Resumo: O presente artigo pretende abordar a evolução histórica do direito penal positivo brasileiro, desde o período colonial até os dias atuais, pontuando aspectos relevantes das legislações pretéritas, e trazendo à baila questões contemporâneas que envolvem o Projeto de Lei do Senado n.º 236/2012, que nada mais é do que o projeto do Novo Código Penal brasileiro.
Palavras-chave: História do Direito Penal Positivo Brasileiro. Projeto de Lei do Senado n.º 236/2012.
Abstract: This article discuss the historical development of positive Brazilian criminal law, since the colonial period untill the present day, analyzing relevant issues of preterit laws, and bringing up contemporary issues involving the Senate Bill n. º 236/2012 , which is nothing more than the design of the New Brazilian Penal Code.
Keywords: History of Positive Brazilian Criminal Law. Senate Bill n.º 236/2012
Sumário: 1. Relevância da história do direito penal positivo brasileiro; 2. Períodos do direito penal brasileiro; 2.1. O período colonial e as ordenações do reino; 2.2. O regime imperial e o código criminal de 1830; 2.3. O regime republicano e o seu inaugral código penal de 1890; 2.4. O código penal de 1940 e a reforma de 1984; 3. Panorama atual do direito penal e o pls n.º 236/2012.
1. RELEVÂNCIA DA HISTÓRIA DO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO
O estudo da história se faz necessário para que não sejam cometidos os mesmos erros do passado, buscando-se, com o olhar retrospectivo, extrair para o futuro a melhor alternativa, aquela que mais condiz com a aspiração evolutiva do homem enquanto ser jungido de razão. Por esse motivo, diante do cenário de iminente reforma penal brasileira, faz-se mister pontuar alguns aspectos das legislações pretéritas, a fim de que suas qualidades e acertos sejam preservados e imitados, mas os seus defeitos e incoerências sejam cabalmente rechaçados.
Acerca da relevância fundamental da história para a o estudo da ciência do direito, assim cristalizou Carlos Maximiliano: “Não é possível manejar com desembaraço, aprender a fundo uma ciência que se relacione com a vida do homem em sociedade, sem adquirir antes o preparo propedêutico indispensável. Deste faz parte o estudo da história especial do povo a que se pretende aplicar o mencionado ramo de conhecimentos, e também o da história geral, principalmente política, da humanidade. O Direito inscreve-se na regra enunciada, que, aliás, não comporta exceções: para o conhecer bem, cumpre familiarizar-se com os fastos da civilização, sobretudo daquela que assimilamos diretamente: a europeia em geral; a lusitana em particular. Completa-se o cabedal de informações proveitosas com o estudo da História do Brasil” (MAXIMILIANO, 1975, p. 137).
Daí a importância de uma detida análise das raízes históricas que deságuam na realidade jurídica em que se vive hodiernamente. Para tanto, o passado cumpre papel fundamental no entendimento dos conceitos atuais, destacando-se, nesse intento, a história, a evolução da sociedade e do próprio direito, que passou a ganhar um aspecto mais humanitário e protetivo ao longo dos anos vivenciados pela humanidade.
Joaquim Augusto Camargo bem elucida o relevante aspecto histórico do direito penal, essencial para sua compreensão holística: “(…) como poderemos saber se o direito penal é uma conquista das ideias esclarecedoras dos tempos modernos sobre as doutrinas viciosas do passado, ou, se é a continuação dessas doutrinas rudes e bárbaras, como as sociedades em que dominavam, sem conhecer a sua história? Como explicar os textos, as suas disposições, os seus preceitos, sem conhecer o passado? É necessário, portanto, estudar a história do direito penal para bem conhecer a este” (CAMARGO apud ESTEFAM, 2010, p. 63).
Por esse motivo, a compreensão histórica da evolução do pensamento jurídico, político, cultural e filosófico leva a criação de novos institutos que visam à correção das barbaridades perpetradas no passado, que se apresentam como fruto de lutas históricas e conquistas de grupos sociais. Outrossim, o direito penal bem revela essa face evolutiva do pensamento jurídico. Isso porque é notável a evolução do tratamento dispensado aos apenados, o que resultou em tratamento mais digno, sem, contudo, olvidar-se de sua função punitiva/retributiva. Foi-se eliminando, nos países que acompanharam o desenvolvimento do pensamento humanista, as penas cruéis, outrora aplicadas, e bem assim passou-se a garantir o devido processo legal, princípio garantístico processual que equipa o réu das armas necessárias para a garantia de um processo justo, em que o contraditório e a ampla defesa se fazem integralmente presentes.
Ademais, como o direito penal tem como uma de suas características a dinamicidade, porquanto é mutável consoante as necessidades da sociedade e a vontade do legislador, essa reflexão deve direcionar para questionamento daquilo que realmente deve ser tutelado pelo direito penal, dado o seu caráter fragmentário.
Com efeito, nota-se, na atualidade, a presença de duas correntes de pensamento que orientam e influenciam a atividade legislativa na árdua tarefa de elaboração, discussão e aprovação de um Novo Código Penal.
De um lado, uma visão humanística que visa descriminalizar condutas, contrastando, assim, com o arcaico código penal existente – cuja criação remonta a uma sociedade completamente distinta da atual -, repleto de emendas que tornam confusa a aplicação de seus dispositivos, e com a exponencial produção legislativa acerca da matéria penal, que hoje se apresenta com o equivalente a 118 leis penais especiais com mais de 1.600 tipos penais. Em face desse quadro, resta óbvia a urgente necessidade de se enxugar as condutas penalmente relevantes, tutelando-se apenas aquilo que, de fato, importa para o direito penal.
De outro lado, tem-se uma sociedade que clama por efetividade penal, cuja luta contra a impunidade e falta de segurança pública reverberam no anseio por uma legislação mais rígida, em que se põem em xeque institutos como o da progressividade do cumprimento das penas, livramento condicional, prescrição, inimputabilidade dos menores de 18 anos, etc.. Tal perspectiva, vale dizer, é maximizada pela influência midiática, porquanto constantemente essa realidade de violência e impunidade é amplificada pelos noticiários que apresentam diariamente o freak show da criminalidade, induzindo-se a sociedade a enxergar o delinquente como escória humana, o lixo humano que merece exclusão, se não perpétua, longínqua da sociedade. Atendendo a esse clamor é que, muitas vezes – a história tem demonstrado -, são criadas legislações de urgência, não raras vezes eivadas de inconstitucionalidades e outros vícios que não se coadunam com o ordenamento jurídico a que se pretendeu chegar nossa Constituição.
Por essa razão é que se faz produtiva a discussão dos caminhos até aqui percorridos, para melhor escolha dos horizontes almejados por toda a sociedade. No entanto, um alerta é necessário: a legislação, por si só, não transforma toda uma sociedade, ou realidade social, mas o empenho conjunto de políticas de segurança pública e condutas da própria sociedade é que podem, sim, trazer à luz a sociedade que se quer, aquela em que as desigualdades são combatidas, a solidariedade é estilo de vida compartilhado por todos e a justiça cumpre sua função primordial de manter a paz no convívio social.
2. PERÍODOS DO DIREITO PENAL BRASILEIRO
2.1. O Período Colonial E As Ordenações Do Reino
Do descobrimento do Brasil pelos portugueses até os dias de hoje, três códigos penais vigeram no país, o código penal do império de 1830, o da república velha de 1890 e, o mais recente, de 1940, o qual já passou por diversas alterações.
Antes da existência dessa legislação penal codificada, há de ser lembrado o fato de o Brasil ter sido colônia de Portugal, e, como tal, estava sujeito, até a sua independência em 1822, às Ordenações do Reino, dentre as quais, para o estudo da história do direito penal positivo brasileiro, destacam-se as Ordenações Filipinas, não por ser mais especial, ou melhor, do que as demais, apenas pelo simples fato de que reuniu, em seu Livro V, elementos das anteriores Ordenações Afonsinas e Manuelinas. No entanto, tais Ordenações não podem ser tidas como códigos penais propriamente ditos, porquanto dispunham de diversas matérias do Direito, separando-as por livros específicos, não possuindo o caráter de especialidade reservado aos códigos. Assim, em um mesmo diploma normativo, encontravam-se dispositivos referentes à matéria administrativa, comercial, cível e penal, etc.
Cumpre ressaltar, no entanto, que os silvícolas aqui presentes, até o momento da chegada dos portugueses, tinham suas relações reguladas por regras consuetudinárias, valendo como solução para a maioria dos casos a vingança privada, comumente conhecida como o talião. Entretanto, tais regras costumeiras em nada influíram o nosso ordenamento, dada a sua primariedade.
Com a descoberta do Brasil, passaram a conviver, em um mesmo território, índios, portugueses, franceses e holandeses, cada um com suas peculiares crenças e culturas. Era necessária, pois, uma legislação que regulasse a convivência, ditando aquilo que se podia, ou não, fazer, determinando as consequências aos que desobedecessem a tais disposições. As Ordenações do Reino cumpriram, ao seu modo, esse papel, disciplinando, como dito alhures, as condutas penalmente relevantes à época.
Quando do descobrimento, vigiam em Portugal as Ordenações Afonsinas, publicadas em 1446, que continham em seu bojo muitos trechos traduzidos das leis de Justiniano, com as glosas e explicações de sabedores antigos que as interpretavam.
Logo após, vinte um anos mais tarde, entraram em vigor as Ordenações Manuelinas, que tinha conteúdo muito semelhante à legislação revogada, durando até 1603, ano em que as Ordenações Filipinas sucederam-nas.
Como características das Ordenações destacam-se a desproporção entre a conduta delitiva e as penalidades aplicadas aos infratores; a severidade das sanções; a desigualdade na aplicação da pena em razão do sexo, do país origem, da posição social e de outros fatores notoriamente discriminativos dos infratores; a existência da pena de morte, sendo, pois, a austeridade regra marcante de tal diploma normativo. Buscava-se a intimidação pelo terror, sendo a morte a punição mais frequente (ESTEFAM, 2010, p. 65).
Apenas para salientar a severidade das penas infligidas, podem ser citadas: “(…) as penas de morte natural; morte natural para sempre; morte natural cruelmente; morte pelo fogo, até ser feito o condenado em pó, para que nunca de seu corpo e sepultara possa haver memória; açoites, com ou sem baraço; pregão pela cidade ou vila; degredo para as galés; degredo, perpétuo ou temporário, para a África, para a Índia, para o Brasil, para o Couto de Castro Marim, para o reino ou fora da vila, e termo, ou fora do bispado; mutilação das mãos; da língua; queimaduras com tenazes ardentes; capela de chifres na cabeça – aplicado aos maridos condescendentes; polaina ou enxavaria vermelha na cabeça – aplicada às alcoviteiras; confisco, como pena principal ou acessória, ou multa” (ESTEFAM, 2010, p. 65).
A pena capital poderia ser executada de quatro formas, como relatado por Cândido Mendes: morte natural cruelmente; morte natural de fogo; morte natural e morte natural para sempre. A primeira dessas dependia do arbítrio dos juízes e da atrocidade dos executores. Na segunda, o réu deveria ser queimado vivo, contudo, segundo costume antigo dava-se garrote aos réus, antes de serem lançados às chamas. A morte natural ocorria no Pelourinho, onde o réu deveria ser enforcado e depois retirado para ser sepultado. Semelhantemente, na morte natural para sempre o réu era executado na forca, porém, lá deveria permanecer até que seu corpo caísse podre, sendo os seus restos levados à sepultura apenas ao primeiro dia de Novembro (ESTEFAM, 2010, p. 65).
As Ordenações Filipinas trouxeram, em seu livro V, cento e quarenta e três títulos para tratar das mais diversas figuras criminosas, dentre as quais podemos encontrar, a título exemplificativo, a proibição de os homens se vestirem como mulheres e de as mulheres se vestirem como homens, conforme o contido no título XXXIV da referida Ordenação, sob pena de serem açoitados publicamente, se fossem peões, e, sendo mulheres, exiladas por três anos em Castro-Marim, devendo, ainda, quem cometesse tal “delito” pagar dois mil réis ao seu acusador. Com esse exemplo, percebe-se claramente a dinamicidade imanente do direito penal porquanto este conclama os anseios de um povo – ou de um determinado grupo social -, de uma dada época em que está inserto. Hoje, classificar a conduta acima descrita como crime seria um descalabro, porque os valores e a cultura da sociedade cambiaram, inadmitindo-se discriminações de tal natureza. Isso ocorrera porque moral, pecado e crime se confundiam, ganhando todos estes a tutela penal, o que hoje não condiz com a realidade vivida.
Destaque-se, ainda, o matiz da prolixidade das Ordenações, cujas definições dos crimes, às vezes ultrapassavam duas ou três páginas, diferentemente do modelo atual que vela pela objetividade. Tal fato dava margem para interpretações diversas, o que facilitava aos órgãos de acusação e dificultava ao réu e ao seu defensor. Os textos esparsos dentro da própria Ordenação sobre uma mesma matéria e os inúmeros parágrafos igualmente ratificam essa característica. A isso some-se o fato de que o juiz, em alguns casos, tinha ampla liberdade para eleger a pena que julgava devidamente adequada para ser infligida ao réu. É o que se depreende do Título VII, Livro V do Código Filipino.
As disposições processuais penais encontravam-se imiscuídas nos dispositivos que disciplinavam a matéria penal propriamente dita, revelando o caráter imanentista presente à época, valendo-se como exemplos os títulos CXVII, CXXII, CXXIV do aludido diploma normativo, diferentemente do que hoje ocorre, destinando-se uma lei específica ao Processo Penal, que é a maneira pela qual o Direito Penal se realiza. Inexistia, outrossim, uma parte geral que disciplinasse os aspectos que hoje se conhecem como as atenuantes, agravantes, tentativa, erro de direito, excludentes de antijuridicidade, etc.
Havia privilégios concedidos em razão da classe social do acusado. Fidalgos, Infantes, Duques, Mestres, Marqueses, Condes, Juízes, Vereadores, Mestres, Desembargadores, enfim, a elitizada nobreza da época estava imune às penas vis, como o açoite, o exílio e a pena de morte, conforme dispunha o título CXXXVIII da sobredita Ordenação. A exceção a essa regra se dava no tocante aos crimes de Lesa-majestade, sodomia, testemunho falso, moeda falsa, furto, feitiçaria, e alguns poucos mais, a cujas condenações não escapavam nem mesmo os aristocratas acima citados.
Ciganos, Armênios, Árabes e Persas eram discriminados, não podendo sequer entrar no Reino e nas colônias de Portugal, incorrendo na penalidade de serem açoitados com baraço e pregão, como preceituava o título LXIX, do livro V, das Ordenações Filipinas.
No dito diploma, já havia a figura da delação premiada, conforme se revela no título CXVI, perdoando-se aquele que, sendo participante ou não dos crimes elencados no referido título, entregasse à prisão os demais “malfeitores”.
Dada a sua austeridade, não é de se estranhar a inexistência de dispositivos, em seu bojo, que tratavam da prescrição da pretensão punitiva ou executória do Estado. Eram, portanto, imprescritíveis as condutas delitivas praticadas à época.
A existência de indícios como meio de prova encontrava-se presente em alguns casos específicos, ora ganhando maior relevância, ora menor, a critério do julgador. A ação penal era compulsória, sendo exercida pelos Procuradores da coroa que, tempos após, tornaram-se promotores de justiça.
A despeito da densidão normativa contida no livro V das Ordenações Filipinas, aduz-se que não tiveram tamanha eficácia no Brasil em decorrência do sistema feudal estabelecido através das capitanias, cujos capitães donatários se revelavam verdadeiros senhores feudais que ditavam as regras válidas em seu território.
Nesse sentido vaticina Cezar Roberto Bitencourt: “Pode-se afirmar, sem exagero, que se instalou tardiamente um regime jurídico despótico, sustentado em um neofeudalismo luso-brasileiro, com pequenos senhores, independentes entre si, e que, distantes do poder da Coroa, possuíam um ilimitado poder de julgar e administrar os seus interesses. De certa forma, essa fase colonial brasileira reviveu os períodos mais obscuros, violentos e cruéis da História da Humanidade, vividos em outros continentes” (BITTENCOURT, 2008, p. 45-46).
Foi, então, um tempo de obscuridão, assemelhado à idade das trevas medievais, o período das Ordenações do Reino, dada a sua crueldade e a arbitrariedade acima elucidadas, que resultaram em sérios prejuízos aos próprios súditos do Reino.
2.2. O Regime Imperial E O Código Criminal De 1830
Em 1830, atendendo aos clamores de uma nação recém-formada, carecedora de demonstrar sua soberania e independência às outras nações, o Código Criminal do Império foi promulgado, podendo ser considerado um dos melhores códigos que o Brasil já teve, representando um enorme avanço à época. Não obstante o regime monárquico existente, o novel diploma, fortemente influenciado pela Escola Clássica, teve um aspecto mais humanitário do que regime até então vigente. Pode-se notar evidente influência do Iluminismo em toda a sua estrutura, encontrando-se nele presentes alguns aspectos das ideias de Bentham, Beccaria, etc. Ademais, a própria Constituição de 1824, a despeito de ter sido outorgada após a dissolução da assembleia constituinte, indicava os reflexos Iluministas espraiados naquele tempo, prevendo direitos e garantias aos brasileiros, até então inexistentes. Foi então o resultado do trabalho de Bernardo Pereira de Vasconcelos e de José Clemente Pereira.
Dentre as suas virtudes, Roberto Lyra destacou-as presentes: “1) No esboço de indeterminação relativa e de individualização da pena, contemplando já os motivos do crime, só meio século depois tentado na Holanda e, depois, na Itália e na Noruega; 2) Na fórmula da cumplicidade (codelinquência como agravante) com traços do que viria a ser a teoria positiva a respeito; 3) Na previsão da circunstância atenuante da menoridade, desconhecida, até então, das legislações francesas e napolitana, e adotada muito tempo após; 4) No arbítrio judicial, no julgamento de menores de 14 anos; 5) Na responsabilidade sucessiva, nos crimes por meio de imprensa, antes da lei belga e, portanto, é esse sistema brasileiro e não belga, como é conhecido; 6) A indenização do dano ex delicto como instituto de direito público, também antevisão positivista; 7) Na imprescritibilidade da condenação” (LYRA apud ESTEFAM, 2010, p.69).
Além destes predicativos, podem-se acrescer a clareza e a concisão nele contidas, como também a criação do sistema do dia-multa, erroneamente atribuído como de autoria dos nórdicos.
Dentre os defeitos, o mais marcante, porém escusável, dada a influência da Igreja nos assuntos do governo, era a conjunção Igreja-Estado, resultando em criminalização de diversas condutas que ofendiam à religião do Estado. A culpa, outrossim, não recebera definição clara como ocorrera com o dolo (arts. 2º e 3º),
Era composto de quatro partes: I) Dos Crimes e das Penas; II) Dos Crimes Públicos; III) Dos Crimes Particulares; IV) Dos Crimes Policiais. Assim, a primeira parte destinava-se a uma espécie de Parte Geral do Código, enquanto a segunda e a terceira parte representavam a Parte Especial, correspondendo a última parte às definições dispensadas às contravenções penais.
A obediência à autoridade foi a finalidade precípua do Código Criminal do Império, o que foi alcançado, pode-se dizer, através de uma legislação mais humanitária e justa.
2.3. O Regime Republicano e o seu Inaugural Código Penal de 1890
O Código Penal de 1890, representativo do novo regime recém-estabelecido, fora arduamente criticado. A urgência que precedeu à sua elaboração, dada a abolição da escravatura, vindo ser promulgado antes mesmo da própria Constituição que estruturaria o Regime Republicano, provocou um desastre legislativo com a promulgação do novo Código, abandonando-se toda a clareza, concisão contida no Código anterior.
Ratifica esse pensamento, Cezar Roberto Bitencourt: “Como tudo que se faz apressadamente, este, espera-se, tenha sido o pior Código Penal de nossa história; ignorou completamente ‘os notáveis avanços doutrinários que então se faziam sentir, em consequência do movimento positivista, bem como o exemplo de códigos estrangeiros mais recentes, especialmente o Código Zanardelli. O Código Penal de 1890 apresentava graves defeitos de técnica, aparecendo atrasado em relação à ciência de seu tempo’. As críticas não se fizeram esperar e vieram acompanhadas de novos estudos objetivando sua substituição” (BITTENCOURT, 2008, p. 47).
Destarte, ante as incongruências que o novo código apresentava, inúmeras foram as alterações que sofreu, ganhando relevo a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe de 1932 que teve por escopo a compilação do texto do Código de 1890 com todas as suas alterações posteriores, bem como as tentativas de se criar um novo código, através dos projetos de João Vieira de Araújo, em 1893; Galdino Siqueira, em 1913; Virgílio Sá Pereira, em 1928. Entretanto, a conjuntura vivida no momento não permitiu o êxito dessa empreitada. A Revolução de 1930 que levou Vargas ao poder, a instituição do Estado Novo em 1937, colaboraram para a procrastinação da reforma penal tão esperada.
2.4. O Código Penal de 1940 e a Reforma de 1984
Foi então que, sob a égide da Constituição de 1937, Francisco Campos, Ministro da Justiça, incumbiu Alcântara Machado, penalista de renome na época, de elaborar um projeto de lei que viria a ser, após sua segunda redação em 1940, o Código Penal que temos até hoje, com as devidas modificações. Considerado “eclético” pela doutrina, pois conciliava a vertente neoclássica com a positivista, o Código de 1940 demonstrava sua finalidade retributiva, sem olvidar sua função preventiva. A aplicação de medidas de segurança aos casos de crime impossível (art. 14 e 76, parágrafo único do Código Penal de 1940) e o sistema do duplo binário (art. 78, IV e V do referido código) bem revelam esse seu aspecto preventivo.
Posteriormente, no governo de Jânio Quadros, em que se planejavam diversas reformas legislativas, fora criada uma comissão para revisar o Código Penal de 1940, capitaneada por Nelson Hungria. No entanto, com a renúncia de Jânio foi-se também o projeto do novo Código Penal, que só veio a ressurgir no regime militar, vindo a ser, inclusive, promulgado em 1969, para viger em 1970, não entrando, porém, em vigor, porquanto antes mesmo de completar a vacatio legis, sucessivamente prorrogada, fora revogado. A ideia de um código penal concebido durante a o período da ditadura militar não era vista com bons olhos pela grande maioria. O código penal entraria em vigor juntamente com o código penal militar, este, no entanto, permanece até hoje.
Apesar dos impasses, foi durante o período militar que uma das mais significativas mudanças na legislação foi realizada, reformando-se inteiramente a parte geral do nosso código. Contribuíram para esse feito os dois partidos políticos existentes à época: Arena e MDB. Notadamente, o finalismo de Welzel influenciou a reforma, conferindo às penas criminais o papel de ressocialização, através do sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, por exemplo.
Mas, sabe-se, a reforma da parte geral não fora suficiente para dar cabo aos anseios da sociedade, culminando com a crescente produção legislativa, cuja finalidade era dar respostas imediatistas aos acontecimentos relevantes que estavam sob os holofotes da mídia. Assim foi com a lei de crimes hediondos e com tantas outras legislações, cujo papel simbólico, representativo de uma ideologia, tem maior significância do que o próprio bem jurídico penalmente relevante em si mesmo.
3. PANORAMA ATUAL DO DIREITO PENAL E O PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL
Conforme dito alhures, após a promulgação da Constituição de 1988, percebeu-se um considerável aumento da legislação penal extravagante, dificultando-se sobremaneira o trabalho daqueles profissionais que atuam nessa área. São mais de 118 leis esparsas que disciplinam 1.600 tipos penais distintos.
Fruto de uma mentalidade que não compreende a realidade como deve ser encarada – através da busca pela efetividade das leis já existentes e da eficiência das políticas públicas de segurança pública, correção das desigualdades, valorização da educação e combate à pobreza -, a atividade legislativa tem se determinado a “apagar incêndios”, criando legislações de emergência, logo após a explosão de casos emblemáticos como constantemente se presencia. Tal atitude só corrobora para a sensação de que as leis são ineficazes, não se prestando a corrigir as situações que se apresentam costumeiramente às portas do judiciário. É o que tem se denominado pela doutrina de direito penal emergencial, que deve ser rechaçado de todo sistema jurídico que se pretenda razoável, visto que a construção deste exige madura ponderação, o que evidentemente não se encontra presente quando o calor dos fatos ainda influencia a opinião política – tão volátil – dos legisladores pátrios.
Igualmente danoso é uso da tutela penal como arma do Estado na luta pela promoção do bem-estar social, quando este decide punir condutas que contrariam o intento estatal de promover o bem comum. É o caso, verbi gratia, da contravenção penal que penaliza a mendicância e a vadiagem, notadamente criada para “limpar” das ruas a figura dos miseráveis, mendigos, etc.. A isso a doutrina tem designado de direito penal promocional, em que se utiliza o direito penal para promover um falso bem-estar social, apenas aparente, que não resolve na totalidade uma questão social que não cabe ao direito penal, enquanto ultima ratio, tutelar.
Além disso, notável é que, dada a dinamicidade de nossa sociedade, alguns tipos penais não comportam mais o tratamento que lhes eram destinados quando da publicação do Código Penal, em 1940, citem-se as contravenções penais, cujo valor já se esvaiu há muito.
Nesse sentido, cabe ao legislador uma adequada seleção dos bens jurídicos que pretende proteger através do Novo Código Penal. Para essa tarefa, a Constituição deve ser a bússola indicadora das condutas que devam ser, ou não, punidas.
A esse respeito elucidou Rogério Greco: “sendo a finalidade do Direito Penal a proteção dos bens essenciais ao convívio em sociedade, deverá o legislador fazer a sua seleção. Embora esse critério de escolha de bens fundamentais não seja completamente seguro, pois que nele há forte conotação subjetiva, natural da pessoa humana encarregada de levar a efeito tal seleção, podemos afirmar que a primeira fonte de pesquisa encontra-se na Constituição (grifo nosso) (GRECO, 2009, p. 6)”.
Ademais, com as alterações posteriores, vieram também as incongruências que uma colcha de retalhos legislativa pode produzir. Em diversos pontos pairam dúvidas acerca da teoria adotada pelo nosso atual código penal. Bem elucida esse fato a discussão acerca da teoria do crime adotada por este diploma, alguns autores defendendo a teoria bipartida do crime, definindo este como fato típico e antijurídico, assumindo a culpabilidade o papel de mero pressuposto de aplicação de pena, outros, ao seu tempo, defendem que o pátrio código penal adotou a teoria tripartida do crime, acrescendo a culpabilidade às componentes do conceito analítico de crime. Além dessa dissonância, outras podem ser apontadas, mas que não cabem neste trabalho cuja pretensão é apenas traçar um aspecto histórico em contraste com o panorama da atual situação do direito penal positivo brasileiro.
Destarte, urge a elaboração de um novo Código, mais lógico, conciso e sistematicamente organizado.
Por esse motivo, o Projeto de Lei do Senado n.º 236 de 2012, fruto do trabalho, iniciado pelo Senador Pedro Taques, de uma comissão integrada por dezesseis juristas, capitaneada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, deve ser analisado, emendado e votado com extrema cautela, sob pena de se incorrer nos mesmos vícios que se pretende rechaçar. Deve-se evitar a criação de um código penal de urgência, como ocorrera com o de 1890, sopesando-se as ideologias em conflito de maneira que convivam democraticamente, sem perder a lógica e a coerência do sistema.
Do início de sua tramitação (Julho/2012) até a data de fechamento deste artigo (Março/2013), foram realizadas mais de 500 emendas ao projeto elaborado, em apenas sete meses, pela comissão de juristas designada para esse propósito. É o suficiente para se ter noção da polêmica que a discussão do Novo Código está produzindo. Ora, discutir e repensar problemáticas como aborto, combate às drogas, jogos de azar, proporcionalidade das penas, proteção da sociedade, a fim de se condensar em um único diploma normativo – que dificilmente será unanimemente aceito pela sociedade – as respostas que a sociedade, aflita pela escalada da criminalidade, procura é de fato uma das tarefas mais árduas que o Legislativo se propõe a solucionar na atualidade.
O direito penal, talvez por pretender resguardar bens tão necessários para a humanidade como a paz e a liberdade, sempre foi – e sempre será – discutido com muita paixão. Sendo assim, é inevitável que discursos inflamados de teorias diametralmente opostas enfrentem-se no palanque da democracia – e que vença, espera-se, o melhor. O que não pode ser admitido, indubitavelmente, é que tal discussão seja remetida a um plano recheado de política demagógica desprovido da técnica jurídica tão essencial para o resguardo dos bens acima elencados. A técnica, a coerência, a proporcionalidade do sistema não podem ser abandonadas, sob pena de se derrubar, inesperadamente, aquilo que foi construído por décadas de estudos e trabalhos.
Que nesse debate, tão necessário, vença a sociedade, e não esta ou aquela corrente jurídico-filosófica. Com efeito, o olhar retrospectivo, crítico do direito penal das épocas anteriores, que visa cessar as bestialidades cometidas no passado, deve projetar para o futuro não o mero direito penal pretendido, mas a proteção, a segurança e a dignidade humana como valores insofismáveis de um Estado Democrático de Direito Pós-positivista.
Advogado, bacharel em Direito Pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus
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