Resumo: O estudo a seguir pretendeu externar as razões de ser da ADI 4301, impetrada pelo Procurador-Geral da República, em face da Lei 12.015/09, que alterou o Título VI, do Código Penal e que, dentre outras coisas, modificou a ação penal correspondente ao crime de estupro com resultado morte ou lesão corporal grave. Tal alteração importou em sensível modificação na sistemática do Direito Penal brasileiro, ao submeter a persecução penal naqueles casos antes mencionados à exigência de representação por parte do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, o que colocaria em choque a tarefa de proteção de bens jurídicos do direito penal e a regra da retroatividade benéfica.
1. Introdução
Em 17 de setembro de 2009, o Procurador-Geral da República impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade, que recebeu o número 4301, visando a que o Supremo Tribunal Federal declarasse inconstitucional o art. 225, do Código Penal, com redação dada pela Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, a fim de “excluir do seu âmbito de incidência os crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, de modo a restaurar, em relação a tais modalidades delituosas, a regra geral da ação pública incondicionada[1]”. A preocupação do Procurador-Geral reside em que, de acordo com a confusa inovação trazida pela novel lei, a ação penal nos crimes de estupro de que resulte morte ou lesão grave, passou a ser condicionada a representação, o que, de acordo com a opinião externada na petição inicial, poderia gerar efeito retroativo, abrangendo fatos anteriores à lei, em benefício dos réus, violando – além da dignidade do ofendido pela ação delituosa – o princípio constitucional da proporcionalidade, em sua modalidade de vedação da proteção deficiente ao bem jurídico.
2. A ação penal nos crimes “sexuais”
Até o advento da Lei 12.015/09, o Código Penal brasileiro previa que, nos crimes contra a liberdade sexual a ação penal era, de regra, privada, conforme dispunha o art. 225, em sua redação original. Havia, no entanto, exceções a essa regra, já que o citado artigo dizia que a ação seria pública condicionada à representação do ofendido nos casos em que este não tivesse os recursos necessários para prover as despesas do processo sem prejuízo de seu próprio sustento e de sua família; e, também, que seria pública incondicionada se o crime fosse praticado com abuso de poder familiar ou da condição de padrasto, tutor ou curador. Também havia, na vigência da lei anterior, a previsão de que nos casos de crimes sexuais de que resultasse lesão grave ou morte, conforme disposto no art. 223, a ação penal seria pública incondicionada. Ainda, na forma da Súmula 608, do STF[2], quando houvesse violência real para a prática do crime de estupro, a ação penal também seria pública incondicionada. De forma que, seguindo a lógica de um direito penal protetor de bens jurídico, ficaria a cargo do Ministério Público, titular privativo do direito de ação pública[3], a promoção da ação.
A Lei 12.015, de agosto de 2009, dentre outras coisas, pretendeu dar tratamento mais severo aos crimes sexuais, especialmente aqueles praticados contra os chamados vulneráveis[4]. No entanto, quando regulou a ação penal para os crimes contra a dignidade sexual acabou criando uma gigantesca confusão que culminou com os pontos indicados na ADI citada. Com a reforma, a ação penal passou a ser, de regra, condicionada a representação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representa-lo, sendo, por outro lado, incondicionada apenas nos casos em que a vítima seja menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável.
3. A ação penal no estupro com resultado morte ou lesão corporal grave
Conforme mencionado anteriormente, na vigência da Lei anterior, quando, no crime de estupro, na forma do art. 223, do CP, resultasse lesão corporal grave[5] ou a morte da vítima, a ação penal era pública incondicionada, por força do já citado art. 225, do Código Penal. Isso era consentâneo com a opinião da doutrina e da jurisprudência no sentido de que, havendo a vulneração a bens jurídicos tão importantes, a ação não poderia ficar a cargo da escolha da vítima, como o seria ao observar-se a regra geral do art. 225. Dessa forma, resultando a morte ou lesões graves na vítima, a persecução penal teria início por atuação direta ministerial, sem necessidade de autorização por parte de quem quer que seja.
No entanto, a partir da edição da Lei 12.015/09, a redação do art. 225, ficou nos seguintes termos:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
Uma breve olhada e percebe-se que o crime de estupro com resultado morte ou lesão grave, conforme disposto no art. 213, §§1º e 2º, está colocado no capítulo I, do Título VI, da Parte Especial. Veja-se:
“CAPÍTULO I
DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.” (NR)
Assim, de acordo com o novo art. 225, mesmo tendo havido resultado morte ou lesão grave, o crime se perseguirá através de ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, sujeitando a ação penal aos efeitos da decadência, conforme preceitua o art. 103, do Código Penal, gerando a extinção da punibilidade do agente.
Na ADI 4301, vê-se que:
“13. Referida condição de procedibilidade da ação penal em casos tais – de altíssimo nível de gravidade, de elevado grau de reprovabilidade, e que só beneficia o sujeito ativo do crime –, constitui franca transgressão ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e ao princípio da proibição da proteção deficiente, importante vertente do princípio da proporcionalidade (art. 5º, LIV, da CF)”
Isto porque, ao modificar o tipo de ação penal, teria o legislador agido desproporcionalmente, deixando a descoberto bens jurídicos normalmente tradados como de elevada importância. Isto é, agindo como agiu, ficam a vida, a integridade física e a liberdade sexual mal protegidas pelo Direito Penal.
E a proporcionalidade já foi definida por Willis Santiago Guerra Filho (NUCCI, 2010, p. 310):
“(…) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente o melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que não se fira o ‘conteúdo essencial’ (wesengehalt) de direito fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana – consagrada explicitamente como fundamento de nosso Estado Democrático, logo após a cidadania, no primeiro artigo da Constituição de 1988 -, bem como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse das pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.[6]”
Tal alteração legislativa, a par de demonstrar um completo desacerto com tudo aquilo que se vinha desenvolvendo na doutrina e na jurisprudência penais no Brasil, pode, conforme externado na Petição Inicial da ADI 4301, ter consequências práticas que, certamente, não estavam nos planos do legislativo quando da edição da malsinada Lei. Isto porque, ao alterar a forma da ação e passar a sujeitá-la a uma condição que, se não satisfeita, extingue a punibilidade do agente[7], o legislador acabou criando norma que, embora tenha aparência de processual, tem reflexos penais e, sendo benéfica para o réu, deve retroagir para alcançar fatos acontecidos antes de sua entrada em vigor[8].
A esses casos em que, a norma seja eminentemente processual, mas com reflexos materiais, a doutrina[9] costuma nomear de normas mistas e dar a elas, no que couber, os efeitos ultrativos cabíveis às normas penais materiais. E a exigência de representação onde ela não havia tem exatamente essa natureza:
“(…) a existência de representação faz com que o crime, em apenas seis meses após o ofendido ter conhecimento de quem é o autor da infração, possa ter a extinção da punibilidade ocorrida, em razão da decadência. A falta de representação no prazo decadencial é fato jurídico material, a saber, a decadência, a qual, por sua vez, acarreta a extinção da punibilidade; em outras palavras, a representação tem um “reflexo penal”. Diríamos que a norma que institui ou elimina a representação é uma norma mista processual penal com “reflexo penal”. (PACHECO, 2009, p. 114)”
Está garantido no art. 5º, XL, da Constituição, que a Lei Penal, feita para atingir fatos havidos posteriormente à sua entrada em vigor, pode, excepcionalmente, e somente se for favorável ao réu, retroagir para alcançar fatos anteriores à sua entrada em vigor. Esse caráter de retroatividade benéfica é algo típico das leis materiais penais e daquelas tratadas por mista, conforme dito anteriormente, já que as leis processuais penais têm aplicabilidade imediata, conforme art. 2º, do CPP.
Já se teve, na legislação brasileira, exemplo de a própria lei resolver, com uma regra de transição, o problema da extinção da punibilidade como regra de direito penal material com eficácia retroativa. Tal fato deu-se quando, em 1995, da edição da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Lei 9.099, que, em seu art. 91, dizia que:
“Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.”
Assim, resta evidente que, no plano do direito positivo nacional, sempre que lei nova alterar regras relativas à extinção da punibilidade, como, por exemplo, ao passar a exigir representação para a persecução penal, esta exigência reflete lei penal material que, por força disso, tem o caráter retroativo assegurado pela Constituição da República.
Desta forma, a preocupação externada pelo Procurador-Geral na ADI 4301 procede perfeitamente e parece bastante pertinente, por suas próprias razões, a pretensão deduzida em juízo. Veja-se:
“25. Os processos atualmente em curso apresentam, por óbvio, a identificação dos acusados. Por isso, o referido prazo decadencial passa a fluir não mais da ciência da autoria, mas da entrada em vigor da lei nova, ou seja, do dia 10 de agosto de 2009.
26. Em suma, País afora, promotores de Justiça terão que sair à cata as vítimas ou de seus representantes legais, no sentido de obter, em tempo hábil, a representação. É fácil perceber que, ainda que se empregue um esforço enorme, os acusados da prática de tão grave injusto penal serão certamente beneficiados pelos efeitos da decadência.[10]”
Do ponto de vista do réu, que não pode ser olvidado, obviamente lhe será vantajosa a manutenção do texto legal conforme alterado pela Lei 12.015/09, já que, conforme cediça jurisprudência do STF, toda vez que se alterar a ação penal e isso importar e aumento das possibilidades de extinção da punibilidade, a regra tem natureza mista e, por força disso, retroage em benefício do acusado.
Conclusões
Após expenderem-se, neste breve arrazoado, os motivos que levaram o Procurador-Geral da República à impetração da ADI 4301, é forçoso reconhecer-se que a Lei 12.015/09, que, aparentemente, pretendeu dar tratamento mais severo para os crimes sexuais, acabou por agir no sentido contrário, ao alterar a forma de ser da ação penal nos crimes de estupro com resultado morte ou lesão corporal grave.
Por força dessa alteração, conforme externado na exordial da ação constitucional, estariam violados a dignidade da pessoa humana e o princípio constitucional da proporcionalidade na proteção dos bens jurídico-penais, o que deixaria quase a descoberto tais interesses legalmente tutelados.
Do ponto de vista do réu, o aumento das hipóteses de extinção da punibilidade representa benefício que, por força do disposto no art. 5º, XL, tem força retroativa. Se não houver o oferecimento de representação, no prazo do art. 103, a contar da entrada em vigor da lei, não pode a ação penal prosperar, devendo reconhecer-se por extinta a punibilidade do agente.
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