Resumo: O presente texto dedica-se ao estudo da arbitragem no âmbito do Contencioso Administrativo português, com ênfase nos critérios para delimitação da admissibilidade da arbitragem nos litígios entre a Administração Pública e particulares e na disciplina normativa dada ao tema pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos português. Adotando como linha divisória a reforma do Contencioso Administrativo português, o presente artigo trabalhará, de forma crítica, as questões relativas à admissibilidade da arbitragem no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e das respectivas ações de regresso, dos atos administrativos destacáveis relativamente à execução dos contratos administrativos e dos atos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua invalidade.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Contencioso Administrativo português. Arbitragem. Litígios jurídico-administrativos.
Sumário: Introdução. 1. Âmbito da Justiça Administrativa e tribunais arbitrais. 2. Aspectos gerais da reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português. 3. Notas sobre a arbitragem. 4. A arbitragem no quadro anterior à reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português. 5. A arbitragem no quadro pós-reforma. 5.1. Aspectos diversos. 5.2. Questões relativas à responsabilidade civil extracontratual e ações de regresso. 5.3 A arbitragem nos litígios relativos a atos administrativos. 5.3.1. Algumas premissas. 5.3.2. Questões relativas a atos administrativos destacáveis relativamente à execução dos contratos administrativos. 5.3.3. Questões relativas a atos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade. Conclusão.
Introdução
O presente estudo insere-se no âmbito da arbitragem nas relações jurídico-administrativas, voltando-se mais especificamente para a disciplina, dada a este instituo, pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA.
Contudo, ousar-se a abordar uma problemática tão vasta e rica em problemas no limitado espaço de um artigo é algo que não nos atreveríamos a fazer. Era necessário, pois, promover um corte que delimitasse, em termos mais restritos, a temática a ser analisada.
Sob essa perspectiva, trataremos apenas das principais novidades trazidas pelo aludido diploma e das questões que estas suscitam, noticiando as discussões a este propósito travadas na doutrina e, tanto quanto possível, levando outras, sem embargo de expressar nosso posicionamento a respeito destas.
1. Âmbito da Justiça Administrativa e tribunais arbitrais
A primeira questão que cabe discutir diz respeito à previsão do art. 212, nº 3, da Constituição da República Portuguesa – CRP. É necessário esclarecer qual o alcance da reserva de jurisdição feita pelo mencionado dispositivo.
Neste sentido, subscrevemos o entendimento do Professor Vieira de Andrade para o qual “a reserva de jurisdição estabelecida no art. 212º não é uma reserva material absoluta”[1].
O fato de a CRP estabelecer o âmbito da jurisdição administrativa não quer dizer que ela exclua a liberdade de conformação do legislador ordinário[2]. É bem verdade que essa liberdade está sujeita a limites impostos pela própria constituição, limites cuja determinação deverá ser realizada através da interpretação sistemática das normas constitucionais.
A esse propósito, convém salientar que a CRP, ao incluir os tribunais arbitrais entre as categorias de tribunais (art. 209º), reconhece a natureza jurisdicional[3] da atividade desenvolvida por aqueles.
Nesse diapasão, é sob essa perspectiva de interpretação integrada das normas constitucionais, para o efeito de delimitar o alcance da reserva de jurisdição constante do nº 3 do art. 212, que entendemos que a leitura desta disposição deverá ser feita, necessariamente, em consonância com o art. 209, ambos da CRP[4].
A interpretação conjunta dos aludidos dispositivos, ao nosso ver, autorizaria o legislador, no exercício de sua liberdade de conformação, a estabelecer que litígios respeitantes a relações jurídico-administrativas pudessem ser objeto de arbitragem[5].
Conforme se verá ao longo deste estudo, a admissibilidade da arbitragem dos litígios dessa natureza é sufragada pela melhor doutrina e, inclusive, goza de reconhecimento legislativo.
2. Aspectos gerais da reforma de 2002/2004 do contencioso administrativo português
Como se colhe das manifestações doutrinárias feitas ao longo da interessante discussão pública que foi travada a propósito da reforma do contencioso administrativo, a necessidade de se promover à dita reforma, mais do que uma exigência de ordem prática, no sentido de ampliar o espectro de proteção dos administrados e otimizar as funções da Justiça Administrativa, era imposição da própria Constituição da República Portuguesa, na formatação que lhe foi dada pelas sucessivas revisões[6].
Em síntese, pode-se afirmar que a reforma do contencioso administrativo, na dupla perspectiva — estrutural e processual — em que pode ser vista, embora reforçando as garantias atinentes às esferas jurídicas individuais, procurou conciliar e equilibrar as dimensões subjetiva e objetiva (proteção da legalidade e do interesse público) que a Justiça Administrativa deve assumir, aperfeiçoando o sistema a fim de proporcionar a efetiva tutela dos direitos individuais dos administrados e do interesse público[7].
É sob esse espírito que devem ser compreendidas as modificações operadas pela reforma, cujas principais linhas serão brevemente noticiadas a seguir[8].
Em primeiro lugar, verifica-se a redefinição da competência dos tribunais administrativos, feita, sobretudo, com o escopo de desafogar os tribunais superiores, notadamente o Supremo Tribunal Administrativo – STA, das competências originárias que lhe eram atribuídas.
Na configuração do contencioso, nota-se a ampliação do âmbito da jurisdição administrativa, estabelecendo-se novas pretensões que passam a se submeter à Justiça Administrativa, como, por exemplo, questões relativas a contratos administrativos e contratos de direito privado (submetidos a um procedimento pré-contratual de direito público, e.g.); responsabilidade civil extracontratual do Estado e de seus órgãos, agentes, funcionários, inclusive ações de regresso; fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos.
Por outro lado, é de se destacar a significativa alteração no que diz respeito aos meios processuais para fazer atuar tais pretensões, criando-se novas formas para o processo contencioso: a) a ação especial, que se destinaria às situações em que estivesse presente o exercício de poder de autoridade; e b) a ação comum, voltada às questões em que não se verificasse o exercício desse poder, isto é, nas relações paritárias entre a Administração e administrados.
A par disso, foram criadas outras formas processuais destinadas à tutela principal urgente, como, e.g., o contencioso eleitoral, o pré-contratual e os processos de intimação.
A legitimidade processual, por seu turno, também foi objeto de modificação.
A legitimidade ativa nas ações relativas a contratos foi estendida ao Ministério Público e contra-interessados ao passo que a legitimidade passiva passou a ser das pessoas jurídicas ou dos ministérios a que os órgãos estão vinculados, sem o prejuízo de se poder indicar o órgão como sujeito passivo da ação administrativa, como no sistema anterior.
Observou-se, outrossim, o reforço do poder dos tribunais administrativos para a execução de seus julgados, bem como a atribuição de poderes para efetivar as providências necessárias a garantir a utilidade do processo, quais sejam: cautelares, antecipatórias e conservatórias.
Cumpre referir, ainda, a inauguração da possibilidade de a Administração ser sancionada por litigância de má-fé e obrigada ao pagamento de custas.
Finalizando essa breve notícia acerca das inovações promovidas pela reforma do contencioso administrativo, faz-se mister sublinhar aquela que diz respeito ao tema deste estudo: a previsão da criação de tribunais e centros arbitrais para a apreciação de litígios oriundos das relações jurídico-administrativas (arts. 180º a 187º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA).
A rigor, o CPTA teve o mérito de ampliar o rol de litígios, surgidos entre a Administração e os particulares, que podem ser apreciados no juízo arbitral, uma vez que essa possibilidade já era admitida há muito tempo pelo ordenamento jurídico português em relação a certas matérias, conforme será visto mais a frente.
Deve-se reconhecer, entretanto, que a ampliação operada pela reforma — sem que se queira tirar-lhe o mérito — foi tímida e adotou critério discutível, conforme teremos a oportunidade de referir.
A ampliação operada pelo CPTA, com efeito, insere-se no contexto mais amplo da necessidade — que a reforma procurou atender — de a Justiça Administrativa dar ao cidadão uma resposta adequada às pretensões que lhe fossem submetidas, o que acaba tocando a questão da celeridade; somente poderá ser considerada adequada a resposta que seja dada em tempo razoável.
Sucede que a análise da estrutura e do funcionamento da Justiça Administrativa, feita por ocasião dos trabalhos que antecederam a reforma, diagnosticou a morosidade processual como um dos principais problemas enfrentados por esta jurisdição[9].
De fato, o aumento da litigiosidade em matéria de relações jurídico-administrativas, verificado pelo aumento da quantidade de processos que, todos os anos, ingressavam nos tribunais administrativos, não pôde ser solucionado pelo simples acréscimo do número de juízes e tribunais, o que fez com que a tramitação dos processos passasse a demorar mais[10].
Por outro lado, a crescente complexidade que as demandas administrativas adquiriram, devido à evolução das formas e campos de atuação da Administração, também contribuiu para agravar o problema da celeridade processual, uma vez que a atividade do magistrado foi atravancada, na medida em que este se viu obrigado, não obstante o auxílio que os peritos podem prestar, a apreciar litígios que demandam conhecimentos técnicos cada vez maiores[11].
É diante dessa realidade de congestionamento dos tribunais administrativos, e de sua impossibilidade de dar uma resposta mais célere às pretensões dos administrados, que o legislador reformista passou a ver o fortalecimento da arbitragem em matéria administrativa como uma boa saída — não a única, evidentemente — para tentar minimizar os citados problemas.
Vale dizer, passa-se a ver na arbitragem uma excelente alternativa para a questão da morosidade da Justiça Administrativa, no sentido de que se poderia promover o desvio, para o seu âmbito, de certos tipos de litígios que iriam entulhá-la.
Demais disso, a celeridade e flexibilidade da via arbitral, em contraposição à rigidez e morosidade da Justiça Administrativa[12], apontariam no sentido do citado propósito de dar uma resposta adequada às pretensões dos cidadãos.
É, pois, sob essa perspectiva que julgamos ser possível contextualizar as novas disposições referentes à arbitragem trazidas pelo CPTA.
3. Notas sobre a arbitragem
A temática da arbitragem no âmbito do direito administrativo suscita muitas questões, cuja elucidação depende da compreensão que se tenha sobre o instituto em tela.
Por essa razão, antes de adentrarmos propriamente na arbitragem nas relações jurídico-administrativas, julgamos necessárias algumas notas sobre as feições gerais desta figura.
Em linha de princípio, cabe trazer a lume as principais características que a arbitragem assume no ordenamento Jurídico Português, a fim de fixar as bases sobre as quais algumas das posições aqui sustentadas irão se apoiar.
A arbitragem, como cediço, insere-se no domínio mais amplo dos meios alternativos[13] de solução de controvérsias, a par de outros institutos como a mediação, transação e a conciliação extrajudicial.
Embora a questão não seja pacífica, entendemos que a arbitragem tem natureza jurisdicional[14], resultando duma espécie de “delegação” de poder jurisdicional — monopolizado pelo Estado —, que este permite atribuir a árbitros, em atenção a vontade das partes de submeter a resolução de seus conflitos à decisão de terceiros, estranhos ao Poder Judiciário.
No caso de Portugal, sem embargo de outros argumentos perfilhados pela doutrina, pensamos assim devido à circunstância de os tribunais arbitrais constarem, ao lado dos demais tribunais, no Titulo V, Capítulo II, da Constituição da República Portuguesa[15], mais especificamente no nº 2 do art. 209. Ademais, é de se notar que: i) os tribunais arbitrais têm o poder de decidir sobre a sua própria competência (kompetenz-kompetenz) (art. 21º da LAV); ii) suas decisões fazem coisa julgado e possuem a mesma força executiva das decisões dos tribunais judiciais de 1ª instância (art. 26º da LAV); iii) o art. 25 da LAV é expresso ao qualificar de “jurisdicional” o poder exercido pelos árbitros.
Como assinalado acima, por entregar a terceiros a solução da lide trata-se de técnica heterocompositiva[16] de composição de litígios. O recurso à arbitragem, em regra, deriva da vontade das partes de submeter a terceiros a apreciação do litígio entre elas surgidas, nesse sentido, pode esta ser caracterizada como forma convencional[17] de resolução de controvérsias.
A arbitragem nasce da convenção de arbitragem, que poderá assumir duas formas (v. art. 1º, nº 2 da LAV): a) quando tiver por “objecto um determinado litígio actual, mesmo que já na pendência dum processo judicial”[18], assumirá a veste de compromisso arbitral; ou b) tratando-se de “litígios eventuais emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual”[19], estar-se-á diante de uma cláusula compromissória.
Ademais, a arbitragem poderá ser: a) institucional, quando submetida a centros especializados já existentes, que contam com organização e estrutura voltadas para essa atividade (lista de árbitros, regulamento sobre a forma do processo etc.); e b) ad hoc, quando o tribunal arbitral for constituído especialmente para o julgamento litígio surgido entre as partes ou assim estiver previsto.
Nesse passo, impende salientar que a LAV impõe dois requisitos para que os litígios possam ser cometidos à resolução por via arbitral (art.1º, nº1). Deve-se cuidar de direitos disponíveis e inexistir lei que determine que o litígio deve se submeter a arbitragem necessária ou tribunal judicial.
Por fim, assevere-se que os tribunais arbitrais necessitam manter alguma relação com os tribunais judiciais, porquanto não possuam o poder de executar suas próprias decisões e de efetivar de providências cautelares, bem assim por poderem ver suas decisões submetidas ao controle daqueles — de forma e de fundo — pela via do recurso e da ação de anulação.
4. A arbitragem no quadro anterior à reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português
Nesse item, segue-se o panorama acerca da arbitragem no quadro anterior à reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português.
A história da arbitragem em questões relacionadas ao direito administrativo remonta às décadas de cinquenta e sessenta, quando o Supremo Tribunal Administrativo – STA proferiu diversas decisões nas quais admitia a validade de cláusulas compromissórias inseridas em contratos administrativos de concessão de serviço público[20].
O STA, nessas decisões, apontava no sentido de permitir que os litígios respeitantes a contratos administrativos fossem submetidos ao juízo arbitral, por entender que os artigos do Código de Processo Civil – CPC disciplinadores da questão continham “um princípio geral de direito cujo afastamento, no âmbito da jurisdição administrativa, não era imposto nem pela natureza administrativa dos contratos de concessão nem pelo facto de a competência para conhecer das questões emergentes de tais contratos ser confiada aos tribunais arbitrais[21]”.
Por seu turno, indagando-se sobre a possibilidade de submeter litígios administrativos à arbitragem, a melhor doutrina acabou por responder positivamente a tal questão quando se tratasse de matérias que estivessem no âmbito da disponibilidade das partes (Administração e particular).
Todavia, fora desta seara, isto é, quando estivessem em causa situações respeitantes ao contencioso de anulação, rejeitava-se a possibilidade de recurso à arbitragem, com fundamento na interpretação conjunta dos arts. 1510º do CPC[22], que somente considerava válido o compromisso quando os direitos estivessem na esfera de disponibilidade das partes, e 13º da Lei Orgânica do STA, donde se afirmava a natureza de ordem pública da competência contenciosa[23].
A legislação editada à época, com efeito, acabou consagrando a aludida orientação. Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 48.871, de 19 de fevereiro de 1969, continha a previsão de que os conflitos referentes à validade, interpretação e execução dos contratos de empreitadas de obras públicas poderiam ser objeto de exame por parte de tribunais arbitrais (v. art. 217º). Nessa mesma linha, embora de forma não tão clara[24], o Decreto Regulamentar 54, de 24 de agosto de 1977, parecia autorizar que os litígios relativos à execução e ao descumprimento dos contratos administrativos de investimentos estrangeiros fossem submetidos à arbitragem.
Registre-se, assim, que até o ano de 1984, quando foi publicado o Estatuto dos Tribunais Administrativos – ETAF, não existia em Portugal previsão legal genérica que autorizasse o recurso à arbitragem nas relações jurídico-administrativas, mas apenas alguns diplomas esparsos nos quais se admitia que questões relativas à validade, interpretação e execução de contratos administrativos fossem submetidas a um tribunal arbitral[25]. Este, inclusive, era o entendimento da doutrina majoritária.
Nesse diapasão, com a entrada em vigor do ETAF, cujo art. 2º, nº 2[26], admitia o recurso à arbitragem no domínio do contencioso dos contratos administrativos, assistiu-se à legitimação, a nível legislativo, do entendimento já sustentado pela doutrina e jurisprudência, conforme acima exposto[27].
Noutra quadra, o dispositivo em tela trouxe uma inovação: passou a admitir que os litígios respeitantes à responsabilidade civil extracontratual, inclusive as ações de regresso daí advindas, fossem submetidos a um tribunal arbitral.
A partir do ETAF, portanto, passou a existir em Portugal cláusula geral de arbitrabilidade de litígios pertencentes à jurisdição administrativa, embora somente no que respeitasse àqueles relativos à contratos administrativos e à responsabilidade por atos de gestão pública (e respectivas ações de regresso).
Em 1986, com a entrada em vigor da Lei de Arbitragem Voluntária – LAV, a arbitragem na administração pública voltou a ser objeto de discussão.
O nº 1 do art. 1º desse diploma estabelecia os requisitos básicos exigidos para que determinado litígio fosse submetido à apreciação de árbitros[28]. Segundo esta norma, tratando-se de direitos disponíveis e não estando o litígio submetido exclusivamente a tribunal judicial ou arbitragem necessária, seria cabível a arbitragem.
Nesse compasso, após esclarecer, no nº 2 do art. 1º, as espécies de convenção arbitral e suas características, e ampliar, no nº 3 do citado artigo, para além das questões contenciosas o conceito de litígio, traz a LAV, no seu nº 4 do mesmo artigo, importante disposição no que se refere à matéria ora tratada, verbis: “Art. 1º (Convenção de arbitragem) (…) 4 — O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizadas por lei especial ou se elas tiverem por objecto litígios respeitantes a relações de direito privado.”
Da leitura do artigo percebe-se que o Estado e demais pessoas coletivas de direito público, nas suas relações de direito privado, podem submeter-se ao juízo arbitral, autorização que decorre diretamente da LAV e independe de lei especial. Isto porque as relações de direito privado travadas por esses entes seriam apreciadas por tribunais judiciais, mediante aplicação das regras de processo civil comum, nas quais se incluiriam as normas sobre arbitragem constantes da LAV[29].
Noutra quadra, no que toca à interpretação da primeira parte da norma em foco, cabe dizer que a doutrina mais abalizada entende que o preceito do art. 1º, nº 4, quer, na verdade, delimitar o alcance da cláusula geral de arbitrabilidade constante do nº 1 do mesmo dispositivo.
Em termos porventura mais claros quer-se dizer que, tendo o nº 1 do artigo 1º enunciado uma cláusula genérica de arbitrabilidade destinada aos litígios referentes às relações de direito privado, a previsão do nº 4 do mesmo artigo vem asseverar que o disposto no nº 1 não se dirige aos entes públicos, uma vez que estes necessitam de autorização e regulação própria (lei especial) para submeterem seus litígios à arbitragem.
Precisa, a esse respeito, a lição de Servúlo Correia[30]: “Manifestamente, a função do nº 4 do artigo 1º da LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto) é a de tornar claro que a permissão geral de estipulação de convenções de arbitragem formulada no seu nº 1 (dentro dos limites aí fixados) se não alarga ao Estado e às outras pessoas colectivas de direito público. Mas, a par desta indicação, o citado nº 4 fornece outra não menos importante: a de que o propósito do legislador não é o de enunciar um princípio geralmente adverso ao recurso das pessoas públicas à arbitragem mas tão só o de remeter essa questão para outras sedes (leis especiais) onde as permissões poderão ser concedidas.”
No mesmo sentido Aroso de Almeida[31]: “No entanto, o sentido do artigo 1º, nº 4, da LAV parece ser tão-só o de delimitar o alcance das soluções consagradas no nº 1 do mesmo artigo, deixando claro que a cláusula geral de arbitrabilidade aí enunciada apenas tem em vista a arbitragem no âmbito das relações jurídicas de direito privado, pelo que não tem, só por si, o propósito nem o alcance de estender a regra da admissibilidade do recurso à arbitragem ao domínio das relações jurídico-administrativas. Ao direito administrativo cabe, por isso, determinar se a mesma regra vale para os litígios que envolvam entidades públicas e não digam respeito a relações de direito privado e, portanto, definir um regime próprio no que toca aos critérios de arbitrabilidade a adoptar no âmbito das relações jurídico-administrativas.”
Resulta, assim, que as relações jurídico-administrativas necessitam de autorização legal — que não pode ser buscada no nº 1 do art. 1º da LAV, mas em diplomas de direito administrativo, repise-se — para que possam submeter suas controvérsias ao juízo arbitral.
Essa autorização, com efeito, constava do art. 2º, nº 2, do ETAF, que admitia a arbitragem em relação aos litígios sobre contratos administrativos e responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de atos de gestão pública e as respectivas ações de regresso.
Convém salientar que a referida disposição do ETAF, embora anterior a LAV, era considerada pela melhor doutrina[32] como lei especial no sentido do art. 1º/4 da LAV[33].
Neste ponto, cumpre fazer uma última referência ao art. 188º do CPA[34].
Ao estabelecer que seria válida a cláusula compromissória inserta em contratos administrativos para resolver as questões neste âmbito advindas, o art. 188º do CPA teria adquirido, relativamente a estas, a função de norma autorizadora da arbitragem — lei especial no sentido da LAV — em substituição à do art. 2º, nº 2, do ETAF.
Por outro lado, frise-se que a ausência de referência ao compromisso arbitral não quis significar que esta espécie de convenção de arbitragem tivesse ficado órfã de disciplina, pois o nº 2 do art. 2º do ETAF continuou a exercer o papel de norma habilitante (rectius: autorizadora) relativamente aos compromissos arbitrais nos contratos administrativos[35].
Da resenha feita acima, pode-se concluir que, antes da reforma do contencioso administrativo, admitia-se a arbitragem em matéria de responsabilidade civil da Administração por atos de gestão pública (e ações de regresso neste âmbito surgidas), bem como nas questões relacionadas à validade, interpretação e execução dos contratos administrativos.
Entendia-se que os litígios surgidos nesse âmbito estariam relacionados a direitos e obrigações disponíveis[36], uma vez que neste domínio, em regra, a Administração não exerceria poderes de autoridade, estabelecendo relações paritárias com o particular. Não se colocaria aqui, portanto, o obstáculo normalmente posto à arbitragem, qual seja, a indisponibilidade dos direitos em causa nos litígios relativos a relações jurídico-administrativas. Tais argumentos, contudo, serão analisados, de forma mais detida, adiante.
Nesse passo, cumpre chamar atenção para o fato de que, nestes domínios, a Administração nem sempre atua sem valer-se dos poderes de autoridade. Conforme se verá no item 5.3.2, é possível que a Administração, na execução de contratos administrativos, exerça tais poderes, caso em que estaremos diante de verdadeiro ato administrativo[37].
Por ora, registre-se apenas que, nessa seara, ou seja, quando se tratasse de ato administrativo destacável da execução do contrato administrativo, a doutrina rechaçava a possibilidade de submeter os litígios relativos à legalidade desses atos — como de resto a outros atos administrativos — ao juízo arbitral[38].
Quanto ao novo CPTA, apenas deve-se adiantar que mantêm a possibilidade das citadas matérias serem objeto de arbitragem, trazendo, contudo, algumas inovações que serão tratadas em tópicos específicos.
5. A arbitragem no quadro pós-reforma
5.1. Aspectos diversos[39]
O primeiro aspecto a sublinhar, no que diz respeito aos aspectos processuais da arbitragem na disciplina do CPTA, é a distinção, acolhida pelo Código, entre arbitragem ad hoc e arbitragem institucional. As diferenças entre uma e outra modalidade de arbitragem já foram vistas no item 3, não convindo repeti-las.
Importa esclarecer, contudo, as implicações que daí podem ser extraídas.
O âmbito das matérias que podem ser objeto de arbitragem administrativa ad hoc vem delimitado no nº 1 do art. 180º do CPTA: contratos e atos administrativas relativos à sua execução (“a”); responsabilidade civil extracontratual e respectivas ações de regresso (“b”); e atos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua invalidade (“c”).
Neste campo, o CPTA, a par de prever a arbitragem em matérias relativamente as quais esta já era admitida, trouxe algumas novidades, notadamente a previsão constante da alínea “c” do nº 1 do art. 180º e a veiculada na parte final da alínea “a” do nº 1 do mesmo artigo — inovações que serão objeto de análise a seguir.
Todavia, esse alargamento — qualificado de “modesto”, por João Caupers[40] — foi maior no que se refere às matérias que podem ser objeto de arbitragem institucionalizada, pois o art. 187º, além de repetir as constantes nas alíneas “a” e “b” do nº 1 do art. 180º, amplia o leque de questões passíveis de arbitragem, ao prever, nas alíneas “c”, “d” e “e”, respectivamente, a criação de centros de arbitragem nos domínios do funcionalismo público, dos sistemas de proteção social e do urbanismo.
A análise cuidadosa dos dispositivos em cotejo levanta, desde logo, duas dúvidas.
Primeiro, há de se perguntar se a omissão do art. 187º, no que tange aos atos administrativos relativos à execução do contrato administrativo e às ações de regresso nas questões de responsabilidade civil, tem alguma significação, ou se, pelo contrário, resulta do entendimento de que seria desnecessária a repetição, uma vez que o art. 180º já teria definido a extensão da referência a contratos administrativos e a responsabilidade civil.
Embora a dúvida não seja esclarecida pelos comentadores da forma, cumpre dizer que, de nossa parte, não vemos qualquer razão que justifique o entendimento de que a supressão quisesse significar algo. As diferenças existentes entre arbitragem institucional e ad hoc não me parecem autorizar esse raciocínio.
Considerando que a arbitragem institucionalizada, realizada por centros especializados para a apreciação de certos conflitos, dotados de estrutura e regulamento próprio para a tramitação do processo arbitral, acaba por ser, em regra, mais conveniente e segura para as partes[41], não há motivo para se admitir que determinado litígio possa ser dirimido por tribunais arbitrais ad hoc e não possa sê-lo em centros de arbitragem institucionalizados[42].
A questão, ao que tudo indica, deve ser resolvida pela interpretação sistemática dos artigos constantes do Título X do CPTA. O legislador omitiu a alusão a atos administrativos relativos à execução do contrato administrativo e às ações de regresso nas questões de responsabilidade civil, por entender que essa abrangência já podia ser deduzida pelo teor do nº 1 do art. 180º.
Em segundo lugar, impende indagar porque o legislador não previu a arbitragem institucionalizada em relação aos atos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua invalidade (art. 180º, nº 1, alínea “c”). Teria sido a omissão proposital? Com que fundamento? Ou estaríamos diante de um lapso do legislador?
Também aqui a doutrina é silente[43].
Aplica-se aqui — agora, todavia, de lege ferenda — o mesmo raciocínio e os mesmo argumentos desenvolvidos acima, no sentido de que não vemos razão para que determinada matéria possa ser submetida a arbitragem ad hoc e não possa à arbitragem institucionalizada.
É bem verdade que é difícil aceitar a hipótese de falha legislativa, uma vez que, se assim fosse, haveria de ter sido corrigida por ocasião da Lei nº 4-A/2003, de 19 de fevereiro, que veio a alterar diversos dispositivos do CPTA.
De qualquer forma, não se pode deixar de levar em consideração a clareza do dispositivo. No art. 187º não consta a previsão de criação de centros de arbitragem institucionalizada no domínio dos atos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade.
Por essas razões, até que a lei venha dispor em sentido contrário, cremos não se poder buscar no art. 187º do CPTA autorização para a criação de centros de arbitragem no referido âmbito.
Levando-se em conta que as inovações do art. 180º serão tratadas em itens específicos, passa-se a cuidar da disciplina do art. 187º.
Além dos domínios nos quais a arbitragem já estava consagrada e para os quais existe a possibilidade da arbitragem ad hoc — com a exceção, já referida, dos atos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua invalidade —, prevê o nº 1 do art. 187º que o Estado poderá autorizar a criação de centros de arbitragem institucionalizada para apreciação de litígios relativos à função pública, aos sistemas de proteção social e ao urbanismo.
Registre-se que os centros de arbitragem poderão desempenhar funções de conciliação, mediação ou consulta no âmbito dos procedimentos de impugnação administrativa, conforme resulta do nº 3 do art. 187º.
A previsão de criação desses centros, inclusive a possibilidade de realizarem autocomposição extrajudicial de conflitos[44], parece residir no intuito de desafogar os tribunais administrativos, permitindo a agilização dos processos que nestes tramitam, uma vez que os domínios do funcionalismo público e dos sistemas de proteção social têm forte aptidão para desencadear o fenômeno dos processos em massa[45].
A previsão de centros de arbitragem em matéria de urbanismo, por seu turno, vai ao encontro da concepção que vê nos litígios com complexidade técnica um campo propício à arbitragem e, na medida em que poderá liberar os juízes administrativos de julgarem lides que consomem um maior tempo de apreciação, também caminha no sentido de conferir maior agilidade a Justiça Administrativa.
Segundo o nº 2 do art. 187º, criados os centros de arbitragem permanente, mediante autorização do Estado, no âmbito das matérias constantes do nº 1 do mesmo dispositivo, poderão os ministérios decidir pela vinculação à jurisdição desses centros arbitrais, outorgando-lhes competência para o julgamento das querelas surgidas com os particulares.
A submissão de cada ministério à jurisdição dos centros de arbitragem será feita mediante portaria emitida conjuntamente pelo Ministro da Justiça e pelo ministro da tutela, em cujo conteúdo deverá constar os tipos de litígios que o ministério admite submeter ao centro arbitral, além dos valores máximos destes.
Apesar do dispositivo se referir à necessidade de lei para disciplinar os pormenores dessa questão, já se pode extrair do artigo que, uma vez vinculado a determinado centro de arbitragem, o ministério ficará obrigado a entregar ao centro de arbitragem o julgamento do litígio, desde que este esteja dentro do âmbito da portaria e se assim desejar o particular[46].
De acordo com art. 182º do CPTA, havendo litígios dentro do âmbito de matérias delimitado no art. 180º do mesmo diploma, poderá o particular exigir da Administração a celebração de compromisso arbitral.
A interpretação do dispositivo[47] suscita algumas dúvidas, das quais nos ocuparemos, sem, entretanto, pretender dar qualquer resposta definitiva em relação a elas.
Em primeiro lugar, coloca-se o problema de se saber se a Administração está mesmo obrigada a outorgar o compromisso arbitral.
Embora reconhecendo a pertinência das intenções subjacentes ao dispositivo em foco, entende João Caupers que o direito de o particular exigir a celebração do compromisso arbitral não seria um direito potestativo[48]. Segundo o autor, “o poder de exigir a celebração de compromisso arbitral não parece produzir nenhum efeito jurídico automático na esfera jurídica da entidade pública a quem seja dirigida tal exigência: muito embora esta tenha a obrigação de celebrar o compromisso arbitral, a lei não faz recair sobre ela quaisquer consequências da recusa”[49].
De fato, é forçoso reconhecer que a posição adotada pelo legislador traz sérios inconvenientes. Eis alguns exemplos[50]: conquanto o texto do art. 182º estabeleça a obrigatoriedade da celebração do compromisso “no âmbito dos litígios previstos no art. 180º…”, não seria de se questionar se a intenção foi mesmo a de abranger todas as matérias ali previstas ou, em verdade, apenas aquelas que já eram pacificamente aceitas como passíveis de arbitragem? Poderia se admitir a exigência de celebração do compromisso quando o particular quisesse recorrer a arbitragem segundo a equidade?
Em suma, a necessidade de um regime capaz de suprir as lacunas da disciplina dada pela LAV às situações em que ocorra a falta de colaboração da Administração na celebração do compromisso arbitral, bem assim capaz de definir os pressupostos de que dependerão a efetivação do direito a outorga do compromisso, é uma realidade que não pode ser desprezada[51].
Não nos parece que a simples indicação, constante do nº 1 do art. 181º, de que “o tribunal arbitral é constituído e funciona nos termos da lei sobre arbitragem voluntária, com as devidas adaptações” seja suficiente para solucionar os problemas que podem surgir nesse âmbito. Note-se que a LAV (arts. 12º, nº 1 e 14º, nº 2) somente trata do suprimento do dissentimento no que diz respeito à escolha dos árbitros.
Nada obstante a ressalva feita acima, julgamos que é preciso respeitar a opção feita pelo legislador ao por a questão nesses termos. A lei é expressa ao consagrar a possibilidade de o particular exigir — e cremos que o termo não escolhido por desapego a técnica — a outorga do compromisso. Diante dessa constatação, julgamos que o direito a exigir da Administração a celebração do compromisso decorre diretamente do CPTA, embora tenha que se reconhecer que esse direito não está regulado em todos os seus aspectos.
À lei que venha a regular esse direito, por conseguinte, caberá conferir “ao órgão competente para despachar o poder vinculado de verificar, em função do objecto do litígio (a indicar necessariamente pela interessado no requerimento), se se preenchem os pressupostos de que irá depender a celebração do compromisso arbitral”[52].
Por outras palavras, ao receber o requerimento, cumprirá ao ministro da tutela[53], após verificar se o litígio que o particular pretende submeter à arbitragem insere-se no âmbito das matérias constantes do art. 180º[54], despachá-lo[55] no sentido do seu deferimento, por força do preceito contido no art. 182º. Caso haja por bem indeferir o requerimento, abrir-se-á ao particular a via da ação administrativa especial de condenação a prática de ato administrativo legalmente devido (art. 46º, nº 1, alínea “b”)[56], caso em que a sentença produzirá os mesmos efeitos do ato omitido ao arrepio da lei (art. 167º, nº 6)[57].
O prazo de que dispõe o órgão competente para apreciação do aludido requerimento é de 30 (trinta) dias, contados da apresentação daquele, conforme dispõe o nº 1 do art. 184º. Deixando de despachá-lo dentro desse prazo — desde que a lei não venha a dispor de forma distinta —, caberá o manejo de ação administrativa especial de condenação a prática de ato administrativo legalmente devido (art. 46º, nº 1, alínea “b”)[58].
Outro aspecto digno de nota, no que respeita à disciplina dada à arbitragem pelo CPTA, é a suspensão dos prazos de que dispõe o particular para lançar mão das vias processuais próprias da jurisdição administrativa, uma vez apresentado o requerimento com vistas à celebração do compromisso arbitral, nos termos do art. 183º[59].
Conquanto o despacho do órgão competente deva ser proferido em 30 (trinta) dias (art. 184º, nº 1) — o que, em princípio, impediria a perda dos prazos para a ação especial (art. 58º, nsº 1 e 2) e para a comum (art. 41º, nsº 1 e 2) —, não se pode desprezar a possibilidade de que ocorra algum atraso na apreciação do requerimento, fato que, sem a suspensão operada pelo art. 183º, poderia causar sérios prejuízos ao particular que pretenda recorrer à arbitragem[60].
É preciso ter em linha de conta que não há previsão de qualquer sanção para o caso de descumprimento do preceito do nº 1 do art. 184º, sem o prejuízo, nesse caso, de o particular poder se valer da ação administrativa especial de condenação a prática de ato administrativo legalmente devido, como já assinalado.
Ainda em relação a aspectos processuais do CPTA, convém referir ao disposto no nº 1 do art. 181º. Segundo este artigo o tribunal arbitral será constituído e funcionará nos termos da LAV, sem o prejuízo das adaptações que se façam necessárias.
Como já dito, a mera referência de que os tribunais arbitrais deverão funcionar, com os necessários ajustes, de acordo com o regime estabelecido da LAV certamente não será capaz de contornar todos os problemas que poderão surgir quanto à constituição e funcionamento daquele. Por conseguinte, a necessidade de lei para regular os pormenores da aplicação da LAV à arbitragem relativa a questões administrativas é imperiosa.
Nada obstante, o CPTA já procedeu a alguns ajustamentos da disciplina da LAV, como se nota no texto do nº 2 do art. 181º e art. 186º.
A previsão do nº 2 do art. 181º promove a adequação das referências feitas na LAV aos tribunais judiciais comuns. Dessa forma, nos casos em que falte a nomeação do(s) árbitro(s), será o presidente do Tribunal Central Administrativo da região a que o lugar fixado para arbitragem estiver vinculado, ou, na ausência de tal fixação, da região a que o domicílio daquele que requereu a nomeação estiver vinculado, que terá competência para fazê-la (art. 12º, nº 1, da LAV), salvo se a convenção for manifestamente nula, hipótese em que caberá àquele declarar a impossibilidade de designação de árbitros (art. 12º, nº 4, da LAV).
Em igual sentido, caberá ao presidente do Tribunal Central Administrativo a escolha do presidente do tribunal arbitral no caso de não haver acordo entre os árbitros ou entre as partes acerca da designação daquele (art. 14º, nº 1 e 2).
Nesse passo, passa-se a analisar a disciplina da impugnação da decisão arbitral prevista do art. 186º do CPTA.
Embora o CPTA não seja muito preciso no tratamento da questão, parece-nos que foi mantido o sistema de impugnação da decisão arbitral previsto na LAV, uma vez que o nº 1 do art. 186º do CPTA, à semelhança do art. 27º da LAV, prevê a possibilidade da anulação daquela, e o nº 2 do mesmo artigo se refere, também como o art. 29º da LAV, à possibilidade de recurso.
A ação de anulação deverá ser intentada perante o Tribunal Central Administrativo[61] e poderá veicular qualquer dos fundamentos constantes do art. 27º da LAV (art. 186º, nº 1, do CPTA)[62].
Por força do disposto no nº 2 do art. 186º, da decisão arbitral podem ser manejados os mesmos recursos cabíveis da decisão prolatada pelo tribunal administrativo de círculo[63], desde que a decisão dos árbitros não tenha sido segundo a equidade, pois o julgamento com base na equidade implica a renúncia aos recursos (art. 29º, nº 2, da LAV).
5.2. Questões relativas à responsabilidade civil extracontratual e ações de regresso
A arbitrabilidade das questões relativas à responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas de direito público já vigorava há muito tempo em Portugal, de modo que, nesse particular, quase nada acrescentou a reforma.
Registre-se apenas que o art. 185º do CPTA, acolhendo proposta formulada durante a discussão pública da reforma[64], veda o recurso à arbitragem nas questões de responsabilidade que envolvam “prejuízos decorrentes de atos praticados no exercício de função política, legislativa e jurisdicional”.
5.3 A arbitragem nos litígios relativos a atos administrativos
5.3.1. Algumas premissas
Das modificações operadas pela reforma, especificamente no que toca à arbitragem, certamente a previsão de arbitrabilidade de litígios relacionados à prática de atos administrativos é a inovação mais significativa e a que suscita maiores questionamentos de ordem dogmática.
Quando se apontou no item 4 os argumentos sustentados pela doutrina para admitir a arbitragem nos litígios relacionados à responsabilidade civil extracontratual do Estado e aos contratos administrativos e, pelo contrário, para não admiti-la nas questões que dissessem respeito a atos administrativos, já se adiantou um pouco da temática que será tratada agora.
Todavia, nessa altura, a questão será abordada com mais profundidade, a fim de fincar as bases sobre as quais iremos discutir a novidade trazida pela reforma.
A propósito da arbitragem e do requisito da disponibilidade dos direitos cuja discussão se pretende levar àquela, formou-se, na doutrina portuguesa, o entendimento de que o contraste feito entre direitos disponíveis e direitos indisponíveis, fundado basicamente na autonomia da vontade, poderia ser transposto para o plano das relações jurídico-administrativas por meio da contraposição entre relações paritárias e relações de autoridade[65].
Dessa forma, quando estivéssemos perante situações em que a Administração atuasse com poderes de autoridade, notadamente mediante emissão de atos administrativos, entendia-se que as questões neste âmbito surgidas estariam fora da sua disponibilidade[66]. Por esta razão, o contencioso da legalidade — domínio onde se discutem as questões relacionadas a atos administrativos, como cediço — seria prerrogativa confiada, em regime de exclusividade, aos tribunais administrativos[67], cuja competência seria de ordem pública[68].
Com bases nesses fundamentos, portanto, afastava-se a arbitragem da seara relativa ao contencioso da legalidade.
Por outro lado, quando a Administração atuasse sem se colocar numa posição de superioridade para com os particulares, entendia-se que as situações aí surgidas estariam na sua disponibilidade, pelo que as questões afetas ao contencioso de plena jurisdição — donde se incluíam, como se sabe, as relacionadas à responsabilidade civil do Estado e aos contratos administrativos — eram admitidas como passíveis de apreciação arbitral.
Nessa mesma linha de raciocínio, acrescenta Aroso de Almeida que, devido ao fato de não se discutirem, no âmbito desse contencioso, questões que envolvam o exercício de poderes de autoridade, “a função do juiz não é essencialmente diferente da que corresponde aos juízes dos tribunais judiciais, pelo que não há inconveniente em confiar a apreciação dessas questões à arbitragem, a exemplo do que sucede no âmbito dos litígios que são submetidos à jurisdição daqueles tribunais”[69].
Nesse diapasão, na esteira da evolução da conduta da Administração, em cujo agir nota-se, cada vez mais, a valorização da consensualidade e a passagem progressiva do tradicional modelo autoritário para “um modelo crescentemente contratualizado”[70], verifica-se o fortalecimento da arbitragem e o desenvolvimento de correntes de pensamento refratárias a concepção que afasta a arbitrabilidade dos litígios envolvendo atos administrativos.
Põe-se em xeque o entendimento tradicional de que a arbitragem não encontraria espaço no âmbito dos litígios relacionados a atos administrativos devido à natureza indisponível deste domínio[71].
Nessa conformidade, sustenta João Caupers[72] que a sujeição da Administração ao princípio da legalidade não seria suficiente, só por só, para afastar a arbitragem dos litígios que digam respeito à atos administrativos.
Segundo o eminente professor, o conteúdo do ato administrativo não deriva de modo absoluto da lei, esta apenas regula, “modula”, seu conteúdo, de maneira que quase sempre haverá espaço — mais ou menos amplo — para a discricionariedade administrativa[73]. Nestas situações, prossegue, poderá haver mais de uma decisão legalmente possível, e o juiz não poderá aqui entrar no mérito de saber se a decisão adotada foi a melhor — este seria o espaço da discricionariedade administrativa[74].
Com base nessas premissas, conclui o citado professor no sentido de que não haveria razão para se vedar a discussão, no juízo arbitral, das questões a respeito das quais a Administração tenha essa margem de discricionariedade[75] [76].
Na mesma linha de intelecção, Sérvulo Correia critica a relação que se estabelece entre a “definição da situação jurídico-administrativa por acto administrativo”[77] e a indisponibilidade das “posições jurídicas conformadas”[78], asseverando que “o caráter disponível ou indisponível do poder da Administração resulta da natureza vinculada ou discricionária do poder de definição do conteúdo da situação jurídica administrativa e não da forma típica adoptada para a conduta concreta”[79].
Contudo, não nos parece que o critério proposto seja o melhor caminho para justificar, em termos gerais, a arbitragem nas questões relacionadas a atos administrativos, muito embora não se ponha em causa a correção das premissas utilizadas; não se pode negar a existência de um grau variável de discricionariedade na atuação da Administração.
Ao que tudo indica, no entendimento acima exposto vai o equívoco de se associar a suscetibilidade de questões à arbitragem em referência ao campo de admissibilidade da transação, como procurarmos demonstrar a seguir. Embora se reconheça alguma similitude entre as duas figuras, existem diferenças capitais que não autorizam a correlação, em termos de âmbito de admissibilidade, que entre elas se faz.
Em termos de semelhança, pode-se dizer que ambas as figuras representam meios alternativos de resolução de conflitos, que passam pelo acordo de vontade das partes em ter sua situação jurídica definida sem a emissão de uma sentença estatal[80].
Noutra quadra, convém ter presente que enquanto a transação constitui técnica autocompositiva de litígios, na qual as partes, mediante concessões recíprocas, definem a nova situação jurídica a que vão se submeter, vale dizer, definem elas próprias a solução do litígio; a arbitragem, diversamente, apresenta-se como técnica heterocompositiva, no sentido de que a solução acerca da situação controvertida (do litígio) é dada por terceiros[81], de modo que o tribunal arbitral é chamado a “decidir efetivamente e, portanto, resolver ele próprio o litígio, definindo os termos da sua composição com autoridade de caso julgado, como se tribunal estadual se tratasse”[82].
É nesse ponto que reside a diferença fundamental entre os dois institutos. Note-se que, na transação, a partes verdadeiramente dispõem dos direitos envolvidos na relação material controvertida, pois só assim se pode admitir que elas, mediante acordo de vontades, renunciem parte dos seus direitos — por isso se fala em concessões ou abandonos recíprocos. Na arbitragem não se verifica essa mesma disposição, uma vez que a conjugação de vontades só se dá para efeito de designar os árbitros e confiar-lhes a resolução do litígio[83], não abrangendo a disciplina da relação substancial objeto de conflito.
À vista dessas diferenças, cumpre retomar a questão sobre se a existência de margem de discricionariedade na atuação da Administração, por si só, autoriza a arbitragem neste campo.
Não nos afigura correto entender que a mera circunstância de os juízes estaduais não poderem adentrar no mérito das ações da Administração, em termos de que lhes seria vedado preencher o espaço reservado à discricionariedade administrativa, possa ser suficiente para permitir que tal poder seja entregue aos árbitros. Em termos porventura mais claros: o fato da Administração, nestas situações, ser detentora de um certo poder de disposição, no sentido de optar por um, dentre os vários caminhos legalmente possíveis, não significa que ela possa, sem mais, entregá-lo a árbitros.
Ora, se aos juízes estaduais é vedado julgar a conveniência e oportunidade (o mérito) da atuação da Administração[84] (art. 3º, nº 1, do CPTA) porque se deveria admitir que os árbitros — cujo papel não é essencialmente distinto do que é conferido àqueles — o fizessem? Não cremos que os árbitros estejam autorizados a desempenhar a função de procurar a solução, dentre as legalmente possíveis, que melhor atenda ao interesse público (art. 266º da CRP), mormente quando se leva em conta que esta tarefa foi cometida por lei a Administração[85].
É preciso ter em mente, aqui, as características da arbitragem já enunciadas. Lembre-se que se trata de técnica de heterocomposição de litígios, na qual é um terceiro que vai decidir a lide, no desempenho de atividade jurisdicional[86], que não difere, em substância, da desempenhada pelos tribunais estaduais. Se a Administração pode dispor, em certa medida, de situações onde haja espaço para a discricionariedade, então é de entender-se que esse domínio, em verdade, é campo fértil para a transação[87].
Esclareça-se, por oportuno, que não se está defendendo que não seja possível a arbitragem nas situações com os contornos já assinalados; cremos que ela será possível se atendidos certos limites. O que pretendemos firmar é que não se pode adotar a discricionariedade como critério único para definir o campo da arbitragem dos atos administrativos e, bem assim que a arbitrabilidade neste campo não pode representar a entrega a árbitros do poder de proceder à determinadas valorações que incumbem à Administração, como já visto.
Verificada a prática de um ato administrativo discricionário, seria de se admitir, e.g., que o tribunal arbitral verificasse a conformidade entre o fim legal (“aquele visado pela lei ao conferir ao órgão administrativo determinado poder legal”[88]) e o fim real (“motivo principalmente determinante da prática do ato administrativo em causa”[89]) deste ato, podendo, caso esteja ausente essa relação de adequação, declarar a sua invalidade, com base no desvio de poder.
Outro exemplo seria a questão dos atos administrativos que envolvessem juízos de elevada complexidade técnica, onde poderá haver margem a alguma discricionariedade administrativa. Não se pode negar a conveniência da arbitragem em litígios desta natureza, uma vez que é suposto que o juiz conheça a lei, não lhe sendo possível dominar as diversas áreas do conhecimento, das quais podem ser exigidos conhecimentos para resolver determinada lide. O árbitro, pelo contrário, mormente em se tratando de arbitragem ad hoc, deve possuir conhecimentos específicos sobre o tema discutido.
Todavia, pode ocorrer que esses juízos técnicos devam ser apreciados segundo valorações cuja assunção cabe à Administração, casos em que não se poderá entregar aos árbitros a decisão desses litígios, uma vez que, como visto, a discricionariedade deve ser exercida pela Administração.
Será preciso, portanto, fixar os limites em que será admitida a atuação do árbitro, cercando-se de cautelas para que ele não avance para o terreno da discricionariedade.
Nesse passo, impende esclarecer que não é porque criticamos a correlação que tem sido feita, por parte da doutrina, entre a presença de discricionariedade no ato administrativo e arbitrabilidade dos litígios daí decorrentes, que não estejamos de acordo com a intenção que lhe é subjacente: admitir a arbitragem nas questões relacionadas a atos administrativos; ao revés, esse é o entendimento que desposamos e, a propósito do qual, traremos, a par dos acima apontados, outros argumentos.
Em linha de princípio, cumpre registrar que não nos parece que a indisponibilidade das questões ligadas a atos administrativos, ante a presença de poderes de autoridade, seja obstáculo suficiente para afastar a arbitragem.
Quando as partes decidem submeter a controvérsia à decisão de árbitros, o que se faz, por outras palavras, é pedir-lhes que, com base no direito constituído[90], defina a sua situação jurídica, pondo termo ao litígio, dizendo qual o direito aplicável ao caso. É fácil verificar que a atividade dos árbitros nessas situações — dizer o direito aplicável ao caso concreto — não é, em essência, distinta daquela desenvolvida pelos juízes estaduais.
Portanto, não nos parece que, ao submeter a decisão do litígio a arbitragem, as partes estejam verdadeiramente dispondo dos direitos em causa.
Sob essa perspectiva, a exigência da disponibilidade dos direitos talvez faça sentido em relação à transação, pois aqui é que se verifica a efetiva disposição dos direitos. Recorde-se que na transação as partes, valendo-se da autonomia privada e da possibilidade de disporem dos direitos controvertidos, fazem concessões recíprocas, compondo a sua nova situação jurídica na forma que melhor lhes convenha.
Nessa linha de pensamento, é a manifestação de Raúl Ventura: “quando leio que arbitragem não é possível quando a transacção não o é, pois esta exige a faculdade de dispor, visto ser constituída por abandonos recíprocos (MOTULSKY, Études et notes sur l’arbitrage, p. 55), compreendo que a transacção não possa, pelo citado motivo, incidir sobre direitos indisponíveis, mas continuo a duvidar da igualdade, para este efeito, entre transacção e convenção de arbitragem, ou, por outras palavras, duvido que o julgamento por um tribunal arbitral de litígio sobre o direito disponível afete a indisponibilidade do direito”[91].
É bem verdade que as partes podem autorizar os árbitros a julgar segundo a equidade (art. 22º da LAV), o que afastaria, em certa medida, a semelhança entre a atividade do árbitro e do juiz estadual, correndo-se o risco de a solução do litígio distanciar-se daquela que seria dada pelo direito constituído. Nesse sentido, é possível entender-se que, ao permitir que os árbitros julgassem com base na equidade, estaria a Administração, de certa forma, dispondo do direito controvertido.
É por isso que alguns autores[92] têm sustentado — acertadamente, ao meu ver — que as questões relativas a atos administrativos poderiam ser apreciadas por árbitros desde que não lhes fosse permitido julgar segundo a equidade.
Essa circunstância, somada a possibilidade de um posterior controle judicial — de forma e de fundo — da decisão arbitral (art. 186º do CPTA), em termos já assinalados, talvez seja capaz de abrandar a resistência que tem sido oposta à arbitrabilidade no domínio dos atos administrativos.
Ainda deverá ser considerado um outro argumento.
Já foi visto no item 4 que abalizada doutrina sustenta que o nº 1 do artigo 1º da LAV teria enunciado uma cláusula genérica de arbitrabilidade, destinada aos litígios referentes às relações de direito privado, e que a previsão do nº 4 do mesmo artigo deve ser entendida no sentido de excluir, em relação ao Estado e demais pessoas de direito público, a disciplina do disposto no citado nº 1. Estes necessitariam de autorização e regulação própria (lei especial) para submeterem seus litígios à arbitragem.
Ora, tendo o requisito da disponibilidade de direitos sido previsto no nº 1 do art. 1º da LAV, e, ainda, considerando que este dispositivo não disciplinaria a arbitragem em matéria de direito administrativo, conforme visto, parece-nos possível sustentar que tal requisito não possa ser exigido neste domínio com base na LAV. Seria preciso que lei especial, relativa à arbitragem administrativa, colocasse a questão da disponibilidade dos direitos e interesses controvertidos como condição de arbitrabilidade.
Todavia, sem embargo de se reconhecer que a disciplina da arbitragem nas relações jurídico-administrativas se vale da distinção entre situações disponíveis e indisponíveis, não há disposição no CPTA, no ETAF ou em outros diplomas que estabeleça tal exigência. É possível, contudo, que a lei que venha regulamentar a arbitragem no citado âmbito o faça.
À vista do exposto, estamos em que as questões relacionadas a atos administrativos não seriam domínios, por natureza, vedados à arbitragem.
Conforme se demonstrará no próximo item, o novo CPTA vem sufragar esse entendimento, muito embora não firme permissivo que autorize a arbitragem em relação à generalidade dos litígios envolvendo atos administrativos.
5.3.2. Questões relativas a atos administrativos destacáveis relativamente à execução dos contratos administrativos
A arbitrabilidade dos litígios referentes à validade, interpretação e execução dos contratos administrativos já era pacífica de há muito em Portugal, conforme se viu no item 4, de modo que nenhuma novidade trouxe o novo CPTA nesse particular.
Todavia, não se admitia a apreciação, pelo tribunal arbitral, das questões referentes à execução dos contratos administrativos que envolvessem atos administrativos, como também restou salientado no item 4[93].
Tal entendimento, devido ao permissivo constante da parte final da alínea “a” do nº 1 do art. 180º do CPTA, resta agora superado. Com efeito, dispõe a norma em foco que poderão ser objeto de arbitragem “questões respeitantes a contratos, incluindo a apreciação de actos administrativos relativos à respectiva execução” (art. 180º, nº 1, do CPTA).
Antes de avançarmos, todavia, faz-se mister esclarecer que atos administrativos são esses que podem aparecer no curso da execução do contrato administrativo.
No campo da execução dos contratos administrativos, pode a Administração praticar atos de diversas naturezas; como assevera Servúlo Correia: “não existe princípio algum de tipicidade no que respeita aos actos de execução dos contratos administrativos”[94].
Assim, no curso da execução dos contratos administrativos, a Administração manifesta-se, e.g., através de atos opinativos, declarações negociais e também mediante atos administrativos. De uma maneira geral, pode-se dizer que, se os atos através dos quais a Administração atua refletem o exercício de poderes de autoridade[95], estar-se-á diante de atos administrativos destacáveis da execução do contrato[96]. Não é pelo simples fato de ato estar previsto no contrato que restará infirmada sua natureza de ato administrativo[97].
Exemplos de atos destacáveis da execução do contrato são aqueles a que a Administração se obriga a praticar e que exigem o exercício de poderes de autoridade, como expropriar terrenos, constituir servidões, conceder licenças[98].
Feitos esses esclarecimentos, verifica-se que a previsão contida na parte final da alíena “a” do nº 1 do art. 180 do CPTA, ao incluir a possibilidade de as questões ligadas a atos administrativos relacionados à execução do contrato administrativo serem objeto de arbitragem, operou a ampliação da gama de litígios suscetíveis de arbitragem.
A nosso ver, devido a essa disposição, perde um pouco de sentido a discussão doutrinária acerca da (im)possibilidade de submeter questões relacionadas a atos administrativos ao juízo arbitral. É a lei que chancela essa possibilidade e o faz de forma clara, inequívoca e, segundo cremos, correta.
Se aos juízes arbitrais é outorgada competência para apreciar os litígios relativos a invalidade, interpretação e execução dos contratos administrativos, é razoável que também lhes seja atribuída competência para analisar as questões, surgidas neste último domínio, que digam respeito a atos administrativos.
Entendemos assim por dois motivos.
Por primeiro, julgamos que o fato da Administração fazer uso do seu poder de autoridade não afasta a arbitrabilidade das questões neste âmbito surgidas; como se viu, por mais que este campo seja considerado de indisponibilidade, deve-se lembrar que o fato de se submeter as controvérsias, nesta seara nascidas, à arbitragem — bem vista como técnica heterocompositiva de resolução de conflitos, de inegável natureza jurisdicional — não significa que se esteja dispondo dos direitos envolvidos.
Em segundo lugar, justifica-se que sejam assim pela vantagem de se permitir que os árbitros conheçam e atuem sobre a totalidade da relação jurídica controvertida. Como asseverou o Conselho de Estado francês, “o recurso à arbitragem não tem interesse jurídico e prático a menos que os árbitros tenham o poder de decidir todas as questões relacionadas com o litígio lhes é submetido”[99].
Nessa linha de intelecção, pode-se afirmar que as mesmas razões acima apontadas devem justificar que os poderes de apreciação dos árbitros sejam amplos, em termos de lhes ser dada a permissão de se pronunciar[100] sobre a legalidade dos atos administrativos destacáveis relativos à execução do contrato[101]. Vale dizer, só haverá razão de ser para a arbitragem se todos os aspectos respeitantes ao litígio puderem ser apreciados pelo juízo arbitral, como se viu, e este desígnio somente será alcançado se os árbitros puderem analisar a legalidade do ato.
É importante lembrar que, de acordo com o nº 2 do art. 180º do CPTA, havendo contra-interessados, somente poderá ter lugar a arbitragem se estes aceitarem a celebração do compromisso arbitral.
Diga-se, ainda, que a outorga do compromisso arbitral poderá ser requerida não só pelas partes da relação contratual, mas também por terceiros, devido à previsão do art. 40º, nº 2, do CPTA que estende a estes a legitimidade para deduzir pedidos relacionados à execução e validade dos contratos administrativos — resguardado o direito dos contra-interessados de aceitar ou não a celebração do compromisso[102].
5.3.3. Questões relativas a atos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade
A par da arbitrabilidade dos litígios relativos a atos administrativos destacáveis referentes à execução do contrato administrativo, estabelece a alínea “c” do nº 1 do art. 180º outra situação em que os atos administrativos poderão ser apreciados pelo juízo arbitral: “Art. 180.º (Tribunal arbitral) 1 — Sem o prejuízo do disposto em lei especial, pode ser constituído tribunal arbitral para o julgamento de: (…) c) Questões relativas a actos administrativos que possam ser revogados sem fundamento a sua invalidade, nos termos da lei substantiva.”
Antes de qualquer coisa, é preciso buscar no CPA (lei substantiva) o que se entende por “actos administrativos que possam ser revogados sem fundamento a sua invalidade”.
De acordo com o art. 140º do CPA, os atos administrativos são livremente[103] revogáveis, salvo: “quando sua irrevogabilidade resultar de vinculação legal” (art. 140º, nº 1, “a”); “quando forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos”[104] [105] [106] (art. 140º, nº 1, “b”); e “quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis” (art. 140º, nº 1, “c”).
De início, cumpre esclarecer que a possibilidade de revogabilidade dos atos, sem fundamento na sua invalidade, pressupõe a sua validade[107].
Note-se que atendidas as condições apontadas em (a) e (b), isto é, não sendo o caso de ato administrativo cuja irrevogabilidade conste de lei, nem se tratando de ato que gere direitos ou obrigações para a Administração, ainda será preciso que estes atos, para efeito de sua revogabilidade, não sejam constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, o que autorizaria concluir que, em suma, são passíveis de revogação, sem fundamento em invalidade, os atos administrativos válidos que não constituam direitos e interesses legalmente protegidos[108] [109].
Ora, se os fundamentos para a revogabilidade do ato não podem ser encontrados na sua invalidade, estaremos diante de atos que podem revogados por razões de mérito[110] (conveniência e oportunidade), que, enquanto tais, são razões que se compreendem no poder discricionário da Administração.
Bem vistas as coisas, verifica-se que a previsão do art. 180º, nº 1, “c” parece adotar o entendimento que relaciona a disponibilidade dos direitos com a presença de poderes discricionários da Administração, caso se admita que, sendo a apreciação das razões que conduzirão à revogação do ato feita de acordo com a discricionariedade da Administração, as situações jurídicas relacionadas ao ato em causa digam respeito à matéria disponível.
Outra questão que pode ser colocada é de saber se o CPTA, ao utilizar a fórmula “questões envolvendo actos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade”, quis admitir que o tribunal arbitral poderia apreciar apenas o ato não constitutivo de direitos e interesses legalmente protegidos ou não somente este, mas também o ato revogatório daquele.
Pela forma como está redigido o preceito, ao que acrescemos o entendimento de não vemos ínsita na disciplina dos atos administrativos vedação que impeça a sua apreciação pelo juízo arbitral, julgamos que deverá ser afastada a interpretação restritiva, de modo a prevalecer a segunda das opções acima aventadas.
Contudo, deve-se levar em conta as ressalvas anteriormente feitas, no sentido de que o poder discricionário da Administração não pode ser entregue aos árbitros, de maneira que a margem de apreciação do tribunal arbitral deverá ser demarcada em função de critérios previamente definidos.
Poderá o tribunal arbitral, por exemplo, apreciar se, tendo havido a revogação de ato administrativo, provocada pela ocorrência de certas circunstâncias, das quais a revogação dependia, nos termos da lei ou do que constou do próprio ato, estas circunstâncias efetivamente se verificaram[111].
Quanto à extensão dos poderes de apreciação dos árbitros nestas questões, parece-nos que não seria de se excluir a possibilidade de apreciação da legalidade do ato administrativo[112].
Pensamos assim pelos fundamentos já expostos no item 5.3.2. para o qual remetemos o leitor.
Por fim, faz-se necessário relembrar que, nos termos do nº 2 do art. 180º do CPTA, havendo contra-interessados, somente poderá ter lugar a arbitragem se estes aceitarem a celebração do compromisso arbitral.
Conclusão
Para além das questões que tivemos a oportunidade de suscitar, certamente muitas outras ainda poderão ser levantadas, pois ainda há muito que se discutir e refletir sobre o assunto em cotejo.
Sob essa perspectiva, vemos o presente trabalho designadamente como um ponto de partida para o estudo mais aprofundado que o tema demanda.
Como foi salientado na apresentação deste estudo, não pretendíamos abordar o tema em sua inteireza, mas apenas os principais aspectos relacionados com a reforma do contencioso administrativo.
Esperamos, pois, que o tenhamos feito de forma satisfatória.
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Administrativo da Faculdade Ruy Barbosa Grupo DeVry. Procurador do Banco Central do Brasil
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