Resumo: O presente estudo traz ao leitor a exposição de uma linha evolutiva do pensamento dos tribunais em torno da questão da previdência do setor público, especificamente no que toca à aposentadoria especial nas excepcionais situações das atividades de risco e aquelas exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
Palavras-chave: Aposentadoria especial. Policiais civis. Militares dos Estados. Mandado de Injunção. Uniformização de jurisprudência.
Abstract: This study brings the reader the exposure of an evolutionary line of thought of the courts on the issue of welfare of the public sector, specifically with regard to the special retirement in exceptional situations of risk activities and those carried out under special conditions that are harmful to health or integrity.
Key-words: Special retirement. Police. Military Police. Injunctive. Uniform jurisprudence.
Sumário: Introdução. 1 A evolução do tema no Supremo Tribunal Federal: idas e vindas… 2 O posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: idêntico vai e vem… 3 Considerações finais: a competência legislativa de iniciativa reservada e a uniformização da jurisprudência. Referências bibliográficas.
Introdução
Quando concluíamos o mestrado em Direito Público na Universidade de Franca (2004), a convite do Prof. Dr. Antônio Cláudio da Costa Machado[1] começamos as pesquisas para publicação de uma obra bastante arrojada: uma Constituição Federal comentada artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, inciso por inciso, alínea por alínea. Sendo uma obra coletiva, coordenada pela Profa. Dra. Anna Cândida da Cunha Ferraz[2], o esforço foi gigantesco, notadamente à medida que nos coube trabalhar com o “Capítulo VII – Da Administração Pública” [3] (artigos 37 a 43), a que se vincula todo um emaranhado de normas legais e administrativas afetas aos direitos, deveres e prerrogativas dos servidores públicos, tema objeto de constantes debates nos tribunais e de freqüentes alterações legislativas, regulamentares e, até mesmo constitucionais (v.g. as produzidas pelas Emendas Constitucionais nº 3, 11, 18, 19, 20, 34, 41 e 42).
Finalizada a obra em agosto de 2004 e remetida à editora, logo em 05 de julho de 2005 é promulgada a Emenda Constitucional n. 47, gerando necessidade novos estudos e revisão da obra, até então no prelo. No final do ano de 2009 a obra é encerrada e publicada em 2010 (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa [Coord]. Constituição Federal Interpretada: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. São Paulo: Manole, 2010), sendo sua segunda edição lançada em 2011.
Essa exposição nos pareceu pertinente, pois foi a partir de todo esse trabalho de pesquisa de nossa lavra é que já havíamos nos debruçado sobre a questão disposta no o § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal: as hipóteses de aposentadoria especial aplicáveis aos servidores públicos.
No preparo de nosso primeiro pré-texto, quando ainda não promulgada a Emenda Constitucional nº 47, de 2005, assim ainda dispunha o § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal:
“§ 4° É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados os casos de atividades exercidas exclusivamente sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidos em lei complementar.”
Nossos comentários à época foram então:
“O dispositivo ainda não se acha regulamentado, carente da edição da exigida lei complementar. A título de analogia, trazemos à colação os critérios que, no regime geral de previdência, são estabelecidos pela Lei nº 8213, de 24 de julho de 1991, ainda em vigor após várias alterações. Sobredita norma dita que aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nela, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, consistirá numa renda mensal equivalente a 100% (cem por cento) do salário-de-benefício; a concessão da aposentadoria especial dependerá de comprovação pelo segurado, perante o Instituto Nacional do Seguro Social–INSS, do tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante o período mínimo fixado. O segurado deverá comprovar, além do tempo de trabalho, exposição aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, pelo período equivalente ao exigido para a concessão do benefício. O tempo de trabalho exercido sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão ao tempo de trabalho exercido em atividade comum, segundo critérios estabelecidos pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, para efeito de concessão de qualquer benefício. O rol de atividades e sua classificação como insalubre, perigosa ou penosa, vem em quadro anexo ao Decreto nº 53831, de 25 de março de 1964, bem como no artigo 60, do Decreto nº 83080, de 24 de janeiro de 1979 (Regulamento dos Benefícios da Previdência Social). Oportuno consignar que o tempo de exercício de atividade penosa, insalubre ou perigosa, sob regime celetista anterior ao serviço público, deve ser recebido a título de contagem recíproca, conforme entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, valendo aqui a transcrição do v. acórdão: “As turmas que integram a Egrégia Terceira Seção têm entendimento consolidado no sentido de que o servidor público, que, sob regime celetista, exerceu atividade considerada penosa, insalubre ou perigosa, tem direito à contagem especial desse período, a despeito de ter, posteriormente, passado à condição de estatutário. Precedentes.” (STJ – REsp. 490.513-SC – 5ª. Turma – Relatora Ministra Laurita Vaz, julgado em 08.04.2003)
Na necessária revisão do texto em 2009, já tínhamos nova norma a interpretar[4]; agora, surgiam novos elementos que nos levaram a agregar àqueles primeiros comentários os seguintes:
“A tendência aqui impressa busca, cada vez mais, aproximar e dar um tratamento isonômico aos regimes de previdência pública e regime geral, tanto que a chamada Lei Geral da Previdência Pública (Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998), que dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal, determina, ainda que os regimes próprios de previdência social dos servidores não podem conceder benefícios distintos dos previstos no Regime Geral de Previdência Social, com as ressalvas constitucionais, e declara que esse § 4º não tem aplicação imediata, já que dependente de lei complementar federal, vedando a concessão de qualquer espécie de aposentadoria especial (artigo 5º e seu parágrafo único, com redação dada pela Medida Provisória n. 2.187-13, de 24 de agosto de 2001, ainda vigente nos termos do artigo 2º, da Emenda Constitucional n. 32). Em recente decisão o STF reforçou essa tese (ADI 3.817, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 13.11.08, Informativo 528). (ver comentários no inciso III deste parágrafo). P. 334
[…] A matéria ainda não se acha regulamentada, mas tramita no Senado o Projeto de Lei Complementar n. 68, de 2003. Registre-se que a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (Regime Previdenciário dos Servidores Públicos) já reserva benefício compensatório àquele que trabalhe exposto a risco de vida (Art. 68. Os servidores que trabalhem com habitualidade em locais insalubres ou em contato permanente com substâncias tóxicas, radioativas ou com risco de vida, fazem jus a um adicional sobre o vencimento do cargo efetivo). O STF já enfrentou o problema da mora legislativa, pela via de mandado de injunção, relativamente àqueles cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física (Mandado de Injunção n. 721-7/DF, DJ 30.11.2007, Ementário n. 2301-1; ver comentários no inciso III deste parágrafo); naquele “case” a Corte pode lançar mão da analogia ao regime geral de previdência que prevê balizas para a aposentadoria especial naqueles casos, contudo, em se tratando de “atividades de risco” a simetria não é tão precisa, pois nenhum dos regimes já disciplinou o tema. 335
[…] Na lacuna normativa que dê efetividade ao mandamento constitucional, o STF em julgamento do Mandado de Injunção n. 721-7/DF (DJ 30.11.2007, Ementário n. 2301-1), relatado pelo Ministro Marco Aurélio, reconhecendo a lacuna normativa e a mora legislativa, concedeu aposentadoria especial ao impetrante, fazendo uso de analogia ao que dispõe o Regime Geral da Previdência Social, nos termos do que dispõe o artigo 57 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991: “Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei”.
Exatamente esse precedente do Supremo Tribunal Federal (Mandado de Injunção nº 721-7/DF), de que à época falávamos, foi o estopim para que, nos anos seguintes, os tribunais fossem bombardeados, por servidores públicos e militares dos Estados, com mandados de injunção e mandados de segurança e a administração pública com requerimentos buscando o direito à aposentadoria especial garantida pelo § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal, porém não regulamentado.
O presente estudo traz ao leitor a exposição de uma linha evolutiva do pensamento dos tribunais em torno da questão da previdência do setor público, especificamente no que toca à aposentadoria especial nas excepcionais situações das atividades de risco e aquelas exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
1 A evolução do tema no Supremo Tribunal Federal: idas e vindas…
Eis o nascedouro de toda a celeuma: em 29 de abril de 2005 – antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 47 – Maria Aparecida Moreira, servidora do Ministério da Saúde lotada na Fundação das Pioneiras Sociais “Sara Kubitschek”, situada em Belo Horizonte (MG), por seu advogado Márcio Honório de Oliveira e Silva impetrou o Mandado de Injunção nº 721-7/DF contra o Presidente da República, sustentando mora legislativa regulamentadora do § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal, que disciplinasse aposentadoria especial no caso de profissão insalubre. Em 30 de agosto de 2007 o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente o pedido e determinou que, enquanto inexistente norma reguladora, fosse empregada a Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 (Regime Geral da Previdência Social):
“Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei”.
Um breve parêntese dentro do tema: num primeiro momento o episódio havido no Distrito Federal, a que nos reportaremos, não revelaria forte ligação com o tema em questão, mas ao final acabou por ser, utilizando a expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello, a “pedra de toque” do problema. Ocorre, em 26 de outubro de 2006, a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 3.817) pela Governadora do Distrito Federal, Maria de Lourdes Abadia, sustentando que a Lei Distrital nº 3.556, de 18 de janeiro de 2005, especificamente por seu artigo 3º, após alterações operadas por emendas da Câmara Legislativa, teria elastecido o direito à aposentadoria especial a servidores policiais cedidos a outros órgãos da Administração Pública nos seguintes termos:
“Art. 3º. Será considerado como de efetivo exercício de atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal, até a data da publicação desta Lei”.
Alegava a autora que, a despeito da inconstitucionalidade formal, revelada por se tratar de lei ordinária e não lei complementar como determina o pela afronta direta ao § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal, a norma padecia igualmente por inconstitucionalidade material, na medida em que permitiria contagem de tempo para aposentação especial, mesmo àqueles que estivessem afastados de atividades de risco, como se exige o inciso II da mesma norma constitucional, cuja norma regulamentadora seria a recepcionada Lei Complementar Federal nº 51, de 1985. Em 13 de novembro de 2008 o Supremo Tribunal Federal, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurélio, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da norma distrital e, ao proclamar a recepção da Lei Complementar Federal nº 51, de 1985, reconhecer sua constitucionalidade nos termos do voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, do qual vale aqui destacar:
“O art. 1º da Lei Complementar Federal n. 51/1985 que dispõe que o policial será aposentado voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. A combinação desse dispositivo com o art. 3º da Lei Distrital n. 3.556/2005 autoriza a contagem do período de vinte anos previsto na Lei Complementar n. 51/1985 sem que o servidor público tenha, necessariamente, exercido atividades de natureza estritamente policial, expondo sua integridade física a risco, pressuposto para o reconhecimento da aposentadoria especial do art. 40, § 4º, da Constituição da República: inconstitucionalidade configurada. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”
Em 13 de dezembro de 2007 o Investigador de Polícia do estado de São Paulo, Creuzo Scapim, impetrou perante o Supremo Tribunal Federal o Mandado de Injunção nº 795-1/DF em que, aos 15 de abril de 2009, o tribunal, por unanimidade, seguindo o voto da relatora, Ministra Cármen Lúcia, assentou aos policiais civis, diante da mora legislativa em regulamentar o § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal, se aplicasse como critério para aposentadoria especial aquele definido no artigo 57 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 (Regime Geral da Previdência Social); fica evidente que a Eminente Ministra não tomou em contra a lei que na ADI nº 3.817 (Lei Complementar Federal nº 51, de 1985) tivera por norma regulamentadora do questionado § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal. Assim restou assentado no voto condutor da Ministra Cármen Lúcia:
“12. O impetrante demonstra ser policial civil do Estado de São Paulo, contando mais de 36 anos de serviço averbado para fins de aposentadoria (fl. 5). Comprova, ainda, que o indeferimento do seu pleito administrativo para exercer o direito constitucionalmente previsto à aposentadoria especial em razão da atividade exercida baseou-se, como antes mencionado, na alegação de ausência de norma regulamentadora do art. 40, § 4º, da Constituição da República. […] 16. Desta forma, reconhecidas a mora legislativa e a necessidade de se darem eficácia às normas constitucionais e efetividade ao direito do Impetrante, proponho como solução para integrar a norma constitucional garantindo-se a viabilidade do direito que lhe é assegurado no art. 40, § 4º, da Constituição brasileira, a aplicação ao caso, no que couber e partir da comprovação dos dados perante a autoridade administrativa competente, do art. 57 da Lei n. 8.213/91.” (grifos no original).
Daí em seqüência, uma semana após esse último precedente de Cármen Lúcia, em 22 de abril de 2009, o Ministro Ricardo Lewandowski, ao julgar o Mandado de Injunção nº 895, em que fora autor o policial civil André Ortiz Junior, num primeiro momento lhe deu concedeu a injunção, reconhecendo a mora legislativa e determinando, em razão disso, a aplicação das regras da aposentadoria especial do Regime Geral da Previdência Social (25 anos); disse então o Ministro:
“Ora, bem examinada a questão, constato que, de fato, não existe lei regulamentadora do direito à aposentadoria especial em razão de atividade exercida exclusivamente sob condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física, prevista no § 4º do art. 40 da Constituição Federal, como admitiu a própria Advocacia-Geral da União. […] Isso posto, concedo a ordem em parte para, nos termos do Parecer do Ministério Público, reconhecer o direito do impetrante de ter o seu pleito à aposentadoria especial analisado pela autoridade administrativa competente, à luz do art. 57 da Lei 8.213/91, considerada a falta do diploma regulamentador a que se refere o art. 40, § 4º, da Constituição Federal. Publique-se. Brasília, 22 de abril de 2009. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI – Relator.” (grifo nosso).
Pouco depois, em 7 de maio de 2009, o Ministro Eros Grau, relator do Mandado de Injunção nº 824, em que figurou como impetrante o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e Ministério Público da União no Distrito Federal – SINDJUS/DF, seguiu o mesmo precedente, aduzindo:
“Havendo, portanto, sem qualquer dúvida, mora legislativa na regulamentação do preceito veiculado pelo artigo 40, § 4º, a questão que se coloca é a seguinte: presta-se, esta Corte, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia? […] A mora, no caso, é evidente. Trata-se, nitidamente, de mora incompatível com o previsto pela Constituição do Brasil no seu artigo 40, § 4º. […] Na Sessão do dia 15 de abril passado, seguindo a nova orientação jurisprudencial, o Tribunal julgou procedente pedido formulado no MI n. 795, Relatora a Ministra CÁRMEN LÚCIA, reconhecendo a mora legislativa. Decidiu-se no sentido de suprir a falta da norma regulamentadora disposta no artigo 40, § 4º, da Constituição do Brasil, aplicando-se à hipótese, no que couber, disposto no artigo 57 da Lei n. 8.213/91, atendidos os requisitos legais. Foram citados, no julgamento, nesse mesmo sentido, os seguintes precedentes: o MI n. 670, DJE de 31.10.08, o MI n. 708, DJE de 31.10.08; o MI n. 712, DJE de 31.10. 08, e o MI n. 715, DJU de 4.3.05. Na ocasião, o Tribunal, analisando questão de ordem, entendeu ser possível aos relatores o exame monocrático dos mandados de injunção cujo objeto seja a ausência da lei complementar referida no artigo 40, § 4º, da Constituição do Brasil. Julgo parcialmente procedente o pedido deste mandado de injunção, para, reconhecendo a falta de norma regulamentadora do direito à aposentadoria especial dos servidores públicos, remover o obstáculo criado por essa omissão e, supletivamente, tornar viável o exercício, pelos substituídos neste mandado de injunção, do direito consagrado no artigo 40, § 4º, da Constituição do Brasil, nos termos do artigo 57 da Lei n. 8.213/91”. (grifo nosso).
Todavia, o Ministro Ricardo Lewandowski, oito meses após, em 14 de dezembro de 2009, sensível aos argumentos levantados em Agravo Regimental pelo governo do Distrito Federal ainda daqueles autos do Mandado de Injunção 895, reviu totalmente sua decisão, desta feita para reconhecer que os servidores policiais já teriam garantida aposentadoria especial, pela Lei Complementar Federal nº 51/1985, aos 30 anos de serviço, dos quais 20 sejam em serviço policial; dizia agora o Ministro:
“Bem examinados os autos, entendo que o agravo merece acolhida. Isso porque o mandado de injunção não é a via correta para alcançar o desiderato pretendido pelo Impetrante. Com efeito, dispõe o art. 5º, LXXI, da Constituição, que: ‘conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania’. Ora, no caso dos autos há norma que regulamenta a aposentadoria especial para os policiais civis (Lei Complementar 51/1985). Assim, se há norma regulamentadora, não há que falar na ausência que permite o ajuizamento dessa garantia constitucional. Isso posto, dou provimento ao agravo, para negar seguimento ao mandado de injunção (MI 895 AgR/DF, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, decisão monocrática. DJE 29.1.2010).” (grifo nosso novamente).
A despeito de que não se dera conta da Lei Complementar Federal nº 51/1985 ao julgar o Mandado de Injunção nº 795-1/DF, em 15 de abril de 2009, quando seu voto convencera o tribunal e conduzira à decisão unânime, agora mais incisiva e apresentando fundamentação mais atenta, em 19 de abril de 2010, a Ministra Cármen Lúcia julga o Mandado de Injunção nº 2.696[5], impetrado pelo Delegado de Polícia Federal João Carlos de Albuquerque Valença, e para tanto agora lança mão da Lei Complementar Federal nº 51/1985:
“9. Por comprovadamente exercer atividade de risco, o Impetrante tem direito à aposentadoria especial nos termos do inc. II, do art. 40, § 4º, da Constituição da República. Contudo, as circunstâncias específicas as quais se submete já foram objeto de regulamentação pela Lei Complementar 51, de 20 de dezembro de 1985. A lei complementar necessária à integração normativa do art. 40, § 4º, inc. II, da Constituição da República, viabilizadora do direito à aposentadoria especial pelo exercício de atividade de risco por policial, não apenas existe, mas teve sua recepção reconhecida pelo Supremo Tribunal, pelo que tem eficácia e deve gerar os efeitos nela previstos. […] 13. Diante da existência de lei complementar que estabelece critérios diferenciados para a aposentadoria especial do servidor policial, inviável o presente mandado de injunção, uma vez que não está caracterizada a lacuna legislativa necessária ao seu cabimento. 14. Pelo exposto, nego seguimento ao mandado de injunção (art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Publique-se. Brasília, 19 de abril de 2010.”
Assim revistos os fundamentos jurídicos que versam sobre o tema, nessa nova esteira, em 20 de agosto de 2010, o Ministro Gilmar Mendes, julgando o Mandado de Injunção nº 1993/DF, impetrado pelo policial civil Eduardo Bernardes Vieira, reafirmou que aos policiais civis já é assegurada aposentadoria especial nos termos da art. 1º da Lei Complementar 51/1985[6]. Ressaltou o Ministro Gilmar Mendes que o tema já fora resolvido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 3.817), de relatoria da mesma Ministra Cármen Lúcia, já em 2 de abril de 2009, e citou os referidos precedentes denegatórios de lavra Ministro Ricardo Lewandowski e Ministra Cármen Lúcia. Na mesma data Gilmar Mendes[7], no Mandado de Injunção nº 773, impetrado em 03 de outubro de 2007 pelo Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo – SINDPESP, repete os mesmos argumentos para deixar claro o descabimento de aplicação das regras do Regime Geral da Previdência Social às categorias policiais e a inexistência de lacuna legislativa, posto que a Lei Complementar nº 51/85 foi recepcionada pela Constituição de 1988 e vige em sua plenitude já assegurando regra especial de aposentadoria aos servidores dessa atividade de risco:
“Essa orientação tem sido aplicada por Ministros desta Corte para negar seguimento a casos de mandado de injunção impetrados por policiais, em razão da inexistência de omissão legislativa. Nesse sentido, citem-se as seguintes decisões monocráticas: MI-AgR 895, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1º.2.2010; e MI 2.696, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 3.5.2010. […] No presente caso, verifico que o direito constitucional que os substituídos do impetrante pretendem exercer – aposentadoria especial (art. 40, § 4º, inciso II, da Constituição) – está regulamentado pelo inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 51/1985, recepcionada pela Constituição de 1988. Portanto, não havendo omissão legislativa a ser sanada, o presente writ é manifestamente incabível. Ante o exposto, nego seguimento ao presente mandado de injunção (art. 21, § 1º, do RI/STF). Publique-se. Brasília, 20 de agosto de 2010. Ministro GILMAR MENDES – Relator.”
2 O posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: idêntico vai e vem…
No estado de São Paulo a história não foi tão diferente; Sandra Lopes Cardoso Parejo, Técnica de Enfermagem, servidora pública civil do estado de São Paulo, lotada na Seção Técnica de Enfermagem Berçário e UTI Neonatal da Universidade Estadual Paulista – Campus de Botucatu, impetrou perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo o Mandado de Injunção nº 168.151-0/5-00 pleiteando o mesmo direito à aposentação especial nos termos decididos pelo Supremo Tribunal Federal (MI 721-7/DF). No Tribunal, em 1º de abril de 2009, o Desembargador ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO, seguindo o mesmo entendimento do STF, de que se tratava de caso de mora legislativa, acrescentou que a matéria – previdência social – situando-se no campo da competência concorrente[8], permitiria que o estado de São Paulo, diante da ausência de norma geral federal, legislasse com plena competência[9], do que se concluiu pela mora legislativa estadual para, ao final, garantir aposentadoria especial nos mesmos termos do artigo 57 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 (Regime Geral da Previdência Social), assentando, ainda, o efeito “erga omnes”:
“Assim fundamentou o Desembargador Relator, sendo seguido pela maioria: “Nesse lanço, cabe observar que a decisão proferida em sede de mandado de injunção não difere, em substância, àquela prolatada no exercício do controle abstrato de omissão legislativa, até e porque tais pronunciamentos encerram conteúdo mandamental ao legislador, porquanto destinadas à obtenção de ordem judicial dirigida a outro órgão estatal, como já consolidado no Supremo Tribunal Federal, desde o mandado de injunção nº 107/DF, razão pela qual se mostra possível a concessão de efeitos erga omnes, como proposto. […] Assim, razoável a adoção de efeitos erga omnes, mesmo porque, consoante o afirmado pelo Min. Gilmar Mendes nos autos do MI 670/DF, a solução alvitrada por essa posição não desborda da vontade hipotética do legislador, na medida em que se cuida de adotar, provisoriamente, para o âmbito de aposentadoria e contagem de tempo para tal benefício, as regras previstas na Lei nº 8.213/91”; entretanto, como voto vencido nessa questão, registrou o Desembargador Luiz Elias Tâmbara: “Enfim, é preciso atentar para a relevante circunstância de que o Supremo Tribunal Federal, por ser a maior Corte Constitucional do país, de âmbito nacional, dispõe de poderes mais amplos expressamente previstos na Constituição Federal, não só quanto à extensão dos efeitos de suas decisões proferidas em mandado de injunção, como no tocante à aprovação de súmula vinculante. Ao Tribunal de Justiça compete tão somente julgar o mandado de injunção nos estritos limites do pedido deduzido pelo impetrante individualmente qualificado na petição inicial”.
Viu-se em sede do Supremo Tribunal Federal que a jurisprudência evoluíra para num primeiro momento reconhecer a recepção da Lei Complementar Federal nº 51/1985 (ADI nº 3.817, julgada em 13 de novembro de 2008) e em seguida declará-la, no caso das carreiras policiais, a norma regulamentadora do art. 40, § 4º, da Constituição brasileira (MI 895 AgR/DF; MI 2.696; MI 2.518; MI 2.286; MI 1993; MI 2.387; MI 1.899 e MI 806); todavia, em terras paulistas o Desembargador HENRIQUE NELSON CALANDRA, sem atenção ao precedente da Corte Constitucional, em 22 de setembro de 2009 ainda seguia o entendimento de que a lei não fora recepcionada (Apelação Cível com Revisão n° 385.141-5/0-00), calcado em precedentes pretéritos da mesma Segunda Câmara de Direito Público:
“Ocorre que tal Lei Complementar nº 51/85 não foi recepcionada pela Carta Magna, por isso vedada sua aplicação ao caso presente, porque após a promulgação da EC n. 20/981 há necessidade de lei complementar para os casos de aposentadoria especial em razão do exercício de atividades insalubres. (TJSP – 2ª. Câmara de Direito Público. – Ap. n.° 393.183.5/5-00 – Relator: Lineu Peinado – 29.05.2007).”
Daniel Rodrigues Coutinho, policial militar paulista, impetrou o Mandado de Injunção n° 990.10.037533-4, ao que Desembargador RENATO NALINI, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no em 25 de agosto de 2010, proferiu mais um voto condutor à unanimidade, para reconhecer identidade do caso ao julgado no emblemático Mandado de Injunção n° 168.151.0/5-00, relatado pelo Desembargador ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO, não só reconheceu a todos os servidores públicos estaduais que exerçam atividade de risco ou insalubre, neles se incluindo os militares do estado – é exatamente o caso do impetrante – o direito a reclamar diretamente à Administração Pública a aposentadoria especial aos 25 anos de serviço:
“Todo o funcionalismo bandeirante pode se beneficiar da decisão então proferida, pois este Colendo Órgão Especial perfilhou a mais lúcida e abrangente orientação de que ao Judiciário incumbe fazer valer a Constituição e não apenas declarar a mora do Poder omisso. […] Nada se criou, pois foi o constituinte que disciplinou a aposentadoria especial a que o servidor tem direito. Por isso é que o efeito erga omnes que deflui do julgamento mencionado e acompanhado em outros precedentes, conforme assinala a Ilustrada Procuradoria Geral de Justiça, já estendeu ao impetrante o direito que pretendeu obter por esta injunção. Não desconhece o Governo o teor dessas decisões exaradas no âmbito do Colendo Órgão Especial e, portanto, qualquer servidor interessado poderá delas se valer, bastando recorrer administrativamente ao seu superior hierárquico”.
Mais específico ainda foi o Desembargador ARTUR MARQUES, julgando em 17 de novembro de 2010, o Mandado de Injunção n° 990.10.040639-6, da Comarca de São Paulo, impetrado pelo policial militar paulista Eliseu Pessoa da Silva, no qual reconheceu que, à despeito do que dispõe o Decreto n° 260/70, o decidido no Mandado de Injunção n° 168.151.0/5-00 também se aplica aos militares do estado; afirmando em seu voto “[…] como já houve reconhecimento do direito de o servidor público estadual, civil ou militar, obter a contagem de tempo de serviço especial na razão direta da periculosidade a que se encontra exposto, […]”, tendo-se em conta, inclusive, o disposto nos artigos 138 e 126 da Constituição do Estado de São Paulo[10]. O acórdão restou assim ementado:
“Mandado de Injunção – Regulamentação de aposentadoria especial – servidor público estadual – policial militar – direito reconhecido com efeito “erga omnes” em impetração precedente – impetração prejudicada. O policial militar é, para todos os efeitos, servidor público estadual (art 42, CF) e ainda seu regime estatutário seja diferenciado em relação aos servidores civis, submete-se, à míngua de regramento especifico, aos mesmos critérios para aposentadoria especial estabelecidos ao servidor civil, como se infere do art 138, § 2º c/c art 126, § 4º, ambos da Constituição Bandeirante. Nesse caso, como já houve reconhecimento do direito de o servidor público estadual, civil ou militar, obter a contagem de tempo de serviço especial na razão direta da periculosidade a que se encontra exposto (art 57, da Lei nº 8213/91), resta que apresente impetração encontra-se irremediavelmente prejudicada.”
Entretanto, no mesmo dia 17 de novembro de 2010, julgando o Mandado de Injunção na 990.10.037531-8, da Comarca de São Paulo, em que foi impetrante o policial militar Antônio Adriano Santoni, o Desembargador Relator BARRETO FONSECA deu nova direção ao posicionamento do Tribunal, agora para, à semelhança do que fizera o STF quando passara a reconhecer a Lei Complementar Federal nº 51/1985 como norma regulamentadora da aposentadoria especial prevista no art. 40, § 4º, da Constituição Federal, reconhecer no Estado o Decreto-Lei nº 260, de 29 de maio de 1970[11], como norma correspondente:
“Todos os militares do Estado percebem o adicional de insalubridade, criado pela Lei complementar paulista nº 432, dos 18 de dezembro de 1985, com base no Boletim Geral ns. 140, dos 27 de julho de 1992, o que demonstra que as atividades de risco por eles exercidas, ou as atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, já foram consideradas quando o Decreto-lei paulista nº 260/70 fixou em trinta anos o tempo de serviço necessário para a aposentadoria voluntária com vencimentos integrais.”
Neste mesmo julgado, o Desembargador RENATO NALINI revê por completo sua interpretação para, agora, acompanhando o Desembargador Relator BARRETO FONSECA, consignar em seu voto:
“O regime de previdência dos policiais militares, em São Paulo, se rege pelo decreto-lei 260, de 29 de maio de 1970. A praça, que é o caso do autor, è reformada com trinta anos de efetivo serviço, com vencimentos e vantagens integrais da graduação. Veja-se o art. 28. Quer dizer que a aposentadoria especial, possível tanto para os servidores federais como estaduais, não se estende para os policiais militares. E não se aplica por motivo muito simples. Eles já possuem aposentadoria especial. Enquanto os servidores civis (vale para os federais e para os estaduais), para a aposentadoria por tempo de contribuição, precisam cumprir quatro requisitos (35 e 30 anos de contribuição, 60 e 55 de idade, respectivamente homem e mulher, 10 de serviço público e 5 no cargo), o policial militar apenas necessita de um, 30 anos de contribuição, seja homem ou mulher.”
O Desembargador EROS PICELI, julgando, no mesmo dia 17 de novembro de 2010, o Mandado de Injunção n° 994.09.231125-4, em que fora impetrante o policial militar Afonso Donizete dos Santos, seguiu a nova tendência do tribunal, sendo mais pedagógico em seu voto para, ao final, denegar o pedido:
“O problema é que o art. 40 não foi regulamentado pelo Poder Executivo. Diante dessa omissão, o Supremo Tribunal Federal, por meio do mandado de injunção 721, julgado em 30.8.2007, relator Marco Aurélio, Pleno, determinou que fossem aplicadas aos servidores públicos civis federais as mesmas regras da aposentadoria especial dos trabalhadores comuns, do art. 57 da lei federal 8.213. Em São Paulo, o art. 126 § 4º da Constituição do Estado repete o art. 40, § 4º da Constituição Federal. Como também não possui regulamentação, isto é, há previsão de aposentadoria especial para os servidores civis estaduais, mas não a lei a disciplinar o comando constitucional, este Órgão Especial entendeu de forma idêntica e determinou, no julgamento do mandado de injunção 168.151-0/5-00, de 1.4.2009, relator Matias Coltro, a aplicação daquelas normas para os servidores públicos civis. O efeito também foi ‘erga omnes’. Todas estas colocações foram necessárias para que se entenda que o caso concreto aqui discutido não guarda identidade com os precedentes citados. Aqui, trata-se de policial militar que não se enquadra no art. 40 da Constituição Federal, portanto, também não se submete aos artigos 124 e seguintes da Constituição do Estado. Como a Polícia Militar do Estado também possui regime próprio, previsto no art. 141 da Constituição do Estado, fica evidente que não se pode estender os precedentes citados, seja do Supremo Tribunal Federal, seja deste Órgão Especial deste Tribunal de Justiça, para os policiais militares, sem estudo mais profundo sobre o regime de seus componentes. O regime de previdência dos policiais militares, em São Paulo, se rege pelo decreto-lei 260, de 29 de maio de 1970. A praça, que é o caso do autor, é reformada com trinta anos de efetivo serviço, com vencimentos e vantagens integrais da graduação. Veja-se o art. 28.”
Contudo, em 06 de dezembro de 2010, o Juiz MARCELO SÉRGIO, da 2ª Vara da Fazenda Pública, no processo 0036773-36.2010.8.26.0053, impetrado pelo policial militar estadual Eliseo dos Santos Queiroz contra o Diretor de Pessoal da Polícia Militar do Estado de São Paulo, certamente não tendo em conta os precedentes mais recentes e que apontam no sentido absolutamente diverso (MI 994.09.231125-4, Desembargador EROS PICELI; MI 990.10.037531-8, Desembargador Relator BARRETO FONSECA, ambos decididos em 17 de novembro de 2010), citando precedentes superados pelo Órgão Especial do Tribunal paulista, assim fundamentou sua sentença concessiva da segurança:
“De fato, com o advento da Emenda Constitucional n° 18/98, o militar passou a ter regime jurídico próprio, o que teria afastado a aplicação de normas destinadas aos servidores públicos civis, ressalvada previsão em sentido contrário. Ou seja, os Policiais Militares, embora sejam, em sentido amplo, servidores públicos, têm regime jurídico próprio, somente sendo possível a extensão de benefício concedido aos servidores públicos civis quando houver expressa determinação legal. Então, necessário verificar se seria possível a interpretação defendida pelo Impetrante, Policial Militar. […] Aliás, a possibilidade de os servidores militares serem agraciados com o mesmo benefício está prevista no art. 138, § 2º, da Constituição Estadual, conforme referido no voto acima copiado. Em conclusão, enquanto não estabelecido pelo legislador estadual infraconstitucional regras especificas para a aposentadoria especial do servidor militar, devem ser aplicadas as regras do regime geral de previdência” (Lei Federal nº Lei n° 8213/91, c.c. o Decreto Federal nº 4.827/2003).
3 Considerações finais: a competência legislativa de iniciativa reservada e a uniformização da jurisprudência
Como se viu, a regra previdenciária brasileira é a da não adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos servidores públicos em geral, exceção feita aos casos de portadores de deficiência, daqueles que exerçam atividades de risco e, por fim, daqueles cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. (Emenda Constitucional nº 47, de 2005, que alterou o artigo 40, § 4º da Constituição Federal). Não obstante, essa norma constitucional ainda carece de regulamentação.
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 472, apresentado em 28 de abril de 2009, pelo Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá, que cuida de regulamentar a aposentadoria especial nos casos de “atividades exercidas exclusivamente sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integralidade física”; o projeto, portanto cuida somente da hipótese de aposentadoria especial disposta no incido III, do § 4º, do artigo 40 da Constituição Federal (“atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”), deixando ainda sem regulamentação o caso das “atividades de risco” (incido II, do § 4º, do artigo 40), nas quais se inserem as carreiras policiais.
Entretanto, parece-nos que o referido projeto nasce padecendo de vício de iniciativa; ora, tema – regime previdenciário dos servidores públicos e militares dos Estados e Distrito Federal – é de competência legislativa concorrente, cabendo à União a edição de normas gerais e aos Estados a competência suplementar, diante de norma federal, ou a competência plena, em caso de inexistência de lei complementar federal. Entretanto, a iniciativa de projetos sobre esse tema é privativa do Presidente da República[12] nos termos do disposto no artigo 61, § 1º, II, c) e f) e, no Estado de São Paulo, por simetria, ela é exclusiva do Governador[13] nos termos artigo 24, § 2º, 4 e 5.
No plano judiciário, ao que se vê, o Supremo Tribunal Federal já tem bem definido, desde a decisão proferida no Mandado de Injunção 721-7/DF até aquela tomada no Mandado de Injunção nº 1993/DF, que a mora legislativa em torno do art. 40, § 4º da Constituição Federal deve ser suprida pelo emprego provisório do art. 57 da Lei Federal 8.213, e tão somente aos servidores públicos civis, sejam da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, excetuados, ainda, os das carreiras policiais (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal e polícias civis estaduais), conquanto a estes já estaria assegurado tratamento previdenciário especial pela Lei Complementar Federal nº 51/1985, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.817 (Rel. Min. Cármen Lúcia, 13.11.08, Informativo STF nº 528).
No plano estadual paulista a aposentadoria dos policiais civis seguiu as mesmas regras do Regime Geral da Previdência Social a partir da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003 e somente em 2008 passaram a ter tratamento especial com a edição da Lei Complementar Estadual nº 1.062/08, após o advento da Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005, que à semelhança do disposto no plano federal pela Lei Complementar Federal nº 51/1985, lhes garantiu aposentadoria voluntária aos 55 anos de idade, se homem, e 50 anos de idade, se mulher, desde que contem com 30 anos de contribuição previdenciária e 20 anos de efetivo exercício em cargo de natureza estritamente policial:
“Lei Complementar Paulista nº. 1.062/08.
Artigo 2º – Os policiais civis do Estado de São Paulo serão aposentados voluntariamente, desde que atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I – cinquenta e cinco anos de idade, se homem, e cinquenta anos de idade, se mulher;
II – trinta anos de contribuição previdenciária;
III – vinte anos de efetivo exercício em cargo de natureza estritamente policial.
Artigo 3º – Aos policiais que ingressaram na carreira policial civil antes da vigência da Emenda Constitucional nº. 41, de 19 de dezembro de 2003, não será exigido o requisito de idade, sujeitando-se apenas à comprovação do tempo de contribuição previdenciária e do efetivo exercício em atividade estritamente policial, previstos nos incisos II e III do artigo 2º desta lei complementar.”
No caso dos membros das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares estes passaram imunes às reformas constitucionais da previdência[14], mantendo-se suas regras inalteradas graças à condição de “militares dos estados” e regime previdenciário próprio assegurados pela Emenda Constitucional nº 18, de 5 de fevereiro de 1998 (Dispõe sobre o regime constitucional dos militares):
“Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores. § 2º Aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em lei específica do respectivo ente estatal. […]
Art. 142, § 3º, X – a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por forca de compromissos internacionais e de guerra. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 5 de fevereiro de 1998).”
Assim, a essa categoria, no estado de São Paulo, prevaleceu vigente o Decreto-Lei nº 260, de 29 de maio de 1970, garantindo a “passagem para a reserva e a reforma” (reserva e reforma são termos equivalentes à aposentadoria) voluntariamente aos 30 anos de serviço:
“Decreto-lei 260, de 29 de maio de 1970.
Artigo 1.º – A inatividade dos componentes da Polícia Militar do Estado de São Paulo é regulada por este decreto-lei.
Artigo 2.º – Para os efeitos deste decreto-lei: I – inatividade é a situação do policial-militar afastado temporária ou definitivamente do serviço ativo da corporação; […]
Artigo 15 – Reserva é a situação da inatividade do Oficial sujeito à reversão ao serviço ativo. […]
Artigo 27 – Reforma é a situação do policial-militar definitivamente desligado do serviço ativo. Parágrafo único – O Oficial é reformado “ex-officio” e a Praça a pedido e “ex-officio”. […]
Artigo 17 – A transferência para a reserva a pedido poderá ser concedida ao Oficial que: I – contar, no mínimo, 30 (trinta) anos de efetivo serviço com vencimentos e vantagens integrais do posto; […]
Artigo 28 – A reforma, a pedido, poderá ser concedida à Praça que contar, no mínimo, 30 (trinta) anos de efetivo serviço, com vencimentos e vantagens integrais da graduação.”
Aparenta-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foram “tomados de surpresa” para enfrentar a questão previdenciária do funcionalismo público, que por si já historicamente se mostra no campo legislativo e constitucional cercada pelos fantasmas do direito adquirido e das regras de transição entre um velho e um novo modelo. Mas se de um lado as relações jurídicas sofrem tensões de ordem social e política que são re-equilibradas ao longo do processo legislativo e assim, de certa forma, dão tempo à mudança de paradigmas até que ao final se ponham no universo jurídico como normas válidas, o mesmo fenômeno não se espera ocorrer no plano dos tribunais.
É certo que também a jurisprudência evolui, mesmo sem que tenha ocorrido alteração normativa, pois é o Judiciário que dá vida à norma abstrata e protagoniza um lento processo de calibração, mas esse fenômeno deve se diluir ao longo do tempo para finalmente se consolidar como norma e fonte de direito. Isso é a base da segurança jurídica e da segurança das relações jurídicas.
Como se admitir que, após ter julgado a ADI nº 3.817 em 13 de novembro de 2008 e proclamar a recepção da Lei Complementar Federal nº 51, de 1985, a Ministra Cármen Lúcia, no Mandado de Injunção nº 795-1/DF, em 15 de abril de 2009 (5 meses após) conduza o Plenário a esquecer a validade dessa norma e proclamar lacuna e mora legislativa? Também o Ministro Ricardo Lewandowski, no Mandado de Injunção nº 895, em 22 de abril de 2009, ao julgar nos mesmos termos e com idêntico fundamento postos pela Ministra Cármen Lúcia e, 14 de novembro de 2009, diante do agravo interposto, voltar os olhos à então esquecida Lei Complementar Federal nº 51/1985.
Veja-se que em São Paulo atuaram nos referidos julgamentos perante o Órgão Especial[15] do Tribunal de Justiça os mesmos Desembargadores[16], que julgando questões de fundo constitucional apresentaram decisões absolutamente contrapostas. Poder-se-ia argumentar que ocorreu o fenômeno de “evolução da jurisprudência”, mas como se admitir que isso ocorra num mesmo dia, pois que em 17 de novembro de 2010 o Desembargador ARTUR MARQUES (MI n° 990.10.040639-6) conduz o Órgão Especial à unanimidade para reconhecer que os policiais militares tem direito à aposentação especial em 25 anos, nos termos da Lei Federal nº 8213/91, c.c. o Decreto Federal nº 4.827/2003, diante da mora legislativa em regulamentar o disposto no artigo 40, § 4º da Constituição Federal e seu correspondente simétrico artigo 138, § 2º, da Constituição Estadual paulista, enquanto no MI 994.09.231125-4 o Desembargador EROS PICELI e no MI 990.10.037531-8 o Desembargador Relator BARRETO FONSECA conduzem o mesmo Órgão Especial da Corte à decisão unânime em sentido absolutamente contrário.
Sobre o tema, não nos parece haver mais espaço argumentativo para que policiais, civis, militares e federais, busquem sua pretensão de aposentadoria especial aos 25 anos, na forma estabelecida no Regime Geral da Previdência Social (Lei Federal nº 8213/91, c.c. o Decreto Federal nº 4.827/2003), sustentando mora legislativa federal e estadual em regulamentar o disposto no artigo 40, § 4º da Constituição Federal e seu correspondente simétrico artigo 138, § 2º, da Constituição Estadual paulista.
Restaria, interessante, perante o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, pôr-se a termo o cipoal criado, por meio de “Incidente de Uniformização de Jurisprudência”, na forma do disposto no Código de Processo Civil[17] e no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[18], ao menos para evitar que a insegurança jurídica persista levando magistrados da primeira instância a prolatarem decisões que serão reformadas, e que cidadãos – mal informados e quiçá mal representados – se alimentem de um sonho, embalado pelos próprios tribunais, que já acabou.
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Mestre em Direito pela Universidade de Franca. Especialista em Segurança Pública pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autor de “Teoria e prática policial aplicada aos juizados especiais criminais” (2. ed. São Paulo: Suprema Cultura, 2006), “Fundamentos Jurídicos da Atividade Policial” (São Paulo: Suprema Cultura, 2009) e co-autor de “Constituição Federal Interpretada” (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa [Coord]. São Paulo: Manole, 2010).
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