Milanny Freire Ferrari Ferreira[1]
Direito Penal[2]
Resumo: O presente artigo propõe delinear o estudo da origem e da vertente do princípio da insignificância, no que concerne a sua ponderação como balizador de possíveis injustiças estatais em contraponto ao condão da insegurança jurídica. Dessa forma, apresenta o seu enfoque nos crimes de peculato, em razão da natureza do bem jurídico tutelado e da sua pertinência perante todo o corpo social. Promove, assim, densa dissertação quanto à natureza do delito, sua classificação e modalidades. Ademais, visa apresentar o modo, o qual este princípio vem sendo aplicado nos Tribunais Superiores nos casos de peculato. O escrito também procura promover a compreensão da bagatela como meio de frear as transgressões penais, inserindo-a no contexto da política criminal, mediante a conceituação do termo política criminal. Bem como, apresentar conclusões através análise da oposição do princípio da insignificância à conhecida teoria das janelas quebradas. E, por fim, a interpretação do tema aqui exposto inserido no contexto do artigo “White colar crimes”, de John Braithwaite.
Palavras-chave: Princípio. Insignificância. Peculato. Política criminal.
Abstract: The present article aims to outline the study of the origin and the aspect of the principle of insignificance, as regards its consideration as a determinant of possible injustices in counterpoint to the condition of legal insecurity. In this way, it presents the focus on embezzlement crimes, due to the nature of the legal good and its relevance throughout the social body. It promotes, therefore, dense dissertation as to the nature of the crime, its classification and modalities. In addition, it aims to present the way, which this principle has been applied in the Superior Courts in cases of embezzlement. The book can also be promoted as a means of criminality as criminal offenses, a context of criminal policy, through the conceptualization of the term criminal policy. As well, present the findings by analyzing the principle of insignificance to the experience of the theory of broken windows. And, finally, an interpretation of the theme here set out in the context of John Braithwaite’s article “White Collar Crime.”
Keywords: Principle. Insignificance. Peculato. Criminal policy.
Sumário: Introdução. 1. Do princípio da insignificância. 1.1. Evolução histórica e natureza jurídica. 1.2. Conceito e adoção no ordenamento jurídico pátrio. 1.3. Insignificância no Direito Penal. 2. Dos crimes de peculato. 2.1. A Administração Pública e o agente público no Direito Penal. 2.2. Dos crimes contra a Administração Pública. 2.3. Do crime de peculato. 2.3.1. Origem e conceito. 2.3.2. Das modalidades de Peculato. 3. Aplicação do princípio da insignificância aos crimes de peculato nos Tribunais Superiores. 4. O princípio da insignificância como mecanismo de política criminal. 4.1. Conceito de política criminal. 4.2. A bagatela e a teoria das janelas quebradas. 4.3. A criminologia sociológica e o artigo “White Collar Crime” de John Braithwaite. 4.4. A bagatela como instrumento de política criminal no peculato. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Este artigo consiste no exame do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, mais especificamente no crime de peculato. Em um primeiro momento, será estudada a evolução histórica e a natureza jurídica deste princípio, nos remetendo a origem do mesmo, com a finalidade de facilitar a compreensão de seu conceito. Nesse ponto, aborda-se ainda a sua adoção em nosso ordenamento jurídico e sua influência no âmbito do Direito Penal.
Em seguida, procede-se ao estudo dos crimes de peculato apresentando um estudo da diferenciação dos termos Administração Pública e agente público no Direito Penal, além disso, apresenta uma análise conceitual dos crimes contra a Administração Pública de forma geral. Disserta ainda quanto à origem histórica do crime de peculato, evidenciando sua nomenclatura e significação. Apresenta as modalidades de peculato, exemplificando-as.
Ato contínuo fez-se longa explanação quanto à aplicação do princípio da insignificância aos crimes de peculato na visão do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, expondo a divergência entre ambos através de seus julgados.
Por último, traz uma discussão quanto ao conceito de política criminal, denota a análise da divergência entre esse princípio e o estudo americano da teoria das janelas quebradas, desenvolve a idéia de criminologia sociológica a partir do artigo “White colar crimes”, de John Braithwaite.
O método de abordagem utilizado foi o indutivo, através de procedimentos históricos, comparativos e amostrais.
1 DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
1.1 Evolução histórica e natureza jurídica
Quanto à origem do princípio da insignificância, tem-se que, primeiramente, esse provém das antigas civilizações ocidentais. Entende-se que no Direito Romano Antigo a base “minimis non curat praetor“, da qual se pode traduzir em o praetor ou pretor não cuida de minundências (questões insignificantes). Ou seja, aqueles responsáveis pela aplicação da lei ao caso concreto, os magistrados devem desmerecer as desavenças de menor potencial ofensivo.
No que tange a sua evolução histórica, versa Ivan Luiz da Silva (2006, p. 88): “É quase pacífico doutrinariamente que o princípio da insignificância promana do bocardo mínima non curat praetor; todavia no que tange à origem dessa máxima há controvérsia sobre a sua existência no Direito Romano antigo. Assim, existem duas correntes de entedimento sobre sua origem, e consequentemente do princípio penal sub examem , a saber: a primeira corrente proclama sua existência no Direito Romano antigo (…); a segunda nega sua existência naquele Direito”.
Sabe-se que o Direito Romano foi desenvolvido sob a ótica do Direito Privado e não do Direito Público. No bocardo supracitado há, segundo Maurício Antonio Ribeiro Lopes (1999, p.33), algo menos que um princípio, um mero aforismo, provérbio ou ditado. De acordo com esse autor, os romanos não tinham a noção de aplicabilidade da bagatela, porém, nada os impedia de utilizá-la vez ou outra em conflitos ou em situações do cotidiano, em especial relativas ao Direito Penal. Em sua obra, o autor assegura efetivamente não creditar aos romanos a herança do princípio da insignificância.
Ainda em relação à evolução histórica, têm-se os frutos dos pensamentos iluministas do século XVIII, também conhecido como Século das Luzes ou Era da Ilustração. Tais ideais da elite burguesa europeia são reconhecidos nas obras de filósofos como Voltaire, John Lock e Montesquieu, os quais influenciaram a Revolução Francesa.
O lema desse período de intensa movimentação política, social e cultural era: “Liberté, Égalité, Fraternité” (lê-se: liberdade, igualdade e fraternidade), e, tinham como objetivo o fim do Estado Absolutista. Dessa forma, os fundamentos da Revolução Francesa aplicam-se ao princípio da insignificância na medida em que os operadores do direito podem ajustar-se à equidade e correta interpretação da legislação vigente. No que concerne ao princípio da liberdade, tem-se o dualidade entre a liberdade física (locomoção) e o conceito geral de liberdade presente no art. 5°, II, da Constituição.
Nesse sentido, J. L. Guzman Dalbora (1996, p. 62-64) ensina que a despreocupação do magistrado com tudo o que fosse quantitativamente insignificante, respondendo ao mais sensato e prudente juízo de quem sabe, ou intui, que o instrumento de coação jurídica não pode estar a serviço de qualquer assunto ou tema, e sim para os de alguma monta, aqueles que possuam um significado juridicamente relevante, aqueles os quais melhor se enquadram em um pensamento liberal do que autoritário. Afirma ainda que tal capacidade de abstração e sua densidade não eram comuns aos pretores da Roma Antiga.
O autor Carlos Vicos Manãs (1994, p. 81): foi certamente um dos pioneiros do estudo do princípio da insignificância na doutrina nacional, e assim o conceitua: “O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevantes os bens jurídicos protegidos pelo direito penal”.
Há controvérsia judicial no que tange a natureza jurídica do princípio da insignificância, tendo em vista que o mesmo encontra-se vinculado à antijuricidade material. Dessa forma, podemos afirmar que há uma verdadeira contradição entre a existência de um Estado de legalidade, que busca como seu verdadeiro fim, a justiça social e a lesão inofensiva, que não deixa de ser um ato ilícito.
1.2 Conceito e adoção no ordenamento jurídico pátrio
O princípio da insignificância tem como principal finalidade a de afastar ou excluir a tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime, dessa forma, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição, substituição da pena ou na sua não aplicação.
Sabe-se que para ser utilizado, faz-se necessário o preenchimento se certos requisitos, como a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
A sua aplicação, em nosso ordenamento, decorre do fato de que o direito não deve se ocupar com condutas cujo resultado não importe em lesão significativa a bens jurídicos relevantes, não gerando prejuízo ao titular do bem jurídico tutelado ou a ordem social.
O princípio da insignificância também é conhecido como princípio da bagatela ou princípio bagatelar. Segundo tal preceito, não cabe ao Direito Penal, preocupar-se com bagatelas do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o bem jurídico. Nesse contexto, se a finalidade do tipo penal é assegurar a proteção de um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de ofender o interesse tutelado, não haverá adequação típica. (Opinião / Princípio da insignificância ou bagatela. Extraído de: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo – 08 de Junho de 2009. Em Jus Brasil: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1232617/opiniao-principio-da-insignificancia-ou-bagatela)
Segundo Francisco de Assis Toledo (TOLEDO, 2002, p. 134) a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado – se necessário – como ilícito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais.
1.3 A insignificância no direito penal
No direito brasileiro, não há muito bem definido o conceito de média ou pequena criminalidade, também denominada de criminalidade de bagatela, oferecendo como parâmetro as infrações de menor potencial ofensivo, como previsto no art. 98, I, da Constituição Federal.
As infrações, quando individualmente consideradas, produzem lesão ou perigo de escassa repercussão social, pelo que não se justifica reação jurídica grave. As contravenções penais e os delitos punidos com detenção, sem dúvida, ingressariam neste conceito, bem como alguns ilícitos não muito graves punidos com reclusão, como por exemplo: os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça contra a pessoa.
Segundo José Henrique Guaracy Rebelo (2000, p. 37): “O princípio da insignificância se ajusta à equidade e à correta interpretação do direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em sociedade, liberando-se o agente cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal”.
Não há qualquer dúvida de que o princípio da insignificância, no ensinamento de Maurício Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 52-53), está vinculado à antijuridicidade material. No entanto, isso não é suficiente para defini-lo, pode apenas caracterizá-lo. Aponta como elemento definidor o binômio quantidade-qualidade para a racional consistência do crime e justificação da pena sem, no entanto, vincular a ação constituidora ao fato típico, evitando-se, assim, uma avaliação preponderantemente subjetiva do delito.
Dessa forma, cabe ressaltar como entendimento que se deve considerar a ação delituosa de acordo com o plano psicológico do agente criminoso e aquela advinda do resultado materialmente obtido, independente da vinculação moral que o determinou.
2 DOS CRIMES DE PECULATO
2.1 A Administração Pública e o agente público no direito penal
Inicialmente, faz-se oportuno consignar, que os termos “Administração Pública” e “agente público” ou “funcionário público” no Direito Penal possuem significados diferentes do Direito Constitucional e Administrativo, tendo em vista que, no Direito Penal o conceito é sempre mais abrangente.
Aqueles ramos do Direito tem a Administração Pública como fruto da ideia da tripartição de poderes de Montesquieu, ou seja, é uma das funções fundamentais do Estado ao lado da legislativa e jurisdicional. Contudo, nossa lei penal acolhe o termo, no seu sentido mais amplo, ou seja, não sendo apenas o exercício e resultado das atividades tipicamente administrativas, como também toda a atividade estatal no seu aspecto subjetivo, todos os entes que desempenham função pública.
Em suma, no campo do Direito Penal a Administração Pública equivale ao sujeito-administração e atividade administrativa. Portanto, consiste, em sentido subjetivo ou orgânico da expressão, no conjunto de órgãos componentes da Administração. Esse contexto extensivo se dá em razão da relevância que possui qualquer ofensa a atividade do Estado ou de outras instituições públicas.
Oportuno destacar ainda as palavras de José da Costa Júnior (2005, p.1003): “o Código Penal não entende a atividade administrativa em sentido estrito […] a Administração Pública é entendida como o conjunto de entes que desempenham funções públicas”.
Diferentemente do termo Administração Pública, o legislador destinou um artigo específico para conceituar o termo funcionário público no Direito Penal. Conforme o Código Penal Brasileiro (Decreto Lei n° 2.848/40): “Art. 327: Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal. § 1º – Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 6.799, de 1980) § 1º – Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)”.
2.2 Dos crimes contra a Administração Pública
Os crimes contra a administração pública se encontram tipificados nos artigos 312 a 359 do Código Penal Brasileiro, o qual dedica o título XI para o tema, tratando de crimes funcionais praticados por funcionários públicos contra a Administração Pública em geral (direta, indireta e empresas privadas prestadoras de serviços públicos, contratadas ou conveniadas).
Os crimes dessa natureza contrafazem a probidade administrativa, ferindo, dentre outros, os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. Esses crimes, ainda quando praticados no estrangeiro (por quem estiver a serviço do Brasil), serão alcançados pela lei brasileira (extraterritorialidade incondicionada).
Ademais, os delitos funcionais são divididos em duas espécies: próprios e impróprios. Os próprios são aqueles que faltando à qualidade de funcionário público ao autor, o fato passa a ser tratado como um indiferente penal, não se subsumindo a nenhum outro tipo incriminador, sendo essa a atipicidade absoluta Tem-se como exemplo a prevaricação, presente no art. 319 do CP. Os crimes impróprios são aqueles que desaparecendo a qualidade de servidor do agente, também desaparece o crime funcional, ocorrendo, porém, a desclassificação da conduta para outro delito, de natureza diversa, ou seja, atipicidade relativa. O crime de peculato furto é um exemplo, pois deixa de ser peculato e passa a ser furto.
A pena, em sede de crimes contra a administração pública, será sempre aumentada da terça parte quando os autores forem ocupantes de cargos em comissão ou função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, conforme o art. 327, § 2º. O STF, por maioria, entendeu que prefeitos, governadores e presidente da República, nas situações em que forem autores de crimes funcionais, são inevitavelmente alcançados pela causa de aumento.
A progressão de regime prisional nos crimes contra a Administração Pública está intimamente condicionada à prévia reparação do dano causado ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os devidos acréscimos legais.
2.3 Do crime de peculato
2.3.1 Origem e conceito
Tendo como suas raízes o Direito Romano, o peculato caracterizava-se pela subtração de bens pertencentes ao Estado. Essa infração era denominada “peculatus” ou “depeculatus”, oriundo de período anterior ao surgimento da moeda, quando animais, como bois e carneiros, eram destinados a sacrifícios em homenagem às divindades consistiam na riqueza pública por excelência. Ainda em relação a sua origem (PRADO, 2010, p. 390).: “O mencionado delito, com a referida denominação, tem seu nascedouro no Direito Romano, quando se caracterizava pela subtração de coisas pertencentes ao Estado. Aliás, tanto no Código de Hamurabi como o Código de Manu já tratavam das subtrações de bens pertencentes ao rei, apenando o agente com morte. O nome peculatos ou depeculatus está sedimentado no fato de que o gado (pecus) constituía o patrimônio mobiliário mais importante da coletividade naquela época, tendo sido erigido em meio de pagamentos”.
No Brasil, o crime já foi tipificado no Código Penal do Império, no Título VII, Dos crimes contra o tesouro público e propriedade pública, CAPÍTULO I. Mencionado ainda no Código de 1980, no Título V, aquele atinente aos crimes contra a boa ordem e Administração Pública. Sendo continuamente aperfeiçoado até chegar a presente redação.
Na estruturação do Código Penal, encontra-se inserto no Capítulo destinado aos crimes cometidos pelos funcionários públicos contra a administração em geral. O bem jurídico protegido, por sua vez, como é descrito (PRADO, 2010, P. 392): “não é só o interesse em preservar o patrimônio público, mas principalmente a finalidade de resguardar a probidade administrativa cuja importância, inclusive, foi cristalizada pela Constituição da República de 1988 (art.37, caput, e §4º)”.
Ensina o doutrinador Rogerio Greco (2013, p. 389) que as espécies de crimes contra a Administração Pública constituem um dos mais nefastos e devastadores tipos de infrações praticadas em uma sociedade, pois com a sua prática a Administração Pública é atingida diretamente, porém, milhares de pessoas são indiretamente afetadas.
O crime de peculato e suas modalidades estão assim tipificados no art. 312 e seguintes do Código Penal: “Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa. § 1º – Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário. Peculato culposo § 2º – Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano. § 3º – No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta. Peculato mediante erro de outrem Art. 313 – Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
Quanto ao artigo supramencionado, o qual define o peculato, cabe aqui transcrever o entendimento de Nucci (2007, p. 995) com relação ao sujeito deste crime: “o sujeito ativo somente pode ser o funcionário público. O sujeito passivo é o Estado; secundariamente, a entidade de direito público e o particular prejudicado”.
De acordo com Hungria o crime de peculato pode ser definido pelo sujeito que representa o Estado na Administração Pública (Hungria, p. 334): é o fato do funcionário público que em razão do cargo, tem a posse de coisa móvel pertencente à administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título), e dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio ou de outrem.
2.3.2 Das modalidades de peculato
O peculato pode ser classificado doutrinariamente como próprio, impróprio, culposo ou mediante erro de outrem. Sendo o peculato próprio, aquele que deriva do art. 312, caput, do Código Penal, dividindo-se em: peculato-apropriação, quando a ação material do agente consiste na apropriação do bem e peculato-desvio, quando há o descaminho ou deslocamento de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular que tem a posse em razão do cargo.
Para Greco (2010, p.818): “a conduta com o verbo apropriar deve ser entendida no sentido de tomar como propriedade, tomar para si, apoderar-se indevidamente de dinheiro, valor, ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo”.
O peculato impróprio, conhecido como peculato-furto, está presente no art. 312 §1º do Código Penal. Nessa modalidade, o sujeito também é um agente público, o qual não tem a posse, mas, valendo-se da facilidade que seu cargo, emprego ou função lhe concede, subtrai ou concorre para que seja subtraída coisa do ente público ou de particular, desde que esteja sob custódia da administração.
Dessa forma, Victor Eduardo Gonçalves (2007, p. 123) analisa o crime em duas espécies: “Subtrair: furtar, tirar, desapossar com ânimo de assenhoreamento; Concorrer para que terceiro subtraia: o funcionário público deve colaborar dolosamente para a subtração. Se ocorrer colaboração por imprudência ou negligência, haverá peculato culposo”.
O peculato culposo, descrito no § 2º do artigo 312 do Código Penal, ocorrerá sempre que a conduta do sujeito ativo for por negligência, imperícia ou imprudência. Tal modalidade é exceção em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista que somente será punida se houver previsão legal. Além disso, não admite a figura da tentativa, pois não há fracionamento do iter criminis.
Em que pese nas demais modalidades ocorra uma conduta comissiva por parte do agente, no delito de peculato mediante erro de outrem, descrito no artigo 313 do Código Penal, o agente pratica uma conduta omissiva. Nessa modalidade o agente se apodera do bem que recebeu por erro de outro. Frisa-se nesse caso, que é indispensável que o terceiro tenha praticado a conduta errônea e espontaneamente, pois caso contrário o delito será de estelionato ou concussão.
Inúmeras são as divergências entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal quanto à aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública. Contudo, como já fora aqui explicitado, o Excelso Tribunal fixou entendimento que se fazem necessários quatro requisitos para a aplicação do princípio da insignificância, a saber: mínima ofensividade na conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Cabe ressaltar que tais requisitos, tidos como objetivos, não possuem respostas claras, parecendo abstratos, de modo que a análise da aplicação do princípio em questão torna-se aberta a inúmeras discussões. Não há aqui a necessidade de se defender a utilização indiscriminada do princípio, no entanto, faz-se imperativa a existência de condições lógicas e claras, as quais definam, de fato, o que é ou não insignificante. Podendo, desse modo, afastar o uso de conceitos abertos ou vagos, que venham a resultar em incongruências interpretativas e eventuais prejuízos ao réu.
O início das discussões quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública, em especial, o crime de peculato, se deu com a consolidação dos requisitos necessários. As diferentes aplicações dos tribunais superiores se dão no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça, majoritariamente, compreende o princípio da insignificância como inaplicável a tais crimes, pois, nesses casos, existiria grave ofensa à moralidade administrativa, o que faria com que o requisito do reduzidíssimo grau de reprovabilidade na conduta do comportamento do agente não fosse atingido. Podemos verificar tal entendimento no AgRg no AREsp n.614524/MG, o qual colaciono a seguir o inteiro teor do voto:
“PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO RECURSO ESPECIAL. PECULATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 514 DO CPP. IMPROCEDÊNCIA. AÇÃO PENAL LASTREADA EM INQUÉRITO POLICIAL. DESNECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO PARA DEFESA PRÉVIA. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. 1. Não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, uma vez que a norma visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica (AgRg no REsp n. 1.382.289/PR, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 11/6/2014). 2. É desnecessária a resposta preliminar de que trata o artigo 514 do Código de Processo Penal na ação penal instruída com inquérito policial (Súmula 330/STJ). 3. Agravo regimental improvido O EXMO. SR. MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR (RELATOR): A decisão agravada deve ser mantida. Quanto ao princípio da insignificância, cumpre observar que a orientação jurisprudencial desta Corte é no sentido da inaplicabilidade do postulado ao crime de peculato, uma vez que a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moralidade administrativa. Nesse sentido, confiram-se: […] 1. Não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, uma vez que a norma visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica. […] (AgRg no REsp n. 1.382.289)”
“PR, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 11/6/2014) AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. O entendimento firmado nas Turmas que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, uma vez que Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp n. 1.275.835/SC, Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Quinta Turma, DJe 1°/2/2012) Em relação à suposta violação do art. 514 do Código de Processo Penal, também não assiste razão à defesa, pois é desnecessária a resposta preliminar de que trata o art. 514 do Código de Processo Penal na ação penal instruída com inquérito policial. A questão, inclusive, é objeto da Súmula 330/STJ. Logo, é o caso de incidir o enunciado da Súmula 83/STJ à espécie. Em face do exposto, nego provimento ao agravo regimental.a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa.”
Entretanto, o STJ, aplica ocasionalmente o princípio da insignificância aos crimes de peculato, como se vê no presente habeas corpus n° 246.885/SP, onde a Corte entendeu, por decisão dividida, pela aplicação do princípio em um caso de peculato-furto referente a um vale-alimentação no valor de R$ 15,00 (quinze reais).
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que o princípio da insignificância pode ser cabível nos crimes de peculato. Ao analisar o julgamento do habeas corpus 112.388/SP, da Segunda Turma do STF, o qual teve como relator, o Ministro Ricardo Lewandowski, tem-se que o mesmo pertente a uma corrente minoritária, seguida pelo STJ. Conforme essa corrente, não cabe a aplicação do Princípio da Insignificância ao crime de peculato, pela impossibilidade de mensuração da extensão do dano, uma vez que o dano maior insere-se na moralidade pública.
O Ministro Ricardo Lewandoski leciona que, para a aplicação de tal princípio é preciso que estejam presentes todos os requisitos objetivos, o que até então não diverge dos demais Ministros. Contudo, ele explica ainda que é no requisito da inexpressividade da lesão, que se encontra a impossibilidade do reconhecimento do princípio no delito, ou seja, na quantificação da lesão ao bem jurídico tutelado. Conforme descreve, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal em questão, além do patrimônio público, tem uma tutela especial à probidade e moralidade administrativa, razão para não ter como quantificar o prejuízo sofrido. Afirma o Ministro que o prejuízo material causado pelo agente é ínfimo perto da lesão causada ao ente estatal.
Vale frisar, que esse não é o entendimento majoritário do STF, pois a maioria dos Ministros vem reconhecendo e aplicando o referido princípio ao delito capitulado no art. 312. No julgado supracitado, diferentemente do Ministro Ricardo Lewandowski, os Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluzo, concederam a ordem, reconhecendo no caso concreto a insignificância da lesão, e, absolvendo o réu. O Ministro Cezar Peluso se utilizou da analogia ao crime de descaminho. E o Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a insignificância, assegurando ser o valor tão diminuto que não justifica a penalização.
4 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO MECANISMO DE POLÍTICA CRIMINAL
4.1 Do conceito de política criminal
O termo “política criminal” não possui um conceito uniforme ou genérico na doutrina penal. Contudo, entende-se como sendo um conjunto de princípios, convicções ideológicas, os quais formam entendimentos peculiares no sentido de combater ou lutar contra o crime em si.
Antônio Carlos Santoro Filho (2012, p.37) afirma que Basileu Garcia define a política criminal como sendo a ciência e a arte dos meios preventivos e repressivos, com os quais o Estado dispõe para atingir o fim da luta contra o crime. Examina o direito em vigor, e, tem-se como resultado da apreciação de sua idoneidade na proteção contra os agentes delituosos, ou seja, trata de aperfeiçoar as técnicas de defesa jurídico-penais contra a delinquência.
Consistindo na própria crítica ao Direito Penal, a política criminal, tem como seu principal meio de ação a legislação penal, sendo fundada em princípios ou argumentos ideológicos e jurídicos (ou em ambos), objetivando modificar, manter ou reformar os institutos do Direito Penal vigentes.
Tem-se por política criminal (ZAFFARONI, 1999:132): “a Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”.
Entende-se como sendo o caráter da Política Criminal, ou seja, a ação, para efetivar a tutela dos bens jurídicos, e critica, como forma de aprimoramento de tal tutela. Busca fornecer orientação aos legisladores para que o combate à criminalidade se faça racionalmente, com o emprego de meios adequados.
4.2 A bagatela x a teoria das janelas quebradas
A teoria das janelas quebradas (broken windows theory) representa uma tese de estudo editada nos Estados Unidos da América pelo psicólogo criminologista George Kelling e pelo cientista político James Wilson, ambos pesquisadores da Universidade de Haward, sendo publicado em na revista The Atlantic Monthly no ano de 1982.
O estudo pretendia demonstrar a relação de causalidade entre a desordem e a criminalidade, defendendo uma relação proporcional entre elas. A teoria levou essa nomenclatura devido aos autores terem utilizado janelas quebradas para esclarecer como a desordem enseja a prática de crimes cada vez mais graves.
Kelling e Wilson, em seu estudo, utilizam o exemplo: caso uma janela de uma fábrica, escritório ou qualquer prédio em geral fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas que a avistasse pensariam que naquele lugar não havia ninguém se importando ou zelando pelo patrimônio. Em seguida, outra pessoa iria quebrar mais uma janela, até que todas estivessem quebradas, demonstrando que ninguém realmente dá importância aquele patrimônio. Tal fato poderia levar vândalos a invadirem o local e lá estabelecerem moradia ou depredá-lo ainda mais. Poderiam ainda, indivíduos com tendências criminosas se estabelecerem no local, percebendo que ninguém naquela rua se preocupava com a criminalidade, levando-os a permanecerem naquele local e afungentarem as pessoas de bem. Na sequência haveria a destruição de mais prédios ao lado, e, em sequência, por toda a rua, e depois, por toda a comunidade. Esse descaso gera um efeito cascata, segundo os autores, levando as pessoas do bairro a se mudarem, sendo este, então, habitado tão somente por pessoas desordeiras, gerando inúmeros crimes.
Tendo como principal suporte experimental o feito do psicólogo americano Philip Zimbardo, o qual resolveu deixar um carro em um bairro de classe alta e outro em um bairro de classe baixa da Califórnia. Durante a experiência, o carro o qual fora deixado no bairro de classe baixa foi imediatamente danificado. No entanto, o carro abandonado no de classe alta, durante a primeira semana, permaneceu ileso, não sendo nem um pouco danificado ou deteriorado por absolutamente ninguém. Porém, após quebrarem uma janela do carro, esse passou a ser intensamente danificado e vandalizado pela população do local.
Diante disso, conclui-se que não a pobreza não é a única causa do aumento da criminalidade, tendo também o fato do descaso aos atos de desordem e vandalismo. Sendo possível verificar que todas as normas sociais de convívio são totalmente ignoradas no momento o qual as pessoas percebem que ninguém se importa com os atos de vandalismo. Bastando quebrar uma janela do carro, para que os indivíduos percebessem que ninguém se importou e imediatamente todos passarem a danificar o restante do carro.
Em suma, a teoria das janelas quebradas expressa que: caso a população e as autoridades públicas não se preocupem com os atos de marginalidade de menor potencial ofensivo, tal qual o ato de quebrar a janela de um prédio, induziria as pessoas a acreditarem que naquele local ninguém se importa com a ordem pública, o que levaria a constante prática de delitos cada vez mais graves naquele mesmo local.
Isso posto, a teoria esclarece um modo de combater os altos índices de criminalidade em um local: o Estado deve passar a repreender e conter os pequenos atos de criminalidade e vandalismo, através do intenso policiamento comunitário.
Com base na referida teoria, o prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani adotou uma nova política denominada “Tolerância Zero” que consistia numa medida para frear o avanço da criminalidade, vandalismo, mendicância e desordem que existia na cidade desde as décadas de 70 e 80.
Isso se deu, em parte, porque as pichações e os pequenos gestos de criminalidade não eram devidamente reprimidos, fazendo com que, surgissem cada vez mais delitos graves. O problema era bem maior nos metrôs da cidade, pois sendo um local fechado, escuro e deserto durante a noite, praticamente não havia punições para os desordeiros.
Assim sendo, a solução para os problemas de criminalidade na região passou a ser tema de campanha política. Em 1990, o policial Willian Bratton, que havia realizado brilhante trabalho na polícia de Boston, fora contratado com o dever de ajudar resolver o problema da criminalidade naquela cidade. Contando com o apoio de Kelling (co-autor da teoria da janela quebrada) para implantação de medidas de combate a criminalidade.
Sabe-se que imediatamente foram identificados os principais problemas existentes nos metrôs da cidade: o fato dos passageiros pularem as catracas para furtarem-se do pagamento, a própria desordem e a crescente criminalidade.
Nesse contexto, começaram a serem presos aqueles que pulavam as catracas do metrô para evitarem o pagamento. Os policiais esperavam o momento em que o desordeiro pulasse a catraca e procediam com a prisão, o que fez com o nível de pessoas que pulavam as catracas reduzisse consideravelmente. Ocorreu ainda que muitas das pessoas presas por esse ato de desordem eram foragidas da polícia ou estavam portando armas.
Ademais, passou-se a reprimir todo e qualquer ato de desordem e vandalismo, desde o ato de urinar em praça pública, até o ato de pilotar motocicleta sem capacete. Implantou-se, ainda, forte policiamento comunitário, com a intenção de aproximar a população da polícia.
O resultado foi à redução dos índices de criminalidade na cidade de Nova Iorque nos últimos anos, que, continuam diminuindo ainda hoje. A cidade, que nos últimos trinta anos estava atingindo níveis intoleráveis de criminalidade, parece ter se tornado uma cidade um pouco mais tranquila e menos violenta. É importante expor que não se deve atribuir a redução da violência em Nova Iorque unicamente a aplicação dos fundamentos da teoria da perda de uma chance. Outros fatores têm de ser considerados, como a recuperação da economia mundial que proporcionou o aumento de vagas de emprego, afastando a população do crime e o aumento do turismo na região.
O sucesso da política de “Tolerância Zero” levou com que outros estudiosos se posicionassem quanto à questão e esses concluíram que os índices de violência em Nova Iorque não foram diminuídos em razão do encarceramento excessivo, mas sim pelo aumento do investimento público em policiamento. Nesse diapasão, percebe-se que o número de encarcerados resultou em maior segregação racial, na medida em que o índice de negros presos aumentou drasticamente, devido também a consequente redução dos investimentos em políticas sociais e educação no mesmo período.
O contraponto entre a teoria das janelas quebradas e o princípio da insignificância se dá na medida em que ambos possuem natureza, origem, aplicação e conceito antagônicos, como mostrado anteriormente. O uso indiscriminado de ambos reflete numa completa irresponsabilidade do Estado. Portanto, os atos de desordem e a prática de delitos menores não devem ser completamente ignorados apenas porque não causaram lesão ao bem jurídico, é preciso adotar políticas de repressão aos delitos menores. Contudo, a aplicação de penas privativas de liberdade para repreender esses tipos de crimes é uma atitude completamente insensata, principalmente no Brasil, pois além de violar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, há no país um sério problema quanto à população carcerária.
4.3 A criminologia sociológica e o artigo “White Collar Crime” de John Braithwaite.
Inicialmente, cabe destacar que essa é uma análise que foge a linha da criminologia geralmente estudada, pois, em nosso país, a maioria dos estudos nessa área se baseiam em teorias com fortes características marxistas, que tendem a cair no reducionismo econômico.
Ciente dessa problemática, a dissertação aqui caberá sobre os crimes de colarinho branco partindo de uma visão sociológica, mais preocupada com a classificação segundo a pessoa do autor do que o tipo penal. Dessa forma, faz-se necessário compreender a expressão “White Collar Crime”, título do artigo de John Braithwaite, o qual toma por base os estudos de Edwin Sutherland, criador do termo, também idealizador da teoria da associação diferencial, classificada, de acordo com os criminológos, como uma das teorias da aprendizagem.
Quanto a teoria da associação diferencial e o conceito de white collar crime, tem-se que Sutherland visa superar o conceito de organização social como único fator criminógeno e propõe em seu lugar inserir o conceito de organização social diferencial (ALLER, 2005, p. 12-35).
O artigo teve como principal intenção apresentar evidências de que os indíviduos de classes econômicas mais altas cometem muitos delitos, e que tais delitos devem ser incluídos nos estudos sobre as teorias gerais sobre a criminalidade. Além disso, apresenta hipóteses as quais podem vir a explicar tais condutas delitivas, resultando assim, no desenvolvimento da teoria da associação diferenciada.
É possível, ainda, extrair do artigo que o criminoso não é necessariamente um ser antissocial, tendo em vista que os crimes de colarinho branco são cometidos por pessoas que estão completamente inseridas na sociedade.
Tais crimes são definidos como aqueles praticados por pessoas de alto nível social e portadoras de respeitabilidade, no curso de sua profissão. Sutherland, em nota de rodapé (SUTHERLAND, 2009, p. 9), diz que a expressão colarinho branco é utilizada para empresários e executivos.
Muito embora haja, na obra, menção a diversas espécies de crimes, essas alusões não deixam de serem apenas exemplos de atos decorrentes do tipo de autor objeto de seu estudo. É óbvio que não era a intenção estudar todo ou qualquer ato praticado por pessoas de colarinho branco, mas somente aqueles os quais configurassem crimes ou desvios.
Os elementos que compõem um conceito atual dos crimes de colarinho branco são: pessoa pertencente a uma estrutura organizada, pessoa detentora de poder, quebra de confiança e dano social, não confundindo o termo estrutura organizada com crime organizado ou criminalidade organizada. Exige-se que tal organização esteja de acordo com o Direito e a expressão “poder” supracitada deve significar a própria capacidade de interferir na esfera individual de um número indeterminado de pessoas. Exige-se, ainda, a quebra da confiança que é a ele conferida em razão de sua profissão. Pressupõe também significativo dano à sociedade.
4.4 A bagatela como instrumento de política criminal no peculato
Os princípios jurídicos são, notadamente, os mandamentos nucleares do ordenamento jurídico, compondo o espírito das normas e servindo como critério para sua exata compreensão quando da aplicação ao caso concreto. A interpretação atual da Constituição revela princípios implícitos latentes para a composição dos novos problemas concretos.
Diante disso, surge o princípio da insignificância, com origem que remonta ao Direito Romano e ao período do Renascimento, estando inserido atualmente numa política de Direito Penal mínimo, sendo vertente majoritária na doutrina nacional.
O autor Luiz Flávio Gomes (1992, p. 91) afirma que as atuais teorias de política criminal e controle social tratam de modo diferenciado a pequena criminalidade da média criminalidade, tendo em vista a lesividade social. Recomenda que os delitos de bagatela sejam interpretados como aqueles que produzem lesão ou perigo de escassa repercussão social, pelo que não se justifica reação jurídica grave.
Mesmo com opiniões contrárias, o princípio da insignificância no que tange aos crimes contra a Administração Pública, mais especificamente, ao crime de peculato, demonstra adequação e bons resultados, e, ainda, sob o prisma da política criminal, tendo em vista que a sua aplicação em conjunto para enfrentar a problemática penal, com a ampliação de políticas sociais de inserção e descaracterização de condutas, evita a desproporcionalidade real entre a sanção e a conduta cometida pelo agente, respeitando assim os preceitos constitucionais da igualdade, liberdade, razoabilidade e proporcionalidade.
CONCLUSÃO
Ante tudo o que fora explicitado, tem-se que o tema objeto do presente trabalho de conclusão de curso ainda é controvertido no que tange a aplicação do direito ao caso concreto. Por isso, fez-se necessário o estudo da origem e conceito do princípio da insignificância, além de verificar a natureza jurídico-penal do instituto.
O crime é, em seu aspecto formal, a conduta exteriorizada pelo legislador em lei ordinária, a qual é cominada determinada pena. Contudo, em seu aspecto material, o crime seria toda ação ou omissão humana que lesa ou expõe a lesão os bens jurídicos relevantes ao indivíduo e a sociedade. Abordamos o crime de peculato, na sua visão material e formal, no entanto, quando o relacionamos ao princípio da insignificância estamos focando no seu aspecto material, pois esse é causa de exclusão da tipicidade material do delito.
Com o estudo da aplicação do referido princípio ao crime nos Tribunais Superiores, observamos a distinção de entendimentos entre o STF e o STJ, resultado do caráter abstrato dos requisitos da aplicação do princípio da insignificância. Diante disso, caberá aos magistrados determinar quais valores devem ser tutelados e quais são as condutas a serem punidas, tendo como limite os princípios constitucionais.
Por mais que existam posições contrárias, a política criminal de adoção do princípio da insignificância mostra-se eficiente ao enfrentar a problemática criminal, na medida em que é contrária que dispõe a política da “Tolerância Zero”, já analisada, não tendo a intenção de assegurar a impunidade, mas de relativizar casos em que a lesão ao bem jurídico é insignificante e sendo o sistema carcerário brasileiro incapaz de ressocializar o indivíduo, não existe lógica para o seu encarceramento.
Dessa forma, cristalino que as condutas típicas insignificantes, quando praticadas contra patrimônio público, não devem ser consideradas na seara penalista, pois, a atuação nesses casos deve sempre pautar-se na intervenção mínima e na interpretação mais favorável ao réu.
REFERÊNCIAS
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[1] Advogada. Graduada em direito pela Universidade Potiguar – Laureate International Universities.
[2] Área do Direito abordada no artigo.
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