Resumo: O presente trabalho tem por escopo demonstrar a existência de uma função simbólica do princípio da moralidade administrativa e a possibilidade de sua relativização a partir da adoção da boa-fé objetiva, própria do Direito Civil, como vetor de sua densificação.
Palavras-chave: Princípio da Moralidade Administrativa; função simbólica; boa-fé objetiva.
Abstract: The scope of this work is to demonstrate the existence of a symbolic function of the principle of administrative morality and the possibility of relativization from the adoption of objective good faith, the civil law itself, as a vector for its densification.
Keywords: Principle of Administrative Morality; symbolic function; objective good faith.
Sumário: 1 Introdução – 2 A emergência do paradigma pós-positivista e a força normativa dos princípios – 3 O princípio da moralidade administrativa como dever de boa-fé – 4 Relativização da função simbólica da moralidade administrativa – 5 Considerações finais – 6 Referências bibliográficas
1 INTRODUÇÃO
Tem-se por escopo, neste artigo, identificar a boa-fé como conteúdo da moralidade administrativa e a sua repercussão na relativização da função simbólica deste princípio expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, sem seu art. 37.
Assim, procede-se a uma aproximação entre a noção de moralidade e a idéia de boa-fé prevista na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei 9.784, de 29 de Janeiro de 1999), tudo de modo a investigar o sentido objetivo da moralidade, vinculado ao dever da Administração Pública agir de modo a respeitar as expectativas que lhe são depositadas pelos administrados, impondo-se rechaço às indevidas inações, comportamentos contraditórios e retardos desleais na realização dos processos administrativos.
Da mesma forma, e uma vez admitida a densificação do princípio da moralidade a partir da boa-fé expressamente prevista na LPA, será demonstrada a sua importância para o temperamento da função simbólica do princípio da moralidade administrativa, o que também é aqui sustentado.
Deveras, tenta-se provar neste trabalho que o constituinte de 1988, ao erigir a moralidade ao status de princípio constitucional, buscava responder aos anseios de uma sociedade que acabara de vencer um severo regime militar, em que os excessos cometidos pelas autoridades administrativas na condução da coisa pública já não mais poderiam ser tolerados, daí o porquê do caráter sobretudo simbólico de tal princípio.
Entretanto, com os deveres impostos à Administração a partir da adoção da boa-fé como conteúdo do princípio da moralidade, entende-se que há inequívoca relativização da sua função simbólica, o que também será abordado em tópico específico.
2 A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA E A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
É fora de dúvida que, ao longo de toda a história da ciência jurídica, a doutrina positivista inclinou-se no sentido de compreender o direito apenas e tão somente como reflexo da lei. Não obstante a dinâmica da vida e a complexidade das ações humanas, entendia-se que na lei restava disciplinada, à minúcia, toda a pluralidade da realidade social.
Nesse rumo, a atividade interpretativa também não poderia possuir outros contornos, senão aqueles próprios da lei, não passando a interpretação de uma mera e quase mecânica operação lógico-formal (subsunção).
Ocorre que, com o agigantamento da crise da modernidade jurídica, fruto, sobretudo, da incapacidade do modelo então vigente de responder às expectativas de uma sociedade plural e da sua pouca abertura aos influxos valorativos, a doutrina passou a dedicar-se com grande afinco ao reexame da concepção positivista do Direito, surgindo daí um novo paradigma na compreensão do fenômeno jurídico, qual seja, o pós-positivismo.
E é precisamente neste contexto que passam a ganhar relevo os princípios de Direito, cuja importância torna-se muito maior, ensejando, inclusive, a noção de sistema jurídico principiológico.
Para que não reste o menor coeficiente de dúvida quanto ao que se afirma, calha seja investigada a precisa lição de Ricardo Maurício Freire[1], in verbis:
“Neste contexto de delineamento de um sistema jurídico principiológico, a obra de Ronald Dworkin impõe-se como um divisor de águas no debate da filosofia pós-moderna do direito. Isto porque sublinha a importância dos princípios jurídicos como elementos de articulação entre direito e moral, fundamentando uma crítica ao positivismo analítico. Decerto, Ronald Dworkin tem desenvolvido suas reflexões sobre os princípios a partir de um diálogo com as doutrinas positivistas.
[…] Segundo o autor, importa reabilitar a racionalidade moral-prática no campo da metodologia jurídica. Para tanto Dworkin critica o positivismo justamente no fato de que este considera o direito como um sistema composto apenas por regras. Concebendo-se as normas jurídicas como regras, é certo que o sistema estático será lacunoso, e este problema é resolvido pelo normativismo através da atribuição de um poder discricionário para o magistrado decidir volitivamente a solução do caso concreto. Sustenta-se, no entanto, que, o sistema jurídico também contém princípios, visto que sempre preexistirão critérios normativos para determinar a decisão do caso concreto”.
Deveras, no atual estágio de evolução do Direito, não se concebe mais que o fenômeno jurídico se restrinja à pura manifestação da lei, compreendendo também, e com contundência, os princípios jurídicos, elementos normativos veiculadores de especial carga valorativa.
Nas pegadas de Ronald Dworkin[2], in verbis:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. […] As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
[…] Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um.
Evidencia Humberto Ávila[3] que
“Alexy, partindo das considerações de Dworkin, precisou ainda mais o conceito de princípios. Para ele os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, Alexy demonstra a relação de tensão ocorrente entre os princípios: nesse caso, a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as conseqüências normativas de forma direta, ao contrário das regras. É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os concretiza mediante regras de colisão […]
Daí a definição de princípios como deveres de otimização aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e fáticas: normativas, porque a aplicação dos princípios depende dos princípios e regras que a eles se contrapõem; fáticas, porque o conteúdo dos princípios como normas de conduta só pode ser determinado quando diante dos fatos.”
Fato é que com o pós-positivismo passou a ser defendida, cada vez com mais freqüência, a força normativa dos princípios, como elementos constituintes da realidade ordenamental. Nesta quadra, ensina o professor Jorge Miranda[4], in verbis:
“Os princípios não se colocam, pois, além ou acima do Direito (ou do próprio Direito positivo); também eles – numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais – fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normas jurídicas é que se dividem em normas princípios e normas-disposições.”
A reflexão sobre os princípios constitucionais impõe, necessariamente, a indagação acerca da sua normatividade. Se hoje o discurso jurídico parte da premissa da sua força normativa, em tempos mais recuados essa não foi a sua tônica, imperando por muito tempo a defesa dos princípios como meras normas programáticas, como meios de interpretação e integração de normas. Todavia, razões não há mais para insistir no equívoco que vinha cometendo a doutrina tradicional.
Aos princípios não pode ser delegado o papel coadjuvante no cenário ordenamental. Ser compreendidos tão-somente como meios de interpretação e integração de normas é reduzir a sua grandeza, é enxergar apenas uma das suas faces, um dos lados da moeda, é estar aquém do que verdadeiramente são. Daí o acertado entendimento de Noberto Bobbio[5], senão veja-se, in verbis:
“Os princípios são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípio leva a engano, tanto que é velha a questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Para mim, não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê porque não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacunas? Para regular um comportamento não regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E por que não deveriam ser normas?”
Nesse rumo, negar força normativa aos princípios é cometer erro maior, é atentar contra a lógica, é andar em inequívoco descompasso com o atual estágio da Ciência Jurídica.
3 O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO DEVER DE BOA-FÉ
Germana de Oliveira Moraes[6], engrossa as fileiras dos que defendem no Brasil a aproximação entre moralidade administrativa e boa-fé ao dizer que “violar o princípio da boa-fé significa também violar o princípio da moralidade”. Aliás, nesta sustentação não se encontra sozinha, haja vista o entendimento de Juarez Freitas[7], que se queixando da “ausência lastimável – àquela altura – de disposição expressa no Direito Brasileiro”, a respeito do princípio da boa-fé ou da confiança, apontava, que implicitamente referia-se à boa-fé objetiva.
Neste contexto, ganha destaque a Lei de Processo Administrativo Federal (Lei 9.784 de 29 de Janeiro de 1999), pois que foi a primeira referência legal à boa-fé no direito público brasileiro, o que pode ser constatado da leitura dos seus artigos 2º, parágrafo único, IV, e 4º, II.
Pelo cristalino didatismo na análise da LPA, merece ser visitado o comentário de José Guilherme Giacomuzzi[8], verbis:
“O significado da LPA no plano dogmático é enorme. Carlos Ari Sundfeld refere, entusiasticamente, poder-se antever, a partir da LPA, significativa modificação no direito administrativo brasileiro, apesar da falta de familiaridade dos administrativistas com uma tal espécie de lei. Essa radical inovação – diz o autor – dá-se porque não se cuida de uma mera lei sobre trâmites exigidos em certos processos da Administração. A denominação “processo” engana – sustenta -, pela tendência à associação com a experiência anterior, de textos normativos tratando de processos administrativos específicos, entendimento, segundo Sundfeld, equivocado: “Uma lei geral de processo administrativo não regula apenas os chamados processos administrativos em sentido estrito, mas toda a atividade decisória da administração, sem exceções, independentemente do modo como ela se expressa […]”
O que se apreende desse rumo de idéias, é a necessidade de se ver com outros olhos o processo administrativo, em especial a partir da LPA, haja vista que o agir administrativo é um constante decidir fazendo processos, o que impõe à Administração a observância dos princípios de índole processual.
É nesta lei que se encontra a substância objetiva do princípio da moralidade administrativa. O seu art. 2º prevê “critérios” para o exercício da atividade administrativa, os quais figuram como nortes do agir administrativo, guardando vínculo de dependência com cada um dos princípios dispostos na “cabeça” do artigo.
É da análise dessa relação de dependência entre os critérios e os princípios, que se chega à conclusão, segundo a qual o conteúdo objetivo do princípio da moralidade administrativa confunde-se com a idéia da boa-fé objetiva. Com o fim de aclarar essa conclusão, segue parte do art. 2º da LPA, devendo-se atentar mais especificamente para o seu inciso IV:
“A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único: Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I – atuação conforme a lei e o Direito;
II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;
III – objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;
IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa – fé […]”
Procedendo-se a uma breve amostragem, vê-se que o inciso I do parágrafo único se relaciona ao princípio da legalidade previsto no caput; o inciso II guarda relação de dependência com os princípios da finalidade e do interesse público; Já o inciso IV, à evidência, diz com o princípio da moralidade. É o que resulta da utilização do método sistemático de interpretação.
O autor José Guilherme Giacomuzzi[9], seguro na defesa da boa-fé objetiva como conteúdo do princípio da moralidade, aduz, verbis:
“Exatamente como ocorria com a boa-fé no direito privado (obrigacional), entre nós, quando ainda não legalizada, mas cuja presença no ordenamento Clóvis do Couto e Silva via “independer de legalização”, a boa-fé no direito público (administrativo) decorre, em ordenamentos que não a legalizaram, de outros princípios jurídicos. Ao que entendo, no nosso é veiculada pelo princípio da moralidade do art. 37 da Constituição Federal de 1988 – posição que veio, no meu entender, a ser ratificada pela LPA. A propósito, vale deixar claro que, ao menos nos países de Direito legislado, a positivação – da boa-fé, no caso, mas de qualquer noção ou conceito jurídico, em verdade – atribui uma inegavelmente maior força normativa.
A exemplo do que ocorrera com a moralidade administrativa do art.5º, LXXIII, da Constituição Federal de 1988 – onde entendi de buscar na LAP o vetor do seu conteúdo, por já expostas razões -, a moralidade do art. 37 da mesma Constituição tem na LPA – a qual integra o sistema em momento oportuno e veio, na visão de Sundfeld, a impactar o direito administrativo brasileiro – também um fanal interpretativo. Se já era possível, no meu entender, antes do advento da LPA preencher o conteúdo da moralidade administrativa – na sua parte que venho chamando de “objetiva” – com a boa-fé, mais ainda, agora, olhos na LPA e com ela, isso é necessário.”
Presente esta ampla explanação, e atentando-se para as lições do autor retrocitado, tem-se como possível preencher o conteúdo da moralidade administrativa do Magno Texto com o vazado no art. 2º, parágrafo único, inciso IV da Lei de Processo Administrativo. Em outras palavras: o conteúdo do princípio da moralidade administrativa, sob o enfoque objetivo, corresponde à noção de boa-fé objetiva incrustrada na lei sob análise.
Deveras, a LPA extravasou os diques dos processos de índole meramente técnica para apresentar um processo administrativo como instrumento do exercício do poder, algo que não se esgota no encadeamento sucessivo de atos, figurando mesmo como meio de realização e legitimação do poder administrativo, afinal este texto normativo preza pela participação do administrado no agir administrativo, viabilizando a sua consulta com o escopo de saber qual é o interesse público, não mais aceitando a existência de um interesse público normativo previamente estabelecido. Eis o processo como meio de participação do cidadão nas decisões administrativas!
Desse modo, o povo tem de sempre se reconhecer como a razão maior de ser de toda a atividade administrativa, daí o porquê do dever de não trair (ela, Administração) a confiança depositada pelo povo na sua realização.
Pode-se exemplificar algumas conseqüências da boa-fé, como conteúdo objetivo do princípio da moralidade, a partir da lição de Egon Bockmann Moreira[10], in verbis:
“[…] Proibição à inação inexplicável e desarrazoada, vinculada a exercício de direito, que gera legítima confiança da outra parte envolvida; dever do favor acti (dever de conservação dos atos administrativos, explorando-se ao máximo a convalidação); lealdade ao fator tempo (proibição ao exercício prematuro de direito ou dever ou retardamento desleal do ato e à fixação de prazos inadequados); dever de sinceridade objetiva (não só dizer a verdade, mas não omitir qualquer fato ou conduta relevante ao caso concreto, tampouco se valer de argumentos genéricos ou confusos); dever de informação, no sentido de não omitir qualquer dado que seja relevante na descrição da questão controversa e/ou que possa auxiliar na sua resolução […]”
Atento a essa tendência doutrinária, o legislador infraconstitucional fez constar na LPA deveres e proibições, assim como disposições sobre a forma e o conteúdo dos atos administrativos, tendo em vista o dever de não traição da fidúcia depositada pelos administrados na Administração Pública. Sem dúvida alguma, uma importante conquista para o Estado democrático de direito.
4 RELATIVIZAÇÃO DA FUNÇÃO SIMBÓLICA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
A Constituição Federal de 1988 afivelou no seu corpo os princípios aos quais deve submeter-se a Administração Pública, dentre os quais previu o da moralidade (art.37). Fez referência também a esse princípio ao tratar da ação popular (art.5º, inciso LXXIII).
De tal fato, qual seja, o de prever o respeito à moralidade por mais de uma vez, autores tem havido, que sustentam existir um exagerado esforço do constituinte, um excesso, uma repetição descabida. Aliás, como é de sabença geral, a Carta política brasileira é objeto de duras críticas exatamente em função da redundância de que se vale para abordar uma série de temas.
Almiro do Couto e Silva, prefaciando obra do autor José Guilherme Giacomuzzi [11], engrossa as fileiras dos críticos ao que seriam os excessos da Constituição, ao dizer:
“Tenho dito, com certa freqüência, que a Constituição de 1988 é um documento barroco. Como a obra de arte barroca, que é rica em ornamentos e tem na opulência e no excesso seus traços mais característicos, assim também a Constituição sob a qual hoje vivemos insiste na riqueza, na abundância, na repetição, na reiteração em forma explícita do que nela já se contém e dela facilmente pode ser extraído pela interpretação.”
Entretanto, se é correto que, sob alguma perspectiva, se possa apontar a Constituição Federal como obra barroca, outra não é a natureza artística dos comportamentos das autoridades administrativas. Exagero por exagero, há representação mais barroca do que a dos excessos perpetrados pelas autoridades administrativas na condução da coisa pública?
Quer parecer absolutamente justificável a norma que se extrai do texto da Constituição. O que se colima é, a toda evidência, impor rechaço aos repetidos desmandos por parte das autoridades administrativas, é combater a trivialidade com que se manifesta o desrespeito aos direitos fundamentais, é afastar do corpo político-social a invasão do público com vistas a interesses essencialmente privados. Não se trata, pois, de excesso, mas sim de reflexo de uma demanda popular, haja vista que o texto constitucional é reflexo das suas desconfianças.
E é precisamente sob este enfoque que toma corpo a função simbólica do princípio da moralidade administrativa, o qual, assim como a noção de constituição álibi desenvolvida por Marcelo Neves, figura como uma resposta de pronto à sociedade que se vê insatisfeita com a ação do Estado diante dos reais problemas sociais.
Certamente, deve ter parecido ao legislador constituinte, um caminho menos eficaz o de disciplinar a matéria de forma mais branda. Não seria atingido o fim visado se, por exemplo, a Constituição seguisse as pegadas da Constituição norte-americana, ou seja, se as suas disposições normativas fossem mais sucintas, mais simples, menos repetitivas.
O que efetivamente buscou o legislador-constituinte foi desempenhar uma função ideológica, visando gerar nos cidadãos a falsa idéia de que as mazelas políticas e o grave estado de inércia administrativa seriam superados, gerando um sentimento de bem-estar na sociedade. Segundo Marcelo Neves[12], in verbis:
“O “Estado” apresenta-se como identificado com os valores constitucionais, que não se realizam no presente por “culpa” do subdesenvolvimento da “sociedade”. Já na retórica dos grupos interessados em transformações reais nas relações de poder, os quais pretendem freqüentemente representar a “subcidadania”, invocam-se os direitos proclamados no texto constitucional para denunciar a “realidade constitucional inconstitucional” e atribuir ao Estado/governo dos “sobrecidadãos” a “culpa” pela não realização generalizada dos direitos constitucionais, que seria possível estivesse o Estado/governo em outras mãos. É evidente que nas condições de constitucionalização simbólica do Estado periférico, caracterizado por relações de “subintegração” e “sobreintegração” não só no sistema político-jurídico, mas também nos sistemas econômico, educacional, em saúde etc., tornam-se inadequados — com muito mais razão do que em relação à legislação simbólica no Estado de bem-estar do Ocidente desenvolvido — o tratamento e a solução do problema da ineficácia da legislação constitucional com base no esquema instrumental “meio-fim” das “pesquisas de implementação”.
A bem da verdade, após o mergulho no denso e tormentoso rio do período militar, tudo o que mais se queria era desaguar no mar da liberdade. Para isso, e em função disso, optou-se pela repetição e reiteração da moralidade administrativa como meio adequado e garantidor de um desaguar tranqüilo. Eis aqui também uma outra função simbólica do princípio da moralidade administrativa, consistente na confirmação de valores sociais. Conforme afirma Marcelo Neves[13], in verbis:
“A legislação simbólica destinada primariamente à afirmação de valores sociais tem sido tratada basicamente como meio de diferenciar grupos e os respectivos valores e interesses. Constituiria um caso de política simbólica por “gestos de diferenciação”, os quais “apontam para a glorificação ou degradação de um grupo em oposição a outros dentro da sociedade”. Mas a legislação afirmativa de valores sociais pode também implicar “gestos de coesão”, na medida em que haja uma aparente identificação da sociedade nacional com os valores legislativamente corroborados, como no caso de princípios de “autenticidade”.”
Neste sentido, o princípio da moralidade administrativa, expressamente previsto na Constituição Federal, como norteador da atuação da administração e seus agentes, seria uma espécie de “vitória legislativa”, uma resposta do Estado à sociedade, tudo para que a mesma tenha a sensação de que se está atento às suas demandas, preocupações e valores.
Nesta orbe, desde a promulgação da Carta Política de 1988 (entendida como legislação-álibi ou como instrumento de confirmação de valores), tem-se constatado a enorme disparidade entre a função hipertrofiante simbólica e a insuficiente concretização jurídica do princípio constitucional da moralidade administrativa, sobretudo em sua faceta objetiva, cujo conteúdo entende-se ser possível preencher pela idéia da boa-fé.
Ocorre que, não obstante a timidez ainda presente na concretização do princípio da moralidade administrativa (moralidade/boa-fé objetiva), a Lei 9784/99, ao fazer expressa referência à noção de boa-fé como critério de realização dos processos administrativos, franqueia largas portas ao controle moral da atuação da Administração Pública, o que implica o dever de respeitar a fidúcia depositada pelo administrado na Administração, figurando como rico instrumental ao controle jurisdicional dos processos administrativos, o que, sem dúvida alguma, relativiza a sua função meramente simbólica do princípio da moralidade, emprestando-lhe maior concretização.
Essa aproximação entre moralidade e boa-fé, expressamente prevista na LPA, enseja importantes consequências na relação Administração-administrado, consoante a mensagem de Paulo Modesto[14], in verbis:
“Não basta, porém, identificar a boa-fé como núcleo do princípio da moralidade administrativa quando em tela relações da Administração Pública em face dos administrados.
É preciso extrair dessa constatação consequências jurídicas verificando hipóteses típicas de incidência do princípio.
[…] proponho apresentar apenas duas hipóteses típicas de aplicação do princípio:
a) a Proibição de Ir Contra Atos Próprios – conhecida também pela expressão latina “venire contra factum proprium”;
b) a Retardação ou Retardamento Desleal – que alguns denominam também simplesmente por caducidade.
a) A Doutrina dos Atos Próprios
[…] diz respeito à obrigação do sujeito titular de direitos ou prerrogativas públicas de respeitar a aparência criada por sua própria conduta anterior nas relações jurídicas subseqüentes, ressalvando a confiança gerada em terceiros, regra fundamental para a estabilidade e segurança no tráfego jurídico. A proibição de ir contra os próprios atos interdita o exercício de direitos e prerrogativas quando o agente procura emitir novo ato em contradição manifesta com o sentido objetivo dos seus atos anteriores, ferindo o dever de coerência para com o outro sujeito da relação sem apresentar justificação razoável. A regra tem aplicação, por exemplo, para impedir mudanças “repentinas” de orientação ou interpretação de normas tributárias pelos agentes fazendários, artifício utilizado para tributar-se diversamente, de um dia para outro, determinada categoria de produtos (STF, RDP-10, 1969, p. 184-185). Foi utilizada também, em caso concreto, no Estado do Rio de Janeiro, para obrigar a administração, no caso a Caixa Econômica Federal, a respeitar em contratos de financiamento de compra de apartamentos o que divulgara em cartazes de propaganda, mesmo quando se constatou que nos contratos de financiamento a promessa contida na propaganda não constava e até previa cláusula contrária.
[…] Essa orientação restringe a adoção de decisões inopinadas, contraditória, desbaratadas pelo administrador para uma mesma situação da vida (“situations comparables” para a doutrina francesa) e prestigia a “previsibilidade da ação estatal” (GERALDO ATALIBA, República e Constituição, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 144 e segs.), a proteção da confiança e a lealdade exigida do Estado em suas relações com os administrados.
b) Retardação Desleal
A retardação desleal, por sua vez, consiste na proibição do exercício de um direito subjetivo ou prerrogativa que permaneceu longo tempo abandonado por seu titular, quando essa omissão deu causa a que outros sujeitos jurídicos tivessem confiança justificada em que o direito não mais se exercitaria.
[…] Uma das aplicações, é exatamente o saneamento de atos administrativos inválidos quando sejam ampliativos da esfera jurídica de particulares de boa fé (ex. concessões, licenças, autorizações) e o tempo decorrido desde sua emanação houver criado uma confiança justificada de sua regularidade e manutenção, ou justificar a estabilidade da situação, especialmente quando esta houver conformado inúmeras relações jurídicas assentadas, firmadas em torno da confiança justificada de particulares de boa-fé sobre a legitimidade da situação de fato irregular. O saneamento nesses casos equivale a um impedimento, ou “barreira” (WEIDA ZANCANER, Convalidação e Invalidação dos Atos Administrativos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 60), limitativa da invalidação.”
É pensar na boa-fé e ser remetido, de logo, à idéia da proteção da confiança. No caso do Direito Administrativo, essa proteção, por óbvio, dirige-se à pessoa do administrado, ou seja, a Administração Pública age de boa-fé desde que não traia a confiança do administrado surpreendendo-lhe a todo instante.
Sobressai, desse modo, uma das funções atribuíveis à boa-fé como conteúdo objetivo da moralidade administrativa do art. 37 da Constituição Federal, qual seja, a de imposição do respeito à confiança que é depositada pelos administrados na Administração Pública.
Pode-se exemplificar algumas conseqüências da boa-fé, como conteúdo objetivo do princípio da moralidade, a partir da lição de Egon Bockmann[15], in verbis:
“[…] Proibição à inação inexplicável e desarrazoada, vinculada a exercício de direito, que gera legítima confiança da outra parte envolvida; dever do favor acti (dever de conservação dos atos administrativos, explorando-se ao máximo a convalidação); lealdade ao fator tempo (proibição ao exercício prematuro de direito ou dever ou retardamento desleal do ato e à fixação de prazos inadequados); dever de sinceridade objetiva (não só dizer a verdade, mas não omitir qualquer fato ou conduta relevante ao caso concreto, tampouco se valer de argumentos genéricos ou confusos); dever de informação, no sentido de não omitir qualquer dado que seja relevante na descrição da questão controversa e/ou que possa auxiliar na sua resolução […]”
Atento a essa tendência doutrinária, o legislador infraconstitucional fez constar na LPA deveres e proibições, assim como disposições sobre a forma e o conteúdo dos atos administrativos, tendo em vista o dever de não traição da fidúcia depositada pelos administrados na Administração Pública. Sem dúvida alguma, uma importante conquista para o Estado democrático de direito e instrumento eficaz na relativização da função simbólica da moralidade administrativa.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Presente esta ampla moldura, e em jeito de conclusão, impõe-se afirmar:
a) que os princípios, em comunhão com as regras, são espécies do gênero norma jurídica, não se restringindo tão somente à atividade de integração e interpretação. Com o pós-positivismo, já agora positivados nos novos textos constitucionais, figuram como os principais vetores pelos quais se investiga a compatibilidade da ordem jurídica aos valores fundamentais de escalão constitucional; nesta fase, os princípios jurídicos conquistam a dignidade de normas jurídicas vinculantes, sendo evidenciada a sua força normativa
b) que o fato de a Constituição brasileira insistir no uso da expressão moralidade administrativa não pode ser visto como mais um reflexo da sua prolixidade, sendo, antes, a vocalização de uma importante opção política reveladora dos anseios que tomavam a sociedade brasileira do final da década de 80, recém saída de longo período militar e ansiosa pela concretização do processo de redemocratização. Daí se entende o porquê da função simbólica do princípio da moralidade, podendo ser compreendida tanto como legislação-álibi como instrumento de afirmação de valores;
c) que da adoção da boa-fé como conteúdo do princípio da moralidade administrativa, relativiza a função meramente simbólica do princípio da moralidade, sendo possível identificar-se as seguintes conseqüências: proibição de a Administração quedar-se inerte diante de um direito do cidadão que confia na Administração; dever de conservação dos atos administrativos, de modo a, sempre que possível, convalidá-lo; dever de respeitar prazos, bem como de não exercer direito prematuramente; dever de dizer a verdade, de não ser omisso com relação a fatos ou condutas relevantes ao caso concreto; proibição de se valer a Administração de argumentos genéricos ou confusos; dever de prestar informações quando houver solicitação pelos cidadãos, dentre outras.
Advogado do Escritório Celso Castro Consultoria e Advocacia S/C. Graduado em Direito pela Universidade do Salvador (UNIFACS). Especialista em Direito do Estado pela Associação Educacional Unyahna/Curso Juspodivm. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Administrativo e Direito Eleitoral do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). Professor de Direito Eleitoral da Escola Superior de Advocacia Orlando Gomes (ESAD/BA).
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