A aplicação do princípio da retroatividade benéfica no direito administrativo punitivo à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

Resumo: Este artigo tem por objetivo apontar, com base em leitura do entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, a adequada aplicação do princípio da retroatividade benéfica em sede de direito administrativo punitivo.

Palavras-chave: Punição. Administrativa. Lei. Benéfica. Superveniente. (Ir)retroatividade.

Continua atual a discussão acerca da aplicação ou não do princípio penal da retroatividade da lei benéfica no direito administrativo punitivo. A problemática, todavia, não deve ser fixada pela afirmativa ou negativa de sua aplicabilidade, mas sim do que seria necessário para sua incidência na seara punitiva desse ramo jurídico. A resposta, objeto deste estudo, pode ser dada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Não é incomum a autoridade ficar diante de um processo que tenha apurado determinada conduta, cuja tipificação normativa na data que for proferir seu julgamento seja menos gravosa ao imputado do que previa o preceito normativo da época da experimentação do fato típico. Terá, então, que escolher entre qual das normas punitivas administrativas deverá aplicar ao caso: a vigente na época do fato ou a mais benéfica que lhe for superveniente.  

A análise exigirá, primeiramente, incursão acerca da aplicação da lei no tempo e do postulado jurídico do tempus regit actum, que possuem matriz infraconstitucional na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42), cujo art. 6º assim dispõe:

“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. 

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.     

O tempus regit actum consagra a REGRA da aplicabilidade da norma de direito material vigente à época da ocorrência do fato/conduta gerador. Todavia, o referido postulado é mitigado pelo princípio da retroatividade da lei penal benéfica, por força do preceito constitucional estampado no art. 5º, XL, da Carta Política de 1988, ao dispor que:

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

 O princípio da retroatividade da lei penal benéfica, portanto, possui assento constitucional, por interpretação, a contrario sensu, do citado direito fundamental, cuja leitura também pode ser feita da seguinte forma: a lei penal somente retroagirá para beneficiar o réu. Lei penal nova não pode ser aplicada a fatos que lhe forem anteriores se isso prejudicar o réu.

A teoria da retroatividade da norma mais benéfica deve ser aplicada com moderação no processo administrativo, ante o maior dinamismo dessa seara jurídica e a diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal, bem assim em face da independência entre as instâncias. Transportar um princípio de um ramo do direito para outro exige certa ponderação.

Não se está a afirmar, todavia, a impossibilidade de transposição dos princípios do direito penal para o direito administrativo sancionador. Aliás, existe norma de direito não penal que expressamente determina a aplicabilidade do referido princípio aos ilícitos administrativo-tributários (art. 106, II, a e c, do CTN):

“Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a) quando deixe de defini-lo como infração;

c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”

Todavia, alguns julgados de Tribunais Regionais Federais têm direcionado para uma leitura equivocada de que a retroatividade in bonam partem seria um princípio geral de direito, que imperaria independentemente de haver ou não a multa índole tributária, privilegiando uma designação de princípio geral de direito de retroatividade da lei mais benéfica.

A título exemplificativo, confira-se ementas de dois acórdãos proferidos por Tribunais Regionais Federais de Regiões diversas:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EXIGÊNCIA DE KITS DE PRIMEIRO SOCORRO. RESOLUÇÃO CONTRAN 42/98. ART. 12 DA LEI 9.503/97. REVOGAÇÃO PELA LEI 9.72/98. EFEITOS PUNITIVOS. LEI MAIS BENÉFICA. – Com o advento da Lei 9.792/99 foi revogado o art. 112 da Lei 9.503/97, que dava suporte à Resolução 42/98 do CONTRAN, portanto às multas por não portar os estojos de primeiro socorro. Dessa forma, deixou de existir os efeitos punitivos inerentes à norma revogada, até mesmo porque "totalmente destituída de adequação ao fim almejado, razão porque nula ex radice e dela não se pode extrair efeitos jurídicos", conforme bem assinalado na sentença. – "2. "A retroatividade in bonam partem é princípio geral de direito que impera independentemente de haver ou não a multa índole tributária. O simples fato de o direito ao tratamento mais benéfico estar positivado apenas no CTN não afasta a incidência da lei posterior in mellius, uma vez que há absoluta identidade de pressupostos fáticos. (…)" (TRF4, AG 2007.04.00.021914-4, Terceira Turma, Relator Roger Raupp Rios, D.E. 24/07/2007). (AC 200881000113950 – Relator(a) Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira – TRF5 – Primeira Turma – DJE – Data :22/07/2010 – Página 378.) – Apelação e remessa oficial improvidas”. (AC 200130000005852, JUIZ FEDERAL GRIGÓRIO CARLOS DOS SANTOS, TRF1 – 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 DATA:22/03/2012 PAGINA:288.) – grifos novos.

“ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 202/06. LEI 11.334/06 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 218 DA LEI Nº 9.503/97. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO GERAL DE DIREITO DE RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. 1. Trata-se de apelação da sentença que denegou a segurança por não vislumbrar o direito líquido e certo alegado pelo impetrante, ao argumento de incidência da regra geral da irretroatividade da norma posterior (Lei 11.334/06), que deverá respeitar o ato jurídico da imposição da multa de trânsito, perfeito sob a égide da lei anterior (Lei 9.503/97). 2. À época dos fatos (31.05.2006) a Lei 11.334/06, que deu nova redação ao art. 218 da Lei no 9.503/97 (Código de Trânsito), ainda não existia. Porém quando do lançamento ocorrido em 10.08.2006 já se encontrava em vigor a referida Lei 11.334/2006. 3. O CONTRAN expediu a Resolução de nº 202 de 25.08.2006 no sentido de que as alterações do art. 218 do Código de Trânsito se aplicam, apenas, aos Autos de Infrações lavrados a partir de 26.07.2006. 4. Como todo e qualquer princípio, o da irretroatividade da lei, previsto tanto no art. 5º, XXXVI da CF/88, quanto no art. 6º da LICC não tem caráter absoluto. 5. A própria CF/88, expressa em seu art. 5º, XL a retroatividade da lei benigna. 6. A legislação infraconstitucional igualmente prevê a possibilidade de retroação para beneficiar. É o caso do art. 106 do CTN que elenca as possibilidade de aplicação da lei ao fato pretérito. 7. A despeito da Resolução do CONTRAN, a necessária ponderação sobre a aplicação dos princípios em comento, infere-se que o melhor direito está na aplicação retroativa da lei mais benéfica, privilegiando-se, assim, o princípio geral de direito de retroatividade da lei mais benéfica. 8. Reforma da sentença para conceder a segurança no sentido de determinar a aplicação retroativa da Lei 11.334/06, às Notificações de Atuação de nºs 6142278 e 6142279 aplicadas ao impetrante. 9. Apelação provida”. (AC 200881000113950, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, TRF5 – Primeira Turma, DJE – Data::22/07/2010 – Página::378.) – grifos ausentes no original.

Os julgados acima retratados alçam a retroatividade benéfica como princípio geral do direito, de modo que ele poderia ser aplicado no direito administrativo punitivo independentemente de previsão legal, ao assentar que “A retroatividade in bonam partem é princípio geral de direito que impera independentemente de haver ou não a multa índole tributária. O simples fato de o direito ao tratamento mais benéfico estar positivado apenas no CTN não afasta a incidência da lei posterior in mellius”.

Ocorre, todavia, que a transposição deve ser feita com reservas e mediante análise específica do caso concreto e da sua norma de regência. Não se pode descurar, a propósito, que o Superior Tribunal de Justiça, em decisão anterior aos julgados acima citados, proclamou ser inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário, referente à retroatividade da lei mais benéfica, às multas administrativas, por ausência de pertinência temática:

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – CONSÓRCIOS – FUNCIONAMENTO SEM AUTORIZAÇÃO – MULTA ADMINISTRATIVA – PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA DOS DISPOSITIVOS – FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL – REEXAME DE PROVAS: SÚMULA 7/STJ. 1. Inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional, referente à retroatividade de lei mais benéfica (art. 106 do CTN), às multas de natureza administrativa. Precedentes do STJ. 2. Não se conhece do recurso especial, no tocante aos dispositivos que não possuem pertinência temática com o fundamento do acórdão recorrido, nem tem comando para infirmar o acórdão recorrido. 3. Inviável a reforma de acórdão, em recurso especial, quanto a fundamento nitidamente constitucional (caráter confiscatório da multa administrativa). 4. É inadmissível o recurso especial se a análise da pretensão da recorrente demanda o reexame de provas. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e provido”. (RESP 201000134400, ELIANA CALMON, STJ – SEGUNDA TURMA, DJE DATA:03/05/2010) – grifos ausentes no original.

Frise-se que o Superior Tribunal de Justiça não afirmou ser impossível a aplicação do referido princípio da retroatividade benéfica na seara punitiva administrativa. A inaplicabilidade do art. 106, do CTN, deu-se por impertinência temática, consoante texto da chamada da ementa acima transcrita, diga-se, inexistência de previsão legal específica sobre o tema, que determinasse a aplicação retroativa da lei nova mais benéfica.

É indene de dúvidas, portanto, que, por regra, em matéria de multa administrativa se aplica a lei (lato sensu) vigente na época da ocorrência de seu fato gerador, por força do postulado do tempus regit actum, adotado pelo art. 6°, do DL 4.657/42. É indene de dúvidas, igualmente, que a lei (latu sensu) não poderá retroagir para prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF/88 e art. 6º, do DL 4.657/42).

Isso não que dizer, todavia, que uma lei punitiva administrativa não possa determinar sua aplicação retroativa (a fatos anteriores à sua vigência). Mas a norma somente poderá assim o fazer se for para beneficiar o imputado. E a determinação da retroatividade benéfica deve constar expressamente da norma, que lhe guarde pertinência temática. Não cabe ao aplicador do direito o fazer sem que tenha previsão legal específica para tanto.

A regra é a aplicação da lei (lato sensu) vigente na data da ocorrência de seu fato gerador. Todavia, por meio de instrumento normativo de equivalente ou de superior grau hierárquico ao da norma vigente por ocasião da ocorrência do fato gerador, pode sobrevir lei nova mais benéfica ao imputado, sobre o mesmo tema, que expressamente determine sua retroatividade aos processos com objetos ainda não exauridos ou pendentes de julgamento.

 Com efeito, a norma de direito punitivo administrativo somente retroage se ela própria assim determinar e somente para beneficiar o imputado. Não cabe, como afirmou o STJ, aplicação de norma, como do CTN, fora da pertinência temática. A regra é a aplicação do postulado do tempus regit actum, que somente pode ser afastado quando norma temática (específica) assim o determinar e somente para beneficiar o imputado.

Obviamente, se, eventualmente, uma lei punitiva administrativa determinar sua aplicabilidade aos processos administrativos em curso, indistintamente, sem qualquer menção quanto à sua incidência implicar ou não benefício ao imputado, deverá o interprete conformá-la ao preceito constitucional que veda a retroatividade maléfica, fazendo incidir o postulado do tempus regit actum, que a lei somente pode afastar se for para beneficiar o imputado.

A verificação quanto a se tratar de norma benéfica ou maléfica deve feita, primeiramente, em sede abstrata, ou seja, no quanto da pena cominada para a hipótese prevista legalmente. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSUAL. EFEITO DEVOLUTIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENALIDADE DE SUSPENSÃO. SUCESSÃO DE LEIS. LEGALIDADE. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. O efeito devolutivo do recurso ordinário não alcança questão de mérito estranha aos autos, que não foi apreciada pela decisão recorrida nem alegada na inicial. Constitui regra a aplicação da norma vigente à época dos fatos que regula. A retroatividade da lei que prevê penalidades só tem lugar quando beneficia, necessariamente, a condição do acusado. No caso, a lei nova que prevê pena máxima de trinta dias de suspensão à exemplo da lei revogada e pena mínima mais elevada que a norma antiga. Recurso a que se nega provimento”. (ROMS 200001164546, PAULO MEDINA, STJ – SEXTA TURMA, DJ DATA:01/07/2004 PG:00278 LEXSTJ VOL.:00183 PG:00036).

O afastamento do postulado do tempus regit actum exige uma causa específica, qual seja, a previsão legal de retroatividade de uma norma que beneficie o imputado. O ordenamento jurídico brasileiro não permite aplicação retroativa de norma punitiva maléfica e afrontaria à razoabilidade o afastamento da regra geral (tempus regit actum) para aplicação de nova norma de igual punição àquela vigente na data do seu fato gerador.

Diante de um caso concreto, deve-se perquirir se existe previsão legal temática para aplicação retroativa da norma. Depois, qual a norma mais benéfica ao imputado, se a vigente na data da ocorrência do fato ou aquela vigente no julgamento, sendo vedado a criação de uma lex tertius híbrida. E se as duas cominarem punição idêntica, deve-se aplicar a regra (tempus regit actum), ou seja, a norma da data do fato, não a superveniente, que é exceção.

 

Referências:
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma. Recurso Especial 201000134400, ELIANA CALMON, DJE de 03/05/2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 200001164546, PAULO MEDINA, DJ de 01/07/2004 p. 278.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 4ª Turma Suplementar. Apelação Cível 200130000005852, JUIZ FEDERAL GRIGÓRIO CARLOS DOS SANTOS, e-DJF1 de 22/03/2012, p. 288.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região, 1ª Turma. Apelação Cível 200881000113950, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, DJE de 22/07/2010, p. 378.

Informações Sobre o Autor

José Galdino

Aquaviários –ANTAQ. Membro suplente licenciado do Conselho Seccional da OAB/AL. Ex-vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL. Ex-coordenador de Combate à Tortura e ex-membro da Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência Institucional, ambos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Graduado pela Universidade Federal de Alagoas


Equipe Âmbito Jurídico

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