Resumo: O presente texto trata dos testes psicológicos nos concursos públicos. Da pesquisa realizada conclui-use que acesso a cargo ou emprego público está exclusivamente condicionado à realização de provas ou prova e títulos (art. 37, II, da CR), sendo que a utilização dos testes psicológicos – desde que previstos em lei – jamais poderá ser ter cunho eliminatório, como verdadeira etapa do concurso público, mas apenas em sede de exames admissionais. Outro ponto relevante é que ante a total lacuna normativa a regrar a incidência dos testes psicológicos no Brasil, e por não dispormos de regulamentação legal quanto ao tema, de todo razoável a opinião dos administrativistas que os testes apenas poderão ser utilizados para mensurar a higidez psíquica dos candidatos; Concluiu-se que a aplicação de testes psicológicos quando precedidos de provas (relativas ao conteúdo programático do concurso) que mensuram habilidades e aptidões a exemplo de raciocínio abstrato ou inteligência, deve considerá-las para fins de avaliação psicológica. Também partimos da premissa que nem todos os cargos ou empregos públicos estão sujeitos à testagem psicológica. Apenas àqueles que colocam em risco a sociedade ou a vida é que podem estar sujeitos a testes psicológicos e sempre na fase admissional. Quanto a exigência do perfil profissiográfico, verificamos que não pode ser determinada para qualquer cargo ou emprego público, mas apenas àqueles cuja exigência de certo grau de habilidades e equilíbrio emocional seja totalmente indispensável para seu efetivo desempenho, não podendo realizar eugenia psíquica, distorcendo o ingresso na Administração Pública ao impor requisitos irrazoáveis. Consoante o que reiteradamente tem decidido o STF, é indispensável a previsão em Lei formal para que se possa exigir testes psicológicos, não suprindo tal requisito mera previsão no edital do concurso público. A necessidade de lei formal incide tanto para cargos como empregos públicos. Com efeito é indispensável a minudente previsão editalícia de todos os critérios de avaliação do s candidatos (nunca a posteriori), a exemplo do tempo de duração dos testes, quantos serão aplicados, o percentil de corte, o índice mínimo a ser obtido em cada teste, como serão calculadas as médias etc., sob pena de nulidade do teste psicológico. Por fim, os testes psicológicos devem ser aplicados em condições ambientais adequadas sob pena de comprometimento da precisão e fidedignidade do teste, nos termos exigidos no artigo 1º, §2º, da Resolução CFP nº 01/2002.
Sumário: 1. Introdução. 2. Considerações acerca da natureza dos testes psicológicos e sua interconexão com o Direito. 3. O acesso a cargo ou emprego público está condicionado à realização de provas ou provas e títulos (37, II, da CR), não podendo os testes psicológicos ter cunho eliminatório, mas apenas serem exigidos nos exames admissionais. 4. Na ausência de Lei a regulamentar os testes psicológico no Brasil, sua finalidade é apenas a de mensurar a higidez psíquica dos candidatos. 5. Os testes psicológicos devem levar em conta os resultados das provas aplicadas nos concursos públicos quando existirem coincidência de aptidões a serem mensuradas. 6. A realização de testes psicológicos nos concursos deve considerar o tipo de função a ser desenvolvida não sendo razoável a invasão da esfera psíquica e dos direitos da personalidade nas atividades que não sejam periculosas ou que intrinsecamente não exijam tais testes. 7. A exigência de perfil profissiográfico nos editais de concursos. Considerações sobre o Decreto Federal n° 6.944/2009 e as alterações promovidas pelo Decreto n° 7.308/2010. 8. Necessidade de Lei formal para exigir-se testes psicológicos tanto na Administração direta como na indireta: a Súmula 686 do Supremo Tribunal Federal. 9. Necessidade de previsão editalícia dos critérios de avaliação dos candidatos com vistas a aferir nível intelectual e as aptidões específicas sob pena de nulidade do teste psicológico. 10. Necessidade de aplicação dos exames psicológicos em condições ambientais próprias e adequadas – artigo 4º, V, da Resolução CFP nº 002/2003. Necessidade de grau mínimo de precisão e fidedignidade dos testes – artigo 1º, §2º, da Resolução CFP nº 01/2002. 11. Considerações Finais. 12. Referências bibliográficas.
1.Introdução
O que nos levou a escrever estas reflexões acerca dos testes psicológicos é tão ou mais relevante que os argumentos adiante expostos. As razões “jurídico-psicológicas” que impulsionam nosso agir teve por mote duas premissas:
A primeira, a frequência[1] com que candidatos aprovados e classificados em concurso público são reprovados nos exames psicológicos; não raro, sem que saibam com clareza as razões da sua reprovação e por vezes alijados definitivamente de promissora carreira no serviço público; tudo isso agravado pela falta de condições econômicas de arcar com os custos de adequada defesa junto ao Poder Judiciário.
A segunda, é que os testes psicológicos carecem de adequada reflexão jurídica, e a linguagem da Psicologia – destinada aos seus iniciados – não se preocupa em fazer a ponte com o Direito (ou vice-versa), dificultando o acesso aos testes pelos profissionais do Direito, transformando-os em verdadeiras caixas-pretas que precisam ser juridicamente desvendadas sob pena de se amesquinhar direitos e garantias fundamentais.
O tema é fascinante e, em certa medida, nos remete à novela O Alienista, do genial Bruxo do Cosme Velho. Afinal, a missão de dizer quem é normal e quem é louco sempre desafiou o ser humano tanto na literatura como no Direito. Guardadas as (in) devidas proporções, os testes psicológicos nos concursos públicos visam justamente dizer quem está apto (normal) e quem está inapto (louco) para ingressar no serviço público brasileiro.
Para o candidato eliminado, pior que a reprovação em si mesma considerada e a desclassificação do certame, é saber que sua eliminação deu-se não por suposta falta de capacidade ou de estudo, mas porque não está apto psicologicamente para trabalhar, porque refoge aos padrões de normalidade exigidos, porque algo dentro do seu ser não está como deveria ser.
Paradoxalmente, quanto mais o candidato se insurge contra os testes ou mesmo quanto à inadequação das condições ambientais relativas à sua aplicação – o que naturalmente o destaca dentre a massa amorfa de candidatos – mais estará sujeito a ver seu grau de “agressividade” exacerbado pelos avaliadores, na clássica situação onde quanto mais o paciente nega sua condição de louco, mais a afirma perante seus médicos.
Diante desse contexto kafkaniano enfrentado pelos candidatos quando rejeitados nos exames psicológicos, nos imbuímos do propósito de sistematizar o tema trazendo questões ainda não tratadas adequadamente pela doutrina e jurisprudência[2], abordando ainda outros aspectos onde já existe certo grau de consenso.
2.Considerações acerca da natureza dos testes psicológicos e sua interconexão com o Direito.
Com o intuito de dialogar juridicamente com os limites e possibilidades da exigência de exames psicológicos nos concursos públicos para cargos ou empregos públicos, é fundamental saber qual a finalidade e pertinência jurídica de tais testes. Indispensável ainda levar em conta o arcabouço constitucional brasileiro para ingresso na Administração Pública.
Dado os limites da nossa abordagem não pretendemos discutir a estrutura interna dos testes, sua formulação e experimentação. Também não tencionamos debater se os exames psicológicos concretamente aplicados no Brasil são adequados (sob o ângulo da psicologia) as exigências do Conselho Federal de Psicologia – CFP para registro dos testes psicológicos, ou mesmo se a Psicologia é ou não é ciência cujo estágio evolutivo permitiria aferir, com precisão, a intimidade psíquica dos indivíduos, através de técnicas psicométricas[3].
As questões acima são muito mais adequadas para psicólogos que para juristas, ainda que seja forçoso reconhecer que tais aspectos quando objeto de discussão em concursos públicos, possam ser levados ao Poder Judiciário, tendo em conta a ampla sindicabilidade dos atos administrativos[4].
Apesar de não tratarmos diretamente da estrutura interna e elaboração dos testes psicológicos – o que em última análise implica em aferir ou não sua eficácia – é evidente que em sede de ação ordinária, é perfeitamente possível a realização de perícias sobre os testes aplicados em concursos públicos, com laudos especializados, para aferir a consistência do construto, não podendo o Poder Judiciário quedar limitado ao simples reconhecimento da validade dos testes pelo Conselho Federal de Psicologia.
O foco de nossa análise serão outras questões jurídicas que têm reflexo direto nos testes psicológicos e que defluem da nossa Constituição, permitindo realizar uma abordagem constitucional no sentido de saber o que é permitido e o que é vedado considerando-se os princípios e regras plasmados na Lei Maior.
Em primeiro lugar, insta saber para quê servem os testes psicológicos? A premissa – aparentemente pueril – dimana diversas questões jurídicas relevantes e impõem o diálogo interdisciplinar entre Direito e Psicologia. Como dito acima, tendo em conta os limites e objetivos deste artigo, não intentamos aprofundar o assunto, mas apresentar concisamente algumas considerações sobre o tema para delas tirar algumas conclusões.
Resumidamente, podemos dizer que um teste psicológico se propõe a descrever ou mensurar as características e processos psicológicos envolvendo a emoção/afeto, cognição/inteligência, motivação, personalidade, atenção, memória, etc. (cf. art. 1°, parágrafo único da Res. 002/2003 do Conselho Federal de Psicologia – CFP). Em última análise o teste psicológico busca obter uma amostra comportamental objetiva e padronizada.
Seu propósito, tendo em conta a Resolução do Conselho Federal de Psicologia n° 002/2003 é fazer classificação diagnóstica, descrição, predição, planejamento de intervenções e acompanhamento.
Com efeito, os testes psicológicos não estão circunscritos unicamente a fazer a diagnose de um candidato, ou seja, de aferir se certo indivíduo detém aptidão psíquica suficiente para ocupar certa função pública. Os testes psicológicos ambicionam e são utilizados para muito mais. Há grande variedade de testes, a saber:
i) testes de realização, que visam mensurar certas habilidades como leitura, matemática e línguas;
ii) testes de personalidade que visam mensurar aspectos como depressão, transtornos alimentares entre outras características da personalidade;
iii) técnicas projetivas, onde espera-se que o examinando, sem dar-se conta disso, revele algo da sua personalidade[5];
iv) testes vocacionais e ainda os testes neuropsicológicos, que visam fornecer informações sobre o funcionamento do sistema nervoso central.[6]
Também é sabido que a avaliação de tais testes nunca são definitivas, pois retratam determinado momento na linha do tempo, considerando as subjetividades do testador e do testado, as circunstâncias ambientais (barulho, calor excessivo, roupa do avaliador, etc…), de maneira que qualquer avaliação psicológica jamais terá caráter permanente. Numa singela comparação, um teste psicológico é como uma fotografia de um indivíduo num determinado tempo e lugar, cujo rol de variantes pode fazer que no minuto seguinte, seja obtida uma imagem completamente diferente da primeira.
Atualmente, o Conselho Federal de Psicologia – CFP reconhece por válidos cerca de 121 testes psicológicos[7]. Muitos são desenvolvidos no exterior (especialmente nos EUA) e devem ser adaptados à realidade brasileira, para tanto cumprindo certos requisitos estabelecidos na Res. CFP 002/2003.
O CFP, enquanto legítimo defensor da classe dos psicólogos e do seu mercado de trabalho apóia a utilização de testes psicológicos por empresas privadas e na Administração Pública, atestando sua aptidão para mensurar as habilidades dos candidatos, o que gera emprego e renda para muitos psicólogos que defendem a aplicação dos testes nos processos seletivos ou em concursos públicos.
Por certo, o incentivo do CFP à realização dos testes, não transforma os psicólogos que os elaboram ou aplicam em espécie de Simão Bacamarte (de novo Machado!) com a finalidade de levar os candidatos à Casa Verde…
Em princípio, nada de errado em criar campo de trabalho aos psicólogos e aplicar os testes. O problema é quando tais testes ficam à margem da análise de qualquer outro profissional que não da psicologia que queira acessar e entender seu conteúdo, enfrentando extrema dificuldade de obtê-los (para não dizer impossibilidade). Igualmente grave é a falsa premissa que isso é assunto para psicólogos e ninguém mais, sob o débil argumento que ao descobrir-se o segredo da “caixa-preta” os testes perderiam sua eficácia.[8]
O perigo de uma abordagem exclusivamente psicológica do universo desses testes é de ignorar aspectos jurídicos indispensáveis para que o testes possam ser válidos, evidentemente não no sentido da validade do construto[9] em medir resultados, mas no sentido de validade em relação às normas jurídicas que norteiam sua elaboração, aplicação e avaliação.
O que se pretende discutir nos tópicos abaixo arrolados, é que o acesso a cargos e empregos públicos (cf. art. 37, II da CR) não pode ser limitado, de modo irrestrito e sem parâmetros pelos testes psicológicos. Vamos ao desenvolvimento dos aspectos que nos parecem juridicamente mais relevantes.
3. O acesso a cargo ou emprego público está condicionado à realização de provas ou provas e títulos (37, II, da CR), não podendo os testes psicológicos ter cunho eliminatório, mas apenas serem exigidos nos exames admissionais.
A Constituição, ao prescrever no artigo 37, II que a investidura far-se-á mediante concurso de “provas” certamente não está a abranger os testes psicológicos. Testes psicológicos não são “prova” na estrita acepção do termo; não visam a aprovação ou reprovação de acordo com a natureza e complexidade da função pública.
A finalidade dos testes é muito mais ampla e diversificada, por vezes objetivando mesurar ou descrever as características psíquicas do indivíduo, e não para verificar o domínio de conteúdo programático pelo candidato para acessar o serviço público.
De fato, o exame psicológico não serve de parâmetro para selecionar os que mais preparados nas matérias objeto do concurso, e seu objeto não é classificá-los de acordo com seus méritos tendo em conta o conteúdo do programa que irá avaliar seus conhecimentos. Para chegar-se aos mais qualificados realiza-se a seleção mediante provas ou provas e títulos (37, II, da CR), tendo quedada silente a constituição à necessidade do preenchimento de um tertius genus chamado: teste psicológico.
Nada impede, porém, desde que previsto em lei, que o exame psicológico seja utilizado para verificar a sanidade psíquica do candidato, após o resultado do concurso. Como corolário do aqui desenvolvido, nos parece absolutamente ilegal e inconstitucional (violação ao conteúdo do artigo 37, II da CR e ao princípio da razoabilidade) que o teste psicológico tenha cunho eliminatório, como parte integrante do próprio concurso.
Reforçamos que quando da investidura do servidor para ingressar na Administração pública e dentro dos testes médicos admissionais seja realizada a testagem psicológica, para se verificar a sanidade psíquica e mesmo avaliar quais as atividades em que melhor irá adaptar-se o servidor recém nomeado, tudo para bem atender ao interesse público. Esta é a opinião de Adilson Abreu DALLARI, verbis:
“Por isso mesmo, preferimos manter o entendimento já esposado no sentido de que o exame psicotécnico não deve figurar como parte do concurso público, mas, sim, como requisito para investidura no cargo ou emprego, da mesma forma que o exame médico, do qual seria um dos elementos, de cujo conjunto, resultaria uma avaliação da aptidão física e mental.” [10]
De fato o teste psicológico não pode servir de parâmetro para avaliar as qualidades e competência dos candidatos, completando Adilson DALLARI:
“O exame psicológico pode revelar uma condição pessoal de cada candidato, concluindo por sua aptidão ou inaptidão, mas não serve para a disputa entre interessados, destinada a evidenciar os melhores, que é uma característica elementar do concurso público de ingresso.” [11]
Por fim, outra questão relevante deve ser abordada. É que não basta que os testes psicológicos tenham sido previstos em Lei, ou que efetivamente sejam capazes de mensurar certas habilidades ou características humanas com razoável precisão, ou mesmo que preencham as condições de registro impostas pelo Conselho Federal de Psicologia – CFP para fins de selecionar candidatos a determinado emprego.
Muito mais que isto, em matéria de acesso a função pública, deve ficar demonstrado que o construto seja capaz de mensurar validamente a aptidão de certo indivíduo para acessar a cargo ou emprego público, especialmente para demonstrar que o teste é válido para selecionar indivíduos para tais cargos ou empregos. Inobstante tal exigência, há questões que sequer são discutidas em nosso País, a exemplo do chamado impacto adverso.[12]
No Brasil ainda não enfrentamos muitas das calorosas discussões jurídicas ínsitas aos testes psicológicos, em grande parte importados dos EUA. Pior: não temos qualquer tratamento normativo consistente a colocar tais testes no seu devido lugar face nosso sistema jurídico. Nos Estados Unidos da América, há mais de cinquenta anos se discutem as consequencias jurídicas, políticas e sociológicas destes testes tão pacificamente aplicados no Brasil. Diga-se que as resoluções do CFP são insuficientes para tratar do tema e não vinculam a Administração Pública por não dimanarem de lei formal.
Assim, relevantes questões que exigem deliberação legiferante do Congresso Nacional passam absolutamente ao largo do parlamento, diante do total hiato normativo da matéria.
Apenas para dar um exemplo da relevância constitucional do tema, servimo-nos do precedente da Suprema Corte Americana: Griggs v. Duke Power, de 1971, onde estava em discussão que um teste psicológico aplicado por uma empresa estava aprovando um universo maior de candidatos brancos em detrimento dos candidatos negros, o que levou a alegação que tal empresa aplicava testes psicológicos com caráter discriminatório.[13]
Causa espanto saber que os EUA possuem inúmeras leis que regram a incidência dos testes psicológicos[14] (e.g. a Equal Employment Opportunity – EEOC), que estabelecem uma série de normas quanto à proibição de discriminação e como deve ser realizada a seleção envolvendo testes psicológicos.
Pergunta-se: onde no Brasil está regrado por Lei como devem ser aplicados os testes psicológicos quanto sua validade e fidedignidade, inclusive sua aptidão para fins de ingresso em emprego? Até onde pesquisamos, não existe tal lei. No máximo, para certos cargos a Lei prevê que os testes psicológicos podem ser aplicados, sem qualquer consideração de que maneiras e dentro de quais limites legais. Quando muito, a nível federal, temos o Decreto n° 6.944/09, que trata de aspectos que extrapolam seu âmbito normativo (novamente ausência de lei formal), que ademais, é insuficiente para abordar exaustivamente a matéria.
Uma vez demonstrado o paupérrimo debate brasileiro acerca do tema, razão assiste à doutrina administrativista nacional em limitar tais testes psicológicos apenas para aferir as condições mínimas de higidez mental para o acesso a cargo ou emprego público, pois enquanto a comunidade jurídica não conhecer nem acessar os critérios de testagem psicológica e enquanto não se impuser por lei formal os limites e condições de tais testes, bem como a proibição de sua utilização para fazer espécie de eugenia psíquica nos indivíduos, o máximo que se pode atribuir a tais testes é realmente detectar casos evidentes de inaptidão intelectual e emocional – o que veremos logo adiante – sempre na fase pré admissional do candidato, sob pena de atentar-se contra a Constituição e seu núcleo de direitos fundamentais.
4. Na ausência de Lei a regulamentar os testes psicológico no Brasil, sua finalidade é apenas a de mensurar a higidez psíquica dos candidatos.
Como já explicitado, ao nos enveredarmos pelo estudo dos testes psicológicos, não queremos esvaziar-lhe ou diminuir-lhe a relevância, mas colocá-los em harmonia com a ordem constitucional vigente.
Como dito acima, a melhor doutrina administrativista acertadamente tem restringido os testes psicológicos apenas para aferir-se a sanidade psíquica do candidato, sendo defeso que pequenas variações de personalidade sejam relevantes a ponto de obstar o ingresso de qualquer cidadão ao serviço público, sob pena de malferir-se o princípio do concurso.
Com efeito, se um candidato não possui um raciocínio verbal nos moldes desejados por um determinado teste psicológico, isto não torna indivíduo incapaz de desempenhar sua função com zelo e competência. O mesmo vale para raciocínio abstrato ou inteligência.
Aliás, nunca devemos esquecer que a personalidade humana é um projeto em permanente construção. O homem – felizmente – não nasce feito. Constrói-se e é construído ao longo da existência. Em decorrência de tal assertiva, qualquer sistema de seleção que procure enquadrar o candidato a certo perfil pré-estabelecido, sem considerar até que ponto tal característica é efetivamente incompatível com o desempenho do cargo ou emprego, viola a constituição e seu núcleo de direitos fundamentais, reduz a personalidade a obscuros percentis[15].
Desse modo, um candidato que não tenha atingido nos testes psicológicos o percentil desejado para alguma habilidade (e.g.: raciocínio verbal), não significa que ao longo de sua vida e no efetivo exercício do emprego, que estará impossibilitado de desenvolver suas habilidades, afinal, a personalidade é algo em mutação, em construção permanente. Porém, em hipótese alguma isto significa que o não atingimento de certos percentis de acerto tornem o indivíduo incapacitado de exercer sua função!
Não por acaso os psicólogos que adotam as correntes humanista e psicanalista vêem nos testes psicológicos um caráter reducionista da personalidade.
Para que efetivamente excluam o indivíduo do acesso aos cargos e empregos públicos, os testes devem demonstrar que tal indivíduo está absoluta e cabalmente impossibilitado de acessar o almejado cargo ou emprego. Interpretar diferentemente é não compreender o papel dos testes psicológicos, atribuindo-lhes perigosa ditadura, cujas “regras do jogo” (BOBBIO) por vezes não são claras nem acessíveis.[16]
Exemplo da doutrina que limita os testes psicológicos a aferir a sanidade psíquica dos candidatos é a capitaneada por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, assim prelecionando:
“Exames psicológicos só podem ser feitos como meros exames de saúde, na qual se inclui a higidez mental dos candidatos, ou, no máximo – e, ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos -, para identificar e inabilitar pessoas cujas características psicológicas revelem traços de personalidade incompatíveis com o desempenho de determinadas funções.”[17] (grifo nosso).
O acerto da doutrina acima deixa claro os limites dos testes psicológicos no Brasil, que diante dos problemas acima narrados, e de acordo com a melhor doutrina nacional, não podem exorbitar da verificação da higidez psíquica do candidato na fase admissional.
5. Os testes psicológicos devem levar em conta os resultados das provas aplicadas nos concursos públicos quando existirem coincidência de aptidões a serem mensuradas.
Iniciamos este tópico fazendo distinção na utilização de testes psicológicos no âmbito da iniciativa privada e dentro da Administração Pública. É que mesmo se utilizando de um teste homologado pelo Conselho Federal de Psicologia – CFP na iniciativa privada, realmente se pretende aferir a inteligência, memória, atenção etc., através do próprio teste psicológico, ainda que faça entrevista posterior para confirmar a aptidão do pretendente ao emprego.
Na esfera privada é sabido que certas empresas por vezes se utilizam de testes psicológicos duvidosos, que perguntam os maiores impropérios (v.g. “avaliação 360º”), tudo para sabatinar e oprimir abusivamente os pretendentes à vaga, e testar até que ponto estão dispostos a “doar-se” em prol da corporação.[18]
De fato, muito se tem discutido acerca da abusividade de tais testes, especialmente porque pretendem escolher perfil mais “pró-ativo” dos candidatos, em franca desvantagens dos mais tímidos, mas igualmente valorosos e estudiosos. Aliás, é sabido que na iniciativa privada até quesitos como altura e beleza contam no ingresso para o novo cargo.
Na Administração Pública não apenas os expansivos têm vez. Os tímidos (mas estudiosos); os introvertidos (mas persistentes); os feios (mas inteligentes); desde que suplantem os falastrões em estudo, conhecimento e mérito, sagrar-se-ão vencedores.
Além de todo o núcleo principiológico decorrente do regime jurídico administrativo, na Administração Pública a seleção do candidato é realizada através das provas de conhecimento objetiva ou subjetiva, justamente para aferir sua inteligência, memória, atenção etc. no conteúdo específico para o cargo que deseja ocupar, sendo claro que tais quesitos por vezes se confundem com as aptidões que os testes psicológicos pretendem mensurar.
Desse modo, como dizer que um engenheiro que tirou excepcional nota em matemática ou física nas provas realizadas no concurso, possa ser reprovado nos testes psicológicos por, supostamente, não atender aos quesitos de “raciocínio abstrato”? É evidente que em tais casos há coincidência de aptidões que os testes não podem mensurar com exclusividade, devendo ser considerado o resultado das provas de conhecimento que demonstraram a qualificação dos candidatos.
Porventura alguém em “sã consciência” há de concordar que os melhores classificados em concurso público são os menos aptos; que tenham o QI mais baixo; que sejam menos estudiosos e capacitados que os demais; ou mesmo que estejam tais indivíduos abaixo da média intelectual das pessoas numa sociedade? Certamente que não!
Não se ignora que alguém possa ser muito inteligente detendo enorme conhecimento em sua área do saber, mas não portar as condições psíquicas mínimas para acessar a cargo ou emprego público. Mas isto é problema que em nosso entender e na linha dos administrativistas supracitados está mais relacionado à sanidade física e mental dos exames admissionais, do que propriamente à eliminação de concurso público, cuja finalidade precípua é escolher os mais aptos para contribuírem com a Administração Pública, sem qualquer espécie de discriminação.
Destarte, o concurso público serve precipuamente para escolher-se os mais qualificados, sem apadrinhamentos, sem desvios de finalidade, sendo por isso mesmo o melhor método de seleção atualmente concebido, mormente para o quadro permanente da Administração, como assevera Romeu Felipe BACELLAR FILHO:
“Se o concurso público não é, segundo alguns pensam, a melhor forma de recrutamento de pessoal para a Administração Pública, representa, seguramente, a melhor opção até agora concebida, possibilitando, seu democrático procedimento, a todos que reúnam as condições exigidas ampla participação na competição.”[19]
Diante destas considerações, é patente que a realização das provas do concurso público anteriores à testagem psicológica, pode cumprir o papel de aferir os quesitos envolvendo raciocínio abstrato, inteligência e mesmo raciocínio verbal, de modo que os testes psicológicos deveriam cotejar o desempenho do candidato nas provas que o antecederam porque já mensuradas, ainda que parcialmente, tais habilidades, sendo inadmissível que certas habilidades sejam julgadas exclusivamente com base nos testes psicológicos.
6.A realização de testes psicológicos nos concursos deve considerar o tipo de função a ser desenvolvida não sendo razoável a invasão da esfera psíquica e dos direitos da personalidade nas atividades que não sejam periculosas ou que intrinsecamente não exijam tais testes.
Há certo consenso que para determinadas funções os testes psicológicos adquirem especial relevância dado o grau de periculosidade que envolverá a futura atividade. Exemplo disso é a categoria dos policiais que terão porte de arma e enfrentarão nossos elevados índices de violência, bem como a dos motoristas que irão dirigir nas tensas e difíceis estradas brasileiras, ou mesmo em relação aos controladores de vôo, que tais atividades sejam avaliadas à luz dos testes psicológicos.
Então pergunta-se: Será que é toda e qualquer atividade que exige tamanha invasão da esfera psíquica? Será que há sentido em realizar uma prova psicológica de cunho eliminatório funções como administrador, contador e advogado? Pensamos que não. Neste caso há clara violação do princípio da proporcionalidade em seu trinômio, i) adequação, ii) necessidade e iii) proporcionalidade em sentido estrito.[20]
As funções que demandam rigorosa testagem psicológica são aquelas que colocam em risco a sociedade ou a vida, como destaca Francisco Lobello de Oliveira ROCHA:
“Além disso, é preciso muita cautela na escolha de critérios eliminatórios. Só podem ter caráter eliminatório as características ou traços psicológicos absolutamente incompatíveis com o exercício do cargo, pois a exigência de qualquer requisito desnecessário viola o princípio da razoabilidade. Exemplo clássico é o nível acentuado de agressividade, impulsividade ou instabilidade emocional vedadas nas carreiras policiais. Tais características, considerando-se as atribuições e instrumentos utilizados pelos policiais poderiam colocar em risco a sociedade e a vida de cidadãos inocentes” [21]
O magistério de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO ao aduzir que apenas certas funções é que admitiriam a incidência de testes psicológicos endossa a tese, exemplificando:
“Compreende-se, por exemplo, que um teor muito alto de agressividade não se coadunaria com os encargos próprios de quem deva tratar ou cuidar de crianças em creches ou escolas maternais.” [22]
Ora, se para os policiais faz-se necessário perquirir os níveis de agressão, dominância, exibição, ordem, etc., porque o seria para cargos como de administrador ou contador? Porventura tais funções colocam a sociedade em risco? Acaso colocará em risco a vida de inocentes sentado em seu gabinete de trabalho e tratando do dia-a-dia da Administração? Absolutamente, não!
Acerca do ponto, calham as observações de Luciano Augusto de Toledo COELHO:
“(…) Ao especificar a forma de violação do direito à reserva do direito à vida privada, [Monta Pinto] traz menção de que questionários e testes relativos a aspectos incluídos na vida privada do trabalhador devem ser limitados aos casos em que seja necessária a proteção de segurança de terceiros o do próprio trabalhador, ou de outro interesse público relevante.
Levando-se em conta essa última observação, estabelece-se um permissivo para a aplicação dos testes, cria, ao mesmo tempo, um limite ao empregador, assim, em tese, poderia haver justificativa para a aplicação de um teste específico de personalidade em candidatos para determinadas funções que pudessem oferecer perigo, como, por exemplo, motoristas (um motorista agressivo demais, por exemplo, poderia ser recusado…) Já no caso de contratação de uma secretária, de uma auxiliar administrativo, de um advogado… a questão da personalidade não tem relevância a ponto de justificar a invasão da esfera psíquica, além dos aspectos profissiográficos específicos do cargo ou de uma eventual situação específica da contratante.
(…) Parece-nos fora de dúvida que testes de personalidade ou projetivos invadem a esfera psíquica do indivíduo e que, se existe um direito psíquico derivado da personalidade, que é irrenunciável não se justifica, juridicamente, hoje, em todas as situações, a aplicação de testes aos candidatos a emprego, mesmo que por profissional qualificado.”[23](grifo nosso)
Diante destas considerações, indevida a utilização de testes psicológicos para cargos como de administrador, contador, advogado, engenheiro, etc., eis que desnecessários tendo em conta a função a ser exercida, pois não estão em risco nem a sociedade nem a vida daqueles submetidos a atuação deste tipo de profissional, o que nos leva a conclusão que mesmo que o edital exija teste psicológico para certos cargos ou empregos, isto não quer dizer que seja proporcional e razoável tal exigência editalícia. Tudo dependerá o exame concreto da função a ser exercida.
7. A exigência de perfil profissiográfico nos editais de concursos. Considerações sobre o Decreto Federal n° 6.944/2009 e as alterações promovidas pelo Decreto n° 7.308/2010
Considerando os aspectos traçados no item anterior, importante ainda traçarmos algumas observações acerca da exigência dos editais do chamado perfil profissiográfico, em especial quando direcionados a selecionar dentre os candidatos àqueles cuja personalidade esteja mais “afinada” aos duvidosos padrões de personalidade exigidos a qualquer cargo ou emprego público.
O perfil profissiográfico nada mais é forma pomposa de designar o perfil profissional e aspectos da personalidade desejadas do candidato para o cargo ou emprego que almeja. Sua elaboração ou exigência comporta duas questões relevantes:
i) inexistência do perfil nos editais, o que em ultima análise invalida o teste porque não esclarecido qual o perfil procurado pela Administração e
ii) saber até que ponto é constitucional alijar candidatos que não estejam adequados aos padrões de personalidade eleitos para certos cargos.
Quanto ao primeiro aspecto, o que está em questão é saber se o edital minudenciou o perfil profissiográfico aplicado ao candidato, pois se não o fez, relega a critérios desconhecidos e obscuros a fixação a posteriori destes critérios o que impossibilita a utilização do teste para eliminar o candidato por ausência de critérios objetivos previamente conhecidos.
O segundo aspecto tira parte da importância do primeiro, pois se reconhecermos que o edital não pode exigir o perfil profissiográfico – tendo em conta que a Constituição não exige tal requisito para o acesso a cargo ou emprego públicos – não seria possível a declaração de aptidão ou inaptidão do candidato com base nos nestes perfis.
A questão dimana certa reflexão, pois como visto no item anterior é certo que determinados cargos ou funções públicas não exigem (e mesmo repudiam) qualquer seleção profissiográfica, visto que a Administração não pode exigir certos padrões de personalidade de candidatos em relação ao futuro desempenho de função pública
Doutra banda, parece-nos correto que certas atividades demandam maior atenção quanto aos traços da sua personalidade que eventualmente inviabilizem o exercício da função (ex: policiais, motoristas, controladores de tráfego aéreo etc.) e, para ser coerente com o aqui postulado, que tal perfil seja apurado após o concurso e antes da nomeação do candidato, portanto, nos exames médicos que antecedem o provimento.
Importante aqui não confundir exigência de perfil profissiográfico que tenha por finalidade apurar os candidatos manifestamente inaptos para o exercício da função, com outros perfis ditos “profissiográficos”, mas que em verdade pretendam fazer uma seleção de personalidade exigindo critérios que não afetem nem inviabilizem o exercício de cargo ou emprego público.
Nessa linha, importante o julgado do TRF da 1ª Região, Rel. Maria Isabel GALLOTTI:
“EMENTA:CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA FEDERAL. EXAME PSICOTÉCNICO. LEGALIDADE. 1.Segundo o enunciado 239 da Súmula do TFR “é legítima a exigência de exame psicotécnico em concurso público para ingresso na Academia Nacional de Polícia”, em razão de expressa previsão constitucional e legal (Lei nº. 4.878/65 e Decreto-Lei nº. 2.320/87). 2.Viola, contudo, a Constituição a realização de psicotécnico cujo escopo não é apenas aferir a existência de traço de personalidade que prejudique o regular exercício do cargo, mas a adequação do candidato a “perfil profissiográfico” considerado ideal pela Administração, mas não previsto em lei. 3. Agravo de instrumento a que se dá provimento.” (TRF1, AG 200701000340107/DF, MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, Sexta Turma, DJ de 01/09/2008)
Ainda sobre a questão do perfil profissiográfico, importante tratarmos brevemente do Decreto Federal n° 6.944/2009.
É que acertadamente o artigo 14 do Decreto n° 6.944/2009 limitava tanto o exame psicotécnico à detecção de problemas psicológicos que comprometessem as atividades do cargo ou emprego, como vedava a realização de exame psicológico para aferição de perfil profissiográfico, avaliação vocacional ou avaliação de quociente de inteligência, a saber:
“Art. 14. A realização de exame psicotécnico está condicionada à existência de previsão legal expressa específica e deverá estar prevista no edital.
§1o O exame psicotécnico limitar-se-á à detecção de problemas psicológicos que possam vir a comprometer o exercício das atividades inerentes ao cargo ou emprego disputado no concurso.
§2o É vedada a realização de exame psicotécnico em concurso público para aferição de perfil profissiográfico, avaliação vocacional ou avaliação de quociente de inteligência.”
Inobstante o acerto do Decreto n° 6.944/99, começaram a pulular em todo o País inúmeras decisões judiciais que invalidavam concursos que exigiam perfil profissiográfico, justamente com base no aludido Decreto, o que certamente deve ter motivado o Governo Federal a editar o Decreto n° 7.308/2010[24] que eliminou a redação anterior, trazendo uma série de novas normas a respeito dos testes psicológicos no âmbito da União.
A nova redação ainda que tenha apontado importantes requisitos quanto à publicidade de critérios de seleção por teste psicológico, incorre em graves problemas, em especial:
“i) não especifica como deverá a Administração motivar, através de estudos científicos, quais as habilidades e características pessoais necessárias para o cargo (admitindo perfil profissiográfico), inclusive para fins de questionamento do edital do concurso (art. 14, § 3°);
ii) apesar de exigir que o edital explicite os requisitos psicológicos a serem avaliados (art. 14, § 5°), não exige que o edital esclareça como tais requisitos serão utilizados para correção dos testes (v.g. notas e percentis de corte dos candidatos);
iii) não limita os testes psicológicos aos problemas que comprometam as atividades inerentes ao cargo ou emprego;”
Apesar disso, é evidente que o novo regramento da matéria pela via infra legal (afinal, o referido Decreto não pode ocupar o espaço de Lei formal para regrar testes psicológicos em concursos públicos) não invalida todo o avanço jurisprudencial e doutrinário acerca do tema, porquanto é claro que a Administração não pode estabelecer perfil profissiográfico para todo e qualquer cargo ou emprego, à exceção de certas atividades cujos traços da personalidade sejam absolutamente incompatíveis com o exercício da função pública; tampouco pode omitir quais os critérios e notas de corte de candidatos nos testes psicológicos e mais do que simplesmente estabelecer o perfil profissiográfico é fundamental motivar porque tal cargo ou emprego exigem certo perfil profissional e de personalidade.
8. Necessidade de Lei formal para exigir-se testes psicológicos tanto na Administração direta como na indireta: a Súmula 686 do Supremo Tribunal Federal[25]
Para que se possa exigir testes psicológicos dos candidatos a cargo ou emprego público, imperioso que exista lei formal autorizando sua realização, questão esta há muito pacificada na jurisprudência brasileira, desde as Cortes Superiores até as instâncias ordinárias.
Tanto é assim, que a matéria mereceu por parte do E. Supremo Tribunal Federal – STF, inclusive, a edição da Súmula 686, aprovada em 24.09.03, que expressa a posição dominante daquela Corte sobre o tema, cuja redação é a seguinte:
“SÚMULA 686 – SÓ POR LEI SE PODE SUJEITAR A EXAME PSICOTÉCNICO A HABILITAÇÃO DE CANDIDATO A CARGO PÚBLICO.”
Depois da edição da referida Súmula o STF voltou a analisar a questão inúmeras vezes, tendo recentemente, no AI 745942 AgR, Rel. Ministra Cármen Lúcia Antunes ROCHA, Primeira Turma, j. em 26.05.09, DJE 01.07.09, reafirmado:
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. EXAME PSICOTÉCNICO. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido da possibilidade da exigência do exame psicotécnico quando previsto em lei e com a adoção de critérios objetivos para realizá-lo. Precedentes.”
Não destoam deste entendimento os julgados do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ, como se pode inferir das ementas abaixo:
“ADMINISTRATIVO. EXAME PSICOTÉCNICO PARA INGRESSO EM CURSO DE FORMAÇÃO DA POLÍCIA FEDERAL. CARÁTER SUBJETIVO DA AVALIAÇÃO, CUJOS CRITÉRIOS NÃO SÃO DE CONHECIMENTO DO CANDIDATO.
1. É legal a exigência de aprovação em exame psicotécnico para provimento de cargos públicos, desde que seja previsto em lei e no edital, além de impugnável mediante recurso. O que não se permite é a avaliação feita com base em critérios subjetivos, dos quais o candidato não possa ter conhecimento. Precedentes. (…).” (STJ, AgRg no Ag 995.147/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, j. em 19/06/2008, DJe 04/08/2008).”
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DECADÊNCIA. NÃO-OCORRÊNCIA. CONCURSO PÚBLICO. INGRESSO NA CARREIRA POLICIAL. EXAME PSICOTÉCNICO. APROVEITAMENTO DE TESTES REALIZADOS ANTERIORMENTE. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E IMPESSOALIDADE. NÃO-CABIMENTO. PREVISÃO LEGAL. EXIGIBILIDADE. CARÁTER SUBJETIVO, SIGILOSO E IRRECORRÍVEL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. (…)
ii) O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão segundo a qual é exigível, em concurso público, a aprovação em exame psicotécnico quando previsto em lei, mormente para ingresso na carreira policial, em que o servidor terá porte autorizado de arma de fogo e, pela natureza das atividades, estará sujeito a situações de perigo no combate à criminalidade. Todavia, tem rejeitado sua realização de forma subjetiva e irrecorrível. (…).” (STJ, RMS 17.103/SC, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, j. em 03/11/2005, DJ 05/12/2005 p. 338).”
Da mesma forma se comporta a jurisprudência dos demais tribunais pátrios, dos quais citamos, a título de exemplo: TRF4: AC 2007.71.00.013836-7/RS, Rel. Des. Federal Valdemar Capeletti, Quarta Turma, j. em 22.04.09, DJE 04.05.09; Do TRF1: AC 2003.39.00.009780-9/PA, Rel. Des(a). Federal Selene Maria De Almeida, Quinta Turma, j. em 24.06.09, DJE 03.07.2009; Do TJSC: MS n. 2008.035592-3, Rel. Des. Newton Trisotto, Grupo de Câmaras de Direito Público, j. em 15.06.09, DJE 14.07.09; Do TJRS: AC n. 70023762677, Rel. Des(a) Matilde Chabar Maia, Terceira Câmara Cível, j. em 15.01.09, DJE 05.02.09; entre muitos outros.
Se para a Administração Direta parece não existir dúvida quanto à exigência de Lei formal para aplicação dos testes (face à menção na Súmula 686 a cargo público, próprio do regime estatutário), é importante perquirirmos se tal obrigatoriedade se estende à administração indireta, a exemplo das empresas estatais, gênero do qual são espécies as empresas públicas e as sociedades de economia mista, por admitirem seu pessoal sob o regime celetista.
A questão é relevante, vez que não raro as empresas públicas e sociedades de economia mista incluem nos editais a exigência de testes psicológicos, mesmo que na inexistência de lei, alegando: i) que por serem pessoas jurídicas de direito privado e regidas pelo regime celetista estariam dispensadas de tal exigência, ou ii) que a própria CLT autorizaria os testes psicológicos.
A tese não se sustenta face o disposto no art. 37, caput, e incisos I e II, da Constituição da República, que exige que a investidura em cargo ou emprego público dá-se na forma prevista em lei, o que nos permite concluir que:
“a) tanto a administração pública direta como a administração indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, entes destinados a atuação descentralizada da função estatal) devem pautar-se pelos mesmos princípios, em destaque o da legalidade.
b) pouco importa o regime jurídico com o qual o servidor se vinculará ao Estado, se estatutário (cargo) ou se celetista (empregado), os requisitos para o acesso só podem ser os previstos em lei (37, I, CR). Lei, bom que se diga, em sentido formal e material, produzida pelo Poder Legislativo competente, não servindo para suprir sua ausência atos infralegais, a exemplo de portarias e editais de concurso;
c) o acesso à cargo ou emprego público, seja na administração pública direta ou indireta, apenas pode dar-se pela via do concurso público[26]. Concurso Público, que como consignado expressamente no inciso II, do art. 37, da CR, deve ter seus requisitos previstos em lei.”
Com efeito, a Constituição Federal ao tratar da forma de acesso aos cargos e empregos públicos da Administração não excluiu ou distinguiu do regramento previsto no art. 37 e incisos às empresas estatais, pelo contrário, a elas fez expressa referência, quando incluiu na sua redação a administração pública indireta.
E nem seria razoável tivesse a CR dispensado tratamento diverso, pois as empresas estatais, enquanto integrantes da administração pública indireta, nada mais são do que o próprio Estado atuando descentralizadamente, ainda que num regime de direito privado. Todavia, se estas empresas estatais personificam o Estado, por certo continuam submetidas aos princípios balizadores da administração pública (art. 37, caput).
Assim, quando a Súmula 686 do STF utilizou-se do termo cargo público, não quis restringir a exigência de lei unicamente aos estatutários, pois, como visto, tal distinção violaria a própria dicção do art. 37, caput, e incisos I e II, da Constituição da República. A exigência de lei deve ser entendida em sentido amplo, compreendendo igualmente o acesso a emprego público.
E nem argumente que a própria CLT, a exemplo do art. 168 e §2º[27], autorizaria o exame psicotécnico, pois, além de genéricos e fazerem referência a exame médico admissional (o que não se confunde com etapa eliminatória de concurso público), falecem aos referidos dispositivos a indicação de critérios objetivos mínimos de como se daria tal exame, não servindo como fundamento legal para o mesmo.
Em reforço argumentativo ao aqui postulado, trazemos julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que em mandado de segurança impetrado por candidato contra a ELETRONORTE S.A, nulificou o teste de avaliação psicológica por não haver previsão legal para o mesmo. Trata-se da Apelação Cível n. 20050111408680APC, Rel. Des. Sérgio ROCHA, Quarta Turma, j. em 31.03.08, DJ 09.04.2008, assim ementado:
“APELAÇÃO CÍVEL – ADMINISTRATIVO – CONCURSO PÚBLICO – ELETRONORTE – CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA – EXAME PSICOLÓGICO – CANDIDATO NÃO-RECOMENDADO – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL E CRITÉRIOS OBJETIVOS – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
1- O Coordenador da Comissão de Concurso da ELETRONORTE, sociedade de economia mista, enquadra-se no conceito de autoridade para fins de impetração de mandado de segurança quando o ato impugnado (eliminação de candidato de concurso público) está sujeito às normas de Direito Público.
2- Decreta-se a nulidade do teste de avaliação psicológica do candidato (concurso para Engenheiro de Manutenção Eletrônica), em face da inexistência de previsão legal (Art. 5º, II, CF/88; STF 686; TJDFT 20) e ausência de critérios objetivos.(…).”
Para finalizar, vejamos o que decidiu o Supremo Tribunal Federal, nos autos do AgReg no RE 559.069-1/DF, Relatora Ministra Ellen GRACIE, publicado em 26 de maio de 2009, DJE 10.06.09, pois dá o exato alcance da Súmula 686, in verbis:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EXAME PSICOTÉCNICO. NECESSIDADE DE LEI. PRECEDENTES.
1. É irrelevante para o desate da questão o objeto da investidura, quando em debate a violação direta do art. 37, I, da Constituição Federal.
2. A exigência de exame psicotécnico prevista apenas em edital importa em ofensa constitucional. Precedentes.
3. A CLT carece dos critérios objetivos para ser tida como lei formal a regular exame psicotécnico. Precedentes.
4. Agravo regimental improvido.”
E do corpo do acórdão, destacamos:
“(…). Sustenta a parte agravante, em síntese, o seguinte:
a) não incidir a Súmula/STF 686, uma vez que não se trata de cargo público, mas sim de emprego público regido pelas normas jurídicas das empresas privadas, inclusive trabalhistas.
b) a CLT legitima a utilização de exame psicotécnico para a contratação de empregado público, nos termos do art. 168.
c) não há que se falar em ausência de previsão legal para realização do exame psicotécnico, pois a lei trabalhista é de aplicação compulsória ao caso concreto. (…)
É o relatório.
VOTO
A senhora Ministra Ellen Gracie – (…).
2. A questão aqui tratada não diz respeito ao objeto da investidura decorrente da aprovação em concurso público (cargo, emprego ou função públicos), à luz de determinado regime jurídico, mas sim à existência de requisitos de ingresso não previstos em lei para a sua acessibilidade, o que violaria o disposto no art. 37, I, da Constituição Federal, conforme sustentou o ora agravado.
Neste sentido, a restrição estabelecida pelo dispositivo constitucional não fez qualquer distinção quanto à atividade pública exercida ser de cargo, emprego ou função pública. Assim, como restou afirmado na decisão agravada, viola a Constituição Federal a exigência de exame psicotécnico prevista apenas em edital de concurso, sem que haja prévia lei formal.
Este tem sido o entendimento do Tribunal de longa data, o que ensejou a elaboração da Súmula/STF 686, resultado de uma extensa lista de precedentes que lhe serviram de respaldo no sentido de reconhecer como infringentes ao art. 37, I, da Constituição Federal a previsão de exame psicotécnico em edital ou outro ato administrativo, sem previsão legal. (…).
3.Quanto à adoção da CLT para legitimar a utilização do exame psicotécnico, melhor sorte não assiste à parte agravante pois não obstante a CLT prever a possibilidade de um exame complementar de aptidão física e mental, dita legislação carece de critérios objetivos de reconhecido caráter científico para a realização de citados exames como também já deixou assentado a jurisprudência da Corte, … .” (sem grifos no original)
Finalizamos o ponto com recente decisão do STF nos autos do AI 758533 QO-RG, Rel. Min. Gilmar MENDES, julgado em 23.06.10, onde, reconhecendo a repercussão geral da questão, tratou de reafirmar a sua jurisprudência no sentido de que o exame psicológico somente pode ser exigido se houver lei em sentido material que expressamente o autorize, além de estar previsto no edital, in verbis:
“Questão de ordem. Agravo de Instrumento. Conversão em recurso extraordinário (CPC, art. 544, §§ 3° e 4°).
2. Exame psicotécnico. Previsão em lei em sentido material. Indispensabilidade. Critérios objetivos. Obrigatoriedade.
3. Jurisprudência pacificada na Corte. Repercussão Geral. Aplicabilidade.
4. Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral.”
Portanto, sob qualquer ângulo que se analise a questão, inegável que a exigência de exame psicológico como requisito para o acesso a emprego público, sem que haja previsão legal, viola o princípio da legalidade, notadamente o que dispõe o art. 37, inciso I e II, da Constituição Federal, não bastando mera previsão no edital
9.Necessidade de previsão editalícia dos critérios de avaliação dos candidatos com vistas a aferir nível intelectual e as aptidões específicas sob pena de nulidade do teste psicológico[28]
Outro aspecto a ser enfrentado diz respeito à previsão no edital dos critérios de avaliação a serem utilizados nos testes psicológicos. Partimos da premissa que tais critérios devem estar previstos já no edital, de forma transparente e previamente conhecida.
A necessidade de transparência destes critérios alia-se a inúmeros princípios da Administração Pública, a exemplo dos princípios da publicidade, do concurso público, da isonomia entre candidatos e da vinculação da Administração Pública ao edital, bem como a observância das regras emanadas de Resoluções do Conselho Federal de Psicologia que tratam de testes e exames a serem aplicados em concursos públicos.
Como é curial, o edital do concurso deve obedecer aos princípios da Administração Pública (37, caput, da CR), dando plena publicidade aos critérios que irão parametrar a avaliação do candidato.
A esse respeito trazemos as importantes considerações de Willian Douglas Resinente dos SANTOS, acerca dos critérios que devem parametrar os exames psicológicos:
“A matéria chegou por diversas vezes aos Tribunais, sendo hoje ponto pacífico que o exame psicotécnico deve ser baseado em critérios científicos, objetivos, motivados, públicos e com possibilidade de recurso por parte do candidato.” (…)
“… os órgãos responsáveis pela realização dos concursos, ou suas terceirizadas, têm atualmente incidido erro que exclui indevidamente muitos candidatos dos concursos, bem como compromete a validade do certame. Não é um erro novo, mas antigo. O que existe de novo é podermos percebê-lo a partir das evoluções já proporcionadas pela submissão do tema aos areópagos pátrios.
Trata-se da omissão em editais quanto à apresentação prévia dos critérios que serão levados em conta no momento da análise do perfil psicológico dos candidatos. Não se apresentam os critérios, o que será levado em conta, o que tecnicamente é considerado apto ou inapto; é omisso em relação às respectivas pontuações, ferindo assim o sacramental princípio da segurança jurídica.”[29]
Nessa senda, para atendimento ao princípio da publicidade, os critérios norteadores da avaliação psicológica dos candidatos devam constar no Edital do concurso.
O Decreto Federal 6.944/2009, alterado pelo Decreto n° 7.308/2010 exige no artigo 14 e parágrafos 4° e 5° os seguintes requisitos prévios:
“Art. 14 (…)
§ 4o A avaliação psicológica deverá ser realizada mediante o uso de instrumentos de avaliação psicológica, capazes de aferir, de forma objetiva e padronizada, os requisitos psicológicos do candidato para o desempenho das atribuições inerentes ao cargo.
§ 5o O edital especificará os requisitos psicológicos que serão aferidos na avaliação.”
Isso também deflui do Conselho Federal de Psicologia – CFP.
É que a Resolução CFP Nº. 01/2002 que regulamenta a Avaliação Psicológica em Concurso Público e processos seletivos da mesma natureza, em seus considerandos preambulares atenta para a “… necessidade de orientar os órgãos públicos e demais pessoas jurídicas a respeito das informações relacionadas à avaliação psicológica que devem constar nos Editais de concurso para garantia dos direitos dos candidatos.”
A Resolução CFP nº. 01/2002 em seu artigo 3º prescreve o seguinte:
“Art. 3° – O Edital deverá conter informações, EM LINGUAGEM COMPREENSÍVEL AO LEIGO, sobre a avaliação psicológica a ser realizada e OS CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO, relacionando-os aos aspectos psicológicos considerados compatíveis com o desempenho esperado para o cargo.” (grifo nosso)
Portanto, não basta para satisfazer tal exigência que o edital traga informações genéricas acerca do que se pretende mensurar na avaliação psicológica, sem trazer qualquer informação sobre os critérios de avaliação a que serão submetidos os candidatos, em regra fazendo alusão ao o uso de instrumentos psicológicos específicos…”.
Também não é suficiente fazer alusão aos aspectos da personalidade a serem mensurados, a exemplo da higidez psíquica do candidato, equilíbrio emocional, potencial intelectual e aptidões específicas, relacionados ao desempenho das funções inerentes ao cargo ou emprego público.
Nem se queira argumentar que ao se referir à (i) higidez psíquica do candidato, ao (ii) equilíbrio emocional, ao (iii) potencial intelectual e às (iv) aptidões específicas que seriam verificadas pelos Exames Psicológicos, estar-se-ia cumprindo a exigência de informar os critérios de avaliação preconizada no art. 3º. da Resolução CFP 01/2002 e em obediência ao que têm decidido nossos tribunais.
Uma coisa é o que se pretende mensurar. Outra, radicalmente diferente, é como se irá medir, objetivamente, tais aspectos da personalidade no candidato. Portanto, os critérios de avaliação psicológica devem estar previstos previamente no edital, em consonância com o princípio da vinculação ao instrumento convocatório.
Decorre do princípio da vinculação ao instrumento convocatório que os critérios de avaliação/julgamento devem estar previstos antecipadamente no edital, impedindo que tais critérios sejam modificados ou fixados a posteriori.
Evidentemente, não é necessário que o edital diga o nome do teste a ser aplicado, contudo, é fundamental que os editais respondam – entre outras – às seguintes indagações:
“a) Quais habilidades o teste irá mensurar?
b) Quanto tempo será disponibilizado para a aplicação de cada testes?
c) Qual será o percentil de corte nos teste de Nível Intelectual?
d) Qual o percentil de corte nos testes de Perfil de Personalidade?
e) Qual índice mínimo exigido em quaisquer dos testes isoladamente considerados?
f) A reprovação em apenas um dos testes será suficiente para reprová-lo?
g) Qual e como será calculada a média geral dos testes?
h) Como serão calculadas as notas caso o candidato não responda a todas as questões de cada teste ? Etc.”
Mas afinal, quais as conseqüências práticas de macular-se o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, ao não revelar-se previamente os critérios de avaliação e os percentis de corte?
Primeiro, quando o candidato já conhece através do edital como será avaliado em seu teste psicológico e os respectivos percentis de corte, por evidente que poderá administrar melhor seu tempo e o grau de dedicação a cada teste a qual será submetido.
Segundo, ao conhecer o modo pelo qual será avaliado, o candidato realizará seu teste de modo mais tranqüilo e sereno, não sendo surpreendido por instruções confusas e complexas em momento em que encontra-se naturalmente fragilizado em ser examinado na intimidade da sua personalidade.
Terceiro, é que a partir do momento que os critérios de avaliação não são revelados, nem tampouco as notas de corte, ou ainda como será realizada a média aritmética para chegar-se ao resultado final, ocorre, ao menos potencialmente, um obstáculo intransponível. É que se couber a Comissão Organizadora do Concurso a “prerrogativa” de fixar tais critérios fora do edital, jamais poderá fazê-lo sem divulgar com antecedência aos candidatos, e nunca após a aplicação da bateria de provas, pois isto permitirá que fixe os critérios de acordo com suas conveniências, podendo, inclusive, burlar o concurso público para beneficiar este ou aquele candidato, violando, frontalmente, a impessoalidade e o tratamento isonômico aos candidatos.
O problema é velho conhecido do Direito Administrativo. Como poderia a Administração, ao realizar processo licitatório para a compra de um veículo, escolher, após a apresentação das propostas, quais os critérios que deverão incidir para a escolha da proposta vencedora? Nunca! Pois é exatamente o que acontece quando os critérios de avaliação a serem utilizados nos testes psicológicos não estão previstos no edital.
A omissão dos critérios de avaliação viola claramente aos princípios da publicidade, impessoalidade, isonomia, legalidade, igualdade, vinculação ao instrumento convocatório, segurança jurídica.
Nesta linha, importante os fundamentos trazidos pela juíza federal Maria Cláudia de Garcia Paula ALLEMAND, em antecipação de tutela na Ação Ordinária que tramita na 5ª. Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Espírito Santo, cuja sentença abordou a necessidade de critérios prévios de avaliação nos testes psicológicos:
“… em momento algum há a indicação, ainda que mínima, dos critérios que seriam utilizados em tal avaliação, impossibilitando aos candidatos conhecer, previamente, quais os tipos de testes que seriam realizados nessa etapa.
[…] deve haver a divulgação de balizas mínimas que possibilitem, à compreensão mediana, conhecer o que está por vir, de modo a prestigiar a transparência e a igualdade na aplicação dos exames, requisitos de todo e qualquer certame levado a efeito pela Administração.
No caso em comento, o edital apenas se refere a “aplicação e avaliação de baterias de testes psicológicos”, destinados a analisar a “aptidão, o nível mental e a personalidade” dos candidatos, sem dar a conhecer, entretanto, de que forma e com base em que critérios isso se daria.
Tais exigências restariam atendidas, em meu sentir, se houvesse, verbi gratia, no edital, que o nível mental do candidato seria avaliado por meio de testes de raciocínio lógico-dedutivo, nos quais o aproveitamento esperado corresponderia a determinado percentual de acertos nas proposições lógico-matemáticas apresentadas.[…]”[30]
A jurisprudência tem endossado a tese ora defendida. Destacamos os seguintes julgados:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL
Segunda Turma Cível
Apelação Cível 2005.01.1.134345-5
Rel. Desª. Carmelita Brasil
Data do julgamento: 26.09.2007
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. CARREIRA POLICIAL CIVIL DO DISTRITO FEDERAL. AGENTE DE POLÍCIA CIVIL. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA. NÃO RECOMENDAÇÃO. CRITÉRIOS OBJETIVOS. PREVISÕES LEGAL E EDITALÍCIA. RECURSO. ASSEGURAÇÃO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. VISTA DO RESULTADO. OBSERVÂNCIA DAS NORMAS ORIGUNDAS DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. LEGALIDADE. PROSSEGUIMENTO DOS CANDIDATOS NÃO RECOMENDADOS. IMPOSSIBILIDADE.[…]
3 – A avaliação psicológica materializada através de questões objetivas e cujos resultados são aferidos pela via eletrônica, observado o perfil psicográfico delineado pela norma editalícia em conformidade com as normas editadas pelo Conselho Federal de Psicologia – CFP, resta desprovida do subjetivismo que possibilita a ocorrência de aferições discricionárias, revestindo-se de legitimidade, notadamente porque, guardando subserviência aos princípios da igualdade, isonomia, impessoalidade, legalidade e moralidade administrativas, as questões formuladas foram apresentadas a todos os concorrentes de forma indistinta. […]”
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE RORAIMA
MANDADO DE SEGURANÇA – CONCURSO PÚBLICO. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE PASSIVA, INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL, IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, NECESSIDADE DE CAUÇÃO, DILAÇÃO PROBATÓRIA E LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO – REJEIÇÃO. MÉRITO – EXAME PSICOTÉCNICO – AVALIAÇÃO REALIZADA COM BASE EM CRITÉRIOS SUBJETIVOS E NÃO REVELADOS – OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE, IMPESSOALIDADE, ISONOMIA, MORALIDADE E PUBLICIDADE – CONCESSÃO DA SEGURANÇA. […]
7. Lícita é a exigência de aprovação em exame psicotécnico para preenchimento de cargo público, desde que previsto em lei e no edital. Todavia, sua exigibilidade está condicionada na aferição em critérios objetivos, previamente determinados, a fim de possibilitar ao candidato o conhecimento de seu conteúdo e fundamentação do resultado. Com isso, veda-se a realização de exames psicotécnicos subjetivos, tendentes à prática de atos de segregação e arbitrariedades. Precedentes do STJ e STF.
8. Segurança concedida.” MS nº 010 03 001498-8 – Boa Vista/RR, Relator: Des. Robério Nunes, Relator Designado: Juiz Convocado Cristóvão Suter, Pleno, por maioria, j. 26.11.03 – DPJ nº 2850 de 23.03.04, pg. 01.”
“SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
AI 693164, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 06/02/2008, publicado em DJe-041 DIVULG 06/03/2008 PUBLIC 07/03/2008
DECISÃO: Trata-se de agravo contra decisão que negou processamento a recurso extraordinário fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, interposto em face de acórdão que decidiu pela legitimidade da exigência de exame psicológico, nos termos da Lei Complementar estadual no 10.990, de 1997. […]
No presente caso, há previsão legal do exame psicotécnico (Lei Complementar estadual no 10.990, de 1997) e o edital do concurso descreveu de forma minuciosa os critérios da avaliação psicológica (fl. 42), sendo exigível, portanto, o referido exame. Assim, nego seguimento ao agravo (art. 557, caput, do CPC). Publique-se. Brasília, 6 de fevereiro de 2008. Ministro GILMAR MENDES Relator”
Diante disso, a necessidade de critérios objetivos previstos com clareza no edital tem sido uma das razões mais frequentes a ensejar a invalidação de testes psicológicos pelo Judiciário, que corretamente tem exigido minucioso detalhamento de modo a evitar subjetivismos e desvios de finalidade na adoção a posteriori de critérios eliminatórios.
10. Necessidade de aplicação dos exames psicológicos em condições ambientais próprias e adequadas – artigo 4º, V, da Resolução CFP nº 002/2003. Necessidade de grau mínimo de precisão e fidedignidade dos testes – artigo 1º, §2º, da Resolução CFP nº 01/2002.
Outro aspecto que merece atenção, diz respeito à observância das normas procedimentais de aplicação dos exames psicológicos no momento de sua realização pelos candidatos, especialmente no que se refere ao ambiente de testagem, que deve ser adequado com vista a assegurar a fidedignidade[31] dos exames. As normas para aplicação dos exames psicológicos encontram-se nos manuais técnicos que podem ser requeridos administrativa (com extrema dificuldade) ou judicialmente.
Como define o parágrafo único da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 002/2003[32], os testes psicológicos são:
“… procedimentos sistemáticos de observação e registro de amostras de comportamentos e respostas de indivíduos com o objetivo de descrever e/ou mensurar características e processos psicológicos, compreendidos tradicionalmente nas áreas de emoção/afeto, cognição/inteligência, motivação, personalidade, psicomotricidade, atenção, memória, percepção, dentre outras, nas suas mais diversas formas de expressão, segundo padrões definidos pela construção dos instrumentos.”
Como se tratam de procedimentos de amostragem, a análise dos resultados obtidos nos testes psicológicos se faz a partir de sua comparação com os escores e interpretações obtidos na fase de elaboração do construto, mais precisamente a fase denominada de “padronização”.
Nesta fase, os itens que perfazem o teste psicológico ainda em desenvolvimento são aplicados a diversos indivíduos ou grupos de indivíduos que compõe o chamado grupo de referência[33]. É a partir dos resultados obtidos com este grupo que são estabelecidos os critérios de interpretação e avaliação do teste (v.g., aptidão, inaptidão etc), além de todas as instruções para sua aplicação, desde as condições físicas dos testandos, ambiente, ao tempo limite para cada teste, etc. [34].
Nesta sistemática, não é difícil compreendermos que para se assegurar a fidedignidade dos testes psicológicos, igualmente há que se assegurar condições de aplicação mais próximas possíveis daquelas encontradas pelo grupo de referência na fase de padronização do exame e indicadas no manual técnico respectivo, a exemplo do ambiente físico, pois só assim seus resultados serão confiáveis.
A Resolução CFP nº 02/2003 no seu art. 4º, inciso V, indica, como um dos requisitos para que os instrumentos de avaliação sejam considerados verdadeiros testes psicológicos, aptos, portanto, para serem utilizados pelos profissionais da psicologia, a indicação dos procedimentos de aplicação no momento da testagem, in verbis:
“art. 4º . Para efeito do disposto no artigo anterior, são requisitos mínimos e obrigatórios para os instrumentos de avaliação psicológica que utilizam questões de múltipla escolha e outros similares, tais como ‘acerto e erro’, ‘inventários’ e ‘escalas’:(…)
V – apresentação clara dos procedimentos de aplicação e correção, bem como as condições nas quais o teste deve ser aplicado, para que haja a garantia da uniformidade dos procedimentos envolvidos na sua aplicação;”
Aliás, Thomas P. HOGAN[35], Professor de psicologia da Universidade de Scranton, Pensilvânia, aponta como uma das principais fontes de não-fidedignidade dos testes a inobservância do procedimento padronizado para sua aplicação. Diz o professor:
“Um teste deve dispor de procedimentos padronizados para sua aplicação. Isto inclui fatores tais como instruções, limites de tempo e preparação do ambiente físico para a aplicação do teste. Embora seja impossível controlar todos os detalhes concebíveis da aplicação de um teste, esses detalhes podem exercer alguma influência sobre os escores. Por exemplo, o ruído no corredor em que se encontra a sala de aplicação ou condições inadequadas de iluminação podem fazer os escores ficarem mais abaixo.” (sem grifos no original)
Não é por outra razão que os autores MEHRENS e LEHMANN[36] alertam: “Todos os indivíduos deveriam ser submetidos ao teste em condições que se aproximem tanto quanto possível das existentes por ocasião da padronização do teste.”(sem grifos no original)
A preocupação é tamanha com tal requisito que a Resolução CFP nº 01/2002, responsável por regulamentar a avaliação psicológica em concurso público e processos seletivos da mesma natureza, traz, em seu art. 2º, inciso IV, como dever do psicólogo para alcançar os objetivos dos testes psicológicos[37], a seguinte exigência:
“art. 2º – (…).
IV – seguir sempre a recomendação atualizada dos manuais técnicos adotados a respeito dos procedimentos de aplicação e avaliação quantitativa e qualitativa.”
Sequer é necessário consultar as especificidades de tais manuais para se chegar a tais conclusões, porque a obrigatoriedade de fornecer um ambiente adequado para realização dos testes, deflui das próprias Resoluções do CFP acima arroladas, sendo que todo e qualquer teste deverá observar tais normas. Como é curial, qualquer professor sabe que os alunos apenas poderão realizar uma boa prova se as condições ambientais forem apropriadas.
Das premissas acima elencadas, é possível inferir diversas consequências.
a) O ambiente para aplicação dos testes deve ser apropriado e livre de interferências externas;
b) Não é admissível a aplicação de testes simultâneos em mesmo ambiente, com instruções e tempos de resposta diferenciados para cargos ou empregos distintos, face o comprometimento da concentração, do raciocínio e o desenvolvimento das etapas de avaliação, o que afeta a fidedignidade dos testes;
c) Não é admissível que os testes sejam aplicados em condições ambientais impróprias com base em custo ou razões de ordem logística;
11. Considerações Finais
Ante as reflexões elaboradas ao longo deste texto, podemos sintetizar as seguintes conclusões:
1. O acesso a cargo ou emprego público está exclusivamente condicionado à realização de provas ou prova e títulos (art. 37, II, da CR), sendo que a utilização dos testes psicológicos – desde que previstos em lei – jamais poderá ser ter cunho eliminatório, como verdadeira etapa do concurso público, mas apenas em sede de exames admissionais;
2. Ante a total lacuna normativa a regrar a incidência dos testes psicológicos no Brasil, e por não dispormos de regulamentação legal quanto ao tema, de todo razoável a opinião dos administrativistas que os testes apenas poderão ser utilizados para mensurar a higidez psíquica dos candidatos;
3. A aplicação de testes psicológicos quando precedidos de provas (relativas ao conteúdo programático do concurso) que mensuram habilidades e aptidões a exemplo de raciocínio abstrato ou inteligência, deve considerá-las para fins de avaliação psicológica;
4. Nem todos os cargos ou empregos públicos estão sujeitos à testagem psicológica. Apenas àqueles que colocam em risco a sociedade ou a vida é que podem estar sujeitos a testes psicológicos e sempre na fase admissional;
5. A exigência do perfil profissiográfico não pode ser determinada para qualquer cargo ou emprego público, mas apenas àqueles cuja exigência de certo grau de habilidades e equilíbrio emocional seja totalmente indispensável para seu efetivo desempenho, não podendo realizar eugenia psíquica, distorcendo o ingresso na Administração Pública ao impor requisitos irrazoáveis;
6. Consoante o que reiteradamente tem decidido o STF, é indispensável a previsão em Lei formal para que se possa exigir testes psicológicos, não suprindo tal requisito mera previsão no edital do concurso público. A necessidade de lei formal incide tanto para cargos como empregos públicos;
7. É indispensável a minudente previsão editalícia de todos os critérios de avaliação dos candidatos (nunca a posteriori), a exemplo do tempo de duração dos testes, quantos serão aplicados, o percentil de corte, o índice mínimo a ser obtido em cada teste, como serão calculadas as médias etc., sob pena de nulidade do teste psicológico;
8. Os testes psicológicos devem ser aplicados em condições ambientais adequadas sob pena de comprometimento da precisão e fidedignidade do teste, nos termos exigidos no artigo 1º, §2º, da Resolução CFP nº 01/2002.
Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Pós-Graduado em Direito Administrativo pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Professor de Direito Administrativo de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Florianópolis/SC e da extensão da Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina – ESMESC. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Administrativo do Complexo de Ensino Superior do Estado de Santa Catarina – CESUSC. Advogado e Consultor Jurídico.
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