Nichollas Alem
O presente artigo propõe um balanço do primeiro ano e meio do governo Bolsonaro na área da cultura. Minha intenção é indicar quais políticas e ações foram implementadas e/ou descontinuadas, oferecendo também algumas considerações críticas para cada um desses tópicos.
Antes de entrarmos na análise da gestão propriamente dita, precisamos tecer duas observações, ou melhor, duas premissas à nossa discussão.
A primeira delas é lembrar que a Constituição Federal brasileira possui um programa para a cultura e o setor cultural. Isso significa que os governos devem buscar cumprir os objetivos previstos em seu texto. No caso, a síntese desse programa está expressa na ideia de promoção do desenvolvimento cultural (artigo 3º, inciso II, 215, 219, principalmente) e que, no meu entender, equivale à criação de um estado de pleno exercício dos direitos culturais. Note-se que o artigo 215 da Constituição prevê que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Há um comando, uma ordem para que o Estado atue propositivamente no cumprimento dessa finalidade. Portanto, não cabe ao governo em exercício ignorar tal dispositivo, sob pretextos ideológicos que não são compatíveis com nossa Constituição. Em outras palavras, não nos parece compatível a opção de um Estado mínimo que atribua ao apenas ao mercado o dever de zelar pela nossa cultura.
Em segundo lugar, precisamos ter clareza da importância desse tema. A cultura, em uma perspectiva mais sociológica, está relacionada aos modos de criar, fazer e viver. Por esse motivo, influencia na forma como nos organizamos em sociedade e como reproduzimos ou transformamos certos hábitos. Não é exagero dizer, por exemplo, que a própria economia de um país é influenciada pela a cultura de seu povo. A cultura também está ligada à construção de nossa identidade. É através dela que aprendemos formas de interpretar, expressar e comunicar o mundo. Na cultura estão expressos nossos valores, sonhos, desejos e memórias. Abdicar de nossa identidade cultural é estar sujeito à deriva na história, inclusive, sujeitos à dominação cultural de outros grupos. Além disso, devemos explicitar que a cultura é um dos meios de formação intelectual, criativa e sensitiva do ser humano. Através dela podemos desenvolver nossas faculdades e capacidades mentais, psicológicas e sensoriais. Finalmente, vale reforçar que o setor cultural é caracterizado por um forte dinamismo econômico, representando parcela expressiva do PIB nacional, da mão de obra e da arrecadação tributária. Logo, política cultural não trata (apenas) de financiamento de artistas. Seu escopo e desafios são muito mais relevantes e complexos.
Isto posto, passemos à questão proposta.
Logo em 1º de janeiro de 2019 foi editada a Medida Provisória n.º 870 (posteriormente convertida na Lei nº 13.844, de 2019), que ao reorganizar a estrutura burocrática federal, extinguiu o Ministério da Cultura, transformando-o em Secretaria Especial dentro do Ministério da Cidadania. Pessoalmente, não acredito que a pasta responsável pela cultura tenha de ter status ministerial, necessariamente. Porém, no caso específico do Brasil, a sua extinção representa sim um retrocesso, uma vez que implica a redução de sua relevância na pauta de políticas públicas; a perda de capacidade administrativa; o esfacelamento de históricos, memória e avanços institucionais; bem como maior fragilidade orçamentária. Recentemente, a Secretaria foi transferida para a estrutura do Ministério do Turismo (Decreto nº 10.359/2020). Isso demonstra a redução dada à importância da cultura no âmbito federal, como se esta fosse apenas uma atração turística.
Do ponto de vista da chefia da SEC, o que se vislumbra é uma sucessão de crises e vacâncias. Em dezoito meses, foram quatro secretários – sem contar os períodos de interinos. O primeiro, Henrique Pires, deixou a pasta em agosto de 2019 reclamando de censura em programas (link). Ricardo Braga, seu sucessor, foi exonerado apenas dois meses depois de assumir a função (link). Roberto Alvim assumiu em novembro de 2019 em meio a diversas polêmicas com o próprio setor. Acabou sendo exonerado em janeiro de 2020, após ter publicado discurso apropriando-se de elementos nazistas (link). Regina Duarte é empossada apenas em março de 2020. Sua gestão também foi marcada por polêmicas, em especial, ao minimizar mortes da ditadura e não se posicionar oficialmente sobre falecimentos de grandes artistas nacionais (link). No início de junho foi anunciada sua exoneração, sem um nome substituto até o momento. Evidentemente, isso dificulta a construção e continuidade de qualquer ação consistente no bojo da SEC (link).
As crises envolvendo declarações polêmicas não ficaram restritas ao âmbito da Secretaria. O presidente da FUNARTE, Dante Mantovani, já defendeu o terraplanismo, argumentou que o rock incentiva o satanismo e o aborto, associou compositores renomados da MPB ao analfabetismo, dentre outras manifestações questionáveis (link). Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, por sua vez, também acabou se envolvendo em controvérsias ao criticar o movimento negro (link). Com efeito, várias das nomeações para as diretorias das entidades vinculadas foram (e estão sendo) criticadas pelos setores cultural e acadêmico. A meu ver, a escolha de certos nomes por critérios exclusivamente ideológicos conduz a um esvaziamento dessas instituições e de suas políticas. Estes não são capazes de articular minimamente com o setor cultural e sociedade civil, com vistas à criação de um diálogo virtuoso em prol do país.
Ainda no primeiro ano do mandato, Jair Bolsonaro colocou em prática a revisão das políticas de patrocínio de empresas estatais à cultura (link, link). Nesse contexto, os montantes de incentivo de entidades como a Caixa, Banco do Brasil e Correios caiu significativamente (link, link). Anunciou-se que os aportes da Petrobras, historicamente uma das maiores apoiadoras, seriam redirecionados para as áreas da educação e tecnologia (link, link). Por consequência, alguns projetos culturais que contavam com esses apoios acabaram sendo suspensos ou reduzidos (link). A bem da verdade, estatais não estão obrigadas a realizar patrocínios na área da cultura – a menos que seu regramento assim determine. Logo, mudanças de gestão podem sim interferir na política de aporte, motivadas por visões diferentes de prioridades alocativas. O problema maior da decisão do Presidente em convocar essa revisão está em três fatores: primeiro, a “motivação errada” sobre a qualidade, moral ou mérito do projetos incentivados; e segundo, a descontinuidade súbita de uma política esperada pelo setor; e terceiro, a ausência de soluções ou novas propostas que possam suprir o cancelamento.
O presidente também atuou diretamente na edição de duas Medidas Provisórias que afetam diretamente o setor cultural. A Medida Provisória n.º 907/2019 (convertida na Lei n.º 14.002/19) previa a não incidência da cobrança de direitos autorais no caso de hotéis e cabines de cruzeiros, por exemplo. Isso atendeu uma demanda antiga do setor turístico, em prejuízo da queda de arrecadação em favor dos artistas. Essa disposição acabou não sendo convertida em lei. Além disso, a Medida Provisória n.º 948/2020 dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura, em razão do estado de calamidade pública. A norma estabelece que o responsável pela venda de ingressos e o artista não estão obrigados a devolver o valor da compra e cachê, respectivamente, de imediato.
A Lei Rouanet, tão combatida e atacada por grupos de direita ao longo de 2018, não passou por alterações significativas. A Instrução Normativa n.º 2/2019 trouxe novas regras para projetos incentivados pelo mecenato, mas não alterou estruturalmente a política. Nesse tópico, a maior polêmica se deu em torno da redução do teto orçamentário de projetos, que afetou diretamente o campo dos espetáculos musicais. Não obstante, no final de 2019 esse teto acabou sendo revisto (link). Com a pandemia do COVID-19, a SEC publicou nova Instrução Normativa para rever alguns procedimentos no contexto do isolamento e restrições sociais (link). Entendo que a Lei Rouanet e seus regulamentos precisavam (e ainda precisam) de revisões. Porém, precisamos discutir aspectos ainda não enfrentados de forma assertiva, ou seja, com respostas normativas: desigualdades regionais, concentração de captação, contingenciamentos do Fundo Nacional de Cultura etc.
No caso específico do audiovisual a crise parece até mais profunda se comparada a outros setores. A Agência Nacional do Cinema, entidade responsável por regulamentar e fomentar o setor, chegou a ter suas atividades paralisadas em abril de 2019, em virtude de uma decisão do Tribunal de Contas da União que questiona o método de prestação de contas de projetos (link). Em dezembro do mesmo ano, a ANCINE cartazes de sua sede e dados de seu site sobre filmes nacional, alegando isonomia, mas levantando hipótese de censura (link). O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), constituído pela arrecadação da CONDECINE (tributo pago apenas pelo próprio setor), não conseguia liberar suas verbas pela incapacidade decisória de seu Comitê Gestor. Não bastasse isso, seu orçamento fora reduzido em 43% para 2020, menor dotação nominal desde 2012 (link). No início de maio, noticiou-se que, na verdade, o FSA não teria recursos para honrar os projetos contratados (link). Não fosse suficiente, presidente Bolsonaro vetou integralmente projeto que renovava os incentivos da Lei do Audiovisual, que previa benefícios fiscais para apoiadores de projetos na área (link).
Finalmente, o governo também acabou sendo alvo de críticas pelos ataques realizados a obras que desagradaram a ala bolsonarista. Acusada de praticar censura, a gestão Bolsonaro esteve diretamente relacionada ao cancelamento de editais e projetos com temática LGBT, discussões sobre o autoritarismo, entre outros assuntos. Na visão do presidente, não se pretende a censura, mas preservar valores cristãos (link, link e link). Acredito que o tópico dispensa grandes divagações: não cabe ao Estado controlar a produção cultural de uma sociedade, nem promover instrumentos de controle prévio à liberdade de expressão. Do mesmo modo, a escolha de projetos que merecem ou não o apoio público deve atender aos princípios e regras previstos em nossa legislação, por exemplo, a preservação da isonomia (tratamento igualitário entre os proponentes) e não os desígnios ideológicos do gestor em exercício.
Diante dos tópicos levantados, avalio que o primeiro ano e meio foi marcado pelo desmonte de políticas culturais construídas nas gestões anteriores, desde a redemocratização. Isso não se deve apenas ao fechamento do Ministério ou descontinuidade das políticas. Há um vazio político. O que acrescentou a gestão até o momento? Quais foram as novas políticas, ações, programas? Não se ouve falar nem mesmo em projetos e propostas. Isso ficou bastante evidente na inércia do governo em responder a crise imposta aos setores culturais pela pandemia. A IN que revê regras da Rouanet e a Medida Provisória n.º 948 são muito pouco para as atender às demandas do setor. Se nem mesmo um tópico relevante como a COVID-19 conseguiu mobilizar a SEC/governo, que dirá outros temas como a renovação do Plano Nacional de Cultura e a implementação do Sistema Nacional de Cultura – não menos importantes e previstos na Constituição, mas completamente esquecidos pela Administração, para citar exemplos. É difícil vislumbrar um horizonte de melhora no cenário atual. Não se vê uma consciência do Presidente, Ministros, Secretária e diretores das entidades vinculadas sobre a importância da cultura, tampouco uma disposição em fomentá-la.
Nichollas Alem é fundador e presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes. Advogado atuante nas áreas de Direito do Entretenimento e Direito da Inovação Tecnológica. Mestre em Direito Econômico pela USP. Consultor da UNESCO em equipamentos culturais. Membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.
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