Na sessão do último dia 12 de dezembro de 2013, o Supremo Tribunal Federal voltou a discutir um assunto tormentoso: quem tem competência para processar e julgar uma ação civil pública por improbidade administrativa quando o agente da infração político-administrativa exerce uma função que lhe dá prerrogativa na área criminal.
Em outras palavras, pergunta-se: a prerrogativa de função, própria e ínsita às causas criminais, também importaria na mesma prerrogativa em causas cíveis, especialmente aquelas relativas a ações cíveis públicas por atos de improbidade administrativa praticados por Prefeitos, Parlamentares estaduais e federais, Secretários de Estado, Governadores, Presidente da República, etc.
Esta questão, ainda sem uma solução definitiva pela Suprema Corte, já foi por ela enfrentada, prevalecendo até então a tese de que, efetivamente, a ele (STF) não cabe esta tarefa, nem a nenhum outro tribunal (originariamente), ou seja, a ação civil deve tramitar em primeiro grau, ainda que o réu exerça uma daquelas funções que lhe imponha constitucionalmente ser julgado criminalmente por um tribunal.
Com efeito, no julgamento da Reclamação nº. 15831, o Ministro Marco Aurélio manteve o andamento de uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa em que um Senador estava sendo acusado de utilizar a segurança pública de um Estado da Federação para atender a interesses particulares. O Ministro Marco Aurélio negou o pedido de liminar ao explicar que os limites da atuação do Supremo Tribunal Federal estão definidos na Constituição Federal. Com relação a Senadores e Deputados Federais, a Constituição fixa a prerrogativa de foro no caso de processos por infração penal comum: “Descabe potencializar a matéria de fundo quanto à possibilidade de agente político ser submetido aos rigores da Lei 8.429/92 e, a partir daí, suscitar a competência do Supremo para a ação civil pública”.
Em outro julgamento, a Ministra Cármen Lúcia também indeferiu liminar requerida por um Deputado Federal, agora na Reclamação nº. 15825, na qual contesta a tramitação, no Juízo de piso, da ação civil por ato de improbidade administrativa. Em análise preliminar, a Ministra afirmou que no caso “não se demostra haver a usurpação alegada”, pois, de acordo com ela, a ação de improbidade administrativa, em razão de sua natureza não penal, não se inclui na competência da Suprema Corte, mesmo quando ajuizada contra autoridade que tenha foro específico neste órgão, aí incluído o parlamentar federal. O artigo 102, inciso I, da Constituição Federal enumera as causas que cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente. Já o inciso II do mesmo artigo especifica os processos que a Corte Constitucional deve julgar, em grau de recurso ordinário. Em sua decisão, a Ministra Cármen Lúcia cita precedente (ADI 2797) do Plenário no qual os Ministros declararam a inconstitucionalidade da Lei nº. 10.628/2002, que equiparava a ação por improbidade administrativa, de natureza cível, à ação penal, e estendia aos casos daquela espécie de ação o foro por prerrogativa de função. Esta lei alterava o artigo 84 do Código de Processo Penal. A Ministra indeferiu a liminar, “sem prejuízo da reapreciação da matéria no julgamento do mérito”.
No mesmo sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski devolveu à vara de origem os autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público daquele estado contra seis servidores públicos, por improbidade administrativa. O Juiz de primeiro grau se julgou incompetente para julgar o feito, porque à época em que foi iniciado, um dos réus, um ex-senador (também ex-ministro dos Transportes e ex-prefeito de Manaus) tinha foro por prerrogativa da função, ou seja, o direito de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, por ser parlamentar. A decisão foi tomada na apreciação da Petição nº. 4497. Ao devolver o processo ao juízo de origem, o Ministro Ricardo Lewandowski lembrou que “entendimento recente do Supremo Tribunal Federal consigna a competência do Juízo de 1º grau para processar e julgar os casos de improbidade administrativa, eis que se trata de questão diversa do crime de responsabilidade, disciplinado pelo Decreto-lei 201/67”. Nesse sentido, o Ministro citou o julgamento, pelo Plenário, da PET 3923, relatada pelo Ministro Joaquim Barbosa. Naquele julgamento, a Corte entendeu que as condutas descritas na lei de improbidade administrativa, quando imputadas a autoridades detentoras de prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de responsabilidade.
Outra ação civil pública por improbidade administrativa, esta contra um Ministro dos Transportes, foi devolvida para a primeira instância, também por decisão do Ministro Ricardo Lewandowski. O processo, autuado na Corte como Petição nº 4498, foi encaminhado ao Supremo pelo juiz da vara, que levou em consideração a existência de prerrogativa de foro, uma vez que o Ministro era Senador licenciado pelo Estado do Amazonas. De acordo com o relator, o Supremo é realmente a instância competente para processar e julgar certos agentes políticos – como os integrantes do Congresso Nacional, nos crimes comuns, e ministros de Estado. Mas, segundo o Ministro, a Corte tem mantido o entendimento de que a Constituição não inclui na lista das competências do Supremo o processamento de ações por improbidade administrativa, mesmo havendo prerrogativa de foro, uma vez que estas não são de natureza criminal.
Também no julgamento da Petição nº. 4553 o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello determinou o arquivamento da ação lembrando que não cabe à Corte processar e julgar, originariamente, ação de reparação civil proposta contra o Presidente da República, uma vez que a prerrogativa de foro para o cargo só abrange infrações penais. Em outra sessão, o Ministro Menezes Direito determinou a devolução ao Juízo de primeiro grau os autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra um Deputado Federal; a decisão foi tomada pelo na Petição nº. 4520. Ao decidir, o Ministro Menezes Direito reportou-se a parecer do Procurador-Geral da República pela devolução dos autos à vara de origem. Ele alegou que se trata de ação civil pública por ato de improbidade administrativa e que afetar o caso ao Supremo seria ampliar a competência da Suprema Corte por uma lei ordinária (o que não é possível, tendo em vista que a competência é estabelecida na Constituição Federal). Nesse sentido, ele se reportou ao julgamento da ADI 2797 e da Reclamação 5126.
Agora a questão voltou a ser discutida pela Suprema Corte no julgamento de um agravo regimental na Petição nº. 3067, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, que foi suspenso neste dia 12 de dezembro por um pedido de vista do Ministro Teori Zavascki. No processo, o réu pede que ação civil pública por improbidade contra ele e outros acusados tramite no Supremo Tribunal Federal em razão do envolvimento de parlamentares federais. O Ministro Barroso manteve o entendimento do relator original do processo, Ministro Ayres Britto (aposentado), e negou provimento ao agravo por considerar que, no julgamento de ação civil pública por improbidade, não existe foro por prerrogativa de função. A ação civil pública por improbidade tramita atualmente na Justiça estadual em Minas Gerais.
Reputamos absolutamente pertinentes as decisões supratranscritas e, oxalá, sejam confirmadas quando do julgamento do mérito dos respectivos processos.
Como se sabe, um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está estabelecido nos seus arts. 69, VII, 84, 85, 86 e 87. Evidentemente que estas disposições contidas no código processual têm que ser cotejadas com as normas constitucionais (seja pela Constituição Federal, seja pelas Constituições dos Estados) e pela jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal.
Desde logo, observa-se que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa, mas em virtude do cargo ou da função[1] que ela exerce, razão pela qual não fere qualquer princípio constitucional, como o da igualdade (art. 5º., caput) ou o que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (art. 5º., XXXVII). Aqui, ninguém é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função que exerce na sociedade. Como diz Tourinho Filho, enquanto “o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento… Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição social do agente.”[2] Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece expressamente que “la persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad.” (art. 56-3).
Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicam que “cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que desempene, pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental precaución para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas pasiones.”[3]
Neste sentido, é pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus nº. 91437 o Supremo Tribunal Federal lembrou a lição do Ministro Victor Nunes Leal de que “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é realmente instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do acusado seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois uma garantia bilateral – garantia contra e a favor do acusado”. Também no julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito nº. 2.010-SP, o Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa beneficiar o cidadão, mas proteger o cargo ocupado.”
Também o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de afirmar que “o foro especial por prerrogativa funcional não é privilégio pessoal do seu detentor, mas garantia necessária ao pleno exercício de funções públicas, típicas do Estado Democrático de Direito: é técnica de proteção da pessoa que o detém, em face de dispositivo da Carta Magna, significando que o titular se submete a investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente designado, não se confundindo, de forma alguma, com a idéia de impunidade do agente.” (STJ – HC 99.773/RJ – 5ª. Turma – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho).
Portanto, é natural que exista este critério determinador da competência, pois a pessoa que exerce determinado cargo ou função, evidentemente, deve ser preservada ao responder a um processo criminal, evitando-se, inclusive, ilegítimas injunções políticas que poderiam gerar injustiças e perseguições nos respectivos julgamentos (ao menos em tese, óbvio).
É razoável que um Juiz de Direito, um Deputado Estadual ou um Promotor de Justiça seja julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado, e não por um Magistrado de primeira instância, em razão da “necessidade de resguardar a dignidade e a importância para o Estado de determinados cargos públicos”, na lição de Maria Lúcia Karam. Para ela, não há “propriamente uma prerrogativa, operando o exercício da função decorrente do cargo ocupado pela parte como o fator determinante da atribuição da competência aos órgãos jurisdicionais superiores, não em consideração à pessoa, mas ao cargo ocupado.”[4]
Os arts. 86 e 87 do Código de Processo Penal estabelecem as pessoas que, em razão do cargo, devem ser julgadas por órgãos superiores da Justiça, disposições estas que precisam ser relidas à luz da Constituição Federal e das constituições estaduais.
O problema é que no Brasil o número de julgamentos proferidos pelos nossos Tribunais Superiores é muito pouco, o que gera uma sensação de impunidade (perfeitamente justificável) quando se trata de crimes cujos acusados são ocupantes de cargos do alto escalão da República.
Ocorre que ao apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso, foi promulgada a Lei nº. 10.628/02 (publicada no Diário Oficial da União do dia 26 de dezembro do ano de 2002), restaurando em parte a Súmula nº. 394, a partir de uma modificação estabelecida no art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentando-lhe dois parágrafos, a saber:
“§ 1º. – A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.”
“§ 2º. – A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.”
Se o primeiro dos parágrafos já era um despautério, pois quase uma repristinação do famigerado Enunciado 394 da súmula do Supremo Tribunal Federal (que já havia sido cancelado há alguns anos), o segundo deles (que interessa ao presente trabalho) não fica atrás. Esta lei representou um lamentável retrocesso em nossa ordem jurídica, que havia recebido com entusiasmo o cancelamento do referido Enunciado.
Ademais, ampliando a competência dos Tribunais Superiores, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois “a competência expressa determinada pela Constituição Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim o pretendia”[5], salvo se o respectivo Tribunal, interpretando ampliativamente a competência estabelecida constitucionalmente, ele próprio o admitir, como ocorreu, verbi gratia, quando da edição da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal.
De toda maneira, ainda que tarde, na sessão plenária realizada no dia 15 de setembro do ano de 2005, por maioria de votos (pasmen!), o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos §§ 1º. e 2º. do art. 84 do Código de Processo Penal. O relator, Ministro Sepúlveda Pertence, julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2797 e 2860) proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e pela Associação Nacional dos Magistrados. Acompanharam esse voto os Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Celso de Mello.Os Ministros Eros Grau, Gilmar Mendes e Ellen Gracie divergiram do relator. Depois desta histórica decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que decidiu preservar a validade de todos os atos processuais que eventualmente tenham sido praticados em processos de improbidade administrativa e ações penais contra ex-detentores de cargos públicos e de mandatos eletivos, julgados anteriormente, ao abrigo dos parágrafos 1º. e 2º. do artigo 84 do Código de Processo Penal, isto é, no período de vigência da Lei 10.628, que foi de 24 de dezembro de 2002 até 15 de setembro de 2005. A decisão foi tomada no julgamento de recurso de embargos de declaração opostos pelo Procurador-Geral da República em relação à decisão de setembro de 2005, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2797. O Ministério Público pediu a modulação dos efeitos da decisão a partir da declaração de inconstitucionalidade da lei, preocupado com a segurança jurídica, pois questionava como ficariam os processos julgados na vigência da lei declarada inconstitucional.
Como se disse, a lei em questão também acrescentou um segundo parágrafo ao art. 84 do Código de Processo Penal, para estabelecer que a ação de improbidade administrativa (Lei nº. 8.429/92) será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário.
Inicialmente, atente-se para a impropriedade da disposição encontrar-se em um código processual penal, quando se sabe que os atos de improbidade administrativa não são ilícitos penais, mas infrações de outra natureza (civil, administrativa e política). Logo, a previsão deveria estar contida em outro diploma, jamais no Código de Processo Penal, livro reservado à disciplina da persecutio criminis e de seus consectários.
Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que “a natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está a indicar que a improbidade administrativa, embora possa ter conseqüência na esfera criminal, com a concomitante instauração de processo criminal (se for o caso) e na esfera administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política, porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento dos danos causados ao erário.”[6] Aliás, o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é expresso no sentido de que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifo nosso). Observa-se que o próprio texto constitucional nitidamente faz a distinção.
Observa-se que o conceito de infração penal (crime e contravenção) é dado pela Lei de Introdução ao Código Penal que define crime como sendo “a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” (art. 1o. do Decreto-Lei n. 3.914/41).
Estas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal, evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico–penal brasileiro, ou seja, do ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer saber o que seja crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal. O mestre Hungria já se perguntava e ele próprio respondia: “Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei das Contravenções Penais? O critério prático adotado pelo legislador brasileiro é o da distinctio delictorum ex poena (segundo o sistema dos direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa não é jamais cominada isoladamente ao crime.”[7]
Por sua vez, Tourinho Filho afirma: “Não cremos, data venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento, de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema jurídico brasileiro e que tem sido preferido pelas mais avançadas legislações; (…) Veja-se, no particular, Marcelo Jardim Linhares, Contravenções penais, Saraiva, 1980, v. 3, p. 781: ´Assim, quando a infração eleitoral é apenada com multa, estamos em face de uma contravenção´.”[8] Manoel Carlos da Costa Leite afirma que “no Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de infração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de multa ou ambas cumulativamente: contravenção.”[9]
Eis outro ensinamento doutrinário: “Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção das infrações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No Direito pátrio o método diferenciador das duas categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo dizer, não se questiona a essência da infração ou a quantidade da sanção cominada, mas sim a espécie de punição.”[10] Luiz Flávio Gomes afirma: “Por força do art. 1o. da Lei de Introdução ao Código Penal, infração punida tão-somente com multa é contravenção penal (não delito).”[11]
Veem-se, às escâncaras, que aqueles tipos elencados na Lei de Improbidade Administrativa, decididamente, não são infrações penais, mas infrações político-administrativas. Logo, sequer sistematicamente seria cabível delas tratar em sede processual penal. Mas, não só por este equívoco legislativo-formal pecava a nova lei. Com efeito, e ainda segundo a lição de Luiz Flávio Gomes, “a competência por prerrogativa de função versa exclusivamente sobre atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”[12]
A respeito o Superior Tribunal de Justiça já deixava assentado que “conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho (art. 105, I, a), não lhe compete, porém, explicitamente, processá-los e julgá-los por atos de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer, admite-se tal competência, porquanto, aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau.”[13]
Naquela referida Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pela CONAMP, ficou também consignado na petição inicial que “o rol de competência dos tribunais é de direito estrito e tem fundamento constitucional trata-se de entendimento reiteradamente proclamado por essa excelsa Corte, como se extrai, a título exemplificativo, da ementa do v. acórdão relativo à Petição 693 AgR/SP, Relator o eminente Ministro Ilmar Galvão, assim redigida: A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os feitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade. Agravo regimental improvido.’ Inúmeros são, também, os julgados desse colendo Supremo Tribunal Federal, relativamente à falta de sua competência originária para processo e julgamento de ação popular contra o Presidente da República, por se tratar de matéria não contemplada no exaustivo rol de competência fixado em sede constitucional.”
Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
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