Resumo: O presente artigo tem como objetivo a análise das normas jurídicas que disciplinam o processo administrativo tributário, mais especificamente, daquelas relacionadas à proibição dos membros de órgãos julgadores administrativos de afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade, analisando: (i) a suposta relação de subordinação desta norma com o princípio da separação dos poderes, que, de acordo com alguns autores, servir-lhe-ia como fundamento de validade; e (ii) a violação ao princípio da ampla defesa assegurado pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal. Para tanto, foi utilizada uma interpretação sistemática, mediante análise do processo de positivação, do conteúdo semântico do princípio da legalidade ao qual está vinculado o Poder Executivo, com apoio no “Percurso Gerador de Sentido” desenvolvido por Paulo de Barros Carvalho, processo necessário para o ato de aplicação de normas jurídicas.
Palavras-chave: Processo Administrativo Tributário. Declaração de Inconstitucionalidade. Separação de Poderes. Legalidade
Abstract: This article aims to analyze the legal rules governing the tax administrative process, more specifically, those related to the prohibition of administrative judges bodies members to refrain from applying or failing to observe the treaty, international agreement, law or decree, under ground of unconstitutionality, analyzing: (i) the supposed relationship of subordination of this standard with the principle of separation of powers, which, according to some authors, would serve him as the foundation of validity; and (ii) the violation of the principle of legal defense guaranteed by art. 5, LV, of the Federal Constitution. Therefore, a systematic interpretation was used by analysis of positivation process, the semantic content of the principle of legality to which it is linked the Executive Branch with support towards generating route developed by Paulo de Barros Carvalho, necessary process for the act of application of legal rules.
Key-words: Tax Administrative Proceeding – Unconstitutionality Declaration – Separation of Powers – Legality
Sumário: 1. Introdução 2. Separação dos Poderes e Princípio da Legalidade 3. Processo de Positivação no Sistema Jurídica 4. Interpretação das Normas Jurídicas 5 Conclusão. Referências
1 INTRODUÇÃO
Dispõe o art. 5º, LV, da Constituição Federal[1] que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, o que significa dizer que a jurisdição Estatal é composta de duas esferas, a uma, esfera administrativa; e a duas, esfera judicial, sendo que em ambas as esferas é assegurado aos litigantes o contraditório e a ampla defesa.
Dessa forma, o processo administrativo tributário, disciplinado, no âmbito federal, pelo Decreto n.º 70.235/72[2], apresenta-se como alternativa aos contribuintes que pretendem discutir a exigibilidade de créditos tributários.
É inegável que, à primeira vista, a opção pela discussão na via administrativa, é muito mais vantajosa aos contribuintes, tendo em vista o fato de que a simples apresentação de impugnações e recursos administrativos é suficiente para suspender a exigibilidade do crédito tributário, enquanto perdurar o processo administrativo, conforme prescreve o art. 151, III do código Tributário Nacional, que assim dispõe:
“Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:[…]
III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;”
Sobre o tema, ensina Carvalho[3] que:
“O lançamento tributário, ao ser lavrado pela autoridade administrativa competente, vem impregnado dos atributos da presunção de legitimidade e da exigibilidade. O sujeito passivo não se conformando poderá deduzir seus artigos de impugnação, suscitando, então, o pronunciamento de órgão controlador da legalidade daquele ato que, por sua vez, também abre ensejo a nova manifestação de insurgência do administrado, mediante recurso a órgãos superiores da Administração, quase sempre estruturados em colégio. […]
Respeitados os pressupostos instituídos em lei para o ingresso no procedimento administrativo, as impugnações e os recursos têm força de sustar a exigibilidade do crédito. Não quer isso dizer que o procedimento fique estagnado, o que seria absurdo supor, mas que o Poder Público, na pendência da solução administrativa, ficará inibido de inscrever a dívida e procurar o Poder Judiciário para requerer seus direitos”.
Evidentemente, não se olvida que, entre as demais hipóteses de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, previstas no art. 151 do Código Tributário Nacional, algumas podem beneficiar o contribuinte que optar por renunciar à esfera administrativa, ajuizando ação judicial, contudo, neste caso, a suspensão da exigibilidade dependeria (i) do depósito correspondente ao valor integral do crédito tributário; (ii) da concessão de medida liminar; ou (iii) antecipação de tutela.
Relativamente às duas últimas hipóteses, os contribuintes dependerão do convencimento do magistrado a respeito da presença dos requisitos necessários para as almejadas concessões, sendo certo que, caso o Poder Judiciário entenda pela ausência de tais requisitos, não restará outra alternativa ao contribuinte, para suspender a exigibilidade do crédito tributário, senão aquela de garantir o juízo, o que, invariavelmente, representará um custo ao contribuinte, ainda que, ao final da demanda, receba a tutela pleiteada.
Some-se a este custo: as despesas com advogado, que, nos termos da Lei n.º 8.906/1994, é indispensável para o ajuizamento de ações judiciais e mandados de segurança; custas processuais; e eventuais honorários de sucumbência, e, mais não será preciso dizer para se evidenciar a importância do contencioso administrativo para os contribuintes. Contudo, apesar da incontestável relevância da via administrativa, um problema prático se impõe aos contribuintes e, também, aos advogados, que atuam no contencioso administrativo tributário. Trata-se da impossibilidade de se discutir a constitucionalidade, no âmbito do processo administrativo.
Dispõe o art. 26-A, do já citado Decreto n.º 70.235/72[4] que: “no âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.”, ressalvando as hipóteses (i) de que a inconstitucionalidade já tenha sido reconhecida, por decisão definitiva plenária do Supremo Tribunal Federal; ou (ii) de que exista: a) dispensa legal de constituição ou de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional; b) súmula da Advocacia-Geral da União; e c) pareceres do Advogado-Geral da União aprovados pelo Presidente da República.
Importante ressaltar que outros instrumentos normativos replicam as disposições do referido Decreto n.º 70.235/72[5], tal como ocorre com o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), sendo certo, ainda, que normas semelhantes podem ser verificadas ao se analisar a legislação pertinente ao contencioso administrativo tributário de outros Entes da Federação. Apenas à guisa de exemplo, cite-se a Lei Estadual n.º 13.457/2009, do Estado de São Paulo[6] e Lei Municipal n.º14.107/2005[7], do Município de São Paulo.
Ora, não há dúvidas que o exercício da ampla defesa requer, muitas vezes, a invocação de normas jurídicas veiculadas pela Constituição Federal, o que se faz ainda mais necessário em se tratando de matéria tributária, pois é sabido que o legislador constituinte elaborou verdadeiro estatuto do contribuinte, ao prescrever as normas tributárias. Aliás, pode-se dizer que a Constituição da República Federativa do Brasil é uma das mais completas nesse aspecto, tendência que já se verificava na Constituição Federal anterior, conforme destacou o ilustre mestre baiano Aliomar Baleiro, em aula pronunciada no curso de extensão cultural “A Constituição do Brasil de 24-1-67”, da Universidade Nacional de Brasília.
“Não sei se meus jovens colegas já fizeram uma comparação também estatística entre a de 67 e a anterior. Grosso modo – e dou como possível um erro de um, dois e três por cento -, a Constituição de 67 tem 25 mil palavras. Dirão: “Contou?”. Não. Calculei pelo número de páginas, todas do mesmo tipo, somando a média de palavras por linha, multiplicando o número de linhas. Então, as disposições financeiras ocupam cinco mil palavras. Cabe logo a afirmação de que a nossa Constituição de 67, entre todas do mundo – e hoje há mais de cem Constituições no mundo -, é a que reserva maior espeço a matéria financeira[8]”
Ainda sobre o dito estatuto do contribuinte, lecionam Marcelo Magalhães Peixoto e Marcelo Lima Castro Diniz[9] que:
“Estatuto do Contribuinte é uma expressão que predica o conjunto de direitos fundamentais atribuídos ao contribuinte, com o escopo de limitar e disciplinar o poder de tributar. A condição de direitos fundamentais indica que é a Constituição que os prescreve. Mas o estatuto do contribuinte não abrange apenas regras de competência e as limitações ao poder de tributar – que por si só veiculam direitos fundamentais -, distribuídas entre os arts. 145 e 156 da CF, senão também os preceitos que firmam os princípios fundamentais (art. 1º a 4º) e os direitos e garantias individuais, cuja amplitude é estendida pelos §§ 1º e 2º, do art. 5º[10].
Ocorre que, apesar das ponderações acima, que, por si só, são suficientes para evidenciar a total ausência de harmonia entre o direito fundamental previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal e a vedação veiculada pelo art. 26-A do Decreto n.º 70.235/72[11], a constitucionalidade desta tem gerado controvérsias entre doutrinadores, uma vez que, aparentemente, encontra fundamento de validade no princípio da separação dos poderes.
Neste sentido, veja-se o que afirma Machado Segundo[12]:
“Nesse caso, insista-se, a Administração não estará simplesmente revendo um ato seu, mas julgando a validade de um ato do Poder Legislativo, o que não tem, nem pode ter, fundamento no princípio da legalidade, nem muito menos no exercício da autotutela administrativa que dele decorre. Assim, se o processo administrativo existe para instrumentalizar o exercício da autotutela, e essa autotutela não autoriza julgamentos sobre atos praticados por outros poderes, não é possível à autoridade administrativa de julgamento declarar a inconstitucionalidade de uma lei”.
Contudo, não nos parece ser necessária a ponderação de princípios, no caso em questão, pelo simples fato de que o conhecimento e reconhecimento da inconstitucionalidade de uma determinada lei, no âmbito do processo administrativo, não representa violação ao princípio da separação dos poderes.
Acrescente-se, ainda, que há quem defenda a impossibilidade de se afastar dispositivos de lei, mesmo que inconstitucionais, baseados com dificuldades de ordem prática, tal é o posicionamento de Machado Segundo[13], que afirma:
“Se um órgão do Contencioso Administrativo Fiscal pudesse examinar a arguição de inconstitucionalidade de uma lei tributária, disso poderia resultar a prevalência de decisões divergentes sobre um mesmo dispositivo de uma lei, sem qualquer possibilidade de uniformização”.
Na mesma linha, Machado Segundo[14] pondera que:
“[…] como consequência de o processo administrativo representar forma de autotutela, ou seja, de controle interno da legalidade dos atos da Administração, uma decisão proferida no âmbito de tal processo não pode ser judicialmente questionada pela própria Administração. Se, por exemplo, um contribuinte questiona administrativamente a validade de um auto de infração, e obtém, junto ao órgão de julgamento administrativo, acórdão que considera inválido o referido auto, a Administração não pode pretender o “desfazimento” judicial da referida decisão administrativa”.
De início, destaque-se que tais argumentos não serão – nem poderiam ser – refutados, pois assiste razão aos Autores citados acima, no entanto, tal argumentação não encontra fundamentação no direito positivo, tratando-se, portanto, de considerações extremamente importantes para impulsionar o direito em sentido à desejada otimização, mas sem terem o condão de alterar o fato de que o enunciado veiculado pelo art. 26-A, do Decreto 70.235/72, e demais enunciados similares, são inconstitucionais, por ferirem o princípio do contraditório e da ampla defesa assegurados no âmbito do processo administrativo, também.
De qualquer forma, apesar de não ser este o objeto do presente artigo, vale recordar da solução proposta, por Justen Filho[15], para o problema que se apresenta, in verbis:
“A plena admissibilidade do conhecimento da questão de constitucionalidade redundará, porém, em outras decorrências. Trata-se da possibilidade de revisão da decisão administrativa no sentido da inconstitucionalidade.
Quando o Executivo reconhecer a constitucionalidade e a validade de sua aplicação ao caso concreto, sua decisão será revisável pelo Poder Judiciário. Se for o caso, poderá dar-se a pronúncia do defeito do ato administrativo que reconheceu a constitucionalidade.
Quando seria possível decorrência diversa quando houvesse recusa de aplicação de ato em virtude de pretensa inconstitucionalidade. Incumbirá ao Poder Judiciário a última palavra, em matéria de defesa da Constituição. Logo, também aqui caberia faculdade de recorrer ao Judiciário para obter provimento destinado a desconstituir a decisão administrativa”.
Dessa forma, o objetivo do presente artigo é analisar as normas jurídicas aplicáveis ao processo administrativo tributário, visando entender seus fundamentos de validade, as relações de coordenação e subordinação da norma prevista no art. 26-A, do Decreto n.º 70.235/72[16], e, ainda, provocar a reflexão sobre a (im)possibilidade de se aplicar uma norma jurídica tributária à revelia de uma interpretação sistemática.
2 SEPARAÇÃO DOS PODERES E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Como dito linhas acima, há quem identifique na interpretação da norma jurídica veiculada pelo art. 26-A, do Decreto n.º 70.235/72, um conflito entre dois princípios constitucionais, melhor dizendo, um princípio envolvendo duas cláusulas pétreas da Constituição da República: de um lado, o direito fundamental da ampla defesa e do contraditório; e, de outro lado, o princípio da separação dos poderes, o que implicaria, fatalmente, na aplicação de um princípio e, por consequência de tal ato, o afastamento do outro, no “jogo de princípios” a que se refere Eros Grau[17] (2002, p.175).
Ocorre que referido “jogo de princípios” não se faz necessário no caso em questão, uma vez que não há conflito entre as normas constitucionais em tela. Isto porque a Administração Pública não está vinculada apenas à Lei, mas deve observar e aplicar, também, normas constitucionais. Neste aspecto, ensina Justen Filho[18], que:
“Em terceiro lugar, Montesquieu nunca negou a possibilidade de repúdio a leis que ofendessem a princípios maiores. Aliás, essa possibilidade permeia o pensamento daquele autor, que alude continuamente à necessidade de respeito a certos postulados transcendentes. No conjunto de sua obra não se encontra maior obstáculo a que uma lei infringente a princípios naturais fosse repudiada por ocasião de sua aplicação”.
No mesmo sentido, Mendes e Branco[19] ensinam que, inseridas no conceito de legalidade – que se impõe à Administração Pública – estão todas as normas do sistema jurídico, inclusive, as normas constitucionais, pelo que o princípio da legalidade se converteria em princípio da constitucionalidade. Veja-se:
“O Direito Tributário também está vinculado a limites constitucionais (art. 150), dentre os quais a ideia sobressai nos princípios da “reserva de lei”, “da anterioridade da lei” e da “irretroatividade da lei.
Não há como negar, portanto, que o Estado de Direito esteja construído sobre este conceito de lei. O princípio da legalidade permanece insubstituível como garantia dos direitos e como fundamento e limite a todo funcionamento do Estado.
É certo, sem embargo, que essa concepção de Estado Legislativo foi aos poucos substituída pela contemporânea ideia de Estado Constitucional(…)
A situação normativo-hierárquica privilegiada da Lei como fonte única do direito e da justiça, fruto do pensamento racional iluminista, não pode resistir ao advento das leis constitucionais contemporâneas como normas superiores repletas de princípios e valores condicionantes de toda a produção e interpretação/aplicação da lei[20]”.
Portanto, é equivocada a ideia, segundo a qual a Administração Pública deve se limitar a aplicar as leis infraconstitucionais à revelia de interpretações sistemáticas e incursões no texto constitucional. É o que afirma Grando[21]:
“Ao se tomar como pressuposto que a Administração Pública está vinculada ao princípio da justiça, como de modo geral todos os poderes estão ao ser instituído no preâmbulo de nossa Constituição Federal que todos estão vinculados a esse valor supremo, afirma-se que ela, e por contingência o processo em seu âmbito inserido, deve estar vinculada à integralidade do conjunto dos princípios fundamentais que definem as máximas de nosso Direito”.
Assim, por consequência, as Normas Constitucionais não só devem ser levadas em consideração pelos julgadores que compõem os órgãos administrativos de julgamento, mas devem vincular, também, os agentes fiscais, a quem é atribuída a tarefa de constituir as normas jurídicas individuais e concretas, através do ato de lançamento, seja em decorrência do processo de positivação do sistema jurídico; seja como resultado do ato de aplicação das normas jurídicas, que, como é curial, pressupõe uma atividade exegética.
3 Processo de positivação no Sistema Jurídico
Conforme lembra Carvalho[22], as normas jurídicas que compõem o sistema do direito positivo brasileiro guardam relação de subordinação, ou seja, apresentam-se de forma hierarquizada.
Dessa forma, o sistema jurídico apresenta-se, aos seus observadores, na forma piramidal concebida por Hans Kelsen, sendo válido dizer que normas jurídicas hierarquicamente superiores servem de fundamento de validade para normas jurídicas hierarquicamente inferiores, que, por sua vez, derivam daquelas. Este é o sentido do processo de positivação explicado por Gama[23], in verbis:
“[…] o processo de positivação do direito coincide com a concretização de sentido dos seus âmbitos de validade. E a concretização destes âmbitos, por sua vez, enseja discursos normativos mais concretos. Isso acontece de tal forma que, se comparada a norma inferior com a superior, esta será sempre mais vaga que aquela”.
Justamente, por conta da vaguidade referida acima, para que os valores consagrados pela Constituição sejam realizados pelo sistema, faz-se necessário o processo de positivação, com a consequente edição das normas hierarquicamente inferiores, sendo imprescindível que estas normas guardem relação de subordinação com as normas hierarquicamente superiores.
É o que explica Gomes Canotilho[24]:
“A possibilidade de chegar ao sentido das normas superiores com base no que prescrevem as inferiores põe em dúvida a própria ideia de norma superior, de organização escalonada, de diálogo entre normas nas relações de fundamentação.
A ideia de que a forma vem de cima e o conteúdo vem de baixo, segundo Canotilho: ‘deve merecer uma enérgica resistência dogmática: num Estado Constitucional Democrático a forma e o conteúdo principal vêm de cima.’ Pois bem, a hierarquia dos sujeitos competentes deve, também, projetar efeitos na forma de produzir sentido.
O que não se admite, por ser ingênuo e ineficaz, é ignorar os diálogos mantidos entre norma superior e inferior. Apenas na situação de se verificar incompatibilidade entre esses dois planos de sentido é que deve se configurar incompatibilidade entre esses dois planos de sentido é que deve prevalecer o produzido por autoridade superior”.
Pois bem, é sabido que, em matéria tributária, a Constituição veicula diversas normas jurídicas, que servem de fundamento de validade para as demais normas tributárias, e inclusive, aquelas normas jurídicas individuais e concretas veiculadas pelo ato do lançamento tributário, ou seja, pelo ato de aplicação da norma jurídica.
Como é cediço, aplicar uma norma jurídica significa fazê-la incidir, ou seja, o ato de aplicação de uma norma pressupõe (i) a conotação de um determinado fato jurídico e da consequente relação jurídica a ela atribuída por uma norma jurídica geral e abstrata; (ii) a verificação de um determinado evento ocorrido no mundo social; e, por fim, (iii) a criação de uma nova norma individual e concreta.
Para tanto, o aplicador deverá verificar se há, in casu, a necessária subsunção do fato à norma, ou seja, o aplicador do direito deve proceder ao exame de um dado acontecimento do mundo social, a fim de verificar o seu perfeito enquadramento nos limites do enunciado conotativo da norma geral e abstrata.
Uma vez verificada a subsunção, o aplicador do direito deve proceder ao relato do fato e sua correspondente relação jurídica em linguagem competente, editando a norma individual e concreta, seu antecedente e consequente, ligados por uma relação interporposicional, que se caracteriza pela presença de um dever ser neutro.
Após colocar o referido relato em linguagem competente, o aplicador do direito deve comunicar a outra parte daquela norma individual e concreta. Pode-se dizer que estes são os elementos da fenomenologia da incidência concebida por Paulo de Barros Carvalho[25].
Decorre daí que a Administração Pública, ao criar normas individuais e concretas, participa, também, do processo de positivação, devendo observar as normas jurídicas constitucionais, afastando os enunciados prescritivos de direito positivo veiculados por instrumentos normativos infraconstitucionais, quando estes infringirem os valores consagrados pela Carta Magna.
Indispensável dizer que, assim como ocorre com o ato de lançamento que constitui o crédito tributário, as decisões dos Órgãos Administrativos de Julgamento devem, também, ser entendidas como normas jurídicas pertencentes aos sistema do direito positivo, e, nesta condição, precisam respeitar o axioma da hierarquia.
Tal conclusão se torna inafastável a partir do momento em que se admite que as normas jurídicas não estão presentes no texto do direito positivo, mas na mente do interprete, sendo a ele recomendável – para que não incorra em equívocos interpretativos – seguir o dito percurso gerador de sentido, desenvolvido por Carvalho[26], que, como se verá adiante, impõe incursões em diversos níveis do Sistema do Direito Positivo, para a necessária análise das relações de coordenação e subordinação com demais normas do Sistema Jurídico, aqui incluídas, evidentemente, as normas constitucionais.
4 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS
Segundo Carvalho[27], interpretar é atribuir valores aos símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, fazer referências a objetos. Ensina ainda este ilustre autor que a linguagem se apresenta como um objeto da cultura, que carrega valores e, como consequência disto, o direito – vertido em linguagem – apresenta-se como um objeto cultural, com conteúdos axiológicos.
Paulo de Barros Carvalho ensina que o interprete inicia o processo de interpretação ao entrar em contato com os textos do direito positivo, passando a construir os conteúdos significativos dos vários enunciados ou frases prescritivas para, enfim, ordená-los na forma estrutural de normas jurídicas, articulando essas entidades para construir um domínio.
O texto jurídico prescritivo é composto pelo conjunto das letras, palavras, frases, períodos e parágrafos, graficamente manifestados nos documentos produzidos pelos órgãos de criação do direito. O texto aqui, no plano S1 (“S1”) a que se refere Paulo de Barros Carvalho ao explicar o seu “Percurso Gerador de Sentido”, apresenta-se como suporte físico, ou seja, ponto de partida para interpretação, uma vez que é neste plano que o direito manifesta-se, altera-se e transforma-se pelas inovações do legislador.
Ao entrar em contato com os enunciados prescritivos do S1, o interprete passa a atribuir valores aos signos postos naquele plano da expressão. Eis que surge o plano do S2 (“S2”), composto pelo conjunto dos conteúdos de significações. Após o primeiro contato com o sistema das literalidades (S1), o interprete deve avançar no S2, atribuindo valores unitários aos símbolos. Os enunciados deverão ser compreendidos isoladamente para depois serem confrontados por outros enunciados.
Já o plano S3 (“S3”) é composto pelo conjunto articulado das significações normativas. Trata-se aqui do subsistema de normas jurídicas “stricto sensu”.
Ensina Carvalho[28] que superadas as investigações nos planos S1 e S2 o interprete deverá promover a contextualização dos conteúdos obtidos no curso do “Percurso Gerador de Sentido”, com a finalidade de produzir unidades completas de sentido para as mensagens deônticas – normas jurídicas compostas pela estrutura hipotético-condicional. Nesta etapa da interpretação, o interprete deve organizar as proposições construídas no plano do S2 e formar a estrutura da norma: o antecedente ligando-se ao enunciado relacional por força da imputação deôntica.
Por fim, o intérprete terminará “Percurso Gerador de Sentido” na análise do plano S4 (“S4”) em que as normas construídas no S3 serão organizadas. Ou seja, neste plano, a atividade do intérprete é identificar os vínculos de coordenação e de subordinação que se estabelecem entre as normas jurídicas.
Segundo Carvalho[29], “[…] enquanto, em S3, as significações se agrupam no esquema de juízos implicacionais, em S4, teremos o arranjo final que dá status de conjunto montado na ordem superior de sistema.”
Está claro, portanto, que não se pode admitir a aplicação de normas jurídicas antes das necessárias incursões no texto constitucional.
6 CONCLUSÃO
Portanto, considerando que a atividade exercida pelos julgadores administrativos consiste na interpretação e criação de normas jurídicas, uma vez que eles são interpretes autênticos, visto que são habilitados pelo sistema, o fruto de tal interpretação jamais poderá conflitar com as normas veiculadas pelo Estatuto do Contribuinte mencionado neste artigo.
E nem se argumente que o afastamento de Lei, por julgadores administrativos, sob o fundamento de inconstitucionalidade, violaria o princípio da separação dos poderes, pois o princípio da legalidade, invocado pelos autores que defendem a constitucionalidade da norma veiculada pelo art. 26-A, do Decreto n.º 70.235/72[30], impõe o respeito não só às leis, mas, principalmente, à Constituição Federal.
Assim, por ser dever da Administração Pública o cuidado e o respeito às disposições constitucionais, não restam dúvidas de que a não apreciação de todas as alegações deduzidas pelos contribuintes, no âmbito do processo administrativo tributário, aqui incluídos eventuais questionamentos de ordem constitucional, consiste na violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório, assegurados pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal.
Advogado, graduado pela Universidade Positivo, especialista em direito tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestrando em direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
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