Artigo elaborado por Marina Luiza Amari, advogada, mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná
Nas últimas semanas, a pandemia da COVID-19 demandou respostas do Direito nas mais diversas áreas. Perguntas sobre revisão de contratos, pagamento de empregados, tributação, entre outros assuntos, estavam e estão na ordem do dia, desafiando a busca por soluções criativas e adequadas, que atentem para o contexto socioeconômico criado pela crise.
Simultaneamente, a pandemia ressaltou a importância de uma ferramenta jurídica consolidada, mas pouco difundida no Brasil: o testamento. Conforme dados recentes da Gazeta do Povo¹, os cartórios do Paraná registraram um crescimento de 70% na procura por testamentos, certamente em razão de a doença ser mais agressiva na população idosa, considerada grupo de risco.
Mas o anseio de planejar a sucessão hereditária não é de hoje. Aos poucos, a sociedade tem compreendido a importância de antecipar e organizar os efeitos patrimoniais gerados pelo falecimento, pela ciência de que a sucessão legítima possui amarras que um planejamento sucessório pode resolver. Afinal, poucos procedimentos são tão burocráticos, onerosos e desgastantes quanto os decorrentes do falecimento.
A busca por um planejamento sucessório envolve aspectos tão distintos como a procura pela redução da carga tributária, por fazer efetiva a vontade do titular do patrimônio e, principalmente, por reduzir a possibilidade de brigas familiares no futuro. Não à toa, empresas familiares estão crescentemente em busca de uma arquitetura sucessória que permita promover a continuidade dos negócios de maneira mais efetiva, encontrando meios jurídicos de, por exemplo, deixar o controle empresarial para determinado sucessor ou beneficiar algum terceiro.
O planejamento sucessório é avaliado de acordo com a estrutura familiar e patrimonial de determinada pessoa, podendo contar com uma conjugação de alternativas jurídicas, como a constituição de holdings, a doação em vida, a implementação de usufruto e, não menos importante, a elaboração de um testamento.
O testamento pode conter disposições sobre questões existenciais (doação de órgãos, reconhecimento de filho etc.) e patrimoniais, sendo ato praticável por pessoas acima de 16 anos que tenham pleno discernimento. É revogável, parcial ou totalmente, a qualquer tempo pelo seu autor.
Ainda que a legislação preveja mais de uma modalidade de testamento, comumente opta-se pelo testamento público.
O testamento público é declarado e lavrado perante um tabelião. Para que tenha validade, é lido ao testador e a duas testemunhas – que não precisam ser de conhecimento do testador – sendo assinado por todos. O testador pode escolher qualquer cartório de notas, ainda que não seja o local de seu domicílio.
Modalidade menos frequente, por conferir menos segurança jurídica, é o testamento cerrado, escrito pelo próprio testador, ou por quem o testador escolher, em instrumento particular. O conteúdo do documento é, em geral, apenas por ele conhecido. O testador apresenta o testamento ao notário, para que emita um auto de aprovação, documento que atesta que recebeu o testamento lacrado. Logo, esse é o testamento ideal para quem deseja manter sigilo sobre as disposições.
Tem-se, ainda, o testamento particular, que é elaborado pelo próprio testador e validado pela assinatura de três testemunhas. Após a morte do testador, o documento é apresentado perante o Poder Judiciário.
Essa modalidade também é pouco utilizada no Brasil, mas pode ganhar relevância em momentos de crise como o da pandemia da COVID-19, porque a legislação prevê que em circunstâncias excepcionais o testador pode elaborar de próprio punho um testamento, sem a presença de testemunhas. Essa facilitação é relevante, porque não pode ser testemunha quem for nomeado herdeiro ou legatário, o que, em tempos de restrição do convívio social, poderia dificultar demasiadamente o ato de testar.
Essa modalidade excepcional do testamento particular é comumente conhecida por testamento hológrafo, e requer confirmação posterior do documento, após o transcurso da circunstância excepcional.
Uma categoria importante para que se compreenda o grau de liberdade conferido ao testador é a noção de herdeiro necessário, que, segundo a lei, são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
O testador que não tem herdeiros necessários pode dispor livremente da totalidade de seu patrimônio. Isso significa que lhe é permitido, por exemplo, testar a integralidade de seus bens a um terceiro.
Já o testador que possui um ou mais herdeiros necessários pode dispor de apenas 50% de seu patrimônio, pois os herdeiros necessários têm direito ao restante, parcela reservada chamada de legítima.
Ainda que, pela letra da lei, sejam considerados herdeiros necessários apenas os ascendentes, descendentes e o cônjuge, o entendimento prevalecente atualmente é o de que o companheiro também deve assim ser considerado.
Isso porque em razão do julgamento do Recurso Extraordinário 878.649/MG, foram estendidas ao companheiro ─ termo utilizado para parceiros em união estável ─ as regras sucessórias aplicáveis ao cônjuge. Ainda que na decisão não houvesse discussão direta sobre o alcance do julgado, tendo, de fato, ficado aberto o enquadramento ou não do companheiro como herdeiro necessário, a tendência do Direito de Família e Sucessório atual é a de equiparação dos efeitos do casamento à união estável.
Essa discussão está em voga na briga judicial envolvendo o testamento de conhecido apresentador de TV. No caso do apresentador, sua alegada companheira foi totalmente excluída das disposições do testamento, tendo que ingressar judicialmente para requerer a invalidação do testamento, por meio do reconhecimento de sua união estável. Caso afirmada a união estável, seria possível, com fundamento no julgamento do STF, pleitear parte da herança, pois haveria direito à legítima.
Por fim, saliente-se que o testamento é negócio jurídico formal, sendo essencial que se tomem todas as cautelas necessárias a fim de evitar seu rompimento, caducidade, ou invalidação no futuro. Trata-se de exemplo de rompimento a exclusão de determinado herdeiro necessário desconhecido à época da elaboração. De caducidade, a alienação de algum bem objeto do testamento, ou, ainda, a superveniência do falecimento de algum sucessor antes do testador. De invalidade, disposição que contrarie uma exigência legal, como o testamento feito por uma pessoa sem consciência de seus atos.
A precaução é essencial. Afinal, a legislação prevê que se for o testamento considerado nulo ou caduco, subsistirá a sucessão legítima, isto é, a herança será partilhada entre os herdeiros necessários, na forma da lei. E, sendo assim, inexistirá a observância do que certamente seria a real vontade do testador.
Por Marina Luiza Amari, advogada, mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná
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