Resumo: O artigo objetiva mostrar a possibilidade de aplicação da Ação Penal Pública Incondicionada nos casos de violência doméstica de casais homoafetivos e às travestis. Deste modo, utiliza-se da interpretação do Código de Processo Penal, da lei 11.3406 e da resolução de número 175 do Conselho Nacional de Justiça como cenário jurídico. [1]
Palavras-Chave: Ação Penal. Maria da Penha. Homoafetivos.
Abstract: The article objectives to show the possibility of application of the Unconditionated Prosecutable in the cases of domestic violence of homoaffective couples and travesties. This way, it uses the interpretation of the Criminal Procedure Code, law 11.3406, and the resolution 175 by the Justice National Council as a legal background.
Keywords: Prosecution. Maria da Penha. Homoaffective.
Sumário: Introdução. 1. A Lei Maria da Penha. 2. A Ação Penal Pública Condicionada e Incondicionada. 3. Lei Maria da Penha: Analogia aos Casais Homoafetivos e às Travestis e Transexuais. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
A questão da violência doméstica vem sendo abordada não somente nas questões nacionais brasileiras, mas também em âmbito internacional, um exemplo é a ratificação da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas e Discriminação contra a Mulher e da Convenção de Belém do Pará – sediada em território brasileiro – pelo executivo. A violência praticada dentro de casa, entre os casais – dentro das relações familiares –, tem estado em voga na última década, concomitantemente com a evolução contemporânea das ideias de feminismo e igualdade de gênero.
No ano de 2006, a Lei Maria da Penha entrou em vigência no território brasileiro em virtude de uma jogada política, decorrente das sanções estabelecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – em defesa do Estado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanas –, a qual fora acionada (caso 12.051) para que o país tomasse alguma medida em razão da consequente violência praticada contra Maria da Penha – cidadã brasileira –, pelo seu então cônjuge. A lei veio, destarte, como um modo quebra das relações patriarcais e primitivas, a qual tratam – ainda hoje – a figura feminina como um modo de dominação e hierarquia genotípica.
A Ação Penal condizente a tal reclame, por parte da vítima perante o Estado, era, até o ano de 2012, a Ação Penal Pública Condicionada (vide art. 24, CPP), aquela que necessita de representação para que haja legitimidade do Ministério Público para a quebra da inércia processual e consequente devido processo legal. Sendo assim, a vítima necessitava demonstrar o interesse no auxílio do poder judiciário para a feitura da justiça baseada nos dipositivos legais competentes.
Entretanto, em 2012 – 6 anos após a vigência da Lei Maria da Penha –, a Procuradoria Geral da República (órgão superior do Ministério Público, que apresenta competência suprema de defender os direitos e interesses do povo que compõe a nação brasileira) entrou com a Ação Direita de Inconstitucionalidade 4424, na qual defendia que os inúmeros casos de retratação (mecanismo processual disposto no artigo 35 do CPP que legitima o arrependimento à entrada da ação penal) eram consequência do medo e da submissão presenciadas pelas mulheres decorrentes de seu papel social de inferioridade ao homem.
Discute-se, assim, a possibilidade de extensão de aplicabilidade da lei 11.340, e de sua devida ação penal, aos casais homoafetivos e às travestis – realidade brasileira ignorada pelo poder legislativo no que tange a escrita do ordenamento jurídico.
Logo, as legítimas fontes do direito, como a analogia, devem ser utilizadas para que haja a igualdade de aplicação dos dispositivos jurídicos aqui abordados, sendo necessário – assim – a defesa das teses, muito bem ornamentadas por um método socioevolutivo de hermenêutica, perante o judiciário, ainda conservador e com decisões estritamente positivas, e nada teórico-críticas.
1 A Lei Maria da Penha
No dia 7 de Agosto do ano de 2006, a República Federativa do Brasil sanciona a Lei Maria da Penha – nominada através do nome de uma vítima de violência doméstica – a qual
“cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”[2]
A Lei é decorrente do caso 12.051 da Organização dos Estados Americanos, órgão composto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o qual tinha como protagonista e cidadã Maria da Penha Maia Fernandes apoiada por organizações não governamentais que haviam acionado a Comissão Interamericana de Direitos humanos (órgão competente a acionar, posteriormente, a Corte e atuar como Ministério Público no processo internacional).
Após o julgamento de tal caso, o Brasil foi sancionado politicamente a facilitar e adotar mecanismos para a punição dos agentes praticantes de violência doméstica em território brasileiro, uma vez que os mecanismos adotados previamente – tal como a Convenção de Belém do Pará, de 1994 – pareciam não ter eficácia em jurisdição local. Deste modo, cria-se a lei 11.340.
Considerado um dos maiores marcos feministas, tal lei, em seu Capítulo II, descreve as formas de violência familiar contra a mulher, considerando, assim, não somente os atos de agressão física, mas também ameaças, violência patrimonial e psicológica. Além disso, positiva os crimes de injúria, calúnia e difamação como violência moral praticada contra a cônjuge.
Outrossim, o mecanismo legal dispõe de artigos discorrendo sobre a assistência que deve ser dada a vítima, bem como sobre as medidas protetivas – de caráter de urgência – para a salvaguarda dos direitos da mulher.
Segundo o Ministro Fux[3],
“A Lei Maria da Penha reflete, na realidade brasileira, um panorama moderno de igualdade material, sob a ótica neoconstitucionalista que inspirou a Carta de Outubro de 1988 teórica, ideológica e metodologicamente. A desigualdade que o diploma legal visa a combater
foi muito bem demonstrada na exposição de motivos elaborada pela Secretaria de Proteção à Mulher. (…)
A adoção das ações afirmativas é o resultado de uma releitura do conceito de igualdade que se desenvolveu desde tempos remotos.”
Por fim, possível é notar a adoção de tal lei – primordialmente – como uma medida política em âmbito internacional, a qual visa pela proteção aos interesses econômicos brasileiros frente ao sistema regional de integração interamericana. Por conseguinte, conclui-se que a tomada do Brasil em supostamente enrijecer o sistema jurídico frente à proteção das violências de gênero parece ser uma preocupação com o reflexo de uma visão no sistema internacional regido pela Organização das Nações Unidas – a qual é uma organização que visa o pacifismo e o bem comum – e não, com a eficácia da lei perante a sociedade; nem mesmo uma preocupação com as vítimas.
2 A Ação Penal Pública Condicionada e Incondicionada
A ação penal é o modo o poder judiciário é requerido perante as relações sociais no que compete ao julgamento de um suposto delito. Sendo assim, é imprenscindível para a manutenção do terceiro poder “montesquieuano” e à efetivação e eficácia das leis e fontes nacionais de direito.
A Ação Penal condizente aos crimes e violência doméstica, como disposto anteriormente, era – até o julgamento da ADI 4424 – a Condicionada, a qual necessita de uma autorização da vítima para que se instaure o inquérito policial (documento competente à investigação de autoria do crime). A representação é “a manifestação da vontade do ofendido ou de seu representante legal no sentido de autorizar o Ministério Público a desencadear a persecução penal”[4]. Sendo assim, apresenta-se como caráter subjetivo, de necessária exteriorização, ao desencadeamento do processo legal e da ação do Ministério Público como parte autora.
Não obstante, por maioria absoluta dos votos, inclusive vencendo o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Cezar Peluso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade foi procedente. A Ação Penal para os crimes de violência doméstica passa, portanto, a ser a Ação Penal Incondicionada, a qual não necessita de qualquer autorização da vítima para que ocorra o estabelecimento da ação, tais como em crimes de homicídio, tortura e roubo.
A Ação Penal Incondicionada, por sua vez, é titulada pelo Ministério Público, uma vez que este é um órgão representante do Estado que detém a pretensão punitiva, sendo indivisível. Tal tipo de Ação Penal é submetido a princípios específicos:
a) Princípio da Obrigatoriedade: lei não dá facultatividade ao Ministério Público para que opte por iniciar a ação; caso haja elementos para que se instaure um inquérito policial, o Estado, representado pelo Ministério Público, deve agir.
b) Princípio da Oficialidade: Ministério Público apresenta competência, prevista legalmente, para acionar o judiciário.
c) Princípio da Indisponibilidade: ajuizada a ação, o Minsitério Público não pode dela desistir (vide art 42, CPP).
D0 Princípio da Indivisibilidade: Ministério Público deve processar todos os indivíduos que – supostamente[5] – praticaram o delito.
e) Princípio da Intranscedência: processo penal pode ir além do autor do crime[6].
O Ministro Fux afirma em seu voto da ADI 442412[7]
“Uma Constituição que assegura a dignidade humana (art. 1º, III) e que dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações (art. 226, § 8º), não se compadece com a realidade da sociedade brasileira, em que salta aos olhos a alarmante cultura de subjugação da mulher. A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, clara afronta ao princípio da proteção deficiente” (Untermassverbot).
Assim, os delitos de violência doméstica – tematizados pela lei 11.340 – passam a ser conduzidos através de uma Ação Pública Incondicionada, de autoria do Ministério Público e sem aval prévio e positivo da vítima.
3 Lei Maria da Penha: Analogia aos Casais Homoafetivos e às Travestis e Transexuais
Conforme escrito no legítimo texto legal da Lei Maria da Penha, o gênero defendido é o gênero feminino, sendo utilizada a palavra “mulher” para intitular a vítima do delito doméstico. Entretanto, questiona-se a abrangência de tais dispositivos, uma vez que considera-se as transexuais como indivíduos do gênero feminino; inclusive no sistema internacional anárquico, com a tomada de poder para a publicação dos Princípios de Yogyakarta, presididos pela ONU e celebrados em 2006 na Indonésia.
Desta forma, nota-se que a Analogia, fonte material de direito, deve ser utilizada nos casos de violência doméstica quando o sujeito passivo é figurado por além que foge dos então padrões heteronormativos que compõem o atual direito brasileiro.
De acordo com Norberto Bobbio, o ordenamento jurídico paresenta lacunas, as quais têm como solução a Analogia Hermenêutica. Sendo assim, “entende-se por “analogia” aquele procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulado a mesma disciplina de uma caso regulado de maneira semelhante”. [8]
Nota-se, portanto, que não somente os transgêneros deveriam ser salvaguardados pela Lei Maria da Penha, mas também os casais homoafetivos, uma vez que estes são parte da realidade social desde os primórdios da evolução humana, no entanto mais visíveis na realidade pós moderna. Ademais, conforme estabelecido pela Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça – consequência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – redigida em 2013: “É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.
Deste modo, cita-se o artigo 5º, inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Sendo assim, notório é a equiparação dos indivíduos, independente de sua orientação sexual e identidade de gênero, ao que se refere sobre direito adquirido estabelecidos pelas leis ordinárias, como a lei 11.340, os quais tem por objetivo salvaguardar a dignidade humana (vide art 1º, III, CF88), que é constituída através das 3 gerações jusnaturalistas de direitos humanos.
Portanto, considerando o ordenamento jurídico algo uno e indivisível, assim como o Estado, a hermenêutica jurídica também deve ser. Deve-se, então, considerar as diferentes matérias jurídicas no que diz respeito aos direitos adquiridos pelos cidadãos. Exemplifica-se, destarte, através da legalidade da união homoafetiva, a qual deve ser estendida ao entendimento do Judiciário no que tange a violência doméstica, uma vez que tal delito é consequente da constituição das relações familiares.
Considerações Finais
As questões de igualdade de gênero permeiam o cenário do sistema internacional e refletem uma sociedade mais aberta à sexualidade e à identidade individual de cada indivíduo. No entanto, os ordenamentos jurídicos consistem em textos legais redigidos através de uma lógica ainda conservadora, tradicional e positivista. Além do mais, um ordenamento jurídico é composto por leis feitas atrás de uma cronologia de evolução da sociedade em que se está inserido.
Sendo assim, o artigo aqui redigido apresenta o objetivo de oxigenar a visão da hermenêutica jurídica no que diz respeito aos casos de violência domestica. Dá, assim, uma maior abrangência na interpretação da Lei Maria da Penha, possibilitando, então, a abrangência de todas as formas de relações existentes na realidade.
No ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal julga uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, de número 4424, a qual mudou a competência acerca da ação penal condizente aos crimes cometidos em cenário. Passa, assim, para Ação Penal Incondicionada, não necessitando prévia representação da vítima.
Também no ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal votou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, dando procedência, que expandia o direito dos casais homoafetivos à celebração de união estável. Deste modo, acredita-se na extensão desta interpretação de maior garantia aos diretos dos cidadãos LGBT’s (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) ao âmbito de matéria penal de crimes de violência doméstica.
Portanto, de acordo com o que foi aqui exposto, necessário é o uso da analogia como fonte primordial de direito para que se faça com que os direitos aqui expostos tenham efetividade, aplicabilidade e eficácia. Destarte, alega-se a necessidade, também, oxigenação do Poder Judiciário para que ocorra uma maior salvaguarda dos direitos dignamente estabelecidos na Lei Maria da Penha, bem como da vida e integridade física – bens jurídicos indisponíveis ao ser humano.
Acadêmico de Direito pela Universidade Católica de Pelotas e de Relações Internacionais pela Universidade Federal de Pelotas
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