O meio ambiente é um bem pertencente a todo e qualquer ser humano. Dentro dos componentes que formam o meio, temos a água, líquido precioso que promove a vida ao ser humano e à todos os seres vivos e por este motivo se tornou um líquido precioso, motivo de cobiça;que gerou o fenômeno da privatização da água no mundo.
1 Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
1.1Dos Direitos Fundamentais
Os Direitos Fundamentais são consagrados, e principalmente forte caracterizadores dos Estados que adotam a forma Democrática de Direito. Ao se adotar esta forma de Estado confere-se unicidade a direitos e garantias que são inerentes a personalidade humana conferindo dignidade às pessoas.
Cumpre-se observar preliminarmente, que o Estado Democrático de Direito, o qual preconiza os direitos fundamentais, surge somente como um Estado de Direito no fim do século XVIII, início do século XIX; como uma revolta burguesa aos que se opunham ao Absolutismo, fazendo com que os governantes se rogassem absolutamente à lei (BASTOS, 2000, p. 157).
Isso significa que, esta forma de Estado é muito recente e, abandonou os determinismos de um único soberano, fazendo com que todos que compunham o Estado se rendessem à lei, que desta vez atinge a todos de uma forma geral, não excluindo ninguém de seus domínios.
Inobstante isso, não bastava simplesmente o Estado se submeter á lei, pois precisava ter outros objetivos além deste. Assim, o Estado limitou suas tarefas, fazendo a manutenção da ordem, à proteção da liberdade e da propriedade individual, gerando a idéia de Estado Mínimo para de alguma maneira interferir na vida dos indivíduos (BASTOS, 2000, p. 157).
Porém, a postura adotada pelo mesmo e mencionada anteriormente, permitiu como um Estado Formalista, um quase absolutismo do contrato, da livre empresa e da propriedade privada. Por sua vez, com esses entraves, houve a necessidade de se redinamizar o Estado para que além das tarefas já consagradas, também desempenhasse tarefas de cunho social, surgindo assim a Democratização do Estado (BASTOS, 2000, p.157).
Aliás, o processo de democratização, no qual o Estado de Direito se torna um Estado Democrático de Direito dá-se no final do século XIX, início do século XX; espaço em que este processo faz com que haja submissão por parte do Estado à lei e a vontade popular, ou seja, ouve-se o povo, preconizando direitos e garantias fundamentais (BASTOS, 2000, p. 157).
Nesse passo posiciona-se o nobre doutrinador Alexandre de Moraes (2001, p.49):
O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres e periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais […]
Oportuno se torna dizer que os direitos fundamentais são característicos do sistema democrático, limitando a ação dos cidadãos e do próprio Estado, que diante da existência destes direitos não pode gerar nenhuma ação que burle os mesmos (MORAES, 2001, p. 56).
Tais direitos ora em questão, são inerentes à condição de ser humano, assim, são essenciais para o desenvolvimento do homem como pessoa gozando de todas as prerrogativas para melhor desenvolver-se.
Como definição de Direitos Fundamentais, José Afonso da Silva (2001, p. 182), ensina o seguinte o fundamento:
No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem sobrevive;fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos,mas concreta e materialmente efetivados . Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos Fundamentais do homem significa Direitos Fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais [grifo do autor].
Para melhor ilustrar o conceito em questão, José Joaquim Gomes Canotilho, (1998, p. 359), expressa a diferenciação entre direitos do homem e direitos fundamentais :
As expressões <<direitos do homem>> e <<direitos fundamentais>>são freqüentemente utilizadas como sinónimas. Segundo sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos(dimensão jusnaturalista-universalista);direitos fundamentais são direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta [grifo do autor].
Na Constituição de um Estado se encontram expressos os direitos fundamentais ao homem, sendo o ordenamento de maior peso dentro de uma ordem jurídica, já que a mesma é a lei fundamental e superior que regula uma sociedade.
Conseqüentemente, há uma relação de que os direitos fundamentais são direitos jurídicos positivados numa ordem de status constitucional, ou seja, incorpora-se direitos considerados inalienáveis e naturais do indivíduo numa dimensão de Fundamental Rights, ou seja, normas constitucionais (CANOTILHO,1998, p.347).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, congregou em seu Título II os direitos e garantias individuais. Estes foram subdivididos em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.
No entanto, a doutrina modernamente apresenta, baseada em Norberto Bobbio a classificação de direitos fundamentais em primeira, segunda e terceira geração.
Os direitos considerados como de primeira geração são os individuais e políticos clássicos, que vem a partir da Magna Carta; os que são chamados de segunda geração, são classificados como direitos sociais, econômicos e culturais; e finaliza-se com a terceira geração que traz os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade. Estes dedicam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos (MORAES, 2001, p.57-8).
Vale lembrar que os direitos de primeira geração, ou seja, direitos civis, são chamados de direitos negativos, pois o titular do direito é o indivíduo singularmente considerado; os direitos de segunda geração, isso é, direitos econômicos e sociais, são chamados de direitos positivos, porque o titular do direito é o sujeito coletivo; e por fim, os direitos de terceira geração ou direitos coletivos e difusos, são direitos positivos e negativos, pois abrangem o indivíduo, singularmente falando; e os indivíduos no aspecto coletivo (SILVA, 2002, p. 51-2).
Deve-se salientar que se diz que os direitos fundamentais são de caráter histórico, pois evoluíram e ampliaram-se com o passar do tempo. Por isso é que se fala em gerações de direitos, uma vez que cada etapa da história novos direitos fundamentais surgem (SILVA, 2002, p.51).
1.2 O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição Federal do Brasil:
Mesmo antes da promulgação da Carta Constitucional Brasileira, o Supremo Tribunal Federal já admitia a proteção ao meio ambiente como um direito de terceira geração. A ementa MS22164/SP – Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, DJU 17.11.1985, p. 39206; demonstra a afirmação (SILVA, 2002, p.55-6):
A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.direito de terceira geração. Princípio da solidariedade. O direito à integridade ao meio ambiente.Típico direito de terceira geração. Constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva , refletindo,dentro do processo de afirmação dos direitos humanos , a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,caracterizados , enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela de uma essencial inexauribilidade.Considerações doutrinárias.
Nota-se que a proteção ao meio ambiente, como um direito fundamental de terceira geração, não tem como titular apenas um indivíduo ou determinado grupo, mas sim todo o gênero humano, como afirmação de sua existência de uma maneira real e concreta. É um direito positivo e negativo porque exige que o Estado, por si mesmo, respeite a qualidade do meio ambiente, sob outra perspectiva, exige que o poder público seja garantidor da incolumidade do bem jurídico, ou seja, que não seja prejudicado, para que não afete a qualidade de vida. Conclui-se que é um dos direitos mais completos, pois não é somente negativo como os de primeira geração e nem somente positivo como os de segunda geração, mas sim de ambos os aspectos (SILVA, 2002, p. 52).
Em decorrência da consagração dos Direitos e Garantias Fundamentais em nossa Constituição, neste capítulo, a discussão gira em torno de um direito específico de terceira geração, o direito essencial a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio para a sobrevivência do ser humano.
A Magna Carta Brasileira aglutinou em seu corpo de normas o Título VIII que se refere à Ordem Social, na qual existe o Capítulo VI que consagra o Meio Ambiente como elemento de proteção constitucional.
Ao prestigiar a proteção ao direito de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição Brasileira fixou de maneira proclamada e cabal um amparo a esse direito que já existia nos ordenamentos jurídicos mais antigos. (MACHADO apud MORAES, 2001, P. 667)
Não obstante a preocupação com o meio ambiente seja antiga em vários ordenamentos jurídicos, inclusive nas Ordenações Filipinas que previam no Livro Quinto, Título LXXV, pena gravíssima ao agente que cortasse árvore ou fruto , sujeitando-o ao açoite e ao degredo para a África por quatro anos, se o dano fosse mínimo, caso contrário o degredo seria para sempre;as nossas Constituições anteriores, diferentemente da atual que destinou um capítulo para sua proteção, com ele nunca se preocuparam.
Importante frisar que anterior as Ordenações Filipinas, houve as Ordenações Afonsinas, que tanto uma quanto à outra, estavam em vigor em Portugal na época do descobrimento do Brasil. A Ordenação Afonsina continha determinações proibitivas de que não se podia atirar aos rios e lagos material que pudesse matar os peixes ou perturbar seu desenvolvimento (ROCHA, 2000, p. 184).
Além desses ordenamentos, existiram documentos que construíram a história do direito ambiental, como o Código de Hamurabi, o Livro dos mortos do Antigo Egito e o hino Persa de Zaratustra, e a Lei Mosaica que determinava que em caso de guerra que fosse poupado o arvoredo; ou seja, desde as civilizações mais antigas existe um respeito imaculado à natureza (MARUM, 2002, p. 129).
As primeiras leis da humanidade, fixadas por escrito, foram códigos que regulavam o uso da água, há 4000 a. C sobre a regência de Hamurabi em 1700 a . C, a Mesopotâmia produziu o primeiro código de leis abrangentes da história que compreende sem ordenamento rígido, 282 parágrafos para regulamentar a vida social. No parágrafo 53 diz: “se alguém se exime de manter seu dique em boas condições, se este dique se romper e todas as lavouras forem alagados, então o responsável pelo dique rompido será vendido como escravo, e a renda em dinheiro devem repor os cereais cuja destruição causou” (BORGES, 2001, p. 70-5).
Também na Magna Carta outorgada por João Sem–Terra em 1215 havia dispositivos que consagravam disposições em relação a florestas. Tal documento posteriormente à sua outorga foi dividido em duas partes, isso é, a Carta das Florestas e a Carta das Liberdades, que hoje é reverenciada em todos os ordenamentos jurídicos. Na Carta das Florestas era determinada que todas as florestas pertenciam ao rei, vedando aos súditos de praticar a caça e a exploração de madeiras nas mesmas (MARUM, 2002, p. 129).
Desta forma, esclarece-se a importância desde os tempos mais remotos da preservação do ambiente de vivência para que se apresente a todos de uma maneira sadia que proclame a vida.
De grande valia é destacar que até atingir-se a consagração na Constituição de uma proteção ao meio ambiente houve uma evolução legislativa para que isso ocorresse no Brasil. Em 1938 houve a edição do Código de Águas, em 1965 do Código Florestal, em 1967 do Código de Pesca e também do Código de Mineração, e em 1980 do Código Brasileiro do Ar (ROCHA, 2000, p. 184).
Porém, a tutela que era conferida se apresentava num enfoque eminentemente econômico, eventualmente se protegia o meio ambiente nessas legislações. Mas em 1972, na Conferência da ONU sobre o Ambiente Humano é que surge a preocupação com questões ambientais e em Estocolmo emerge a importância de uma educação ambiental para todos que habitam o planeta (ROCHA, 2000, p. 185).
A partir desta nova inquietação sobre o meio ambiente, necessitou-se de um regramento especial no Brasil para que se acompanhasse a tendência mundial. No dia 31 de Agosto de 1981 foi editada e denominada a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, sendo a primeira com exclusiva preocupação ambiental com tutela direta para a coletividade. Em seguida há a edição em 24 de Julho de 1985 da Lei que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, fornecendo instrumentos processuais para coibir e reparar danos à natureza (ROCHA, 2000, p. 185).
E de maior relevância tem-se então a proteção constitucional. O artigo 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988 vem corroborar de maneira evidente o texto que defende o meio ambiente, ratificando o grande valor que existe para o poder público e para o direito, de que o mesmo é garantia de vida digna para todos (MEDAUAR, 2004, p. 132):
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e á coletividade o dever de defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações.
Conforme o autor Jorge Alberto de Oliveira Marum (2002, p. 133) a Constituição de 1988 vai de encontro com a democracia e com a plena garantia de direitos fundamentais, colocando em seu texto pela primeira vez o meio ambiente como bem tutelado:
[…]a par dos direitos e deveres individuais e coletivos elencados no art.5°, acrescentou o legislador constituinte, no caput do art. 225 ,um novo direito fundamental da pessoa humana, direcionado ao desfrute de condições de vida adequada em um meio ambiente saudável ou, na dicção da lei, ecologicamente equilibrado[…]
Possuí-se evidentemente uma norma que tem a função de gerar o amparo ao ambiente e como sendo uma norma constitucional, em um ordenamento jurídico, se torna superior. Assim, afasta do sistema qualquer outra norma que possa destoar do seu princípio maior, a proteção, já que gozam de supremacia e rigidez constitucionais (ROCHA, 2000, p. 188).
Segundo as palavras de Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2003, p. 15) considera-se que:
Assim, temos que o art. 225 estabelece quatro concepções fundamentais no âmbito do direito ambiental : a) de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; b) de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado diz respeito à existência de um bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, criando em nosso ordenamento o bem ambiental; c)de que a Carta Maior determina tanto ao Poder Público como à coletividade o dever de defender o bem ambiental assim como o dever de preserva-lo; d)de que a defesa e a preservação do bem ambiental estão vinculadas não só às presentes como também às futuras gerações.
No artigo 225, a sua primeira parte é mais genérica, pois descreve um direito constitucional de todos, mesmo que não localizado no capítulo dos diretos e deveres individuais e coletivos, não afasta o seu conteúdo de direito fundamental. Deste direito de fruição ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não ocorre nenhuma prerrogativa de utilização privada deste, não se pode apropiar-se individualmente de parcelas do meio ambiente para consumo privado porque é um bem de uso de todos (DERANI, 1996, p. 123).
Desde logo se percebe que o legislador constitucional cuidou de determinar algumas regras de importância neste artigo, entre elas a titularidade do meio ambiente é dada como bem de uso comum do povo. Não se pode falar em apropriação do meio ambiente, uma vez que a propriedade, portanto, com determinação constitucional, deve ter em vista a utilização correta do meio ambiente. Assim, há uma tutela difusa do meio ambiente, colocando os bens ambientais sob a responsabilidade de todos os cidadãos (ARAÚJO, 2002, p. 25).
Ao materializar-se a preocupação com o meio ambiente na Constituição Brasileira, houve uma adesão à Declaração sobre o Ambiente Humano, que aconteceu na Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, Suécia, em Junho de 1972; a qual define que o homem tem o direito de ter uma vida digna em um ambiente que permita condições de viver sadiamente (MORAES, 2001, p. 668):
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras […] Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequados[…]
O meio ambiente é onde se desenvolve a vida humana, por isso é exigido que como sendo um direito fundamental, venha a nos proporcionar qualidade para viver e progredir (SILVA, 2003, p.58):
Temos dito que o combate aos sistemas de degradação do meio ambiente convertera-se numa preocupação de todos. A proteção ambiental (grifo do autor), abrangendo a preservação da Natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção, do equilíbrio ecológico, visa a tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida (grifo do autor), como uma forma de direito fundamental da pessoa humana.
Desta forma, o local onde se vive o meio, deve ser compreendido de uma maneira ampla, ou seja, são todos os elementos que interagem com o homem, como o solo, água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. Enfim, é a união dos bens da natureza, os bens da cultura que se relacionam entre si e atingem o homem.
Conforme José Afonso da Silva, a concepção de meio ambiente deve ser entendida num primeiro instante de uma maneira conexa e posteriormente de uma maneira isolada (2003, p. 20):
O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais.
Enfim, verifica-se que toda atenção em prol da preservação, recuperação e revitalização do meio ambiente é algo que é uma preocupação da qual o poder público e o direito devem se ater, “porque ele forma a ambiência na qual se move, desenvolve, atua e se expande a vida humana” (SILVA, 2003, p.21).
Aliás, dentro da ambiência onde se vive não se desprezando nenhum dos outros elementos formadores que são de suma relevância, deve-se levar em consideração a proeminência que a água na forma líquida detém diante da necessidade que os seres humanos possuem em utilizá-la para prover a sua sobrevivência e desenvolvimento, que são totalmente inviabilizados sem a mesma. Este será então, o assunto a ser tratado no sub–item a seguir.
1.3.Indispensabilidade da água para a sobrevivência e o desenvolvimento dos seres humanos
A Terra é o planeta vida, planeta água, planeta do homem, planeta das futuras gerações. Em relação ao planeta deve-se, portanto, ter responsabilidade social, desenvolvimento sustentável, ética na vida, na política, na ciência, no trato com a natureza. O ser humano, como cidadão deve ter consciência sobre “as coisas humanas” e as “coisas vivas”, a vida em quaisquer das suas expressões (RODRIGUEIRO; CARVALHO, 2002, p. 273).
A vida é o bem mais precioso que o ser humano detém, pois a partir dela, o homem tem a possibilidade de nascer, crescer e se desenvolver. Para que possamos viver, o meio onde habitamos deve nos prover condições de vida.
O direito à vida vem consagrado no Título II, Capítulo I, art. 5° da Constituição, como um direito fundamental ao indivíduo (MORAES, 2001, p. 21):
Art.5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e á propriedade[…]
O sentido dado à vida no corpo da Constituição vai além de seu aspecto biológico, de atividade funcional; mas sim atinge sua acepção biográfica, ou seja, influência do meio no viver. O mesmo é um processo que se inicia com a concepção dos seres humanos que se transformam, progridem, mantêm sua identidade, até que mudam de qualidade; passando do estágio de vida, para o estágio de morte. E tudo que agir em contrário, em prejuízo a esse fluir espontâneo e incessante, contraria a vida (SILVA, 2002, p. 53-4).
Para que seja propiciada a existência, o meio deve estar de acordo, não faltando nenhum elemento condicionante do viver, principalmente a água. Este líquido incolor e insípido é um componente importante e especialmente, indispensável a toda e qualquer forma de vida, uma vez que sem água é impossível viver (ANTUNES, 1998, p. 325).
Necessário é ressaltar o conceito deste componente. A água é um termo que é derivado do Latim, sendo classificada como um substantivo feminino; quimicamente é classificada como um Óxido de hidrogênio, líquido incolor, essencial à vida, possuindo na sua fórmula H2O; é a parte líquida do globo terrestre, mas se apresenta na atmosfera na forma de vapor, ou até mesmo no interior do subsolo, onde constitui lençóis aqüíferos (ANTUNES, 1998, p. 336).
No mesmo passo, seria a fase líquida de um composto químico formado aproximadamente por duas partes de hidrogênio e dezesseis partes de oxigênio em peso. Na natureza, ela contém pequenas quantidades de água pesada, de gases e de sólidos, principalmente de sais em solução (GLOSSÁRIO DE TERMOS HIDROLÓGICOS, 1976, p. 37).
Encontra-se água em toda à parte, isso é, nas nuvens, no mar, nos rios, nos lagos, em lençóis subterrâneos, no ar, nas plantas, nos animais, em nosso corpo, existindo até seres que são completamente constituídos por água, como é o exemplo da medusa; afinal vivemos num planeta recoberto por água.
Entretanto, equivocadamente pode se imaginar que por vivermos num Planeta que se chama Terra, mas que deveria se chamar Água, já que a superfície global é de 2/3 pertencente aos oceanos; que se tem em total disponibilidade a água que se precisa para a sobrevivência. No entanto, a qualidade da água doce e até mesmo da salina estão muito ameaçadas, visto que a escassez e falta de qualidade em várias partes do mundo vem se tornando crescente e alarmante (ANTUNES, 1998, p. 325).
Neste mesmo sentido, Mauro Valdir Shumacher e Juarez Martins Hoppe esclarecem essa afirmação, demonstrando que a água doce disponível e necessária ao ser humano para sobreviver é muito escassa (1998, p. 03):
A grande parte da água do planeta 1,4. 109 Km3 (1 Km3 = 1.000.000.000.000 litros), 97, 137% forma a água salgada dos oceanos. Dos restantes 2,8635 (40.106 Km3) da água doce, cerca de 31,4. 106 Km3, (2,24%) estão armazenados nas geleiras e massa de gelos de pólos. Ainda 8,75. 106 Km3 (0,612%) da água doce é subterrânea. Outros 126.103 Km3 (0,009%) da água doce encontram-se nos mares. Mais 14.103 Km3 (0,001%) encontram-se nas águas correntes de rios, sangas, cachoeiras, etc. E, finalmente, uma mesma quantia de água, 14.103 Km3, encontram-se na atmosfera.
Infelizmente estas reservas não aumentam de patamar, pois a água que temos hoje é a mesma que havia há milhões de anos, com o diferencial de que hoje a população do globo aumentou e a pouca água disponível é de difícil acesso e inadequada para o uso, visto que a interferência do homem foi grande, o que contribuiu para inutilização da mesma para o uso dos seres vivos.
Desde que houve o resfriamento do globo terrestre, há muitos milênios, existem os mesmos 1,4 bilhões de metros cúbicos. No entanto, só pode-se utilizar uma gota deste manancial todo. O porquê disto reside em que necessitamos de água doce, que se apresenta em somente 2,5% de toda água do mundo. Registra-se que dessa pequena parte, deve-se retirar dois terços, os quais se encontram confinados nas calotas polares e no gelo eterno que sobrou das montanhas, tendo que ser desconsiderado do que sobrou a maior parte da mesma que se localiza armazenada no subsolo (QUADRADO; VERGARA, 2003, p. 43).
A água considerada doce é exclusivamente continental e representa somente 1% da água líquida existente. Essa está à disposição do homem para seu uso corrente, principalmente no que diz respeito ao preparo de alimento, por apresentar ausência de sabor e de sais; a mesma é encontrada em rios, lagos, sangas e córregos (SCHUMACHER; HOPPE, 1998,.p. 10).
No planeta, a água pode ser encontrada em diferentes estados físicos. Possui-se o estado sólido, que se apresenta na forma de gelo, situada principalmente nos pólos Norte e Sul e também nas altas montanhas como nos Andes, na América do Sul; Alpes, na Europa; no Himalaia, na Ásia e no Kilimanjaro, na África; observando que neste estado o volume de água existente é de 2% do total. Também se apresenta no estado líquido, totalizando um percentual de 98%, destacando-se que 97% desse percentual está localizado em mares e oceanos; o restante encontra-se nos continentes e constitui as águas superficiais, subsuperficiais e subterrâneas. E por fim, a última forma que a água se apresenta na Terra é no estado gasoso, a qual é encontrada nas regiões onde ocorrem vulcões, nos depósitos subterrâneos e, principalmente, na atmosfera sob forma de vapor d’água. O total de água existente, isso é, 0,005% encontra-se neste estado (SCHUMACHER; HOPPE, 1998, p.05- 9).
Além desses tipos de água, pode-se encontrar ainda as águas sulfurosas, que são as que contêm em solução substâncias à base de enxofre; águas ferruginosas, as quais são as águas ricas em ferro;águas calcárias que são águas que apresentam várias substâncias em solução, causadas pela erosão das rochas calcárias. Essas águas são utilizadas em tratamento médico para controlar diversas deficiências orgânicas. Ainda há as águas radioativas que emanam radiações por estarem em contato com elementos radioativos. Podem ser utilizadas para consumo como água mineral, quando atendem a certos limites de radiação, podendo, nesses casos, fazer bem à saúde humana (SHUMACHER; HOPPE, 1998, p.12).
Observa-se então que a água é um dos componentes mais respeitável do meio ambiente. Através de seu ciclo hidrológico, a mesma em sua forma líquida, tem a maior significação para o desenvolvimento de todos os seres vivos. O autor José Galizia Tundisi assevera isso na sua obra Água no século XXI – enfrentando a escassez (2003, p. 05):
[…] Toda a água do planeta está em contínuo movimento cíclico entre as reservas sólida, líquida e gasosa. Evidentemente, a fase de maior interesse é a líquida, o que é fundamental para o uso e para satisfazer as necessidades do homem e os outros organismos, animais e vegetais de todos.
Desde os tempos mais primórdios da terra e mesmo da história humana, a essenciabilidade da água para o Homo Sapiens é notável, pois toda e qualquer forma de vida depende da mesma para sobreviver e desenvolver. As grandes civilizações do passado e do presente sempre nutriram uma relação de dependência com a água doce, portanto é essencial para a sustentação da vida, suportando também as atividades econômicas e o desenvolvimento (TUNDISI, 2003, p. 01).
A história da água fica muito bem asseverada nas palavras de Tundisi (2003, p. 01):
A história da água sobre o planeta terra é complexa e está diretamente relacionada ao crescimento da população humana, ao grau de urbanização e aos usos múltiplos que afetam a quantidade e a qualidade. A história da água, seus usos e contaminações também estão relacionados à saúde, pois muitas doenças que afetam a espécie humana têm veiculação hídrica, organismos que se desenvolvem na água ou que têm parte de seu ciclo de vida em vetores que crescem em sistemas aquáticos.
Desde eras remotas se percebe a grande importância da água para o desenvolvimento do homem. Basta verificar, por exemplo, o Período Neolítico, que foi um estágio cultural avançado na Pré–História. Nesse período o ser humano passou a ser produtor e aumentou consideravelmente seu domínio sobre a natureza. O início da agricultura, que se baseia na utilização da água, implicou a reorganização econômica da sociedade, podendo-se fazer previsões de produção permitindo também o aumento da população (GIORDANI, 1972, p. 67-70).
Além disso, os rios, fonte de água, também foram de real importância para o desenvolvimento das sociedades. Foram nas margens dos grandes rios que as civilizações se desenvolviam. A presença da água, além de proporcionar a sobrevivência das populações, proporcionava a pesca, plantações (GIORDANI, 1972, p. 59).
As atividades agrícolas constituíram sempre o fundamento das civilizações. Na imperiosa civilização egípcia essas atividades eram racionalizadas em face da água desde remotas épocas para melhor serem aproveitadas pelo homem egípcio, segundo Giordani (1972, p. 85):
Ao ritmo das cheias do Nilo, progredia a vida social.A fertilidade do vale do Nilo, que causava admiração aos viajantes gregos, era contrabalançada, entretanto , por diversos fatores como a invasão das dunas de areia, a devastação das enchentes anormais, as secas prolongadas, etc. Para evitar esses malefícios e aproveitar ao máximo os fatores favoráveis, os egípcios desenvolveram bem cedo uma admirável técnica de controle de águas do Nilo construindo represas, diques, canais e reservatórios.
Outro importante exemplo sobre a influência da água sobre as grandes civilizações se dá na Fenícia, que ocupava o litoral do Mediterrâneo, parte do atual Líbano, os fenícios do grupo semita, eram conhecidos como os “Homens do Mar Vermelho” por gregos e romanos, os quais acreditavam ser este o seu local de origem. Sua condição geográfica, portanto, facilitava o comércio marítimo, ao mesmo tempo em que a agricultura se via dificultada. A Fenícia era cortada por pequenos rios, que transbordavam na estação das chuvas e permaneciam semi-secos durante o verão. Porém, nada impediu que fossem grandes navegantes e conseqüentemente grandes comerciantes (GIORDANI, 1972, p. 90-5).
Já os romanos diante da necessidade da água para seu desenvolvimento como povo, também criaram suas maneiras para reservar a mesma. Segundo Borges (2001, p. 25):
Foram os romanos os primeiros a sentir a necessidade de armazenar água, e por isso construíram uma extensa rede de aquedutos para trazer as águas límpidas dos montes Apeninos até a cidade alternando tanques e filtros ao longo do trajeto para assegurar sua qualidade. A construção deste sistema de distribuição de água decaiu com a queda do Império romano, e durante vários séculos, as fontes de distribuição de água para fins domésticos e industriais foram as fontes e mananciais locais.
Assim percebe-se o real valor da água como sustentáculo para o homem continuar a viver e se ampliar. Mas sua dependência dá-se em primeiro lugar manifestadamente no sentido fisiológico (TUNDISI, 2003, p. 04):
As necessidades humanas de água são complexas e representa em primeiro lugar uma demanda fisiológica. Cerca de 60% a 70%do peso de um ser humano, em média, é constituído por moléculas de água.Uma pessoa com 100kg tem, portanto, entre 60 e 70 kg de água em seu corpo, considerando-se 1 litro de água = 1 kg de peso.
De grande valia é a água para ser utilizada na preparação de alimentos e cozimento, que são necessidades humanas. Assim como serve para ser usada no banho, toalete e lavagens em geral, ou seja, serve para se manter a higiene. Também, ao existir o suprimento de águas para as casas das pessoas, considera-se como uma “produção reprodutiva”, já que permite a reprodução da espécie humana e, portanto , a sobrevivência da espécie (TUNDISI, 2003, p. 04).
A água é importante e essencial para que o homem consiga sobreviver. Existe a necessidade de manter no organismo humano uma quantidade razoável de água para seu perfeito funcionamento, pois se não for assim, pode–se até convalescer ficando desidratado, o que geraria até a morte do ser humano, visto que a mesma é o componente principal do sangue, no qual estão os nutrientes que são levados pela corrente sanguínea a todos os tecidos do organismo.
Quando se observa os grandes reservatórios naturais de água, como rios, lagos, oceanos, depara-se com a existência de uma imensa variedade de animais, desde grandes mamíferos aquáticos até os minúsculos protozoários, que constituem a fauna aquática. Os vegetais encontrados nos reservatórios de águas são as algas, que apresentam variados tamanhos. As algas minúsculas formam o fitoplâncton, importante fonte de renovação de oxigênio atmosférico, fundamental para a vida terrestre. Os ecossistemas aquáticos fornecem grande parte dos alimentos que abastecem a humanidade, tornando cada vez maior a importância das águas como fonte de alimentação futura do homem (SCHUMACHER; HOPPE, 1998, p. 13).
O homem para desenvolver-se não só no aspecto vital, mas também no aspecto econômico, necessita da água em vários sentidos. Os processos realizados nas indústrias, requerem água para vários fins, tais como resfriamento e condensação, uso em têxteis, frigoríficos, curtumes, celulose e papel, conservas e cervejaria, laticínios, ferro e aço, galvanotécnica, petróleo, petroquímica e detergentes (TUNDISI, 2003, p. 167).
Da mesma forma, a produção de energia elétrica se dá através da utilização da água nas usinas hidroelétricas. A construção das mesmas faz com que haja forte impacto nas economias locais, regionais e nacionais da água surgindo vantagens econômicas já que ocorre uma permanente renovação das reservas da água, a energia produzida é “limpa” em relação a combustíveis fósseis como o carvão mineral, petróleo (TUNDISI, 2003, p. 163).
Em suma, a água doce poderá ter as seguintes funções no uso urbano: doméstico, comercial, público; no uso industrial: sanitário e refrigeração de processos; na irrigação do meio rural: uso em hortaliças, frutas e cereais, entre outros; na recreação e lazer; na harmonia paisagística; na preservação da flora e da fauna; na navegação Fluvial; na geração de energia; no controle de incêndios; na pesca (SCHUMACHER; HOPPE, 1998, p. 17).
Como conteúdo mínimo da dignidade de alguém, tem-se a água. Não se pode imaginar o ser humano vivendo sem água. E, sendo assim, o direito à água faz é inerente à dignidade humana, uma vez que esse é um dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito (artigo primeiro, inciso III – Constituição Federal do Brasil). Não se pode falar em dignidade da pessoa humana se não está assegurada a utilização da água, quer para beber, quer para sua higiene pessoal. Água, portanto com uma utilização regular é necessária, sendo inconcebível imaginar o conceito de dignidade respeitado sem a utilização pelo ser humano de um pouco de água (ARAÚJO, 2002, p. 31-2).
A sobrevivência do ser humano está diretamente ligada ao consumo da água. Desta forma, utilizá-la se transformou em um direito. No momento que este direito é negado, é como se estivesse sendo declarada sentença de morte para um ser vivo (MACHADO, 2002, p.13-5).
Porém, a água potável como um bem comum da humanidade e que deve ser acessível a todos pela sua indispensabilidade, está com o seu acesso sendo prejudicado, visto que o processo de privatização da água está se alastrando pelo mundo. Assim, de dádiva inesgotável e gratuita, passa a ser uma mercadoria, com preço estabelecido (COTTA, 2003, p. 01).
Nessa perspectiva, este será o tema a ser tratado no próximo capítulo.
2. A Privatização da água
Este capítulo abordará a temática da privatização da água. Será demonstrado o valor que a água adquiriu diante do mercado econômico, sendo um dos bens mais valorizados atualmente, fazendo com que ocorresse uma corrida das grandes empresas privadas mundiais, com a finalidade de se apoderarem deste bem de uso comum do povo. Como conseqüência deste fato há o conflito dos interesses privados em somente auferir lucro, com os interesses públicos que é de gerir o acesso pleno à água, que é um direito fundamental do ser humano.
2.1 A àgua se torna um bem, de maneira equivocada, com valor econômico.
Desde os tempos antigos, a água sempre foi um dos mais importantes reguladores sociais. As sociedades camponesas e as comunidades aldeãs, que tinham suas condições de vida muito ligadas ao solo, estruturaram-se ao redor da água. Na grande maioria, era considerada como um bem comum e a água tornava-se uma fonte de poder. Tornaram-se raros os casos em que todos os membros de uma sociedade estivessem num mesmo nível em relação à água, posto que o acesso a ela sempre envolveu desigualdade (PETRELLA, 2002, p. 59–60).
Hoje a importância da água para o homem continua sendo imensa. É fundamental para a sobrevivência física, visto que os indivíduos humanos são carentes de água para que suas necessidades fisiológicas sejam satisfeitas; assim como para que ocorra o incremento de atividades que são necessárias para o desenvolvimento humano, tais como para geração de energia hidroelétrica, utilização em processos nas indústrias, desenvolvimento da agricultura, recreação, harmonia paisagística, além de outros.
Isso aponta para a crucial importância, tanto na história humana como para ela, de que se deve fazer esforços para que na nossa sociedade atual os direitos à vida sejam acessíveis a todos, principalmente o direito à água, visto que a necessidade da mesma para a vida humana é de caráter vital (PETRELLA, 2002, p. 60).
A água potável é um bem comum da humanidade e que tem que ser acessível a todos conforme declaração do Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Culturais e Sociais (COTTA, 2003, p. 01-02).
No entanto houve um favorecimento a partir da globalização para que grandes empresas transnacionais estivessem ampliando sua presença em serviços de saneamento e ganhando o direito de explorar fontes de água. Surge então uma bipolaridade, com os que entendem a água como um produto que se pode manejar, engarrafar, pôr preço e vender, acreditando que a tecnologia e o mercado podem atender a necessidade humana através da iniciativa privada; frente aos ambientalistas que acreditam que a mesma não tem preço, nem dono, pertence a todos, sendo um direito fundamental e inegociável do ser humano (QUADRADO; VERGARA 2003, p.44).
Essa bipolaridade avança desenfreadamente, pois a iniciativa privada tem o poder do capital a seu lado: em 1998, o Banco Mundial previa que, em breve, o comércio global da água faturaria 800 bilhões de dólares, antes de 2001, essa projeção foi elevada para 1 trilhão de dólares. O mercado de água engarrafada cresce a uma espantosa taxa de 20% ao ano, sendo que o líquido engarrafado para venda é uma gota nesse mar de dinheiro que envolve a água; a maior fonte é o mercado de saneamento e de distribuição, já que é um ramo com um grande potencial de crescimento, pois apenas 5% da população mundial recebe água fornecida por empresas privadas. O mercado é dominado por duas grandes transnacionais, a Vivendi e a Suez, que possuem sede na França detendo 70% do faturamento do setor (QUADRADO; VERGARA 2003, p. 45-6).
O valor da água se tornou tão grande, tanto que um dos métodos de exportação de água que está decolando também é o da água engarrafada. Nos anos setenta, o volume anual de água engarrafada e comercializada no planeta foi de 300 milhões de galões, percentual que se aproxima a um bilhão de litros. Antes da década de 80, esse número havia subido para 650 milhões de galões, isso é, 7,5 bilhões de litros de água engarrafada foram consumidos em países do mundo todo. Mas nos últimos cinco anos, o volume de vendas de água engarrafada subiu rapidamente e em 2000, 22,3 bilhões de galões, ou seja, 84 bilhões de litros de água foram engarrafados e vendidos (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 170).
Percebe-se então que a água é o recurso mais visado atualmente, posto que esteja havendo uma supervalorização econômica deste bem. Somente agora, o valor econômico está sendo mais bem percebido por economistas, gestores e administradores. Admite-se que o valor estimado de “serviços” promovidos anualmente por rios, lagos e represas apresentou-se como 1,7 x 1012 dólares por ano, três vezes o valor total da produção mundial. Nessa estimativa estão incluídos custos diretos como a venda de água para consumo humano, serviços proporcionados pela autopurificação, produção de alimentos, transportes e outros usos (TUNDISI, 2003, p. 157).
Em meados dos anos 70 no Brasil, já se havia essa percepção de que a água tinha grande valor. Durante a primeira crise do petróleo, houve na imprensa a proposta de que já que não tínhamos petróleo e pagávamos um preço muito alto para te-lo, então, se poderia exportar para os países produtores, a água brasileira; já que não a possuem, e o Brasil a detém em abundância. Essa discussão ficou em pauta por um tempo mas não se operacionalizou. Porém, ficou claro o problema, isso é, alguns países têm petróleo, ou tem dinheiro, ou tem comida, ou tem alguma coisa de valor econômico, e outros têm a tão valiosa água; que mais cedo ou mais tarde poderá estar sendo comercializada como um commodity na internet (GAZZONI, 2004, p. 01).
É inegável que tal previsão se confirmou, pois a água transformou-se numa espécie de commodity como o petróleo ou a soja, incluindo até o direito de ser exportada. No Canadá, por exemplo, exporta-se água para as regiões mais sedentas do México e dos Estados Unidos. Parece até que essa situação é inacreditável, mas não, a valorização da água é tamanha que isso já se tornou uma realidade, destacando-se que é muito comum nessas regiões se ver barcaças e caminhões cruzando fronteiras carregados com nada mais do que muita água (QUADRADO; VERGARA 2003, p.46).
Essa enorme supervalorização econômica da água deve-se ao argumento capitalista de que existe um admirável desperdício no uso e gerenciamento dos recursos hídricos, devido ao fato de que a maioria das sociedades até o momento considerou a água como um bem social e não como uma mercadoria (PETRELLA, 2002, p.77).
No entanto, não é o argumento de que a escassez da água tornou a mesma um bem de valia econômica que gerou tal fato, esse argumento responsabiliza principalmente o preço artificialmente baixo da água pelo desperdício, ou seja, um argumento sem um fundo de verdade. Na realidade, o preço da água subiu muito em todas as partes do mundo nos últimos dez anos, sem que tenha propiciado uma redução do desperdício, como também a superexploração agrícola, poluição industrial, falta de visão de longo prazo envolvendo um planejamento e um gerenciamento global integrado, ou a incapacidade de implementar esses elementos de maneira eficaz e coerente devido aos interesses econômicos e financeiros em jogo (PETRELLA, 2002, p.79-83).
É imprescindível entender que a água não é um bem de mercado, com valor econômico, mas sim um bem social, insubstituível, que todos os homens dependem e precisam do acesso. Segundo Petrella (2002, p. 84):
Mas,não é possível substituir a água e continuar a viver. No entanto, um dos princípios distintivos para o funcionamento apropriado dos mecanismos do mercado é que deve ser possível substituir determinados bens fatores de produção ou produtos/serviços por outros bens – daí a função de preços relativos ao refletirem o valor comparativo do uso de tais bens e serviços intercambiáveis.É portanto, um elemento essencial do mercado que possamos escolher entre vários bens da mesma natureza ou de natureza diferente, usando para essa escolha critérios como preço e qualidade .Isso é o que constitui a liberdade do consumidor e do produtor.Ter acesso à água, no entanto, não é uma questão de escolha. Todos precisam dela. O próprio fato de ela não poder ser substituída por nada mais, faz da água um bem básico que não pode ser subordinado a um único princípio sectorial da regulamentação, legitimação e valorização;ela se enquadra nos princípios do funcionamento da sociedade como um todo.Isso é precisamente aquilo que se chama de um bem social, um bem comum, básico a qualquer comunidade humana.
Mas diante dos argumentos expostos, a pressão para que ocorra a privatização dos sistemas reguladores de água, ou seja, para que haja a valorização econômica da água, e que esta fique na mão da iniciativa privada, ganhou terreno. Esse será o tema tratado no sub–item a seguir.
2.2 Grandes corporações disputam o poder pela água perante os Estados através das privatizações.
Vive-se atualmente um processo acelerado de privatizações de serviços de água, do abastecimento público, assim como da drenagem e tratamento de águas residuais. Na privatização ocorre a concessão, ou seja, a entrega dos serviços públicos a empresas privadas para que os explorem e obtenham lucro (TOVAR, 2003, p. 02).
De uma forma geral a privatização da água pode se dar de três maneiras. Na primeira, os governos vendem completamente o fornecimento da água pública e os sistemas de tratamento para as corporações privadas, a exemplo do que aconteceu no Reino Unido. Já a segunda maneira é o modelo que foi aplicado na França, por meio dos quais os governos cedem concessões ou leases às corporações de água para que elas assumam o fornecimento do serviço e do custo da operação e manutenção do sistema. E a terceira maneira, é considerada um modelo mais restrito porque há uma corporação que é contratada pelo governo para administrar os serviços de água por uma taxa administrativa, mas a empresa não assume a coleta de receita nem aufere lucros. Afirma-se que a forma mais comum é o segundo modelo, chamado de “parcerias público-privado” (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 106-7).
Deve ficar claro que a pressão para que a água se tornasse uma mercadoria e privatiza-la não se dá como algo isolado, existem fatores que levaram a esse feito. Diga-se que é a última expressão de uma tendência geral que pelo menos nos últimos trinta anos vem afetando outras áreas da vida econômica das sociedades desenvolvidas, particularmente dos Estados Unidos. Não ficou nada para trás, nenhum setor público, nenhum serviço público e nenhum bem público, independente de terem sido serviço de correio, telecomunicações, gás, eletricidade, entre outros, tudo foi privatizado no total ou em parte (PETRELLA, 2002, p.90).
Desta forma, hoje se configura uma disputa que está relacionada ao papel do setor privado, que domina quase todos os espaços, na decisão de quem obtém a água e porquê. O comércio da água por lucro se tornou um fenômeno novo, porque o setor privado ficou consciente do valor desta, vendo lucro com a escassez. Através disto, a água promete ser para o século XXI o que o petróleo foi para o século XX: o artigo precioso que determina a riqueza e o poder das nações (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 125).
Evidente que o mundo onde a crise da água ocorre, vive sob o domínio de uma corrida econômica global das corporações transnacionais, com isso os governos abandonam suas responsabilidades quanto ao interesse público ou bem comuns dos cidadãos, se entregando somente a interesses econômicos e dificultando um direito inerente ao ser humano: consumir água (BARLOW; CLARKE, 2003,p.87-91).
Esse interesse das transnacionais explica-se pelas características muito especiais do potencial de mercado que a água possui para estas. Em primeiro lugar é um bem essencial e insubstituível, não sofre crise de procura, isto é, sempre existem clientes. Em seguida, acaba se tornando um monopólio, porque são limitadas as alternativas aos consumidores, criando-se uma forte dependência entre os utilizadores e os donos da água. Enfim, é um recurso territorializado, como a sua utilização é próxima do local de ocorrência, assim torna-se fisicamente viável o controle regional por um grupo ou por uma transnacional deste bem (TOVAR, 2002, p. 04).
Verifica-se que em 1996 a participação privada no abastecimento público era apenas residual, se concentrava na França e na Inglaterra, também na Espanha. Já em 2001 o Banco Mundial apontava para a gestão/concessão privada de espantosos 5% do abastecimento público do globo e que ainda encontra-se em crescimento acelerado porque as privatizações não param (TOVAR, 2003, p. 04).
Nessa disputa pelo controle da água existem sete grupos econômicos, dirigidos por duas transnacionais de origem francesa – Suez/Lyonaise dês Eaux e ex – Vivendi (ex – Generale dês Eaux). Está última já está instalada em Portugal com várias concessões de abastecimento de água e outros serviços. Tais transnacionais atuam muito mais em corporação ou oligopólio que em concorrência, sendo grupos de pressão fortíssimos junto dos órgãos de poder supranacionais, sobretudo os financeiros como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, General Agreement on Trade and Services (GATS), União Européia, MERCOSUL, e outros (TOVAR, 2003, p. 04 – 5).
O fenômeno da privatização é indiscutivelmente internacional. Por exemplo, em Honduras, segundo noticias veiculadas na imprensa mundial, dezoito empresas locais e estrangeiras, entre estes os sete grupos franceses, italianos, espanhóis e americanos, se qualificaram para disputar 49% das ações da “Dima”, empresa hondurenha de água (FREITAS, 2002, p. 22).
Existem vários outros grupos estrangeiros que possuem interesse em explorar serviços de tratamento de água e esgoto. A imprensa veiculou a notícia de que a Azurix, companhia global, adquiriu a AMX Acqua Management , que considera o Brasil um dos maiores mercados de privatização para água e esgotos, possuindo uma expectativa de investimento de cerca de U$ 25 bilhões ao longo dos próximos 15 anos (FREITAS, 2002, p. 22-3).
O comércio dos direitos sobre a água está se tornando um negócio imenso, tanto que além das grandes corporações privadas até pessoas comuns estão dispondo livremente de seus direitos sobre a água. Um bom exemplo está na Califórnia, em 1992, o Congresso Norte-Americano votou um projeto de lei que permite aos agricultores vender seus direitos de água para as cidades. Assim acabaria surgindo um mercado de água entre os usuários do Rio Colorado, segundo os planos do Secretário do Interior na época, Brucce Babbitt; havendo então, a venda da água do Rio Colorado para os Estados do Arizona, Nevada e Califórnia, que poderiam armazenar essa água comprada e vender às indústrias de alta tecnologia, que utilizam muita água em seus processos industriais (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 87-90).
No mesmo sentido temos as lições de Ricardo Petrella (2002, p. 87):
A nova cultura da água nos Estados Unidos introduziu (ou, pelo momento, importou do Chile) a possibilidade jurídica e prática dos “direitos da água”. Por exemplo, a um fazendeiro que desenvolver um sistema mais eficiente de irrigação será permitido vender a água que ele próprio não consumiu, para uma comunidade urbana.Isso quase não é uma idéia surpreendente em um país como os Estados Unidos onde tudo está à venda – até o “direito de poluir”. No Chile isso encorajou um tipo específico de especulação por parte das companhias mineradoras. Tendo recebido do Estado, sem qualquer ônus, praticamente todos os direitos sobre a água no momento da privatização, elas hoje controlam o mercado da água do país e organizaram situações de falta de água para aumentar os preços.
Claro fica que a privatização é um fenômeno crescente no mundo da economia, tanto que vem sendo imposta pelo FMI, como uma espécie de apoio ao acontecimento, diante dos paises mais pobres, como uma condição para que sejam fornecidos empréstimos para que os mesmos sanem seus débitos. Essa posição fica clara nas palavras de Sara Grusky (2004, p. 01):
Uma revisão geral das políticas de empréstimos do FMI, em 40 países, revela que, durante 2000, os acordos de empréstimos do FMI em 12 países, incluíram condições impondo privatizações da água ou completa recuperação do custo.[…] Ao contrário de contribuir para a redução da pobreza, a privatização da água e maiores recuperações de custo tornam a água menos acessível e mais cara para as comunidades de baixa renda, que compõem a maioria da população dos países em desenvolvimento.
Ao se privatizar os serviços de água significa uma enorme cedência de poder político, isto é, do poder de autodeterminação dos cidadãos, em favor do poder econômico. Por isso que este procedimento tem tido a forte conivência da maior parte dos governos dos países ricos e impostos, como foi mencionado anteriormente, pelo FMI e também pelo Banco Mundial e a União Européia (TOVAR, 2003, p. 05).
A iniciativa privada se tornou perante o poder público um rival eminentemente declarado: “A palavra” rival” (ou ”rivalidade“) vem do latim rivus ,que significa corrente ou riacho ; um rival , portanto , é alguém que, da margem oposta, usa a mesma fonte de água – daí a idéia de perigo ou ataque (PETRELLA, 2002, p. 60).
Assim, o privado, ou o rival; também é chamado hoje de “os senhores da água”, que como na fábula do lobo e do cordeiro, o “senhor” estabelece as leis e acusa sempre o mais fraco de erros que ele não cometeu. Atualmente como o sistema é baseado na lei do mais forte, aquele que obtiver o comando das águas obterá o poder se sobrepondo a qualquer pressão (PETRELLA, 2002, p.60-1).
Segundo Petrella, atuação dos “senhores da água” no momento em que vivemos se ocorre da seguinte maneira (2002, p. 60):
O senhor da água obtém seu poder através da propriedade e do controle da água, ou através dos mecanismos de acesso, apropriação e uso em vigor,já que esses lhe permitem beneficiar-se ao máximo dos bens e serviços que a água gera ou faz ser possível gerar. O senhor da água é, assim, capaz de ampliar sua capacidade de ação (em termos de conhecimento, informação, tecnologia, finanças, relações sociais e poder cultural) e de perpetuar seu controle.
Ilude-se ao pensar que o privado oferece eficácia. Isso é uma falsidade. Eficácia é o grau de cumprimento do objetivo, e este é para o serviço público aumentar a qualidade de vida para as populações, enquanto que para o empresário é obter lucro. A eficácia do empresário mede-se pelo lucro obtido, e não pela satisfação dos cidadãos. Tem interesse para os acionistas e não para o povo (TOVAR, 2002, p. 08-9).
Assim fica perceptível a colisão dos interesses do privado perante o público que acaba favorecendo o setor privado, sendo que este é o próximo assunto a ser discutido no sub-item a seguir.
2.3 A colisão dos interesses privados e públicos.
No momento em que se presume uma vida em sociedade, ocorre a renúncia da liberdade plena de atuação, em favor do é melhor e mais adequado para se conviver coletivamente. Muitas vezes o comportamento dos particulares, embora em consonância com a ordem jurídica, irá ferir os interesses e direitos da coletividade, acarretando a necessidade de disciplina hierárquica entre os direitos em choque (FREITAS, 2002, p. 103).
Nas constituições existe a garantia da incolumidade dos bens e valores sociais, que é efetivado na maioria das vezes pela restrição de certos direitos do cidadão. Essa limitação ao uso e gozo dos bens, direitos e atividades pelos particulares em nome da salvaguarda dos direitos da coletividade tem sido tradicionalmente denominada de “poder de polícia”, isso é, conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado direitos e liberdades individuais (FREITAS, 2002, p.103-5).
Nesse mesmo sentido tem-se o conceito de poder de Polícia por Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Administrativo Brasileiro (2003, p. 127):
Poder de Polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens , atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.Em linguagem menos técnica, podemos dizer que o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda a Administração , o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem – estar social, ao desenvolvimento e á segurança nacional.
Assim, como atribuição do Poder Público tem se que o acesso à água tratada e de qualidade é um direito que todo cidadão possui visto que é um direito fundamental à sua sobrevivência e que deve ser promovido e mantido pelos Estados. Esse acesso para todos tem a função de promover novas formas de integração no aspecto social e de cidadania, especialmente levando-se em conta a saúde humana e a qualidade e expectativa de vida (TUNDISI, 2003, p. 103).
O Poder Público deve prestar serviços á população, constituindo um dever seu. Entre os serviços que devem ser prestados apresenta-se o acesso à água, que se enquadra como um serviço de necessidade declarada perante os seres humanos, pois propicia saúde e conseqüentemente vida. Segundo conceituação de serviços públicos por Hely Lopes Meirelles (2003, p. 320) em Direito Administrativo Brasileiro, corrobora – se a essenciabilidade dos mesmos perante as:
Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente á comunidade, por reconhecer a sua essenciabilidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do poder público, no sentido de que só a Administração deve presta – los, sem delegação a terceiros, mesmo porque geralmente existem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde pública.
Mas o que acontece é que em função da privatização, desregulamentação e liberalização, que são senhas dos sistemas normativos dos governos mundiais na área da economia, em muitos países o Estado e os políticos desistiram do seu papel principal de prover o acesso à água e passaram esse papel para as corporações privadas globalizadas e para os mercados financeiros, desvencilhando-se de seu papel de gerir direitos básicos aos cidadãos (PETRELLA, 2002, p. 91).
Discute-se a legitimidade na entrega aos privados da gestão de um patrimônio coletivo, como é a água. Se existe legitimidade ao permitir que parte do rendimento gerado pelo fornecimento de água não seja reinvestido no sistema e sirva para remunerar acionistas privados pondo em causa a universalização e a qualidade de atendimento (BRÁS, 2002, p. 51).
Essa entrega sem dúvida é ilegítima, pois faz com que nem todos os membros de uma sociedade consigam ter um acesso igualitário à água.
Desta forma, surgiram conflitos entre o poder público e a iniciativa privada ao ocorrer o repasse do acesso aos recursos hídricos, evidenciando que quando a água que é distribuída pelo poder público chega aos grandes centros urbanos, enquanto que a que é distribuída para áreas periurbanas não promovem o adequado acesso à água encanada e a população dessas áreas fica dependendo da água das companhias privadas.
Segundo Tundisi (2003, p. 103):
Em grandes centros urbanos , especialmente de países em desenvolvimento ou emergentes, a população da área central recebe a água que o setor público distribui às residências, escolas, indústrias, clubes ou associações e comércio.Já a população situada em áreas periurbanas não tem acesso à água encanada e, portanto, depende da água distribuída por companhias privadas , em carros – pipas, tendo de pagar mais caro por uma água de pior qualidade.
Os custos da água para as regiões abastecidas pelo poder público, ou seja, as regiões centrais são bem menos onerosos para a população do que a água distribuída pela iniciativa privada às regiões periurbanas. “A população da zona central das cidades, em muitos países, gasta 1% do salário com a água, enquanto que a população da zona periurbana gasta 15% do salário” (TUNDISI, 2003, p. 103).
Através de vários estudos demonstrou-se que as populações urbanas carentes que existem no mundo pagam altos preços pelo fornecimento de água e acabam por dispender grande valor dos seus rendimentos com o consumo da água. Como exemplo, em Port–au–Prince no Haiti, os usuários mais carentes às vezes gastam 20% de seus rendimentos com o pagamento da água; em Onitaha na Nigéria, calculou-se que os mais carentes gastam 18% de seus rendimentos com água na época da seca, enquanto que usuários com rendimentos mais altos gastam de 2% a 3% (TUNDISI, 2003, p. 172).
Neste mesmo enfoque, dentro das sociedades individuais é evidente a disparidade de acesso à água. As pessoas mais necessitadas de países pobres pagam muito mais pela água do que as pessoas ricas. A água que é subsidiada pelo governo, ou seja, a água municipal é fornecida aos ricos; sendo que as pessoas de classe médias têm a possibilidade de instalar reservatórios para armazenar a água distribuída pelo poder público. Contudo, o pobre precisa comprar água de transportadores particulares, que chegam a cobrar até 100 vezes a taxa municipal de fornecimento de água (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 70-1).
O pagamento da água tem um efeito inverso de redistribuição, porque representa uma percentagem do rendimento tanto mais elevada quando o rendimento é mais baixo. Um aumento no preço da água que represente 1% de um rendimento alto, significa 20% num rendimento vinte vezes inferior. O preço da água e os seus aumentos traduzem-se como um incremento nos rendimentos e uma agravante para a pobreza (TOVAR, 2002, p. 07).
A luta pela água é uma das piores, pois os Estados competem pelos escassos recursos hídricos e as Companhias encaram-na como uma mercadoria para tirar proveito dos pobres. A privatização já gerou conseqüências no hemisfério sul, em países como a Argentina e a Bolívia, nos quais os preços decolaram e a qualidade despencou (GUIMARÃES, 2004, p. 01-7).
Através do ato de privatizar surgiram várias conseqüências, como o aumento de tarifas, lucros maiores para empresas estrangeiras e corrupção política, o que fez com que os consumidores se sentissem enganados. Na Bolívia, o aumento das tarifas gerou manifestações violentas de protestos contra uma concessão para o tratamento da água (JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO, SÃO PAULO, 2003).
No Reino Unido, ao ocorrer à privatização, como primeira conseqüência verificou-se que as empresas seguindo uma estratégia de maximização de resultados não possuem qualquer lógica de desenvolvimento regional. O preço da água para uso doméstico aumentou em média 36% e os dos serviços dos esgotos 42%. Os lucros das empresas só em 1998 aumentaram 57% por comparação com o ano de 1997(BRÁS, 2002, p. 20).
Por todos esses fatos a população dos países em que ocorre a privatização revoltam-se, sendo isso um pequeno exemplo de um movimento global sobre as questões relacionadas à água. Contudo, ainda existem muitos passos que podem ser dados para aumentar o impulso das iniciativas de preservação da água no mundo, unificando-as ao redor de um conjunto de princípios. Já existem muitos movimentos em relação à água, de grupos ambientais que juntam forças com os de justiça social para poderem lutar pelo fim da aquisição corporativa dos surimentos da água no mundo.
Segundo Barlow e Clarke (2003 p. 243):
Pesquisas realizadas mostram a luta das pessoas pelos direitos de água ao redor do mundo revela que não apenas foram plantadas as sementes da resistência , mas que elas estão crescendo e se multiplicando. Há ainda uma série de lacunas e limitações. Claramente os vários tipos de movimentos populares que estão sendo organizados ao redor das lutas de água até agora não começaram a medir o alcance da crise global em mãos, muito menos o poder das elites econômicas e políticas que tão energicamente estão promovendo sua “solução” não – sustentável.
No mesmo sentido Tundisi (2003, p. 01):
Os usos da água geram conflitos em razão de sua multiplicidade e finalidades diversas, as quais demandam quantidades e qualidades diferentes. Águas para abastecimento público , hidroeletricidade, agricultura, transporte, recreação e turismo, disposição de resíduos têm gerado tensões , em muitos casos resolvidos nos tribunais,e também têm produzido muitos problemas legais.
É inevitável que na organização atual da sociedade, os homens têm que permanecer ligados à água através de um processo artificial, “rede de serviços de água”. Mas no momento que esta ligação possui um controle que não é do poder público, faz com que o privado tenha um poder comparável ao de quem possuísse um interruptor da máquina cardíaca dos outros homens. Assim, os indivíduos podem ser “desligados” da rede, privados do acesso à água, sendo que a quantidade liberada será medida e cobrada, a cada um será vendido o “direito à vida” (TOVAR, 2003, p. 03-4).
Além disso, quando o estado privatiza os serviços de água e vende a uma empresa o poder de cobrar o direito à vida de cada cidadão ocorre em simultâneo uma influência importantíssima sobre a utilização comum da água e do território. Seria o mesmo que a venda de um feudo que inclui homens, natureza e território, para que um grupo capitalista os explore e deles obtenha o máximo de lucro (TOVAR, 2003, p. 04).
No entanto, como a água tem sido vista como o grande investimento do futuro e com o argumento da necessidade de garantir o abastecimento mundial, especialistas debatem como fazer para assegurar que as próximas gerações tenham o que beber. Assim uma das hipóteses levantadas é um aumento da participação de empresas privadas no controle dos recursos hídricos (JORNAL DO COMÉRCIO, PORTO ALEGRE, 2004).
Todavia, a maior preocupação que se tem em relação ao privatizar a água, gira em torno das populações carentes. Teme-se que a privatização possa resultar na negativa desse bem, que é indispensável para a sobrevivência humana. Evidentemente, há que se resguardar tal situação, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida (CF, art. 5°, caput). O ideal é que não haja nenhum tipo de cobrança desses usos de volumes de água tão insignificantes (FREITAS, 2002, p. 23).
É preciso que se garanta o mínimo de dignidade às pessoas, incluindo o acesso à água. Pode-se dizer então que seria possível retirar os limites da propriedade da água, havendo um confronto entre a utilização adequada e mínima de água pelos habitantes de uma determinada região, por exemplo, e os proprietários da mesma (ARAÚJO, 2002).
Há a permissão da restrição do direito de propriedade privada com fundamento na dignidade da pessoa humana, havendo então o cumprimento dos comandos constitucionais. Entre o direito de propriedade e o princípio da dignidade humana, o qual pressupõe, é claro, a utilização mínima da água, se está diante de uma equação de solução pendente à socialização do bem, em que a concepção privatista tem que ceder à utilização social.(ARAÚJO, 2002, p. 32).
Sendo assim, água para beber, usar, preparar alimentos e para higiene pessoal deve ser gratuita, ou seja, não sujeitas a pedido de cobrança. Esses usos são de menor escala e o ser humano não consegue se manter vivendo dignamente sem a mesma (MACHADO, 2002, p. 32-3).
Dessa maneira, por ser um recurso esgotável e fundamental a água deve ser consumida de forma racional, ou seja, que as gerações presentes e futuras também possam desfrutar da mesma; assim sendo, acabou por adquirir um valor econômico, para que fosse empregada racionalmente. Porém, a água é mais que um bem econômico. Não é um bem que se enquadre nas relações de mercado, na qual os produtos que podem ser comercializados são capazes de ser substituídos por outros, a água é um bem insubstituível, único; por isso, é um bem social, não há opção de escolha, todos precisam dela (PETRELLA, 2002, p. 83-6).
Fica evidente que é insuscetível de ocorrer à apropriação privada da água. “Toda a água, em verdade, é um bem de uso comum de todos. Tanto que ninguém pode, impedir que o sedento sorva a água tida como domínio particular” (SILVA, 2003, p. 120-1).
Não há qualquer alternativa que substitua a água, sendo mais que um recurso, é um bem vital para todos os seres viventes e para o ecossistema da Terra como um todo. Qualquer ser humano tem o direito individual e coletivamente, a ter acesso a esse bem vital. O acesso á água e obrigação de conserva-la para o objetivo de sobrevivência pertencem à humanidade; não podem ser objeto de apropriação individual privada (PETRELLA, 2002, p. 128-31).
Segundo Petrella (2002, p. 131):
Assim, a água como patrimônio vital comum da humanidade, não pode ser objeto de transações comerciais tradicionais através de fronteiras ou de aquisição por parte de investidores estrangeiros. A água deve ser excluída de qualquer tratado ou acordo relacionado com a regulamentação de investimentos financeiros no mundo todo.
A água, como o ar, pertence a terra e a todas as espécies, ma vez que ninguém possui o direito de se apropriar e lucrar com ela às custas de despesa de outra pessoa. É um bem público que deve ser protegido por todos os níveis de governo e por todas as comunidades. Ou seja, a água não deveria ser privatizada, transformada em mercadoria, com propósitos comerciais. Os governos desde já devem tomar iniciativas imediatas pelo mundo, declarando que as águas de seus territórios são um bem público e criar legislações para protege-la (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 268).
A história das relações entre os seres humanos e a água sempre foi difícil , tumultuada e fascinante, principalmente quando se trata das relações dos seres humanos devido à água. Tanto que na civilização judaico–cristã a água é associada com a imagem do fim da humanidade que já ocorreu uma vez, isso é o dilúvio de Noé. Inegavelmente é uma história de inclusão e exclusão, de cooperação e de guerra, de racionalidade e de mistificação, de arte e destruição (PETRELLA, 2002, p. 59).
Espera-se que o processo de privatização da água não tenha a mesma conotação que a água recebeu durante o dilúvio de Noé, ou seja,que não represente o fim da humanidade, fim do acesso a este líquido precioso que é o referencial de sobrevivência, dignidade da pessoa humana e que é pertencente a todos os homens do Planeta Terra e que deve ser disponibilizado pelo Poder Público que jamais deve se render a apelos econômicos em detrimento de suas reais funções perante a sociedade.
3.CONCLUSÃO
Um dos objetivos deste artigo é demonstrar que a água é um bem que pertence a toda humanidade, resguardada como um direito e garantia fundamental de sobrevivência do homem, possuindo o caráter de um bem de todos que não pode ser dominado e transformado em um bem particular, pois ocorrendo isso há o cerceamento do acesso ao consumo que é essencial à sobrevivência humana.
Bacharel em Direito pela UNIFRA, Santa Maria – RS; Especializanda em Tutela dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos pela Universidade da Amazônia (UNAMA) em parceria com o Instituto de Ensino Luis Flávio Gomes (IELF) e Instituto de Direito do Rio Grande do Sul (IDRS).
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