A Associação como instrumento de transformação social e seus elementos constitutivos de acordo com a Constituição Federal e o Código Civil

Sumário: 1. Aspectos conceituais; 2. Aspectos positivo-constitucionais; 3. Aspectos positivo-civilistas; 4. Bibliografia; 5. Notas

1. Aspectos conceituais

O direito de associação, em sentido técnico estrito, assenta-se no direito das pessoas se agruparem, de modo perene, com vistas a viabilizar a realização de empreendimento comum, previamente determinado, cuja finalidade careça do caráter de obtenção de lucro para os associados e cuja estrutura patrimonial seja constituída pelos membros.

Desta definição, podemos apreender que, como fator constitutivo da base do direito de associação, está o direito de reunir-se de modo permanente com exclusividade.

Ou seja, um grupo de pessoas que se reuniu com o objetivo de fomentar certa atividade tem o direito de escolher as pessoas que o integrará no futuro. O reconhecimento da possibilidade de diferenciação, portanto, mostra-se como o alicerce deste tipo de agrupamento humano.

É importante atentar que um empreendimento comum consiste na dação de esforços para se alcançar uma finalidade por todos almejada. Empreender é realizar uma atividade, elemento este que vincula ao associado uma tarefa, uma contribuição, que acaba por se explicitar juridicamente como relação obrigacional.

Note-se que são dois os elementos de um empreendimento comum com forma de Associação: a atividade meio e a finalidade, sendo que, ao contrário deste elemento, não se exige do primeiro ausência de aspectos econômicos.

Neste sentido, torna-se possível a existência de uma atividade meio, ou instrumental, consubstanciada, por exemplo, na cobrança de mensalidades das pessoas as quais os serviços são prestados, contanto que não haja distribuição do dinheiro arrecadado para os associados.

Assim, o que acaba por definir a natureza da associação não é a sua atividade meio, mas sim a sua finalidade. São exemplos de escopo associativo (i) o beneficiamento mútuo de pessoas, que constituem um grupo seleto, por meio de bens e serviços, como clubes esportivos e associações de bairro, (ii) a representação de uma categoria profissional, (iii) a organização para a disseminação de doutrinas religiosas, (iv) a promoção de serviços sociais assistencialistas na área de educação, saúde e desporto.

Vê-se, desde logo, a função social que este tipo de agrupamento de pessoas tem no mundo contemporâneo como reação a uma cultura política assentada na idéia de que o cidadão está acostumado à tutela de seus representantes para o melhoramento de suas condições.

As Organizações Não Governamentais, pela sua própria denominação, explicitam isto ao extremo. Tais associações, cujo escopo transcende a prestação de bens e serviços a seus associados (o que não exclui o caráter retro mencionado de exclusividade da associação, pois este diz respeito ao ato de associar-se) podem ser qualificadas, inclusive, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, como dispõe o artigo 1º da Lei 9.790, de 23 de março de 1999[i].

Aliás, tal lei permite, quando atendido certos requisitos que primam pela transparência na gestão, a transferência de recursos públicos para este tipo de associação, visto que esta presta serviços de grande relevância para a sociedade, suprindo, na medida do possível, as ausências de ação do poder público, que sempre está passos atrás das necessidades da população.

A noção de que as associações constituem instrumento de transformação social é tão intensa que os direitos concernentes a tal instituto foram esculpidos, pelo legislador constitucional, no artigo 5º, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Passemos, então, a analisar as disposições constitucionais que tratam da matéria.

2. Aspectos positivo-constitucionais

O inciso XVII expressa que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. A inteligência jurídica deste dispositivo pauta-se na seguinte lógica de exclusão: em não havendo tipo penal que defina uma conduta como ilícita, toda espécie de fim é permitida. Note-se, portanto, que uma associação pode ser extinta caso haja produção de norma infraconstitucional que tipifique como ilícita a sua finalidade.

A vedação expressa do caráter paramilitar, por sua vez, assenta-se no resguardo, por parte do Estado, do monopólio do poder da força. Grupos que pudessem concorrer nesta espécie de poder, e que, portanto, fossem reconhecidos oficialmente pelos órgãos estatais, impediriam qualquer estrutura pautada em um poder soberano. Por isto, aliás, o combate ao crime organizado, que mina a crença no poder do Estado para a solução de conflitos quando com Ele concorre no estabelecimento das normas atinentes a determinado território.

O inciso XVIII, por sua vez, expressa que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.

Parece que podemos compreender esta disposição à luz da noção mais antiga de liberdade individual, que se consubstancia na ausência de ações, por parte da comunidade, que interfiram diretamente na vida privada das pessoas. A idéia é a de que a abstenção do Estado funciona como garantia de que o indivíduo não será oprimido pelo ente que, por definição, o deve proteger.

Se, por um lado, o primeiro inciso citado, dá prevalência para a esfera pública, por outro, o segundo dá prevalência para a esfera privada. Tal contradição funciona como modo de balanceamento entre uma vertente republicana e uma vertente liberal, ambas arraigadas no espírito constitucional.

Já o inciso XIX da Constituição Federal, ao dizer que “as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado” explicita um mecanismo de segurança jurídica que corrobora com a noção liberal.

Quando se dispõe no inciso XX que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” quer-se mostrar que a Associação não se assenta apenas em uma idéia que prima pela coletividade, mas, também, que prima pelo resguardo da individualidade. Mais uma vez, explicita-se um mecanismo de segurança jurídica que põe o peso no espírito liberal.

Por consistir a pessoa jurídica da associação uma extensão, um reflexo, da vontade individual de cada associado de ver um determinado empreendimento comum realizado, o legislador constitucional garantiu a possibilidade de representação desta vontade por aquele ente, conforme se pode apreender do inciso XXI: “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”.

3. Aspectos positivo-civilistas

Considerando a hierarquia normativa e a exposição conceitual tecida no item I deste artigo, a análise do Código Civil se voltará apenas para os temas que acima não foram expressos.

O Parágrafo Único do artigo 53 explicita que “não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos”. Deste texto, parece correto compreender, à primeira vista, que a relação obrigacional se dá de modo vertical, ou seja, do associado para com a associação, e não de modo horizontal, de associados para com associados.

Esta é a interpretação que deve ser utilizada para operacionalização técnica jurídica concernente a responsabilidade. No entanto, do ponto de vista ético, é sempre bom lembrar que em um empreendimento comum todos são responsáveis, inclusive, uns perante os outros. É dizer, toda falta cometida por um associado causa, indiretamente, reflexo nos outros associados.

Os elementos constitutivos de uma Associação, portanto, necessários sob pena de nulidade do seu Estatuto, estão enumerados no artigo 54 e são: I – a denominação, os fins e a sede da associação; II – os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; III – os direitos e deveres dos associados; IV – as fontes de recursos para sua manutenção; V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução. VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.

Em relação à destituição dos administradores e a modificações estatutárias, o artigo 59 estabelece exclusividade à assembléia geral, o que encontra lastro no princípio isonômico que deve permear a Associação, visto que tais alterações trazem conseqüências para todos os associados.

Como o Parágrafo Único deste artigo diz ser necessária a convocação de assembléia especialmente para estes fins, parece certo considerar que estas matérias só podem ser objeto de Assembléia Geral Extraordinária, devendo as mesmas ser expressas no edital de convocação. Já o quorum requerido para instalação e aprovação, bem como os critérios de eleição dos administradores, podem ser, de acordo com a lei, definidos livremente pelos associados no Estatuto.

Já no que diz respeito ao funcionamento dos órgãos deliberativos, cumpre salientar que, por força do artigo 60, a convocação se dará na forma do Estatuto, havendo, assim, liberdade dos associados para estabelecerem seus critérios. No entanto, a lei garante poder de convocação, independentemente do avençado no Estatuto, para 1/5 (um quinto) dos associados, diminuindo, assim, as chances de monopólio por um grupo qualquer.

O artigo 55 expressa que “os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais”. Por meio de uma interpretação sistemática, torna-se correto pensar que a regra, quando não há disposição expressa em contrário, é de que todos os associados possuem os mesmos direitos.

Esta equalização parece encontrar sentido na idéia de que a hierarquia estabelecida, por exemplo, pela definição dos cargos de diretores, serve tão somente para a viabilidade operacional, sendo o associado dirigente um primus inter pares, ou seja, o primeiro entre os pares. O dirigente, antes de tudo, é eleito para expressar a vontade do conjunto dos associados, estando a esta subordinado.

Ademais, há de se notar que a possibilidade de diferenciação é reservada a uma categoria, e não a um indivíduo, o que reforça a noção retro.

Ainda em apreço a figura do associado, tem-se o artigo 56, que ao dizer que “a qualidade de associado é intransmissível, se o estatuto não dispuser o contrário”, traz à tona a pessoalidade como característica primária desta figura jurídica, sendo a substituição de uma pessoa por outra, por meio da transferência da qualidade de associado, causa mortis ou inter vivos, exceção que deve ser expressa no Estatuto. É interessante estar atento que a Associação sempre está permeada por um caráter demasiadamente sentimental de seus associados.

Em complemento a esta perspectiva, dispõe o Parágrafo Único do artigo 56: “Se o associado for titular de quota ou fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não importará, de per si, na atribuição da qualidade de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo disposição diversa do estatuto”.

Quanto à exclusão de associado, deve-se atentar para a necessidade de haver justa causa e direito de defesa e de recurso em procedimento próprio, sendo que todos estes elementos devem ser previstos no Estatuto, conforme estabelece o artigo 57.

Visando fidelidade a essência da Associação, parece conveniente que a defesa e o recurso sejam objeto de deliberação em Assembléia Geral Extraordinária, mas como o legislador não previu nada a respeito, ficam tais procedimentos a cargo das disposições estatutárias.

Por fim, cumpre a análise do balizamento normativo do evento de dissolução da Associação, consubstanciado no artigo 61.

Segundo tal norma, após auferir-se o remanescente do patrimônio liquido da Associação, ou seja, após ter-se adimplido eventuais débitos existentes, devolvem-se os valores correspondentes às quotas ou frações ideais do patrimônio da Associação aos associados que as possuam, se estes existirem. Após, por disposição estatutária ou por deliberação, pode-se restituir as contribuições feitas pelos associados ao longo da existência da Associação.

O montante que sobrar, depois de feitas as operações supra (que podem ou não acontecer), possui como destino “entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes” e, “não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições indicadas neste artigo, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União”. Ou seja, há um forte interesse público em continuar com os serviços ou bens prestados pela Associação, já que, em muitos casos, principalmente no de ONGs, tais entidades servem como instrumento de melhoria das condições sociais da população.

4. Bibliografia

– ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.
– BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1967
– CANOTILHO, J. J. Gomes, e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

Nota:

[i] Lei 9.790Art. 1o – Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. § 1o – Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social.

Informações Sobre o Autor

Rafael Augusto de Conti

Formado em Filosofia pela USP e em Direito pela MACKENZIE. Mestrando em Ética e Filosofia Política pela USP. Advogado em São Paulo.


Equipe Âmbito Jurídico

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