Letícia Duarte Carvalho[1]
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a implantação da “Audiência de Custódia”, compreendendo a perspectiva de humanização dos procedimentos judiciários e a efetiva concretização das determinações previstas nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em especial do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Desta forma, objetiva-se a abordagem da evolução histórica dos Tratados Internacionais de defesa dos Direitos Humanos e da posição do ordenamento jurídico brasileiro frente a tais progressos, com novos métodos pautados na humanização da justiça, além da enumeração das particularidades que permeiam a adoção do projeto de Audiência de Custódia como instrumento viabilizador desta nova tendência.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Tratados internacionais. Direitos humanos.
Abstract: This study aims to analyze the implementation of the “custody hearing”, comprising the perspective of humanization of judicial procedures and the effective implementation of the resolutions set forth in the International Covenants on Human Rights, especially the Pact of San Jose in Costa Rica, of which Brazil is a signatory. Thus, the goal is to approach the historical evolution of the International Human Rights Treaties and the position of the Brazilian legal system in such progresses, with new guided methods of humanization of justice, besides the list of characteristics that affect the adoption of “custody hearing” project as enabler of this new trend.
Keywords: Custody hearing. International treaties. Human rights.
Sumário: Introdução; 1. Tratados Internacionais De Direitos Humanos; 2. Apanhado Histórico Acerca da Internacionalização dos Direitos Humanos e do Surgimento dos Principais Tratados; 3. O Ordenamento Jurídico Brasileiro Frente as Normas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos; 4. A Audiência de Custódia Inserida no Âmbito Dos Tratados Internacionais; 5. Projeto Audiência de Custódia; Considerações Finais
O Sistema prisional brasileiro tem sido marcado por graves violações aos direitos fundamentais dos indivíduos detidos, que é acentuado pelo distanciamento entre este apenado e as autoridades responsáveis por seu julgamento, pois na configuração processual penal adotada anteriormente, apenas se promovia o encontro com a autoridade responsável pelo julgamento meses ou anos depois de efetivada a constrição de sua liberdade, sendo este apenado submetido, em muitos casos, a situações de violência e degradação de sua integridade física e psicológica.
No âmbito dos Tratados Internacionais de Direitos humanos, já havia previsão normativa de medidas para evitar a ocorrência de abusos contra a figura da pessoa detida, aqui sendo destacada a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário desde 1992, que prevê a apresentação de qualquer pessoa presa, sem demora, a um juiz ou a autoridade.
Neste contexto, a presente pesquisa tem como tema a análise da implementação da audiência de custódia à prática processual penal, compreendendo a perspectiva de humanização dos procedimentos judiciários, que culmina na efetiva concretização das determinações previstas nos Tratados de Direitos Humanos, sendo possível perceber clara evolução no que diz respeito aos esforços para implementação de medidas voltadas ao respeito à integridade e dignidade do indivíduo a partir da adoção de novos procedimentos com orientações advindas das Convenções Internacionais.
As indagações que percorrem a produção deste trabalho estão pautadas na preocupação com a realidade carcerária e na apresentação do Projeto Audiência de Custódia como medida eficaz de concretização dos Tratados Internacionais e para redução de graves problemas que se apresentam, analisando as particularidades que envolvem a sua implementação e eventuais resultados já conquistados.
Cabe destacar significativa relevância do tema aqui proposto, ao passo que através deste estudo será possível realizar explanação de temas relativos à efetivação das medidas propostas em meio à realidade do ordenamento jurídico vigente, com perspectivas de humanização que hoje se apresentam, tendo imperioso destaque para análise da importância da implementação deste instituto como objeto de concretização das determinações normativas advindas dos Tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
A metodologia utilizada será através de procedimentos técnicos de pesquisa bibliográfica, doutrinária e legislativa, dando enfoque à utilização do método de abordagem descritivo, a partir da análise e exposição do tema proposto, bem como da sua adequação às situações abordadas, permitindo conclusões acerca das características de sua adoção.
Como referencial bibliográfico, utilizam-se, entre outros, ensinamentos de Flávia Piovesan, Fábio Comparato, Cançado Trindade e André de Carvalho Ramos, permitindo que se compreenda a evolução histórica de elaboração dos Tratados de Direitos Humanos, bem como os conceitos que permeiam a sua adoção, além de análise da legislação que regulamenta a matéria constitucional, penal e processual penal, bem como os dispositivos que se referem às medidas englobadas pelo Projeto Audiência de Custódia, aqui incluídas os termos e disposições do Conselho Nacional de Justiça e dos Tribunais de Justiça.
Assim, como mencionado acima, compreende-se a produção deste trabalho sob foco de contextualização da adoção das audiências de custódia como fruto dos Tratados de Direitos Humanos dos quais o país é signatário, trazendo as considerações a respeito do tema para a realidade de implementação, com as características a ela inerentes que serão analisadas detalhadamente no desenvolvimento da presente pesquisa.
1 TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
A preocupação com os chamados Direitos Humanos permeia grande parte da história do ser, assumindo diversos aspectos em seu decorrer que são intrínsecos ao próprio reconhecimento do ser humano como indivíduo pertencente a uma coletividade.
Entretanto, nota-se que os esforços para a concretização destas garantias e do reconhecimento da igualdade entre os homens apenas se dá após séculos de desenvolvimento das sociedades, com a formação das primeiras instituições voltadas à discussão e elaboração de documentos que dessem efetiva salvaguarda a estes preceitos.
Em razão da relevância destes tratados que possuem o objetivo de assegurar os direitos inerentes aos indivíduos, cabe um estudo mais aprofundando a respeito das evoluções que resultaram em sua formação, bem como do posicionamento destas normas quando recepcionadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, compreendendo ainda quais tratados englobam a previsão legal das Audiências de Custódia.
2 APANHADO HISTÓRICO ACERCA DA INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DO SURGIMENTO DOS PRINCIPAIS TRATADOS
Os primeiros passos dados para a garantia e internacionalização dos Direitos do Homem se dão a partir do fim da I Guerra Mundial, com instituições como a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, que contavam com disposições genéricas e sanções de cunho militar e econômico, buscando a cooperação dos indivíduos para assegurar proteção e respeito a princípios básicos de bem-estar e condições dignas de trabalho (PIOVESAN, 2013).
Mas em grande parte da doutrina, há exposição da II Guerra Mundial e do pós-Nazismo como marcos históricos determinantes para a efetiva consolidação dos Direitos Humanos a nível internacional, diante das atrocidades cometidas em face de milhões de pessoas e tendo o Estado como figura responsável por tal violência, exigindo uma reafirmação dos valores da dignidade humana, como leciona Comparato (2013, p. 47):
“Ao emergir da Segunda Guerra Mundial, após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos”.
Insurgiu neste panorama a necessidade de institutos legais que estabelecessem limites à soberania dos Estados, sendo capazes de regular, de forma internacional, determinadas condutas, restringindo a ação do poder Estatal, com o estabelecimento de direitos e garantias ao indivíduo, agora objeto de proteção e sujeito de Direitos Internacionais a serem estabelecidos e com a responsabilização dos países no plano internacional por eventuais abusos que venham a ser praticados.
Assim, com a participação de potências internacionais que se reuniram em São Francisco (EUA) em 26 de junho de 1945, surgiu a Organização das Nações Unidas[2] (ONU), associação de sujeitos do direito internacional que visa a cooperação dos entes afiliados para a promoção da paz entre nações e o respeito aos direitos do homem, com promulgação da Carta das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945 e tendo como iniciativa primordial a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, com a assinatura de 48 países, como destaca a jurista Piovesan (2012, p. 125):
“A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”.
Dando continuidade a esta etapa de Internacionalização dos Direitos Humanos, foram delineadas uma série de Tratados no decorrer dos anos que se seguiram, aqui sendo possível citar a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (1996), a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (1999) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006)[3].
Temos, ainda, a iniciativa de organizações de cunho regionalizado despontando nos continentes Europeu e Americanos, delineadas pelas diretrizes já estabelecidas pela Organização das Nações Unidas[4], exemplo disto é a Organização dos Estados Americanos (OEA), organismo internacional criado com o propósito de promover a paz e a justiça entre os países-membros, bem como o de resguardar e defender sua solidariedade e soberania, concretizado através da aprovação da carta da OEA, documento resultante da Nona Conferência Internacional Americana[5] realizada em 09 de abril de 1948, em Bogotá.
Ressalta-se posição de destaque para tal organização, posto que a mesma hoje assume papel relevante no âmbito internacional, congregando os 35 Estados Independentes das Américas, entre eles o Brasil, e figurando como principal fórum governamental político, jurídico e social do Hemisfério (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2018b).
Além disto, apesar do surgimento desta organização se dar depois da reunião de formação da Organização das Nações Unidas, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também oriunda da Nona Conferência Internacional Americana, tornou-se o primeiro instrumento a declarar os Direitos Humanos em âmbito internacional, antecedendo, inclusive, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada apenas no final do ano de 1948, neste sentido apontando na obra Curso de Direitos Humanos, de André de Carvalho Ramos (2014):
“A Declaração Americana, que é anterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos, expressamente reconheceu a universalidade dos direitos humanos, ao expressa que os direitos essenciais ao homem não derivam do fato de ele ser cidadão ou nacional de um Estado, mas, sim, de sua condição humana (Preâmbulo da Declaração)”.
Contudo, tal declaração não possui força normativa, figura apenas com caráter de recomendação e não de Tratado Internacional, este surgindo apenas em 1969 com Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica e estabelecendo, a partir de então, uma fonte de obrigações exigíveis dos Estados que dele fossem signatários.
A regulamentação das condutas previstas em tal Convenção e o meio pelo qual se garantirá sua exigibilidade ficam sob responsabilidade de duas estruturas integrantes desse sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Cabe esclarecer que a Comissão Interamericana[6] possui caráter essencialmente consultivo e de fiscalização da conduta dos estados-membros, observando e elaborando relatórios no tocante ao respeito dos Direitos Humanos pelas nações subordinadas a esta Convenção. Ainda, tal órgão é responsável pelo recebimento e análise de denúncias referentes à violação destes direitos, tomando as providências cabíveis no estatuto que a regulamenta.
No mesmo trilhar, aponta-se a Corte Interamericana[7] como instituto responsável pelo caráter judicial da Convenção, atuando na interpretação das disposições de suas normas e aplicando-as aos casos que são levados à sua jurisdição e, ainda, acumulando a responsabilidade de elaboração de medidas provisórias, reanálise de sentenças e ainda função consultiva, cabendo ressaltar que a atuação desta entidade não substitui ou sequer restringe a atuação dos tribunais internos, assim esclarecendo a lição de Cançado (2003, p. 222, apud PIOVESAN, 2013, p. 336):
“Os Tribunais internacionais de direitos humanos existentes — as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos — não ‘substituem’ os Tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos Tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais, quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos”.
Desta forma, evidencia-se a formação do sistema regional americano de proteção aos direitos do homem, apresentando como diretrizes principais os instrumentos supramencionados.
Cabe apontar, a partir do exposto por Ramos (2014), que a Carta da OEA foi responsável por proclamar genericamente o dever de respeitar os direitos humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, por enumerar quais são esses direitos fundamentais e a Convenção Americana de Direitos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, aprofundou o conjunto de direitos enunciados na Declaração e também vinculou os Estados-membros à sua obediência, assim dando continuidade à exposição do seu pensamento:
Destaca-se, ainda, que a Carta da Organização dos Estados Americanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem foram aprovadas na 9ª Conferência Interamericana, realizada em Bogotá entre 30 de março a 02 de maio de 1948, tendo o Brasil figurado como um dos instituidores da organização, assinando seus tratados na ocasião do seu advento.
No mesmo sentido, a Convenção Americana surgiu por ocorrência da Conferência Especializada Interamericana realizada em 22 de novembro de 1969, em Costa Rica, mas apenas teve adesão do Brasil em 25 de setembro de 1992, com promulgação através do Decreto n. 678 de 06 de novembro do mesmo ano, adquirindo reconhecimento da competência obrigatória de sua Corte através do Decreto Legislativo n. 89 de dezembro de 1998[8].
3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE AS NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
Como verificado, há certa lacuna temporal entre a subscrição do nosso país aos respectivos Tratados e a efetiva incorporação dessas determinações ao ordenamento jurídico vigente, isso se deve à estrutura regulamentar aqui desenvolvida, com a exigência de procedimentos rígidos de aprovação legislativa prevista em nossa Constituição.
Assim posto, após breve compreensão das evoluções referentes à preocupação a nível internacional com a garantia de respeito aos Direitos Humanos, cabe um estudo com foco na realidade normativa do nosso país, analisando como se deu o desenvolvimento deste pensamento humanista voltado à proteção e garantia legal dos princípios básicos de amparo ao indivíduo, para que assim seja possível a análise dos procedimentos que permeiam a incorporação normativa das determinações internacionais.
A maioria das nações passou a desenvolver a humanização de suas normas após a cruel experiência vivenciada na II Guerra, o horror ao qual milhares de pessoas foram submetidas teve como autor o Estado, à época legitimado e era necessário o estabelecimento de normas que limitasse tal poder, que pusesse em salvaguarda os indivíduos e os direitos intrínsecos à sua humanidade.
No Brasil e nos demais países latino-americanos, experimentou-se caminho semelhante, pois instalaram-se governos totalitários e ditatoriais ao longo de vários anos, responsáveis pela supressão de direitos e tratamento violento a quem fosse contrário ao regime imposto.
Derrubados tais governos e superando-se o período de intensa repressão de direitos por eles promovido, gradativamente começou a ser reconstruído o sentimento de humanidade destes cidadãos que por anos conviveram suprimidos pela tirania de comandos arbitrários.
Após este período de submissão ao Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1985[9], foi iniciada a redemocratização do País, experimentada a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988[10], como explicita Piovesan (2013, p. 89):
“No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do Pós-Guerra. Observe-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política. Basta atentar à Constituição brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, entre eles o princípio da dignidade da pessoa humana”.
A Constituição Pátria foi responsável pela enumeração de diversos direitos devidos ao indivíduo, mas também aprofundou em suas determinações a ânsia por medidas que efetivamente garantissem essas proteções, demonstrando sua clara preocupação em abarcar tais determinações de forma objetiva e eficaz.
Em sua redação traz a proteção aos Direitos Humanos evidenciada desde os primeiros itens, elegendo-os desde logo entre os fundamentos que constituem a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito e entre os princípios que regem suas relações internacionais.
No que tange às relações com os estados estrangeiros, cabe a esta pesquisa a ponderação a respeito de seu posicionamento frente as normas internacionais, com foco no procedimento concernente a adoção de Tratados Internacionais, principalmente os que versam sobre Direitos Humanos.
Inicialmente, ressalta-se que a Constituição Federal limita competência para a celebração destes acordos, determinando que tal função é privativa do Presidente da República, como disposto em seu art. 84, inciso VIII, ressalvando que tal celebração está sujeita a referendo do Congresso Nacional, in verbis:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;
(…)
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações (BRASIL, 1988)”.
Depreende-se ainda, a partir do excerto supramencionado, que há previsão de delegação desta competência sendo possível, portanto, que o procedimento de celebração de tratados e atos internacionais seja realizado também por Ministros de Estado, pelo Procurador-Geral da República ou pelo Advogado-Geral da União, desde que respeitada a sujeição de tal ato ao Congresso Nacional.
Firmado acordo pelo chefe do poder executivo, passará ao Congresso Nacional a responsabilidade de forma exclusiva para decidir a respeito da incorporação destas determinações ao ordenamento jurídico nacional, pois a este órgão cabe a competência sobre quaisquer tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (CF, art. 49, I).
Portanto, tal procedimento se dará através da edição de Decreto Legislativo com respectiva aprovação pelo Congresso e posterior promulgação do Presidente da República, através do correspondente Decreto, tendo esta norma, a partir daí a garantia e aplicabilidade imediata de suas determinações.
A respeito desta aplicabilidade, cabe apontar algumas observações relevantes para compreensão do posicionamento atual das normas advindas de Tratados e Convenções Internacionais e que, através do procedimento supramencionado, são incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro.
Inicialmente, era adotada interpretação da Constituição Federal no sentido de integração das normas de internacionais de direitos humanos assumindo caráter meramente infraconstitucional, ao passo que o procedimento utilizado para introdução das mesmas ao direito nacional era idêntico ao da aprovação das leis ordinárias, apenas aprovação por maioria simples no Congresso.
Ocorre que em 2004, a Emenda Constitucional n˚ 45[11] trouxe inovação a tal entendimento, incluindo o parágrafo 3º ao artigo 5º da Carta Magna, nos seguintes termos:
“Art. 5º
[…]
Portanto, a partir da alteração supracitada, estabeleceu-se novo tratamento às regulamentações advindas de Pactos estrangeiros aos quais o Brasil subscrevesse, adquirindo caráter de emenda constitucional todos aqueles Tratados e Convenções sobre Direitos Humanos que forem discutidas e aprovadas em cada uma das casas do Congresso Nacional a partir do quórum de três quintos dos seus respectivos componentes.
Ocorre que tal entendimento apenas seria orientado a acordos firmados a partir da promulgação desta emenda, no caso apenas a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[12], sendo reservado a todas as demais o mesmo entendimento adotado anteriormente, inclusive à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, principal norma internacional que versa sobre direitos humanos na abrangência do sistema interamericano.
Posicionamento do STF no ano de 2008, em caso relacionado ao cabimento ou não da prisão civil do depositário infiel[13], veio dirimir as distinções de interpretação atinentes ao caso, como evidenciado nas lições de Moraes (2014, p. 715):
“A Corte decidiu, em relação à vedação da prisão civil do depositário infiel, que “a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7°, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5a, LXVII, da CF”; concluindo, que “com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel”.
“Dessa forma, o STF manteve a supremacia das normas constitucionais sobre o referido Pacto, porém inclinou-se pela interpretação da revogação das normas infraconstitucionais que disciplinavam a referida prisão civil, tendo, inclusive, revogado sua Súmula 619 do STF (“A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”)”.
Portanto, a partir de tal entendimento, passou-se a compreender o enquadramento das normas de direitos humanos estrangeiras, quando absorvidas por nossa ordem legal, com caráter ainda de textos infraconstitucionais, entretanto, também figurando como determinações supralegais, posicionando-as hierarquicamente acima do determinado por tais leis e, portanto, assumindo característica de supremacia sobre elas.
4 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA INSERIDA NO ÂMBITO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
Observa-se através das evoluções supramencionadas que há uma gradual internacionalização do pensamento sensível às necessidades humanas, inclusive sendo tal tendência recepcionada por nosso ordenamento jurídico, com medidas voltadas ao respeito à integridade e dignidade do indivíduo e não mais o foco no mero caráter punitivo da instituição prisional.
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos se desenvolveram como fruto desta necessária humanização dos procedimentos judiciários, objetivando a aplicação de condutas judiciárias que visem a proteção do homem, incluindo aquele que delinquiu, pensamento já defendido por Carnelutti, como se depreende do seguinte excerto:
“Não se pode fazer uma nítida divisão dos homens em bons e maus. Infelizmente a nossa curta visão não permite avistar um germe do mal naqueles que são chamados de bons, e um germe de bem, naqueles que são chamados de maus. Essa curta visão depende de quanto o nosso intelecto não está iluminado de amor. Basta tratar o delinquente, antes que uma fera, como um homem, para descobrir nele a vaga chamazinha de pavio fumegante, que a pena, ao invés de apagar, deveria reavivar (CARNELUTTI, 2010, p. 25)”.
Nesta ótica, considera-se como grande evolução os esforços para a adoção de medidas que fujam do caráter unicamente repressor, com a busca por procedimentos humanizados e que respeitem os princípios e garantias constitucionais, bem como da efetivação de medidas já previstas nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos reconhecidos e recepcionados pela estrutura normativa do nosso país[14].
No âmbito destes Tratados, já há previsão normativa de medidas para evitar a ocorrência de abusos contra a figura da pessoa detida, aqui sendo enquadrada a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário desde 1992, encontrando-se, como já explicado, no status de norma supralegal e que traz no item 5 do seu artigo 7º a seguinte determinação:
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (SÂO JOSÈ DA COSTA RICA, Convenção Americana dos Direitos Humanos, 1992)”.
É nesta perspectiva que se enquadra o Projeto de Audiência de Custódia, lançado em fevereiro de 2015 como fruto de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, consistindo em um instrumento viabilizador desta nova tendência de humanização judicial através da adoção das medidas descritas pelo próprio CNJ:
“A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades (BRASIL, 2015a)”.
Cabe compreender que a previsão normativa desta obrigatoriedade de apresentação da pessoa detida a uma autoridade decorre também de outros Tratados, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[15], subscrito por nosso país e entrando em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 1992, ao determinar que “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais”.
No mesmo trilhar encontramos, ainda, disposição na Convenção Europeia de Direitos Humanos[16], orientando que “qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais […]”.
Apesar de não estarmos inseridos no âmbito das determinações advindas de tal Convenção, cabe ressaltar tal excerto como forma de compreender a relevância da orientação de apresentar a pessoa detida a uma autoridade, pois tal conduta caracteriza-se como forma notadamente reconhecida de evitar transgressões aos direitos deste indivíduo.
A legislação nacional prevê hoje, nos casos de prisão em flagrante, a necessária comunicação do fato ao juiz competente, ao Ministério Público e a familiares da pessoa detida ou a pessoa que ele tenha indicado (BRASIL, 1988), entretanto, tal conduta não satisfaz a determinação das normas supralegais citadas, como exposto por Lopes Jr. e Paiva, ao citar decisões reiteradas da Corte Interamericana de Direitos Humanos:
“Somando-se a isso, a CIDH ainda decidiu que a mera comunicação da prisão ao juiz é insuficiente, na medida em que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”, e que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção”, conforme explicitado no caso Bayarrivs. Argentina. (CIDH apud LOPES JR.; PAIVA, 2014)”.
Portanto, verifica-se como insuficiente a legislação nacional que hoje rege os procedimentos que sucedem a prisão em flagrante, não oferecendo qualquer garantia de defesa ao indivíduo detido, representando mera formalidade documental que apenas ratifica a lacuna entre o dever ser da norma jurídica voltada à proteção dos direitos humanos e a realidade de transgressões a esta norma.
Resta assim, indubitável importância da aplicação prática da audiência de custódia como instrumento na reintegração do indivíduo infrator e objeto de concretização das determinações normativas advindas destes Tratados, sendo possível a percepção de reflexos direitos na atenuação dos rotineiros casos de desrespeito à dignidade dos apenados, como serão demonstradas a seguir.
5 PROJETO AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Diante da ineficiência mencionada e lacuna legislativa no que diz respeito à garantia de apresentação da pessoa detida a uma autoridade, para que esta decida sobre cabimento de prisão ou não, insurgiu necessidade de se estabelecer mecanismo de efetivação deste procedimento, como forma de suprir a urgência verificada no nosso sistema prisional e finalmente adotar as determinações contidas nos Tratados de Direitos Humanos, firmados desde o ano de 1992 mas, até então não praticados.
Neste contexto foi elaborado o Projeto Audiência de Custódia, com o objetivo de instaurar novos procedimentos ao sistema processual penal em obediência ao disposto nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, determinando a apresentação da pessoa detida a uma autoridade no prazo de vinte e quatro horas, para que seja decidido sobre o cabimento de sua prisão e possibilitando a oitiva do acusado deste o início do processo.
5.1 Origem e Pilares da Audiência de Custódia
Verifica-se que a realidade carcerária apresentada no Brasil demonstra indiscutível urgência de novos procedimentos, sensíveis à humanidade do detento e voltados para a proteção de seus direitos, pois o que se apresenta até o momento é uma sucessão de gritantes violações aos Direitos Humanos garantidos tanto em Constituição quanto nas normas infraconstitucionais.
Casos de tortura, agressão e até assassinatos são noticiados diariamente dentro dos presídios e casas de detenção, ou seja, apenas reiteração das mesmas ofensas aos indivíduos que, ainda na condição de infratores, deveriam ter sua integridade tutelada pelo Estado, mas se enquadram em um plano que não apresenta medidas eficazes de combatê-la[17].
Estas constatações apenas reafirmam o pensamento de que a instituição legal de proteção a estes direitos se torna inócua em não havendo ações que as tragam para o plano prático, como apontado na obra de HERKENHOFF (1994, p. 52):
“A simples técnica de estabelecer, em constituições e leis, a limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o respeito aos Direitos Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas, rasgados e vilipendiados”.
Assim exposto, tem-se o Projeto Audiência de Custódia como uma medida que busca trazer o que já está legalmente estabelecido em Tratados Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos à efetiva aplicação no âmbito penal e processual penal brasileiros, nos moldes do que já foi apresentado: garantir a apresentação das pessoas detidas em audiência perante o juiz, na presença do Ministério Público, Defensoria ou advogado, para que seja decidida sobre a necessidade de prisão ou cabimento da concessão de sua liberdade.
Tal procedimento pretende assegurar que o então apenado tenha condições de apresentar sua defesa, sendo também ocasião para que se faça explanação acerca das condições que envolvem sua acusação, circunstâncias do delito cometido e tudo o que puder contribuir para a decisão do juiz, que apenas determinará a manutenção da prisão nos casos em que esta for absolutamente necessária.
Decorre desta ideia, o anseio de que não seja suprimida a liberdade de um indivíduo sem a salvaguarda de que todos os outros procedimentos cabíveis foram respeitados, evitando assim que se submeta presos provisórios a condições sub-humanas de encarceramento, como apresentado no seguinte excerto do relatório da CPI do Sistema Carcerário Brasileiro (BRASIL, 2009, p. 202-203):
“Em suas diligências, a CPI se deparou com situações de miséria humana. No distrito de Contagem, na cela nº 1, um senhor de cerca de 60 anos tinha o corpo coberto de feridas e estava misturado com outros 46 detentos. Imagem inesquecível! No Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo, vários presos com tuberculose misturavam-se, em cela superlotada, com outros presos aparentemente “saudáveis”. Em Ponte Nova, os presos usavam creolina para curar doenças de pele. Em Brasília, os doentes mentais não dispunham de médico psiquiátrico. Na penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, presos com gangrena na perna… Em Santa Catarina, o dentista arranca o dente bom e deixa o ruim no lugar. Em Ponte Nova e Rio Piracicaba, em Minas Gerais, registrou-se a ocorrência de 33 presos mortos queimados.
[…]
O jovem, no presídio Vicente Piragibe, localizado na cidade do Rio de Janeiro, carrega uma bolsa de colostomia. Tem que fazer cirurgia, mas… como para a administração é apenas mais um preso, está lá, carregando a bolsa, numa visão impressionante. A mesma situação foi encontrada em outras cadeias, como em Franco da Rocha, em São Paulo, onde o preso também tinha a bolsa pendurada na barriga e já estava assim há três anos”.
Com o intuito de amenizar situações tão degradantes e de finalmente adotar os preceitos previstos nos Tratados Internacionais, há tempos vem se estruturando um conjunto de iniciativas voltadas ao estabelecimento da obrigatoriedade da audiência de custódia na prática processual penal brasileira.
A primeira destas iniciativas, a nível nacional, foi a propositura do Projeto de Lei do Senado Federal nº 554, de 2011, pelo Senador Antônio Carlos Valadares do PSB de Sergipe, ao propor alteração no § 1º do Art. 206 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para que o mesmo conste com a seguinte redação:
“Art. 1º O § 1o do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 306 ……………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………………
……………………………………………………………………………………….. (BRASIL, 2011)”.
Ocorre que no ano de sua propositura, este Projeto de Lei passou por análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e Comissão de Assuntos Econômicos, sendo submetida a diversas propostas de emenda e sendo aprovado pelo Senado Federal apenas em novembro do ano de 2016, entretanto, na câmara dos Deputados o mesmo foi apensado ao Projeto de Lei nº 8.405, de 2010, que propõe a reforma do Código de Processo Penal, não havendo ainda a deliberação final acerca deste.
Antecipando-se à aprovação legislativa da implementação destes procedimentos, foi lançado o “Projeto Audiência de Custódia” em fevereiro de 2015, contando com a assinatura de Termo de Cooperação Técnica nº 007/2015 em 09 de abril do mesmo ano, entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e do Termo de Cooperação Técnica 16/2015, celebrado em 23 de setembro de 2015 entre o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal.
Tais termos estabelecem, entre seus objetivos, a aplicabilidade das normas de direito internacional já integradas ao ordenamento jurídico pátrio, a adoção de procedimentos para a reestruturação da justiça penal que possibilite a adoção e o acompanhamento de medidas alterativas à prisão e o desenvolvimento do enfoque restaurativo à aplicação das penas.
Em igual trilhar, os mesmos adotam cláusulas especificando o comprometimento de cada um dos órgãos na adoção de medidas para implementação das chamadas Audiências de Custódia, de forma a estabelecer cooperação nos moldes do que é disposto na Cláusula Primeira dos respectivos documentos, assim estabelecendo:
“A cooperação entre os partícipes buscada neste instrumento volta-se à conjugação de esforços, visando à efetiva implantação do “Projeto Audiência de Custódia”, de modo a fomentar e viabilizar a operacionalização da apresentação pessoal de autuados(as) presos(as) em flagrante delito à autoridade judiciária, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após sua prisão, contando com apoio do efetivo funcionamento de Centrais Integradas de Alternativas Penais, Centrais de Monitoração Eletrônica e serviços correlatos com enfoque restaurativo e social, aptos, em suma, a oferecer opções concretas e factíveis ao encarceramento provisório de pessoas (BRASIL, 2015d, 2015e)”.
Os esforços de implementação destes procedimentos envolvem não apenas a determinação de apresentar o detido à autoridade competente para julgar sobre a necessidade de sua prisão, mas também toda a estrutura penal capaz de abarcar esta determinação, bem como modificação na própria essencialidade deste encarceramento, com adoção do enfoque no seu caráter ressocializador, e não apenas o objetivo punitivo.
No anseio de uniformizar os procedimentos e adotá-los de forma mais rígida por parte do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça publicou Resolução nº 213, entrando em vigor a partir de 1º de fevereiro de 2016, apresentando logo no início da sua redação, os procedimentos preponderantes que norteiam a aplicação das Audiências de Custódia:
“Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
Portanto, em suma, nota-se que a audiência de custódia se encontra atualmente regulamentada no Brasil pelo art. 7º, item 5, do Pacto de São José da Costa Rica, admitida por nosso ordenamento em caráter infraconstitucional e supralegal, pelo art. 9º, item 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e também através da Resolução nº 213 do CNJ. Além disto, os Tribunais, no âmbito estadual, têm dado cumprimento às regulamentações através da assinatura de Termos de Cooperação e da normatização através de Portarias, adaptando suas estruturas à implantação dos novos atos.
5.2 Questões Controvertidas que Permeiam sua Implementação
Após a adoção dos procedimentos jurídicos mencionados, iniciaram-se as medidas de viabilização da audiência de custódia e dos mecanismos a ela relacionados no anseio de realizar as alterações estruturais aos processos prisionais, de forma a atender ao que foi acordado por meio dos Termos de Cooperação subscritos.
No decorrer da viabilização destes procedimentos, surgiram pontos controvertidos no que diz respeito a critérios intrínsecos à determinação de seus atos, além de quesitos relacionados à eficácia e às consequências de sua implementação.
Dentre os impasses encontrados na aplicação desta medida, ressaltam-se controvérsias direcionadas a circunstâncias da própria aplicação da audiência de custódia, havendo apontamentos à falta de estrutura que circunda a realização das mesmas.
Destaca-se, neste sentido, que não há capacidade física e de pessoal para abarcar os novos procedimentos trazidos com este projeto, sendo inviável a destinação do já limitado contingente policial e mesmo do próprio judiciário para a produção dos novos atos exigidos, o que resulta em maior morosidade no andamento dos processos e acúmulo de demanda não finalizada.
No que diz respeito aos efeitos destas novas medidas, há ainda o destaque para outros pontos alvo de preocupação, pois há crítica por parte de seguimentos da sociedade, em especial de categorias específicas, como a de Policiais Militares, que criticam o mero estabelecimento de medidas que libertem a pessoa detida, causando a estas pessoas uma sensação de impunidade daqueles que praticaram condutas delituosas.
Entretanto, cabe esclarecer que os procedimentos propostos por este Projeto não incluem qualquer inovação legal no que diz respeito às hipóteses de libertação deste apenado, estas claramente determinadas pela legislação penal vigente, apenas estabelecem que a apresentação da pessoa detida deve ocorrer sem demora, propiciando também uma maior oportunidade para a aplicação da ampla defesa, já garantida constitucionalmente.
Além disto, o Projeto Audiência de Custódia prevê também ações enquadradas na orientação de que não basta a liberação do ente que delinquiu, sendo de primordial importância a apresentação de medidas de reintegração deste a condições sociais que o tirem da criminalidade, pois não é razoável que se queira solucionar a ineficiência estatal no âmbito penal com medidas paliativas que não tragam resultado eficaz e definitivo aos problemas que se apresentam.
Outro ponto de questionamento daqueles que são contrários à adoção das audiências de custódia diz respeito ao tempo de apresentação dos apenados, argumenta-se que a obrigatoriedade de realização destas em um curto prazo de 24 (vinte e quatro) horas impossibilita a coleta de dados relativos aos seus antecedentes e realização de qualquer estudo social e psicológico que seja capaz de orientar sobre a personalidade do apenado, bem como da probabilidade de ele voltar a delinquir.
Além dos questionamentos mencionados, destacam-se também pontos relacionados à própria legitimidade dos órgãos que instrumentaram o Projeto Audiência de Custódia, sendo esta a característica contraditada em ações propostas ao Supremo Tribunal em argumento de sua constitucionalidade, pois o mesmo foi adotado a partir de Termos de Cooperação entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério de Justiça e os Tribunais.
Os críticos a tais procedimentos argumentam que este ato ofende à própria separação dos poderes, por não ser de competência destes órgãos a legislação acerca de quaisquer assuntos, sendo impedida assim de estabelecer regramentos acerca de instrumentos que alterem ou tragam inovações à prática penal e processual penal, neste sentido se destaca trecho da nota pública emitida pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, em que se lê:
“Vislumbram-se inúmeros óbices de ordem jurídica, de eficácia e aplicabilidade desta medida processual. Atenta-se ainda a possíveis entraves processuais penais com a sua adoção imediata. Não se negligencia que a audiência de custódia tem o nobre propósito de garantir e dar eficácia aos direitos fundamentais, principalmente no que respeita a liberdade e à integridade física dos presos, contudo, impõe-se o dever de preservar a ordem legal e constitucional, bem como a regularidade do trabalho Jurisdicional (ANAMAGES, 2015, apud SOUZA, 2015)”.
Por iniciativa desta instituição, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade n˚ 5448 em face da Resolução 213/2015, na qual argumentava pela ilegitimidade do CNJ para determinar a regulamentação das audiências de custódia no país, já que tal ação representaria uma ofensa à competência delimitada pelo disposto no inciso I do artigo 22 da Constituição Federal[18].
Ocorre que tal ação não teve prosseguimento, pois o Supremo Tribunal Federal tem rejeitado ações desta natureza propostas pela ANAMAGES, por entender que esta associação apenas representa parte da categoria profissional e, portanto, não possui legitimidade ativa para propor ações que repercutirão juridicamente sobre toda a classe.
Além do questionamento sobre a legitimidade para editar atos privativos do Congresso Nacional levantado na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, demanda semelhante foi impetrada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, esta direcionada a contestar a Provimento Conjunto 3/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo.
Através de tal pleito, a Adepol questiona a “criação” das audiências de custódia, argumentando que elas apenas poderiam ser estabelecidas a partir de Lei Federal, utilizando também como argumento a determinação do inciso I do artigo 22 da Constituição Federal, que estabelece os temas de competência privativa da União, por intermédio do Congresso Nacional, entre eles enquadradas as matérias penal e processual.
Dado prosseguimento ao processo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência do pedido, em defesa do pensamento de que a previsão legal da audiência de custódia, ou pelo menos do seu ponto principal que é a apresentação rápida da pessoa detida a uma autoridade, está presente no nosso ordenamento jurídico, com disposição na Convenção Americana dos Direitos do Homem e mesmo no Código de Processo Penal, não ocorrendo qualquer inovação jurídica estabelecida pelos institutos questionados, como se nota em voto do Relator Ministro Luiz Fux, em votação da respectiva Ação:
“O Plenário, por maioria, conheceu em parte da ação e, na parte conhecida, julgou improcedente pedido formulado em ação direta ajuizada em face do Provimento Conjunto 3/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que determina a apresentação de pessoa detida, até 24 horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar de audiência de custódia no âmbito daquele tribunal. A Corte afirmou que o art. 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao dispor que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, teria sustado os efeitos de toda a legislação ordinária conflitante com esse preceito convencional. Isso em decorrência do caráter supralegal que os tratados sobre direitos humanos possuiriam no ordenamento jurídico brasileiro, como ficara assentado pelo STF, no julgamento do RE 349.703/RS (DJe de 5.6.2009). Ademais, a apresentação do preso ao juiz no referido prazo estaria intimamente ligada à ideia da garantia fundamental de liberdade, qual seja, o “habeas corpus”. A essência desse remédio constitucional, portanto, estaria justamente no contato direto do juiz com o preso, para que o julgador pudesse, assim, saber do próprio detido a razão pela qual fora preso e em que condições se encontra encarcerado. Não seria por acaso, destarte, que o CPP consagraria regra de pouco uso na prática forense, mas, ainda assim, fundamental, no seu art. 656, segundo o qual “recebida a petição de ‘habeas corpus’, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar”. Então, não teria havido por parte da norma em comento nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da referida convenção internacional — ordem supralegal —, e do próprio CPP, numa interpretação teleológica dos seus dispositivos (ADI 5240/SP, rel. Min. Luiz Fux, 20.8.2015) (BRASIL, 2015f)”.
Compreende-se, a partir do excerto, que não há que ser levantado qualquer óbice à audiência de custódia baseado na legitimidade de sua implantação, pois já existindo determinação legal e supralegal que o autorize, os instrumentos jurídicos utilizados por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça e aceitos pelos Ministérios, Tribunais e estruturas que compõem o sistema prisional apenas vieram regulamentar e dar efetiva aplicação ao que já estava juridicamente definido.
Assim, ficam superados os questionamentos quanto à legitimidade de aplicação das medidas propostas pelo Projeto Audiência de Custódia, sendo esclarecido que sua determinação jurídica não advém de simples Resolução ou Termo de Cooperação, posto que estes instrumentos não representam uma inovação legislativa, mas sim a forma de implantação prática de orientações já previstas nos Tratados Internacionais de Proteção aos Homens.
5.3 Estatísticas de Implantação da Audiência de Custódia nos estados brasileiros
Apesar das divergências supracitadas, em que há contraposição de pensamento entre os operadores da prática processual penal e entre responsáveis pelo sistema criminal brasileiro em relação à possibilidade de implementação da audiência de custódia e de sua real eficácia, tais procedimentos continuam sendo adotados pelos Tribunais brasileiros e apresentando os resultados positivos que eram esperados.
Ainda que existam tais apontamentos contestadores à concreta eficácia destas medidas, são inquestionáveis os relevantes resultados já obtidos, que vão ao encontro do exposto por Caio Paiva, em argumentação a respeito deste tema, in verbis:
“São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado (LOPES JR.; PAIVA, 2014)”.
Pautados na busca por estes objetivos, desde o lançamento do Projeto em fevereiro de 2015, houve gradual aceitação dos estados, através da assinatura de documentos de adesão aos Termos de Cooperação já estabelecidos, a partir do qual se comprometiam a adotar esforços de implementação das audiências de custódia e utilização do apoio das Centrais Integradas Alternativas Penais para utilização de métodos com foco na reintegração social dos detidos.
Importa reiterar que a implantação deste projeto não se resume à mera possibilidade de encontro do apenado com a autoridade que decidirá sobre a necessidade de sua prisão, o Conselho Nacional de Justiça incluiu entre as iniciativas deste projeto a coleta de dados e estatísticas relativas à implementação destas medidas nos estados brasileiros, reunindo as informações em um estudo para averiguação da eficácia obtida.
Neste sentido, observa-se avanço na garantia dos Direitos Humanos pois a realização do encontro da pessoa detida com o juiz vem possibilitando a exposição de plena defesa aos acusados detidos, além de oferecer salvaguarda às vítimas que eventualmente tenham sofrido maus-tratos ou outra ofensa à sua integridade durante o ato da prisão, no sentido do que defende Rosivaldo Toscano Jr. em trecho de seu artigo “Muito mais que uma Audiência de Custódia”, assim explicitado:
“Na audiência de custódia não se aborda questão de mérito, senão a instrumentalidade da prisão e a incolumidade e a segurança pessoal do flagranteado, quando pairam indícios de maus-tratos ou riscos de vida sobre a pessoa presa. Não é o contato pessoal do juiz com o preso que o contamina. O distanciamento que é contamina de preconceitos, no sentido de conceitos prévios, sem maiores fundamentos. A presença do preso permite avaliar muito melhor o cabimento ou não da prisão. (TOSCANO JR., 2015)”.
Reforça-se a relevância do conhecimento dos dados estatísticos referentes à adoção do Projeto Audiência de Custódia (BRASIL, 2015b), pois consoante análise destes, é possível verificar a eficácia da implementação das novas medidas ao processo penal, também sendo constatados os relatos de violência nos atos de prisão e dos casos em que foi necessário encaminhamento para o serviço social.
A partir dos elementos apresentados pelos Tribunais de Justiça de cada estado ao Conselho Nacional de Justiça, obtém-se constatações a nível nacional a respeito das audiências de custódia realizadas desde o início da implementação do projeto até o período de junho de 2017.
As informações apresentadas evidenciam a realização de um total de 258.485 audiências de custódia no Brasil, durante o período supramencionado, das quais 115.497 (que corresponde a 44,68% do total) resultaram em liberdade e 142.988 (55,32%) em prisão preventiva.
Nestes dados, cabe apontar que o estado da Bahia foi o que apresentou maior proporção de prisões evitadas a partir da realização das Audiências de Custódia desde o mês de outubro de 2015, com 61,25% de liberdades provisórias concedidas e 38,75% de prisões.
Apresentam, em sequência, consideráveis percentuais de concessão de liberdade de presos provisórios o estado do Amapá, com 57,86% de solturas, o Distrito Federal, com 51,58% de liberação e, por fim, o estado de Santa Catarina, que concedeu liberdade provisória a 50,38% dos detidos beneficiados pelas audiências ocorridas até junho de 2017.
Em contrapartida aos resultados obtidos nos estados mencionados acima, o estado do Rio Grande do Sul manteve altos índices de manutenção de suas prisões, mesmo após a inclusão das novas ações, com porcentagem de 84,83% de prisões sustentadas após a execução de 6.769 audiências de custódia no período de julho de 2015 a junho de 2017, havendo ainda a constatação de relatos de violência em 6% dos casos.
Neste transcurso, constata-se a violência por parte das autoridades no procedimento de realização da prisão como ponto relevante de observação nas estatísticas fornecidas pelos Tribunais de Justiça estaduais, pois há relato destas ocorrências diversos estados onde houve tal consulta, sendo possível citar os dados fornecidos pelo estado do Amazonas, com referência de agressividade em 38% dos presos que foram ouvidos.
No mesmo trilhar, aponta-se os índices registrados pelo estado do Mato Grosso, com 14% de violência em seus atos de prisão avaliados em 5.927 ocasiões no decorrer do período compreendido entre 24 de julho de 2015 e 30 de junho de 2017, e pelo estado de Goiás, com semelhante apontamento constatado em 10% das suas 10.547 audiências entre 10 de agosto de 2015 e 30 de junho de 2017.
Outro quesito averiguado pelos Tribunais foi a exigência de encaminhamento das pessoas detidas ao serviço de Assistência Social, sendo esta necessária em 10,70% dos casos supervisionados a nível nacional, correspondendo a 27.669 audiências. A nível estadual se destacam, neste quesito, os estados do Espírito Santo, com encaminhamento em 45,87% dos casos e rio de Janeiro, com necessidade de assistência em 35,85%
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, destaca-se relevância da análise mais aprofundada a respeito das audiências de custódia, compreendendo o desenvolvimento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e como eles culminaram na previsão destas normas, além do estudo da instituição destas audiências em si, averiguando as características que compõem a sua implementação, bem como os fatores positivos e negativos que a permeiam.
Neste trilhar, é possível apontar os Tratados de Proteção aos Direitos do Homem como fruto de constantes evoluções ocorridas em decorrência da própria formação da sociedade, constituindo-se a partir da disseminação entre as nações da necessidade de garantia dos princípios primordiais que compõem a noção de humanidade do indivíduo.
A nível internacional, esta inquietação ocorreu durante o período que sucedeu a 2ª Guerra Mundial, em razão das atrocidades vivenciadas com a tortura e morte de milhares de pessoas, enquanto no continente latino-americano, o estopim destes anseios foi o período das ditaduras, caracterizado por intensa repressão a direitos individuais decorrente de regimes totalitários e opressores que marcaram o governo destes países durante alguns anos, em ambos os casos insurgindo a necessidade de estabelecimento das garantias relacionadas à integridade física dos indivíduos frente ao poder legitimado do próprio Estado.
Assim, estabeleceu-se gradualmente a internacionalização dos direitos humanos, representados a partir da positivação destas garantias através da assinatura de acordos entre as nações, comprometendo-se ao estrito cumprimento dos preceitos estabelecidos para preservação dos direitos, estando o Brasil figurando como signatário de diversos destes Tratados.
No âmbito da assinatura do Brasil em Tratados de considerável importância no âmbito interamericano, figura com especial destaque a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio na posição de norma infraconstitucional e supralegal, e responsável pela previsão legal das audiências de custódia.
A partir desta determinação, delineou-se a obrigatoriedade de apresentação, sem demora, de qualquer pessoa presa ou detida a uma autoridade, para que esta, na presença de membro do Ministério Público e da defesa, decida sobre o cabimento de sua prisão, estabelecendo tal conduta como a principal entre o conjunto de iniciativas que compõe o Projeto Audiência de Custódia, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo aderido pelos demais estados através da assinatura de termos de compromisso.
Portanto, através das observações feitas, é possível definir o Projeto Audiência de Custódia como um conjunto de procedimentos de restruturação do sistema punitivo voltados à adoção de alternativas para reintegração do indivíduo que cometeu determinado delito, englobando o compromisso pela apresentação deste ao juiz, nos moldes supramencionados, mas também a implementação de penas diversas da prisão, o controle sobre casos em que houver relato de maus-tratos, além da instituição de métodos de acompanhamento, para que seja possível a constante averiguação da eficácia destas medidas.
Importa ressaltar, ainda, que o foco da implementação destas audiências é o de colocar em prática os preceitos previstos nos Tratados Internacionais de proteção aos direitos do homem, conferindo as garantias inerentes à própria humanidade da pessoa detida, dando-lhes condições de cumprir sua reprimenda sem ser submetido a situações degradantes, não se tratando aqui do mero anseio de solucionar problemas relacionados à incapacidade do estado de tutelar a situação dos detentos
Como demonstrado, ainda existem déficits quanto à recepção do Projeto Audiência de Custódia, principalmente no tocante à limitação de servidores do judiciário para que se consiga atender aos novos procedimentos previstos, ocasionando certa morosidade na distribuição do processo e no andamento habitual do mesmo e em relação à ausência de recolhimento dos dados estatísticos relativos à realização das audiências e os respectivos resultados, o que é acentuado pela já deficiência quanto ao banco de dados criminais, não sendo este capaz de reunir as informações de forma unificada a respeito dos apenados.
Além disto, constatam-se críticas por parte da sociedade e de alguns setores específicos, como a categoria policial, em relação aos resultados das Audiências de Custódia, pois não há concordância com a libertação de pessoas presas em flagrante, entretanto, o que se compreende a partir das exposições supramencionadas, é que não há qualquer inovação referente a hipóteses de liberação de detidos, estas continuam sendo obtidas a partir da legislação penal vigente, os procedimentos deste projeto apenas possibilitam que as decisões sejam tomadas de forma mais humanizada, com o rápido encontro do juiz com o acusado.
Assim, apesar das ressalvas apresentadas, destaca-se a pertinência da implementação dos novos procedimentos ao sistema penal e penitenciário desta comarca, diante da situação fática que se apresenta em relação à considerável população carcerária, submetidos a condições de encarceramento que não satisfazem aos necessários cuidados para preservação da integridade física das pessoas detidas.
É com foco nesta salvaguarda de direitos dos apenados que se encontram os grandes avanços obtidos a partir das medidas do projeto, com a humanização dos atos processuais, através da aproximação da pessoa detida com a autoridade que proferirá sua sentença, podendo esta apresentar sua defesa de forma mais ampla, não sendo mais tal medida restrita à impessoalidade do papel, também sendo oportunizado momento para que o acusado relate quaisquer situações de tratamento degradante ou violento durante a sua prisão, oportunizando maior fiscalização das autoridades responsáveis e providências destinadas à proteção deste indivíduo.
Com isto, verifica-se, a partir da análise dos dados apresentados, que os procedimentos para adoção do Projeto Audiência de Custódia ainda carecem de aperfeiçoamento em sua implantação, mas os atos em realização apresentam bons resultados, pois já estão sendo evitadas prisões sem necessidade, prezando pela integridade do indivíduo que não será submetido a situações degradantes que ainda marcam o sistema prisional e esquivando essa pessoa, muitas vezes, de entrar em contato com condições desumanas e que o levem novamente a delinquir.
Portanto, entende-se que a implementação das audiências de custódia no Brasil já era necessária e apresenta relevante melhoria aos procedimentos penais e processuais relacionados ao encarceramento, trazendo como resultado a adequação, ainda que tardia, aos preceitos advindos dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, estabelecendo medidas básicas que reforçam a garantia à ampla defesa, também prezando pelo resguardo da integridade física do apenado, com o principal objetivo de se estabelecer um sistema prisional mais humanizado, voltado à ressocialização e reintegração deste indivíduo à sociedade.
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[1] Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá, em parceria tecnológica com o Complexo de Ensino Renato Saraiva. E-mail: leticiaduartecarvalho@hotmail.com
[2] O direito de tornar-se membro das Nações Unidas cabe a todas as nações amantes da paz que aceitarem os compromissos da Carta e que, a critério da Organização, estiverem aptas e dispostas a cumprir tais obrigações. A ONU possui hoje 193 Países-membros (ONU, 2018b).
[3] Conforme relação disponível no site da Organização das Nações Unidas (ONU, 2018a).
[4] O artigo 52 da Carta das Nações Unidas prevê: “Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas”.
[5] Reformada pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos “Protocolo de Buenos Aires”, assinado em 27 de fevereiro de 1967, na Terceira Conferência Interamericana Extraordinária. pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos “Protocolo de Cartagena das Índias”, assinado em 5 de dezembro de 1985, no Décimo Quarto período Extraordinário de Sessões da Assembleia Geral, pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos “Protocolo de Washington”, assinado em 14 de dezembro de 1992, no Décimo Sexto período Extraordinário de Sessões da Assembleia Geral, e pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos “Protocolo de Manágua”, assinado em 10 de junho de 1993, no Décimo Nono Período Extraordinário de Sessões da Assembleia Geral.
[6] Composta por sete juristas eleitos em razão do reconhecimento do saber em Direitos Humanos e com sede em Washington, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi criada a partir da Quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores que foi realizada em Santiago, Chile, no ano de 1959 e reconhecidamente instituída no ano seguinte, com a aprovação de seu Estatuto no Conselho da Organização. O regulamento da Comissão, por sua vez, foi promulgado no ano de 1980, sendo objeto de várias alterações até 2013 (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2018a)
[7] A Corte Interamericana de Direitos Humanos é formada por sete juízes nacionais de estados membros da Organização dos Estados Americanos e que possui sede em San José, Costa Rica. Seu estatuto foi aprovado pela resolução AG/RES. 448 (IX-O/79), com adoção pela Assembleia Geral da OEA, em seu Nono Período Ordinário de Sessões, realizado na cidade de La Paz, Bolívia, em outubro de 1979 (OEA, 1979).
[8] Com registro na ONU a partir de 27 de agosto de 1979, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos conta hoje com os seguintes países como membros: Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, São Cristóvão e Nevis, Suriname, Trinidad e Tobago, Estados Unidos, Uruguai e Venezuela (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969).
[9] Perdurando de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985, e inspirado em regimes adotados em outros países da América Latina, o período da chamada “Ditadura Militar” se caracterizou pelo bipartidarismo, repressão intensa aos direitos políticos e manifestações sociais de oposição, inclusive com utilização de métodos de violência e tortura, entretanto, sendo marcado também por investimento na infraestrutura nacional e considerável desenvolvimento da economia. Contou com a governança de Castelo Branco – 1964 a 1967, Costa e Silva – 1967 a 1969, Medici – 1969 a 1974, Geisel – 1974 a 1979 e Figueiredo – 1979 a 1985.
[10] A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada em 5 de outubro de 1988, sendo a 7ª Constituição da história do nosso país. Apresenta seu texto dividido em 09 títulos e 250 artigos, tendo adicionado, ao longo de sua vigência, 99 emendas.
[11] Emenda Constitucional promulgada em 30 de dezembro de 2004, versando sobre diversos assuntos. Foi responsável por alterar os dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescentar os arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A.
[12] Convenção subscrita na cidade de Nova York, em 30 de março de 2007.
[13] O Supremo Tribunal Federal mudou posicionamento acerca do tema, estabelecendo a partir de 2008 sobre a ilegalidade da prisão civil neste caso, posição reafirmada através de edição da Súmula Vinculante nº 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito” (BRASIL, s.d.).
[14] O Brasil faz parte de diversos Tratados Internacionais, sendo possível apontar, entre os principais ainda não mencionados: Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, convocada pela Resolução 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14.12.1950 e promulgada pelo Decreto 50.215, de 28.01.1961, Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resolução 39/46 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1984, e ratificada pelo Brasil em 28.09.1989, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Resolução 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18.12.1979, ratificada pelo Brasil em 01.02.1984 e promulgada pelo Decreto 4.377, de 13.09.2002, que revogou o Decreto 89.460, de 20.03.1984, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução 2.106-A (XX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 21.12.1965, ratificada pelo Brasil em 27.03.1968 e promulgada pelo Decreto 65.810, de 08.12.1969, Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução L 44 (XLIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20.11.1989, e ratificada pelo Brasil em 24.09.1990 (aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.1990, e promulgada pelo Decreto 99.710, de 22.11.1990), etc (OLIVEIRA, 2012, p. 63).
[15] O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos adveio da Resolução 2.200-A da Assembleia Geral das Nações Unidas, com aprovação em 16 de dezembro de 19666. Obteve ratificação do Brasil em janeiro de 1992 através do Decreto Legislativo 226 de dezembro de 1991, sendo enfim promulgado a partir do Decreto 592 de 06 de julho de 1992.
[16] Inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia foi aprovada pelo Conselho da Europa em 1953, a partir de composição de 47 Estados-membros da Comunidade Europeia. Possui como órgão julgador o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, localizado em Estrasburgo, França.
[17] Em relatório de 2015 produzido pela Human Rights Watch sobre o Brasil, demonstra-se preocupação com os alarmantes relatos sobre tratamento degradante nas prisões do país, conforme dispõe: A tortura é um problema crônico em delegacias de polícia e centros de detenção. Entre janeiro de 2012 e junho de 2014, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebeu 5.431 denúncias de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante (cerca de 181 denúncias por mês) de todo o país por meio do Disque Direitos Humanos (Disque-100). Um total de 84 por cento dessas denúncias se referiam a abusos em presídios, cadeias públicas, delegacias de polícia, delegacias que operam como unidades prisionais e unidades de medida sócio educativa (HUMANS RIGHTS WATCH, 2015).
[18] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (BRASIL, 1988).
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