ou sujeito a qualquer outro sistema de controle.
Cumpre acrescer que é Montesquieu o primeiro doutrinador que define o despotismo como uma espécie de governo, fazendo esta correlação somente com a monarquia, afastando o mesmo silogismo para a democracia ou aristocracia, apesar de manifestar sua inclinação pelo governo monárquico. Este fato, todavia, não exclui a possibilidade da república ser corrompida como no caso de haver desrespeito às leis.
Montesquieu, outrossim, distingue as estruturas de governo – que ele denomina natureza – da governabilidade – que o mesmo chama de princípio, o móvel que impulsiona os súditos a respeitarem o governante. Enquanto na república, o princípio vigorante seria o da virtude cívica, na monarquia seria a honra e no despotismo, o medo.
A maior contribuição deste filósofo para a atualidade foi a introdução da teoria da separação dos poderes, que é a base da constituição norte-americana de 1776 e a francesa de 1791. Referido sistema permite, através da repartição das principais funções do Estado – legislativa, executiva e judiciária – que cada um dos poderes tenha atribuições próprias e ao mesmo tempo fiscalize o exercício do outro, reciprocamente, coibindo-se eventuais abusos.
Nas palavras de Norberto Bobbio: “para evitar o abuso de poder, este deve ser distribuído de modo que o poder supremo seja consequência de um jogo de equilíbrio entre diversos poderes parciais, e não se concentre nas mãos de uma só pessoa.”[20]
Em suma, Montesquieu conclui que a liberdade política existe apenas nos governos moderados, porque nestes não há abuso de poder, o que somente é possível de ser alcançado quando este poder possui algum método de controle eficiente, nos seguintes dizeres:
Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o poder legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se temer que o comarca ou o senado promulguem leis tirânicas para aplicá-las tiranicamente. Não há liberdade se o poder judiciário não esta separado do legislativo e do executivo.[21]
A concepção da tripartição de poderes atual parte da base proposta por Montesquieu, bem como o funcionamento das formas de governo, todas baseadas em conceitos modernos desse tipo de atividade estatal, seguem um rito que não consegue se adequar aos anseios sociais atuais. Como preceituado por Aristóteles, o Estado e o poder só deve existir para servir ao coletivo, essa seria a base da virtude na atividade de governar, o poder e o governante deveriam buscar atender os anseios da coletividade.
Por óbvio, ao longo da história ocorreram diversos desvios de finalidade na atividade de governar o Estado, desde a antiguidade até os tempos atuais, o homem buscou satisfazer interesses pessoais ao chegar até o poder, usar o Estado como forma de benefício pessoal e não em prol de uma sociedade ou da coletividade, sendo essa coletividade a justificadora da própria existência do Estado.
A própria ideia de contrato social[22] que surge no pensamento de Hobbes dá essa ideia de que o Estado só deve existir para atender o interesse de uma coletividade que aceitou celebrar esse contrato social que irá legitimar o poder do Estado. O consentimento da maioria é que irá dar razão ao poder que emana do Estado, portanto a sua existência deve ser no sentido de garantir a paz e a segurança social[23].
Ocorre que com a transformação humana recorrente, nos deparamos atualmente em um contexto social que não representa mais os ideais modernos, esses ideais sob o ponto de vista social já foram superados e novos valores sociais emergiram, até mesmo um novo tipo de sociedade emergiu, com relações mais efêmeras, necessidades mais urgentes e multiplicidade de informação, não permitindo a manutenção de conceitos herméticos ou endurecidos, essa sociedade é conhecida e traduzida como a pós-modernidade.
Se na modernidade essa relação do homem com o tempo ocorre de forma linear, em conceito de espaço e de relação, justamente, com esse espaço buscando interagir com ele das formas mais variadas, na pós-modernidade ocorre o oposto, onde surgirá uma relativização do tempo e do espaço, a tecnologia irá descontruir a ideia de espaço físico e estático, ocorrendo severas transformações econômicas, políticas e sociais, a segurança da conquista do espaço físico através do tempo transforma-se em uma forma desse mesmo tempo aniquilar o espaço[24].
A pós-modernidade considerada uma fase de transição, ela é consequência do da modernidade, mostra os sintomas da ruptura do modelo moderno e de amadurecimento social ou desconstrução social, Bittar bem evidencia essa questão:
A pós-modernidade é menos um estado de coisas, exatamente porque ela é uma condição processante de um amadurecimento social, político, econômico e cultural, que haverá de alargar-se por muitas décadas até sua consolidação. Ela não encerra a modernidade, pois inaugura sua mescla com os restos da modernidade. Do modo como se pode compreendê-la, deixa de ser vista somente como um conjunto de condições ambientais para ser vista como certa percepção que parte das consciências acerca da ausência de limites e de segurança, num contexto de transformações, capaz de gerar uma procura (ainda não exaurida) acerca de outros referenciais possíveis para a estruturação da vida (cognitiva, psicológica, afetiva, relacional etc.) e do projeto social (justiça, economia, burocracia, emprego, produção, trabalho etc.)[25].
Nesse sentido os conceitos de formas de governo concebidos em uma sociedade que agia e pensava de forma diferente encontram dificuldade em se manter plenamente adequados na sociedade dos tempos atuais e justamente essa inadequação, esse descolamento do momento social atual é que causa dificuldade em amoldar o governo, o poder e o Estado às efetivas necessidades da coletividade, ocorre uma espécie de rompimento do contrato social, a pós-modernidade evidencia esse caos e a efemeridade das relação, inclusive as de poder[26].
A própria separação dos poderes e tratamento dessa teoria de base moderna, mostra que no direito e no pensamento constitucional o direito ainda se encontra dentro da modernidade, porém existindo em uma sociedade pós-moderna, por óbvio existirá um conflito severo que residirá, justamente, na tentativa de tentar aplicar tais conceitos e pressupostos no contexto social atual, a definição dos governos despóticos, por exemplo, encontra dificuldade em se adequar à realidade existente nos dias atuais, Latour afirma que com esse tipo de aplicação das leis e desse tipo de conceito, nem mesmo modernos podemos ser considerados:
Ocorre com estas duas separações aproximadamente o mesmo que ocorre com aquela que distingue o judiciário do executivo. Esta ultima não teria como descrever os múltiplos laços, as influencias cruzadas, as negociações continuas entre os juízes e os políticos. No entanto, aquele que negar a eficácia dessa separação esta enganado. A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social tem o mesmo caráter constitucional, com o detalhe que, até o momento, ninguém se colocou em posição de estudar os políticos e os cientistas simetricamente, já que parecia não haver um lugar central. Em certo sentido, os artigos da lei fundamental que diz respeito à dupla separação foram tão bem redigidos que nós a tomamos como uma dupla distinção ontológica. Do momento em que traçamos este espaço simétrico, restabelecendo assim o entendimento comum que organizava a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos.[27]
As funções de governo como instrumento de regulação e organização do poder estatal, nitidamente ligadas ao direito, passam a sofrer uma crise, pois de sempre existir um diálogo efetivo entre o direito e o tempo, a dissociação desse tipo de relação prejudica a aplicação do próprio direito e daquilo que dele decorre, já que o direito é um produto de seu tempo, é um produto da cultura[28].
François Ost bem evidencia essa relação do direito e o tempo:
(…) a função principal do jurídico é contribuir para a instituição do social: mais que proibições e sanções como se pensava anteriormente; ou cálculo e gestão como se crê muito frequentemente na atualidade, o direito é um discurso performativo, um tecido de ficções operatórias que redizem o sentido e o valor da vida em sociedade. Instituir significa, aqui, atar o laço social e oferecer aos indivíduos as marcas necessárias para sua identidade e sua autonomia.[29]
Essa não adequação do funcionamento do Estado, dessas formas de governo ao contexto social atual gera desvios críticos na aplicação dos conceitos que surgiram em um momento social diferente do atual, onde por exemplo o surgimento de totalitarismos que desvirtuaram mais ainda a ideia de um Estado que atendesse os anseios da coletividade e, mais ainda, o surgimento de Estados-nação irá impor uma necessidade premente de repensar o funcionamento e o Governo do próprio Estado.
Giddens bem explica essa questão:
As possibilidades de domínio totalitário dependem da existência de sociedades nas quais o Estado pode penetrar de forma bem-sucedida nas atividades diárias da maioria da população, isso, por sua vez, pressupõe um alto nível de vigilância, baseado nas condições analisadas previamente – a codificação da informação e a supervisão sobre a conduta de segmentos importantes da população. O totalitarismo mantem, sobretudo, um enforque extremo de vigilância, dedicado à segurança de objetivos políticos escolhidos pelas autoridades do Estado para demandar mobilizações políticas urgentes. A vigilância tende a se concentrar (a) em relação a uma multiplicação dos modos de documentar a população pelo Estado – carteiras de identidade, licenças de todas as formas, e outros tipos de documentos oficiais, que devem ser mantidos por toda a população mesmo nas mais corriqueiras das atividades; e (b) essa é a base de uma supervisão ampliada daquelas atividades, realizadas pela polícia ou por seus agentes.[30]
Portanto a inadequação das teorias relativas às formas de governo, desenvolvidas em diversos períodos históricos da humanidade, à realidade social e aos anseios da próprio coletividade irá criar um hiato na aplicação e desenvolvimento desse tipo de instrumento de organização do Estado, dentro da pós-modernidade esse distanciamento fica mais evidente e justifica a dificuldade em estabilização e manutenção do poder em diversos tipos de Estados existentes.
Conclusão
Apesar de na conjectura atual tanto se defenda a democracia como a melhor forma de governo, por ser esta a expressão da vontade do povo, idealização proclamada no artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal brasileira, ela guarda consigo uma deformidade perversa, já antevista desde a Antiguidade, qual seja, a corrupção, que parece estar enraizada em nosso país desde os primórdios da civilização.
Como bem pontua Norberto Bobbio: “…quando é o povo que governa, é impossível não haver corrupção na esfera dos negócios públicos, a qual não provoca inimizades, mas sim simboliza alianças entre os malfeitores: os que agem contra o bem comum fazem-no conspirando entre si.”[31]
O traço característico das formas de bons governos, assim considerados tanto por Platão, quanto Aristóteles, como Maquiavel e Bodin, qualquer que seja o tipo ou nomenclatura que se dê, plural ou singular é, a princípio, aquela que tem por objetivo a busca do bem comum. Em que pese Hobbes não comungue da distinção entre bom ou mau governo, ele sustenta a existência do Estado para que seja possível a vida pacífica em sociedade.
Conforme restou demonstrado, Montesquieu adota como bom governo aquele em que há respeito às leis positivas. O valor liberdade somente seria atingido pela aplicação da teoria da separação dos poderes por meio de um governo moderado.
Embora a Constituição Federal ter se inspirado nas lições de Montesquieu em seu artigo 2º ao prever serem poderes independentes e harmônicos entre si o executivo, o legislativo e o judiciário, na prática há diversos exemplos de desrespeito desta divisão, tal como a edição de súmulas vinculantes por parte do Supremo Tribunal Federal que faz as vezes do poder legislativo em razão do seu caráter obrigatório ou da edição de medidas provisórias pelo Presidente da República, em especial no governo atual, já que não consegue apoio do Congresso Nacional para aprovar leis, destituídas de relevância e/ou urgente.
O descolamento na aplicação dos conceitos desenvolvidos em momento social diferente do atual fica evidente e cada vez mais surge o desafio de buscar a real adequação e finalidade desses instrumentos de organização do poder dentro do Estado, alinhado com o efetivo atendimento das necessidades da coletividade. Esse é o ponto crucial de pensamento em busca da proposição de alternativas que procurem alinhar a necessidade, ainda, da existência de um Estado e o seu papel de atendimento e funcionamento em prol dos interesses da sociedade.
Referências Bibliográficas
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WEBER, Max. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947.
[1] WEBER, Max. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947, p. 152.
[2] WEBER, Max. Economy and society. New York: Bed- minster, 1968, p. 53-4
[3] Cf. Kelsen: “O Estado é Poder e, por consequência, superior aos indivíduos submetidos às suas regras. Vontade, também distinta da vontade dos indivíduos, não psíquica e impossível de se conseguir pela simples soma das vontades individuais.” KELSEN, Hans. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 109.
[4] BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UnB. 2000, p. 45.
[5] Idem, p. 50.
[6] PLATÃO. A república. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965, p. 52
[7] Idem, p. 45.
[8] Cf. Platão: “Esta com efeito, na ordem da natureza que a licenciosidade extrema suceda extrema servidão. Por seus excessos mesmos. A democracia engredra inevitavelmente a tirania. O povo, alterado pela liberdade, tendo prestado ouvidos a maus escanções que o embriagam com este vinho puro além de toda a decência, perde logo o controle de seus atos, apavora-se com a menor sombra de coerção e trará por oligarcas os que gostariam de mante-los nos caminhos da prudência”. Idem, p. 48.
[9] Idem, p. 46.
[10] Idem, p. 47.
[11] Em nossa discussão inicial sobre as formas de governo dividimo-las em três formas corretas: monarquia, aristocracia e governo constitucional; os desvios destas também foram divididos em três (a tirania, a oligarquia e a democracia, originando-se respectivamente na monarquia, da aristocracia e do governo constitucional). ARISTÓTELES, Política. São Paulo: Martin Claret. 2003, 1289 b.
[12] O termo empregado por Aristóteles para designar o que até aqui venho chamando de “forma de governo” é politeia, traduzido via de regra como “constituição”. Vale notar que na Política encontramos muitas definições de “constituição”. BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UnB. 2000, p. 45.
[13] BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UnB. 2000, p. 56.
[14] ARISTÓTELES, Política. São Paulo: Martin Claret. 2003, 1293 b.
[15] Cf. Foucault: “As monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado – Exército, polícia, administração local – , mas instauraram o que se poderia chamar uma nova “economia” do poder, isto é, procedimentos que permitissem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo continua, ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo o corpo social. Essas novas técnicas são, ao mesmo tempo, muito mais eficazes e muito menos dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seu resultado, menos suscetíveis de escapatórias ou de resistências) do que as técnicas até então usadas e que repousavam sobre uma mistura de tolerâncias mais ou menos forçadas (desde o privilégio reconhecido até a criminalidade endêmica) e de cara ostentação (intervenções espetaculares e descontinuas do poder cuja forma mais violenta era o castigo “exemplar”, pelo fato de ser excepcional). FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2013, p. 45.
[16] BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, 10. ed., UnB, p. 78.
[17] BODIN, Jean. Les six livres de la Republique. Paris: Fayard, 1986, apud, Bobbio, 1997, p. 97.
[18] BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, 10. ed., UnB, p. 114.
[19] Idem, p. 130.
[20] BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, 10. ed., UnB, p. 136.
[21] Idem, p. 137.
[22] Cf. Saldanha: “O contratualismo desempenhou um perceptível papel ideológico na elaboração do ideário liberal, apesar de sua apropriação por Hobbes e apesar dos fatos de que Rousseau – a cujo nome ficaria conjugada a expressão “contrato social” – não foi exatamente um liberal, senão que mais um entusiasta da vontade geral e de sua predominância por meio da lei…Somente o governo (ou o poder) consentido seria legitimo – ainda não se cogitava de distinguir juridicamente entre a legitimidade e a validade – e o consentimento tinha de provir de todos, ou seja, de cada um dos contratantes, cada qual livre e racional em sua condição humana. A liberdade inerente a cada ser humano, que seria proclamada nas declarações constitucionais do liberalismo, deveria ser o aval do poder, consentindo e portanto outorgado por ela. E esta liberdade, alegada a cada passo nas revoluções liberais, era em si um direito natural, em face do qual o Estado tinha a fazer era reconhecer e proteger, ou seja, garantir.” SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação de poderes. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 29.
[23] Cf. Hobbes: “O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado. Ou na dependência da vontade de cada indivíduo: é o caso do poder de uma facção, ou de várias facções coligadas. Consequentemente ter servidores é poder; e ter amigos é poder: porque são forças unidas.”HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 76.
[24] LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2008, p. 67.
[25] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Revista Sequencia n. 57. São Paulo, 2008, p. 137.
[26] Cf. Bauman: “A pós-modernidade, pode-se dizer, é a modernidade sem ilusões (o oposto disso é a modernidade é a pós-modernidade que recusa aceitar sua própria verdade). As ilusões em questão concentram-se na crença de que a “confusão” do mundo humano não passa de estado temporário e reparável, a ser substituído mais cedo ou mais tarde pelo domínio ordenado e sistemático da razão. A verdade em questão é a “confusão” permanecerá, o que ser que façamos ou saibamos, que as perguntas ordens ou “sistemas” que cinzelamos no mundo são frágeis, temporários, e tão arbitrários e no fim tão contingentes como suas alternativas.” BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997, p. 51.
[27] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 19.
[28] Cf. Giddens: “Quer dizer, sustenta-se, por exemplo, que a política só existe em sociedades que possuem formas distintas de aparelho de Estado, e assim por diante. Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante efetivo que existem fenômenos “políticos” – relacionados com a ordenação das relações de autoridade – em todas as sociedades.” GIDDENS, Anthony. A constituição da Sociedade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 38.
[29] OST, François. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005, p. 13.
[30] GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a Violência: segundo volume de uma crítica contemporânea ao materialismo histórico; tradução Beatriz Guimaraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 315.
[31] BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, 10. ed., UnB, p. 41.
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