Thaynan Carlos Almeida Oliveira [1]
João Santos da Costa [2]
Resumo: O presente estudo tem o objetivo de analisar a possibilidade do reconhecimento jurídico da família anaparental como entidade familiar, com base nos princípios da Constituição Federal de 1988 e Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Sendo analisados alguns aspectos peculiares desse novo arranjo familiar, como a viabilidade do direito sucessório no âmbito da família anaparental. Nesse contexto, busca-se responder a seguinte problemática: O Código Civil Brasileiro garante alguma proteção jurídica para a família anaparental em relação ao direito das sucessões? Para atingir essa questão, foi utilizada a metodologia pelo método dedutivo, partindo de argumentos gerais para específicos, como pesquisa bibliográfica, a partir de precedentes dos tribunais, estudo aprofundado em doutrinas, consultas na internet, bem como a própria legislação constitucional e infraconstitucional. Como resultados, foi possível constatar que família anaparental não recebe proteção jurídica por parte do legislador. Por fim, foram demostrados os fundamentos jurídicos e a necessidade de tutelar o direito sucessório no âmbito da família anaparental.
Palavras-chave: Família anaparental. Entidade Familiar. Reconhecimento Jurídico. Direito Sucessório.
Abstract: This study aims to analyze the possibility of legal recognition of anaparental family as a family entity, based on the principles of the Federal Constitution of 1988 and the jurisprudence of the Superior Court of Justice. Being analyzed some peculiar aspects of this new family arrangement, such as the viability of the inheritance law within the anaparental family. In this context, we seek to answer the following problem: Does the Brazilian Civil Code guarantee any legal protection for the parental family in relation to inheritance law? To reach this question, the deductive method methodology was used, starting from general to specific arguments, such as bibliographic research, from court precedents, in-depth study of doctrines, internet consultations, as well as the constitutional and infraconstitutional legislation itself. As a result, it was found that the parent family does not receive legal protection by the legislature. Finally, the legal foundations and the need to protect the inheritance law in the context of the parental family were demonstrated.
Keywords: Anaparental family. Family entity. Legal Recognition. Succession Law.
Sumário: Introdução. 1. Direito de família no ordenamento jurídico brasileiro. 1.1. Direito de família pré-constituição de 1988. 1.2. Direito de família pós-constituição de 1988. 1.3. Princípios do direito de família. 2. Sucessão: fundamentos e espécies. 2.1. Fundamentos: a relevância do direito das sucessões. 2.2. Espécies: análise a partir da vocação hereditária. 3. Família anaparental e direito das sucessões. 3.1. Conceito de Família anaparental. 3.2. Vocação hereditária no âmbito da família anaparental. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
A família exerce uma função essencial para o desenvolvimento do homem, pois é nela que se aprende os primeiros ensinamentos para formação da personalidade do indivíduo, entretanto, para melhor desempenhar essa função é necessária uma proteção jurídica por parte do estado.
A Constituição Federal no artigo 226 consagra que: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Assim, à medida que a sociedade passa por mudanças, o Ordenamento Jurídico tem o dever de tutelar esses novos fatos que se tornam cada vez mais comum.
Interessa para esse estudo o conceito de família anaparental que tem como principal elemento a ausência de pai e pode ser formada por parentes ou por amigos com identidade e propósito, sem conotação sexual.
Dessa forma, para construir uma família, não é necessário esse modelo “perfeito” de pai, mãe e filhos, nem necessita ter laços consanguíneos, mas o desejo de se juntar permanentemente no mesmo ambiente com o propósito de uma convivência afetiva. Assim, o lar se tornou sinônimo de refúgio e acolhimento, passando a contemplar o fenômeno da pluralidade, da solidariedade e da afetividade.
A metodologia utilizada foi pelo método dedutivo, partindo de argumentos gerais para específicos, como pesquisa bibliográfica, a partir de precedentes dos tribunais, estudo aprofundado em doutrinas, consultas na internet, bem como a própria legislação constitucional e infraconstitucional.
O trabalho divide-se em três partes: na primeira são apresentadas considerações históricas sobre o direito de família pré-constituição e pós-constituição de 1988, bem como os princípios que rege o direito de família; na segunda, ter-se-á uma abordagem sobre a relevância do direito sucessório, fazendo uma análise a partir da vocação hereditária; na terceira será abordado de uma maneira mais descritiva, a vocação hereditária na família anaparental.
Finalmente esse artigo científico buscou, através de uma fundamentação teórica, analisar a viabilidade do reconhecimento jurídico do direito das sucessões no âmbito da família anaparental, com objetivo de construir uma sociedade mais igualitária e fraterna.
1 DIREITO DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
1.1 Direito de família pré-constituição de 1988
A família é o lugar onde os homens constroem seus primeiros laços afetivos, é o ambiente que vai influenciar a formação da personalidade daqueles que fazem parte desse grupo familiar. A formação de uma família é marcada por características que podem ser encontradas no meio dos mais diversos tipos de família, quais sejam: uma entidade política, pois foi a base para formação do Estado; uma instituição religiosa, a maioria dos grupos familiares tem uma religião que influencia na sua formação moral e o ordenamento jurídico que também intervém no comportamento desses grupos.
No Brasil, a entidade familiar sofreu uma grande influência do direito romano e canônico. O direito romano deixou como principal herança a figura autoritária do pai (pater familiae) que exercia sua autoridade sobre a esposa, filhos e netos não emancipados e as mulheres casadas com os seus descendentes.
Portanto, a família romana constituía um conjunto de pessoas sujeitas ao exercício do pater poder, um sistema constituído por mulher, filhos e servos dependentes do poder limitador do ascendente mais velho, sendo responsável por cada membro e pela administração do patrimônio, pelas atividades políticas, religiosas e jurisdicionais. Nesse sentido, dispõe Carlos Roberto Gonçalves que: “O ascendente comum vivo mais velho era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o culto dos deuses domésticos e distribuía justiça” (GONÇALVES, 2015, p. 31).
O direito canônico, por sua vez, estipulou o casamento como uma união de amor entre homem e mulher unidos por Deus, não podendo o homem separá-los. Neste passo, escreveu o apostolo São Mateus:
“No começo o Criador os fez homem e mulher? E Deus disse: Por isso, o homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com a sua mulher, e os dois se tornam uma só pessoa. Assim, já não são duas pessoas, mas uma só. Portanto, que ninguém separe o que Deus uniu”. (Mateus 19:4, 5 e 6).
Desta forma, o cristianismo modelou a cultura brasileira, assim como o modelo de família perfeita a ser seguido, qual seja: pai, mãe e filhos, o pai com função do trabalho externo e a mãe com o trabalho de criar os filhos e cuidar dos afazeres domésticos, dando um caráter daquilo que seria moral do ponto de vista religioso.
Em consequência, as leis criadas tutelavam apenas esse modelo de família. Entretanto, a sociedade vive em constante mudança e o conceito de família dos avós não é o mesmo conceito dos pais e por sua vez não é o mesmo conceito dos filhos. Assim, o legislador tem o dever de acompanhar a dinamicidade do direito de família.
Nesse contexto histórico que foi construído o direito de família pré-constituição de 1988, além de influenciar, até nos dias de hoje, o atual ordenamento jurídico brasileiro. Antes da Constituição Federal 1988, o Código Civil de 1916 é o principal documento que trata do direito de família, com desmedida influência francesa, pois foi elaborado com base no individualismo e patrimonialismo, valorizando mais o “ter” do que o “ser”.
Nesse passo, o Código de 1916 tinha como parâmetro a família matrimonializada, ou seja: só era reconhecida a família constituída pelo casamento entre um homem e uma mulher. Portanto, não existia a possibilidade do reconhecimento do instituto da união estável, que era chamada de concubinato puro, muito menos, imaginava-se a união de pessoas do mesmo sexo e outros tipos de famílias já consagradas pela doutrina brasileira.
Com o passar do tempo, as uniões extramatrimoniais acabaram por merecer a aceitação da sociedade, levando a Constituição a dar um novo entendimento à concepção de família ao utilizar termo generalizante “entidade familiar”. (DIAS, 2016, p. 240)
A família patriarcal era o alicerce do Código Civil de 1916, a exemplo do seu art. 380 que dispõe sobre o tratamento desigual dado entre homem e a mulher, afirmando que durante o casamento, o marido exerce o pátrio poder como chefe da família.
Nesse mesmo sentido, o Código Civil de 1916 em seu artigo 233, expôs o preconceito de uma sociedade sobre o domínio da autoridade patriarcal, em que o marido é o chefe da sociedade conjugal e exerce as funções de: representar legalmente a entidade familiar; a administração dos bens comuns, autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal; além da responsabilidade de prover a manutenção da família. Ademais, o artigo 240 desse mesmo diploma legal, atribuía à mulher a função de auxiliadora nas atividades que confiadas ao chefe da família.
Por outro lado, pode-se notar uma pequena evolução trazida pela lei n° 4.121 de 1962, em que tratava da situação jurídica da mulher casada, que revogou diversos dispositivos do Código Civil de 1916, e entre essas mudanças, pode-se citar a alteração do artigo 380 do já referido Código, onde o poder familiar passa a ser exercido pelos pais e não somente pelo marido como disciplinava a lei.
Além disso, o Código Civil de 1916 tinha como critério a família biológica, pois faziam diferenciação entre filhos naturais e filhos adotivos, o laço de ligação principal dessa época era a consanguinidade, assim os filhos adotivos não tinham a mesma vocação hereditária dos filhos naturais, fato esse, que foi felizmente modificado pela Constituição de 1988, dando igualdade entre os filhos, tutelando inclusive, os filhos que o Código de 1916 considerava ilegítimos, qual seja, os filhos concebidos fora do casamento.
Outra evolução legislativa foi no ano de 1977, com a edição da emenda Constitucional n°09 e a Lei n° 6.515, a Emenda permitiu a dissolução do casamento nos casos expressos em Lei, e a lei regulou os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, tendo como exemplo o artigo 40 que possibilitou a ação direta de divórcio quando separado de fato, com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completados 5 (cinco) anos. A referida lei tutelou, também, o direito da mulher de optar ou não pelo uso do nome de família de seu cônjuge.
Portanto, percebe-se um avanço significativo em relação ao Código Civil de 1916, mas não é o suficiente para uma entidade tão complexa e subjetiva. Desta forma, antes da Constituição de 1988, o conceito jurídico de família era bastante limitado, pois o Código Civil 1916 tutelava apenas as famílias constituídas pelo casamento. É o que se pode deduzir do conceito de família dado naquela época em relação aos conceitos encontrados nas doutrinas atuais. Assim Orlando Gomes (1999, p. 22) definiu a família como grupo constituído pelos cônjuges e pelos filhos, oriunda do casamento válido, disciplinado pelo Código Civil.
1.2 Direito de família pós-Constituição de 1988
A Constituição Federal de 1988 foi uma conquista expressiva para o Estado democrático de direito, tendo como destaque a tutela dos direitos fundamentais. Assim, a Constituição Federal é formada por uma base sólida que tem como objetivo garantir a efetiva aplicação dos princípios da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana.
Nesse cenário, a Constituição Federal 1988 estabeleceu uma profunda mudança no ordenamento jurídico do direito de família, conferindo uma visão mais ampla para o conceito de entidade familiar, como bem explica Flávio Tartuce (2014, p.38), citando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que admitiu a união homoafetiva:
“Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseado na adoção de um explícito poliformismo familiar em que anjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado ´família`, recebendo todos eles a especial proteção do Estado. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana(…). Ademais, não é ele o casamento o destinatário final da proteção do Estado.” (STJ, Resp., 1.183,378/RS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4°. Turma, j. 25.10.2011, DJ3 01.02.2012). (Grifo do nosso)
Nesse entendimento, percebe-se que a Constituição Federal de 1988, por meio dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, instaura um novo Estado de Direito para os diversos tipos de família existente na sociedade brasileira, como a família homoafetiva, acabando com qualquer tipo de preconceito.
Ademais, a atual Constituição dedica em seu artigo 226 especial proteção por parte do Estado à família. Nesse sentido, a entidade clássica ou aquela decorrente do matrimonio, teve sua proteção consolidada no art. 226, §1º e §2° da Constituição, em que a celebração do casamento civil é gratuita e o casamento religioso terá efeito civil, nos termos da lei. Entretanto, a novidade legislativa foi trazida pelo §5° do art. 226 que ratificou o exercício igualitário dos direitos e deveres na sociedade conjugal entre homem e mulher, deixando claro a recusa do instituto do pater familiae.
Por sua vez, o §3° do artigo 226 da Constituição garantiu a proteção do Estado ao reconhecer a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Embora o citado artigo não tenha promovido uma igualdade entre os institutos, pois existe diferença de tratamento jurídico entre eles, como o regime de bens e direitos sucessórios, foi eficiente na separação entre Estado e pensamento religioso, pois ampliou o conceito de entidade familiar que, para a igreja cristã, resume-se aquele formado pelo casamento entre homem e mulher.
A família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus filhos, foi outra mudança trazida pelo o artigo 226. Além disso, a aprovação da emenda 66/2010, que alterou o §6° do artigo 226 da Constituição Federal, garantiu a dissolução do casamento pelo divórcio, simplificado a separação entre pessoas casadas, pois antes, para o casamento ser dissolvido era necessário a separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
Ademais, o §7° do art. 226 da Constituição, limitou a atuação do Estado em relação ao planejamento familiar que é de responsabilidade dos membros da família, fundamentando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
Não se pode olvidar, que a Constituição Federal no seu artigo 227, §6° consagrou a igualdade entre os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, tutelando-os com os mesmos direitos e proibindo qualquer forma de discriminação.
Diante dessas transformações, a legislação pré-constituição de 1988 já não tinha a mesma relevância para o direito de família, sendo necessário uma nova legislação compatível com a Constituição. Nesse sentido, o Código Civil de 2002 tipificou diversos dispositivos que buscam efetivar a aplicação dos direitos garantidos pela Constituição Brasileira, entre eles estão: igualdade entre os cônjuge; regulamentação da união estável que foi um avanço importante para o direito sucessórios para as pessoas que viviam neste modelo familiar; novas normas para o instituto da adoção.
Percebe-se, portanto, que várias foram as mudanças legislativas trazidas pelo ordenamento jurídico brasileiro pós-Constituição de 1988, assim importa destacar que esse sistema legislativo deve ser interpretado com base nos princípios da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006) buscou uma conceituação moderna para a entidade familiar ao dispor no seu artigo 5°, II que família é compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa.
Merece destaque o conceito de família desenvolvido por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 44) que Família é “um núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos integrantes”.
Portanto, o Estado não pode tutelar apenas alguns modelos de famílias, mas deve reconhecer a evolução familiar e garantir que esses novos modelos tenham a devida proteção legal.
1.3 Princípios do Direito de Família
Os princípios ganham cada vez mais importância no Direito de Família. Um novo modo de ver o direito emergiu da Constituição Federal, verdadeira carta de princípios, que impôs eficácia a todas as suas normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5° da CRFB/88).
Segundo Paulo Bonavides (2014, p.237), os princípios constitucionais foram convertidos em alicerce normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico do sistema constitucional, o que provocou sensível mudança na maneira de interpretar a lei.
Assim, não obstante as regras jurídicas, os princípios são utilizados para embasar as mais diversas teses e decisões judiciais, tornando-se imprescindíveis para a aproximação do ideal de justiça, adquirindo assim uma eficácia imediata. A partir do momento em que ocorreu a constitucionalização do Direito Civil e a dignidade da pessoa humana, o positivismo tornou-se insuficiente.
A Constituição imputa deveres fundamentais ao Estado, à sociedade e à família. Para o direito atual, o Estado é pessoa jurídica, a sociedade é uma coletividade indeterminada e a família é entidade não personalizada. A reconstrução do conceito de pessoa levou o direito a construir princípios e regras que visam a proteção da personalidade humana naquilo que é seu atributo específico: a qualidade de humano. (DIAS, 2016, p. 43)
Os princípios do direito de família não são taxativos, já que vários são entendidos de outros que possui maior relevância, como princípios gerais temos: a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade, bem como os princípios da proibição do retrocesso social e da proteção integral a crianças e adolescentes. Dentre os princípios especiais, vale destacar, o da solidariedade e da afetividade.
A dignidade humana é o princípio basilar da Constituição Federal de 1988, que foi posto como fundamento em seu art. 1°, III, haja vista ser o princípio que irradia todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade. Logo, foi por meio desse princípio que começou a existir tutelas jurídicas do homem voltadas à sua qualidade humana.
Eduardo Bittar (2009, p. 298) afirma que o respeito à dignidade humana é o melhor legado da modernidade, que deve ser temperado para a realidade contextual em que se vive. Assim, há de se postular um sentido de mundo, por um sentido de direito, por uma perspectiva, em meio a tantas contradições, incertezas e inseguranças.
É na família que esse princípio mais se destaca, a partir da multiplicação dessas entidades familiares, é preservada e desenvolvida as qualidades mais importantes que pode ter em uma família, dentre elas – o amor, o afeto, a solidariedade, a confiança, os projetos de vida, sendo possível o ideal desenvolvimento pessoal e social de cada integrante familiar.
O princípio da liberdade deve haver correlação com a igualdade, pois sem esse pressuposto estaríamos diante de uma sujeição, e não liberdade. A Constituição Federal, ao instaurar o regime democrático de direito, revelou forte interesse em banir possíveis discriminações, tendo uma especial atenção no âmbito familiar. A isonomia de tratamento jurídico permite que considerem iguais, homens e mulheres em direitos e obrigações conforme art. 5° da CRFB/88.
Maria Berenice (2016, p. 49) acrescenta que:
“Em face do primado da liberdade, há a liberdade de dissolver o casamento e extinguir a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio. A possibilidade de alteração de regime de bens na vigência do casamento (CC 1.639 § 2°) sinala que a liberdade, cada vez mais, vem marcando as relações familiares”.
Falar do princípio da igualdade e respeito a diferença, nos remete a lição de Rui Barbosa (199, p. 27) em sua “Oração aos moços” que definiu a ideia de igualdade como “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”. Podemos observar nessa frase a aplicação de uma isonomia material, pois é imprescindível que a lei considere todos igualmente, ressalvadas as suas desigualdades.
Nesse contexto, Santos (2003, p. 56) afirma que:
“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
No âmbito do direito de família, o princípio da igualdade não deve ser pautado simplesmente pela igualdade, mas também pela solidariedade entre seus membros. O Código Civil elenca vários exemplos, dentre eles: deveres recíprocos entre os cônjuges (CC, art. 1.556), seus direitos e deveres (CC, art. 1511), a mútua colaboração na sociedade conjugal (CC, art. 1.567), temos também com relação à guarda dos filhos, pois nenhum genitor terá preferência (CC, art. 1.83 e 1.584).
Assim como a lei não pode gerar normas que estabeleçam privilégios, o juiz também não pode aplicar a lei de modo que gere desigualdades.
O princípio da solidariedade familiar é o compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras, tendo origem nos vínculos afetivos. Esse princípio encontra amparo no art. 3°, I, da Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Portanto, é afastado do Estado uma parte do encargo que ele tem em assegurar todos os direitos constitucionais ao cidadão. No art. 227 da CF/88, basta atentar que primeiro é dever da família, depois da sociedade e por último do Estado, de garantir à criança, ao adolescente com absoluta prioridade os direitos inerentes para sua formação, e qualidade de vida. Assim como os pais têm o dever de assistir aos filhos menores, os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice (art. 229, CF/88); o mesmo ocorre com o amparo as pessoas idosas (art. 230, CF/88).
O Código Civil também elenca em seu art. 1.511, que o casamento estabelece comunhão plena de vida. A obrigação alimentícia dispõe de igual conteúdo prevista no art. 1.694, CC diz que: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitam para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender as necessidades de sua educação”. Essa imposição entre parentes representa a concretização do princípio da solidariedade familiar.
Por fim Madaleno, (2013, p. 93) acrescenta que:
“A Solidariedade é o princípio e o oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”.
Com relação ao pluralismo das entidades familiares, é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares. Antigamente, os demais vínculos familiares eram condenados, a partir do momento que as uniões matrimonializadas deixavam de ser como a única base da sociedade.
Maria Berenice (2016, p. 52) diz que excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que gerem comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial, é simplesmente ser conivente com a injustiça.
Vê-se que não tem como definir a entidade familiar como algo estático, já que ela deve se amoldar ao tempo, devendo ser levada em conta as transformações da sociedade.
O princípio da proibição do retrocesso social impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelos cidadãos. As normas de direito subjetivo, como a igualdade entre homens e mulheres, o pluralismo das entidades familiares, o tratamento igualitário entre todos os filhos é uma garantia constitucional, que serve de obstáculo para os retrocessos sociais, pois se houvesse, configuraria desrespeito às regras constitucionais. (DIAS, 2016, p. 54).
Como bem ressalva Lênio Streck (2013, p. 97) é evidente que nenhum texto proveniente do constituinte originário pode sofrer retrocesso que lhe dê alcance jurídico social inferior ao que tinha originariamente, proporcionando retrocesso ao estado pré-constituinte.
Assim, tanto a igualdade entre homens e mulheres, entre os filhos, e as próprias entidades familiares, constitui garantia de direito subjetivo, não podendo sofrer limitações na lei ordinária, muito menos retrocesso social.
O princípio da afetividade expõe a idéia de afeição entre duas ou mais pessoas para formar uma nova sociedade: a família. O afeto não está ligado apenas a um laço que envolve os integrantes da família, mas também, tem um viés externo entre as famílias, pondo humanidade em cada uma. (DIAS, 2016, p. 55).
Portanto o afeto é a mola propulsora das relações familiares, movidas pelo sentimento de amor, de dar sentido e dignidade à existência humana. O afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um ao outro.
2 SUCESSÃO: FUNDAMENTOS E ESPÉCIES
2.1 Fundamentos: a relevância do direito das sucessões
Sucessão vem do latim sucessio, do verbo succedere (sub + cedere), significando substituição, com a ideia subjacente de uma coisa ou de uma pessoa que vem depois de outra. Assim, o direito das sucessões consiste na transferência do patrimônio de alguém, por testamento ou em virtude de lei, depois da sua morte (FARIAS, 2017, p. 30).
A Constituição Federal em seu art. 5°, XXX, garante constitucionalmente o direito de herança, bem como o direito de propriedade privada no art. 5°, XXII. Em face de maior relevância, é indiscutível a valoração da dignidade da pessoa humana no direito sucessório, além de promover a igualdade e a solidariedade, haja vista, a pessoa humana ser o fim almejado na relação jurídica.
Nos ensinamentos de Gonçalves (2017, p. 19) o primeiro fundamento da sucessão foi de ordem religiosa. A propriedade era particular, e a família era chefiada pelo varão mais velho. Quando a propriedade passa a ser individual, o fundamento a sucessão passa a ter a necessidade de conservar o patrimônio dentro de um mesmo grupo, impedindo a divisão de sua fortuna entre os vários filhos. É então que se desenvolve o período medieval da primogenitura.
Nota-se que não se levava em consideração o sentimento da equidade, ou seja, a igualdade de tratamento entre os herdeiros da mesma classe e grau. No Direito contemporâneo a sucessão legítima processa-se entre os herdeiros que se encontram no mesmo grau e que, recebam partes iguais. Foi então que o direito hereditário evoluiu.
A herança compreende o ativo e o passivo, que abrange o patrimônio do “de cujus”, na verdade, é um somatório, em que se incluem os bens e as dívidas, os créditos e os débitos, os direitos e as obrigações, as pretensões e ações de que era titular o falecido. Não é constituído apenas de bens materiais, mas é um complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico.
Note-se que somente interessa ao Direito das Sucessões a pessoa que deixou bens patrimoniais, pois é a única situação do falecido que pode ser transmitida.
Nesse contexto Eduardo de Oliveira (2003, p.3) acrescenta que:
“Porque os homens desaparecem, mas os bens continuam; porque grande parte das relações humanas transmigra para a vida dos que sobrevivem, dando continuidade, via relação sucessória, no direito dos herdeiros, em infinita e contínua manutenção da imagem e da atuação do morto, em vida, para depois da morte”.
Enfim, o Direito das Sucessões é o direito à propriedade privada, uma vez que compõem um dos seus fundamentos, que é a possibilidade de transmissão por ato entre vivos ou causa mortis.
2.2 Espécies: análise a partir da vocação hereditária
O direito sucessório brasileiro é regido por duas modalidades de sucessão: legítima e testamentária. Proclama assim o art. 1.786 do Código Civil: “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”.
Morrendo, portanto, a pessoa, a herança são transmitidas aos seus herdeiros legítimos, de acordo com uma ordem preferencial expressamente prevista em lei na denominada vocação hereditária, preferencial e taxativa.
Preceitua o art. 1.829 do Código Civil:
“Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I- aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II- aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III- ao cônjuge sobrevivente;
IV- aos colaterais”.
Na falta dos herdeiros listados, ou de companheiro, nem parente algum sucessível, ou no caso de renúncia a herança, está se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal, conforme art. 1.844 do Código Civil.
Segundo Farias (2017, p. 261), a sucessão legítima decorre da omissão do titular do patrimônio em estabelecer testamento com uma manifestação volitiva tácita de que pretende a transmissão do patrimônio para as pessoas contempladas em lei.
Por sua vez a sucessão testamentária é um acordo de vontade do autor da herança, expressa em declaração de última vontade. É a livre disposição de transferir a coisa a quem bem entender.
Na sucessão testamentária havendo herdeiros disponíveis (ascendentes, descendentes ou cônjuge) divide-se a herança em duas partes iguais, e o testador só poderá dispor livremente da metade, pois será a porção disponível, já que a legítima dos herdeiros necessários não pode ser incluída no testamento. Também são válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado, conforme previsão legal do Código Civil em seu art. 1.857, §1° e 2°.
Por sua vez, prescreve o art. 1.788 do Código Civil que: “Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”.
Nesse sentido, compreende-se que o testamento originariamente válido pode vir a caducar, isto é, tornar-se ineficaz por causa ulterior, como a falta do beneficiário nomeado, ou dos bens deixados pelo testador.
Gonçalves (2017, p. 40) assinala que a sucessão pode ser classificada ainda, a título universal e a título singular. Será herdeiro a título universal, quando for chamado a suceder na totalidade da herança, fração, parte ou alíquota (porcentagem) dela. Pode ocorrer tanto na sucessão legítima, quanto testamentária.
Na sucessão a título singular, é denominada como um legado, ou seja, é deixado ao beneficiário um bem certo e determinado, por exemplo, um veículo, terreno. Portanto há uma diferença entre legatário e herdeiro, pois este recebe a título universal, e aquele a título singular, tomando o seu lugar em coisa certa e individualizada.
Portanto, a sucessão legítima será sempre a título universal, que transfere aos herdeiros a totalidade ou a fração ideal do patrimônio. Já a testamentária poderá ser a título universal e singular.
Haverá liberdade de testar quando não houver herdeiros necessários, afastando-se até mesmo os herdeiros colaterais, conforme art. 1.850 do Código Civil).
Ainda conforme entendimento doutrinário, Gonçalves (2017, p. 41) assinala, outra forma de sucessão, a contratual. Que, na verdade, é uma exceção ao art. 426 do Código Civil, que diz: “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. No entanto podem os pais, por ato entre vivos, partilhar o seu patrimônio entre os descedentes.
Dispõe o art. 2.018 do Código Civil “É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários”.
Com base no estudo assinalado, observa-se que a sucessão hereditária não está limitada apenas à sucessão legítima, mas há também a sucessão testamentária que conta com ampla regulamentação legal, podendo dispor de sua herança por ato de última vontade.
3 FAMÍLIA ANAPARENTAL E DIREITO DAS SUCESSÕES
3.1 Conceito de família anaparental
A sociedade passou por um processo de transformação em relação as entidades familiares. O modelo tradicional formado por pai, mãe e filhos não é mais o único que merece atenção por parte dos juristas. Assim, pela rapidez dessa transformação e morosidade do legislador muitos institutos familiares ficaram sem tutela jurídica.
Nesse contexto de evolução é que surge a família anaparental, sendo aquela que não tem em sua estrutura a participação dos pais. Sérgio Resende de Barros, criador do termo anaparental, ensina que:
“Ainda excluído, deve ser incluído na proteção jurídica um tipo de família cada vez mais frequente nos meios sociais brasileiros, sobretudo nos grandes centros urbanos. São as famílias que não mais contam os pais, as quais por isso eu chamo famílias anaparentais, designação bastante apropriada, pois “ana” é prefixo de origem grega indicativo de “falta”, “privação”, como em “anarquia”, termo que significa falta de governo”. (BARROS, 2003).
Por sua vez, Maria Berenice (2016, p. 31) define que: A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõem o reconhecimento de uma entidade familiar, que tem o nome de família parental ou anaparental.
Assim, a família anaparental pode ser formada pelos irmãos ou dois primos que decidiram morar juntos, ou ainda dois amigos que decidiram passar a vida juntos, sem conotação sexual, como se sucede na união estável e na união homoafetiva, mas unidas por laços afetivos, com o ânimo de constituir estável vinculação familiar por período indeterminado.
Vale ressaltar, que não se pode confundir família monoparental com a família anaparetal. Pois a família constituída por pessoas que têm o vínculo de parentesco, e que pertencem a gerações distintas, como uma avó que passa a conviver com os netos, ou um tio que assume a responsabilidade por seus sobrinhos, caracterizam-se como uma família monoparental. Mas, inexistindo essa diferença de grau de parentesco entre seus membros, por exemplo, uma família formada somente por irmãos, formar-se-á o que se chama família anaparental. (DIAS, 2016, p. 29)
Em suma, a família anaparental tem base no princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja: deve ser garantido o mínimo de direito para que os cidadãos possam buscar o bem-estar social, pois todo ser humano tem o direito de ser tratado de forma igual. Nesse caso, a família anaparental merece o mesmo tratamento jurídico dado as outras famílias já reconhecidas pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Na lição de Sarlet (2002, p. 60) a dignidade humana é considerada:
“Como uma qualidade intrínseca e distintiva de casa ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais humanos”.
Ademais, o princípio da afetividade garante o modelo de família anaparental, pois o afeto não tem ligação econômica e nem necessidade de relação sexual, mas é formado por um sentimento de carinho e cuidado, esse princípio vem substituindo a simples ideia de laço biológico para constituir uma relação de parentesco, é o caso de não diferenciar o filho adotivo do filho biológico, pois a ligação afetiva permite o tratamento igual do filho adotivo por parte dos pais.
Esse afeto está muito ligado ao direito fundamental à felicidade. O Estado também, deverá atuar de modo a ajudar as pessoas a realizarem seus projetos de vida, ou desejos legítimos. Não basta a ausência de interferência estatal, mas é papel fundamental do Estado criar instrumentos – políticas públicas – que contribuam para as aspirações de felicidade das pessoas, municiado por elementos informacionais a respeito do que é importante para a comunidade e para o indivíduo. (DIAS, 2016, p. 55)
Diante disso, apesar de as famílias se alterarem de forma rápida e complexa, é necessário que o Estado não se omita em relação a garantia pela igualdade entre os institutos famílias existentes na sociedade brasileira, a exemplo da família anaparental.
3.2 Vocação hereditária no âmbito da família anaparental
O direito à sucessão se transmite no momento da morte do autor da herança. A herança é um bem jurídico imóvel, indivisível e universal, sendo tratada dessa maneira até a partilha, formada pelo patrimônio ativo e passivo deixados pelo falecido, ou seja: os créditos os débitos, os bens moveis e imóveis, até mesmo os créditos discutidos em juízo.
Desta forma, a lógica é que o bem seja transferido as pessoas mais próximas, como o cônjuge e os filhos, já que a função social da herança é a conservação do acervo patrimonial, em proveito do núcleo familiar do de cujus.
Dessa maneira, a herança é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal no artigo 5°, inciso XXX. Assim, é justo que as famílias anaparentais também desfrutem desse direito, pois a herança é para proteção do núcleo familiar.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o reconhecimento da família anaparental quando reconheceu, no Recurso Especial 1.217.415-RS julgado em 2012, a possibilidade de dois irmãos adotarem uma criança, senão vejamos o que diz a relatora, Min. Nancy Andrighi, em um trecho da citada jurisprudência:
“ADOÇÃO PÓSTUMA. FAMÍLIA ANAPARENTAL. Nesse tocante, o que informa e define um núcleo familiar estável são os elementos subjetivos, que podem ou não existir, independentemente do estado civil das partes. Sob esse prisma, ressaltou-se que o conceito de núcleo familiar estável não pode ficar restrito às fórmulas clássicas de família, mas pode, e deve, ser ampliado para abarcar a noção plena apreendida nas suas bases sociológicas. Na espécie, embora os adotantes fossem dois irmãos de sexos opostos, o fim expressamente assentado pelo texto legal – colocação do adotando em família estável – foi plenamente cumprido”. (REsp 1.217.415-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012).
Nesse sentindo, como a jurisprudência reconheceu a família anaparental e consequentemente o direito dessa família adotar uma criança, nada impede que esta entidade familiar receba proteção no âmbito do direito sucessório
Portanto, é essencial que o Código Civil tipifique o direito das sucessões, pois, este, não prevê nenhuma garantia para esse tipo de família, mas impõe uma ordem de sucessão legítima no seu artigo 1.829 em que no primeiro momento os descendentes concorre com o cônjuge sobrevivente, a depender do regime do casamento; caso não exista descendente, o cônjuge concorre com os ascendentes; em seguida na situação em que não tem descendente e nem ascendente, nem testamento, o cônjuge tem direito ao total da herança; não restando nenhum destes, os colaterais terão direito a herança.
Deve-se advertir, todavia, que a posição adotada pelo Código Civil brasileiro prejudica o exercício pleno do direito sucessório em face das famílias anaparentais, pois, por exemplo, no caso de dois irmãos morem juntos com o intuito de constituir família, morrendo um deles, sobrevivendo outros irmãos, conforme o ordenamento jurídico brasileiro, os colaterais que não viviam com o de cujos terão o mesmo direito daquele que constituiu uma família anaparental com o falecido.
Desse modo, bem explica Maria Berenice (2016, p. 144):
“A convivência sobre o mesmo teto, durante longos anos, por exemplo, de duas irmãs que conjuga esforço para a formação do acervo patrimonial, constitui uma entidade familiar. Na hipótese de falecimento de uma delas descabe dividir os bens igualitariamente entre todos os irmãos, como herdeiros colaterais, em nome da ordem de vocação hereditária”.
Desta forma, o estado comete uma injustiça com aquele irmão que constituiu um patrimônio comum, como se fosse uma união estável. Portanto, a solução que se aproxima de um resultado justo é conceder ao irmão com quem o falecido convivia, a integralidade do patrimônio, pois ele, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de vocação hereditária. Assim, ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável. (DIAS, 2015, p. 99).
Portanto, é evidente que a família anaparental merece total tutela jurídica por parte do Estado, pois os direitos fundamentais estão sendo negados para esse tipo de entidade familiar, por mora do legislador. Logo, a família anaparental não pode vivenciar a plenitude dos diretos que a Constituição Federal garante aos cidadãos brasileiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na origem conforme ficou demonstrada na breve abordagem evolutiva sobre as principais mudanças promovidas pela Constituição, não há dúvida que as famílias antes hierarquizadas, matrimonias e patrimonialistas, fundadas em valores moralmente conservadores, passaram a ter fundamento na humanização do direito de família, tendo o constituinte alargado o conceito de família, acrescentando a família monoparental e também a união estável.
A família é uma realidade social em constante mutação, a sociedade foi aos poucos evoluindo e novas modalidades de famílias foi se formando, constituídas não só pelos laços consanguíneos ou matrimoniais, mas contemplando o afeto como fenômeno volitivo da sua formação, mudando conceitos, e adquirindo novos valores.
Dentre os princípios fundamentais que nossa Constituição destaca, há o princípio da dignidade da pessoa humana, colocando o ser humano como ápice de todo Ordenamento Jurídico, a pluralidade, a solidariedade e à afetividade.
Visto isso, a família anaparental merece reconhecimento por parte do ordenamento jurídico brasileiro, pois corre o risco de sofrer injustiças, a exemplo do direto sucessório no qual dois irmãos constituindo uma família anaparental, morrendo um deles, os bens seriam divididos igualmente entre todos os irmãos, como herdeiros colaterais.
Portanto, chegou-se à conclusão que qualquer direito conferido as entidades tradicionais, também deve tutelar as famílias anaparentais, inclusive o direito a sucessão, para evitar o desamparo dessas famílias por parte do Estado.
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[1] Graduando do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro universitário Santo Agostinho – UNIFSA. Email: carlosthaynan@gmail.com
3 Professor do Centro Universitário Santo Agostinho –UNIFSA, Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) E-mail: jscostadireito@gmail.com
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