Resumo: Este artigo tem como finalidade precípua analisar a classificação da visão monocular como deficiência visual. Para alcançar tal escopo, faz-se uma abordagem da evolução histórica concernente à tutela dos direitos das pessoas com deficiência, procede-se, na sequência, a um estudo sobre a conceituação da pessoa com deficiência, para, ao cabo, categorizar o possuidor de visão monocular como pessoa com deficiência, amparando-se juridicamente em diversos documentos internacionais e nacionais, além de inúmeros precedentes jurisprudenciais dos Tribunais Superiores.
Palavras-chave: Fases. Conceito. Visão monocular. Deficiência visual.
Abstract: This article has as main purpose to analyze the classification of monocular vision as visual impairment. To achieve this scope, it is an approach to historical evolution concerning the protection of the rights of persons with disabilities should be carried out as a result, a study on the concept of the disabled, for, at the end, categorize the possessor of monocular vision as a person with disabilities, supporting her legally in several national and international documents, as well as numerous precedents of the Superior Courts.
Keywords: Phase. Concept. Monocular vision. Visual impairment.
Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica. 1.1 Segregação. 1.2 Assistencialismo. 1.3. Integração. 1.4 Inclusão. 2. Conceito de pessoa com deficiência. 3. Visão monocular como espécie de deficiência visual. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO:
As pessoas com deficiência têm sido vítimas das mais variadas formas de discriminações ao longo dos tempos. No Brasil, essa realidade atinge, também, as pessoas com visão monocular, que, de forma errônea, ainda não são reconhecidas de forma unânime como pessoas com deficiência visual.
O presente trabalho tem como desiderato primeiro demonstrar que a visão monocular é sim uma modalidade de deficiência visual à luz dos conceitos positivados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/15), bem como nos muitos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Para tanto, de início, far-se-á uma digressão histórica sobre a proteção dos direitos das pessoas com deficiência, detalhando quatro estágios principais, a saber: segregação, assistencialismo, integração e inclusão.
Na sequência, analisam-se os diversos conceitos de pessoa com deficiência traçados pelos documentos internacionais e nacionais no decorrer das últimas décadas, culminado com as definições consagradas na Convenção sobre os Direitos das pessoas com Deficiência e na Lei 13.146/15, as quais devem prevalecer hodiernamente, por se pautarem nos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, promovendo a tão almejada inclusão social das pessoas com deficiência.
Por fim, aborda-se a acertada inserção das pessoas com visão monocular na definição de pessoa com deficiência, à luz do ordenamento jurídico pátrio, visto que as pessoas com visão monocular possuem impedimentos que em conjunto com as muitas barreiras sociais podem marginalizá-las.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA:
Na história da humanidade, sempre se constatou a existência de pessoas com deficiência, variando o tratamento dispensado a esses seres humanos ao longo dos séculos e de acordo com cada cultura.
Pode-se afirmar que existem basicamente quatro fases relativas à proteção dos direitos das pessoas com deficiência.
1.1 SEGREGAÇÃO:
O primeiro período é o da segregação, marcado sobremaneira pela intolerância às pessoas com deficiência, as quais eram abandonadas à própria sorte, eliminadas ou excluídas do convívio social, sofrendo inúmeras formas de discriminação. Essa etapa perdura dos primórdios da civilização até a Idade Moderna.
Os povos primitivos, em sua grande maioria, abandonavam ou exterminavam as pessoas com deficiência, visto que as tribos eram majoritariamente nômades, condição que dificultava ou mesmo impossibilitava o deslocamento das pessoas com deficiência por longas distâncias.
Os hebreus enxergavam as pessoas com deficiência como indignas ou impuras, sendo a deficiência proveniente ou de um pecado divino ou de possessões demoníacas. A discriminação era aberta e prevista, inclusive, nas leis hebraicas.
Em Roma, era bastante comum o desprezo ou homicídio de pessoas que apresentassem algum tipo de deficiência. A Lei das XII Tábuas determinava que o próprio genitor matasse o filho com deficiência.
Na civilização grega, os destinos das pessoas com deficiência eram geralmente o abandono, como ocorria em Atenas, ou a morte, como acontecia principalmente em Esparta, onde as crianças que apresentavam alguma deformidade eram atiradas em precipícios.
Na Idade Média, acreditava-se que as pessoas com deficiência eram objeto de castigo divino, sendo alvo das mais variadas superstições e preconceitos e associadas à bruxaria ou possessões demoníacas. Em muitos casos, atribuíam-se a elas, também, todos os males da comunidade, como por exemplo, as pragas que dizimavam determinadas populações.
No decorrer dessa época, a Santa Inquisição foi responsável pela morte de diversas pessoas com deficiência, cujas malformações eram vistas como sinais malignos e/ou demoníacos.
Apesar desse cenário estarrecedor, ocorreu paulatinamente o fortalecimento dos ensinamentos de Jesus Cristo (amor ao próximo, humildade, piedade, etc) e as pessoas com deficiência passaram a ser vistas como filhas de Deus, sendo amparadas e alimentadas. Porém, vale frisar que as pessoas com deficiência, nesse período, continuavam excluídas do meio social, sendo vistas pela Igreja Católica e pela comunidade como criaturas indesejadas, devendo ficar segregadas, trancafiadas em asilos ou hospitais. A caridade consistia, em última análise, na marginalização social.
Na Idade Moderna, ocorreu a humanização do tratamento dado às pessoas com deficiência, primordialmente em decorrência da visão antropocêntrica característica do Renascimento.
Nesse contexto, houve o desenvolvimento de técnicas para educar indivíduos surdos, mudos, cegos e outras pessoas com deficiência, bem como a construção de Institutos na Europa com tal finalidade. É importante destacar que os tratamentos médicos das deficiências progrediram no sentido de se tornarem cada vez mais científicos e menos supersticiosos.
Apesar da significativa evolução, não ocorreu uma inserção consistente das pessoas com deficiência na sociedade, continuando muitas destas a viver excluídas.
1.2 ASSISTENCIALISMO:
O segundo estágio corresponde ao assistencialismo, que se estendeu do final do século XVIII ao século XIX. Nessa época, constatou-se um importante avanço no trato ofertado às pessoas com deficiência, visto que a sociedade passou a enxergá-las como sua responsabilidade e tentou dar os devidos cuidados aos indivíduos com deficiência.
Como exemplos dessa mudança de paradigma podem ser citadas a criação do Sistema Braille, em 1829, pelo francês Louis Braille, a fundação de diversas escolas para pessoas cegas e com outras deficiências na Europa, nos EUA e no Brasil (construção do Instituto dos Meninos Cegos – 1854 -, e do Imperial Instituto dos Surdos Mudos -1857)[1].
1.3 INTEGRAÇÃO:
A terceira fase é denominada de integração, surgindo no limiar do século XX e prolongando-se até a década de 1980.
A integração, em apertada síntese, é o processo que visa à adaptação da pessoa com deficiência à vida em sociedade, tomando como parâmetro o modelo médico da deficiência, isto é, o entendimento segundo o qual o cerne do problema está na pessoa com deficiência, que deve ser tratada para posteriormente se engajar no meio social[2].
Nas palavras de Sassaki, “o paradigma da integração social consiste em adaptarmos as pessoas com deficiência aos sistemas sociais comuns e, em caso de incapacidade por parte de algumas dessas pessoas, criarmos sistemas especiais separados para elas”[3].
A integração tem a sua origem relacionada com três fatores principais, a saber: a) as duas grandes guerras mundiais, que aumentaram exponencialmente o número de pessoas com deficiência e, em razão disso, provocaram o debate acerca da reabilitação dessas pessoas; b) a notoriedade que ganhou a teoria dos direitos humanos, principalmente após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), concorrendo para o fortalecimento da luta pelos direitos das pessoas com deficiência; e c) o desenvolvimento tecnológico, que permitiu, através dos mais variados inventos, que deficiências severas fossem amenizadas ou superadas, facilitando com isso a vida das pessoas com deficiência.
Importa ressaltar, ainda, que durante o período que abrange a integração, começam a surgir diplomas internacionais que visam a tutelar os direitos humanos das pessoas com deficiência, a exemplo da Declaração de Direitos do Deficiente Mental, de 20 de dezembro de 1971, e da Declaração de Direitos das Pessoas Deficientes, datada de 9 de dezembro de 1975. Nesse contexto histórico, o ano de 1981 foi considerado pela Organização das Nações Unidas como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, culminando com o Programa Mundial de Ação para Pessoas com Deficiência elaborado pela Assembleia Geral da ONU, em 1982. Ademais, o interregno que foi de 1983 a 1993 foi considerado pelas Nações Unidas como a Década Internacional das Pessoas Deficientes. Merece destaque, também, a Convenção 159, de 01 de junho de 1983, promulgada pela Organização Internacional do Trabalho sobre a reabilitação profissional e emprego de pessoas deficientes.
1.4 INCLUSÃO:
A quarta etapa é a chamada inclusão, que tem início na década de 1990 e perdura até os dias atuais. A inclusão requer uma mudança substancial na mentalidade dos cidadãos que integram a sociedade, na medida em que consiste na adaptação do ambiente social às pessoas com deficiência, a fim de que elas possam exercer os seus direitos de maneira integral.
Conceito bastante esclarecedor da fase supracitada é o elaborado por Sassaki, para quem:
“a inclusão consiste em adequar os sistemas sociais gerais da sociedade de tal modo que sejam eliminados os fatores que excluíam certas pessoas do seu seio e mantinham afastadas aquelas que foram excluídas. A eliminação de tais fatores deve ser um processo contínuo e concomitante com o esforço que a sociedade deve empreender no sentido de acolher todas as pessoas, independentemente de suas diferenças individuais e das suas origens na diversidade humana. Pois, para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros. O desenvolvimento, por meio da educação, reabilitação etc, das pessoas com deficiência deve ocorrer dentro do processo de inclusão e não como um pré-requisito, como se essas pessoas precisassem pagar ingressos para poderem fazer parte da sociedade (das escolas comuns, das empresas comuns etc)”.[4]
É oportuno salientar, também, que o paradigma da inclusão está intrinsecamente ligado ao modelo biopsicossocial da deficiência, ou seja, a sociedade deve romper as diversas barreiras que impedem a inclusão da pessoa com deficiência na comunidade[5].
Por fim, cumpre atentar para a elaboração de alguns diplomas mundiais consagradores de direitos das pessoas com deficiência, a exemplo da Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais (1994); a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala – 1999) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) e o seu Protocolo Facultativo.
2. CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA:
Inicialmente, deve-se observar que os conceitos de pessoa com deficiência elaborados no decorrer das últimas décadas fundamentaram-se em dois modelos principais.
As primeiras conceituações de pessoa com deficiência lastreavam-se no modelo médico, o qual entende ser a deficiência uma limitação corporal presente no indivíduo como uma patologia a ser tratada, isto é, a deficiência é analisada sob o viés estritamente médico, não se garantindo às pessoas com deficiência a dignidade inerente à sua condição de ser humano.
Conforme explica Lilia Pinto Martins:
“é importante salientar que não devemos colocar a deficiência dentro de uma concepção puramente médica, ficando associada exclusivamente à doença. Se bem que a deficiência possa ser causada por uma doença, ela não se caracteriza como doença, não devendo, portanto, ser confundida com uma das causas que a podem gerar, e que não a constitui de fato”[6]
Seguindo o paradigma médico, a Declaração de Direitos das Pessoas Deficientes, de 09/12/1975, no seu art. 1º, previu que:
“o termo pessoa portadora de deficiência, identifica aquele indivíduo que, devido a seus “déficits” físicos ou mentais, não está em pleno gozo da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial, suas necessidades vitais e sociais, como faria um ser humano normal”.
Ainda sob influência do conceito biomédico de deficiência, a Convenção 159/83 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto nº 129, de 22 de maio de 1991, no seu art. 1º, entendeu ser pessoa com deficiência:
“todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada”.
No âmbito interno, o Decreto 3.298/99 e o Decreto 5.296/04 que o alterou também comungavam da retrógrada visão médica para definir pessoa com deficiência. Nesse sentido, o Decreto 3.298/99, com redação dada pelo art. 70 do Decreto 5.296/04, preceitua, no seu art. 3º, I, que:
“deficiência é toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.
Felizmente, os diplomas internacionais que surgiram na sequência romperam com a definição exclusivamente médica de deficiência e inauguraram o modelo biopsicossocial, estabelecendo que a caracterização da deficiência está atrelada à interação existente entre os impedimentos da pessoa com deficiência e o ambiente no qual ela está inserida, vale dizer, a deficiência está na sociedade e não nas pessoas.
Compartilhando desse mesmo ponto de vista, Rosangela Berman Bieler afirma que:
“a deficiência é o resultado da interação de deficiências físicas, sensoriais ou mentais com o ambiente físico e cultural e com as instituições sociais. Quando uma pessoa tem uma condição que limita alguns aspectos do seu funcionamento, esta se torna uma situação de “deficiência” somente se ela tiver que enfrentar barreiras de acesso ao ambiente físico ou social que tem à sua volta. Em termos econômicos, a deficiência é uma variável endógena à organização social. Isso quer dizer que a definição de quem tem ou não uma deficiência não depende tanto das características pessoais dos indivíduos, mas também, e principalmente, do modo como a sociedade onde vivem organiza seu entorno para atender à população em geral”[7].
Com esteio nas ideias trazidas pelo paradigma funcional, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001, estipulou que a deficiência:
“significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social”.
Aderindo, também, ao modelo biopsicossocial, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi aprovada nos moldes do art. 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal de 1988 pelo Decreto Legislativo 186/08 e promulgada pelo Decreto 6.949/09, definiu pessoas com deficiência como sendo:
“aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
Por último, a Lei 13.146/15, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, baseando-se na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, traz o seguinte conceito de pessoa com deficiência no seu art. 2º:
“considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Atualmente, os conceitos de pessoa com deficiência que devem ser acolhidos são os previstos na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e no Estatuto da Pessoa com Deficiência, já que essas definições tratam a pessoa com deficiência como sujeito de direitos possuidores de dignidade, valorizando-se a sua condição de ser humano. Ademais, alinham-se ao modelo biopsicossocial segundo o qual só haverá a constatação da deficiência se houver a conjugação dos impedimentos físicos, sensoriais, intelectuais ou mentais da pessoa com deficiência (limitação funcional) aliados às barreiras urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações e nas informações, atitudinais e tecnológicas (fatores socioambientais) que reduzam ou obstem a participação social da pessoa com deficiência.
3. VISÃO MONOCULAR COMO ESPÉCIE DE DEFICIÊNCIA VISUAL:
Analisado o conceito de pessoa com deficiência, indaga-se se a pessoa com visão monocular enquadra-se nessa definição.
A visão monocular consiste na cegueira unilateral, isto é, a condição de um indivíduo enxergar com apenas um olho, devendo ser classificada como deficiência visual.
De acordo com Alves, Ávila e Nishi, a visão monocular “é definida como a presença de visão normal em um olho e cegueira no olho contralateral – acuidade visual inferior a 20/400 com a melhor correção visual[8]”. Afirmam, ainda, que:
“a visão monocular interfere com a estereopsia (percepção espacial dos objetos) permitindo examinar a posição e a direção dos objetos dentro do campo da visão humana em um único plano, ou seja, apenas em duas dimensões. Assim, pacientes com visão monocular reconhecem a forma, as cores e o tamanho dos objetos, mas têm dificuldade em avaliar a profundidade e as distâncias, características da visão tridimensional”[9].
Destarte, são inúmeras as limitações causadas pela cegueira monocular, estando quase sempre relacionadas à perda ou diminuição considerável das noções de distância e profundidade[10]. Podem ser citados como principais problemas enfrentados pelo indivíduo com visão monocular a) a dificuldade de locomoção, materializada pelo choque com objetos, pela dificuldade de acesso a certos lugares, pela complexidade em atravessar ruas e sinais de trânsito, etc; b) os distúrbios psicológicos, a exemplo da depressão, ansiedade, vergonha, medo, tristeza, sentimento de impotência, etc; c) os obstáculos sociais, verificados principalmente por meio da discriminação e d) os problemas laborais, visto que algumas profissões não podem ser exercidas pelo possuidor de visão monocular, a exemplo do motorista profissional, do médico cirurgião, dos pilotos de aeronaves, do controlador de tráfego aéreo, dentre outras.
Portanto, fica evidente que a visão monocular deve ser classificada como modalidade de deficiência visual, pois traduz impedimentos sensoriais que em conjunto com as diversas barreiras podem impedir a participação plena e efetiva do indivíduo no meio social em igualdade de condições com as demais pessoas.
Apesar disso, ainda existem adeptos da tese de que os monoculares não podem ser considerados pessoas com deficiência, apegando-se à literalidade de diplomas normativos consagradores do obsoleto paradigma médico de deficiência, a exemplo do Decreto 3.298/99, modificado pelo Decreto 5.296/04.
Contudo, esse posicionamento não pode prosperar, pois conflita nitidamente com o conceito biopsicossocial de pessoa com deficiência positivado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Compartilhando da ideia de ser o possuidor de visão monocular pessoa com deficiência, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 377, que afirma: “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”.
Corroborando o raciocínio inclusivo da Súmula do STJ, a Advocacia Geral da União publicou a Súmula de nº 45, que estabelece: “os benefícios inerentes à Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência devem ser estendidos ao portador de visão monocular, que possui direito de concorrer, em concurso, público, à vaga reservada aos deficientes”.
Nesse sentido, o PARECER CONJUR/MTE N. 444/2011 também entende que o monocular possui deficiência visual. Segundo o parecer:
“ante os argumentos expostos, entende-se, com base na Súmula STJ nº 377 e na Súmula AGU nº 45, além dos demais julgados proferidos pelos Tribunais pátrios, que os portadores de visão monocular devem ser considerados deficientes para fins de preenchimento da cota prevista no art. 93 da Lei 8.213, de 1991, independentemente da existência de lei estadual nesse sentido”.
Há ainda diversos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que confirmam o enquadramento da pessoa com visão monocular como pessoa com deficiência.
O STF, no julgamento do RMS 26.071-1/DF decidiu:
“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA VISUAL. AMBLIOPIA. RESERVA DE VAGA. INCISO VIII DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. § 2º DO ARTIGO 5º DA LEI Nº 8.112/90. LEI 7.853/89. DECRETOS Nº S 3.298/99 E 5.296/04.
1. O candidato com visão monocular padece de deficiência que impede a comparação entre os dois olhos para saber-se qual deles é o “melhor”.
2. A visão univalente – comprometedora das noções de profundidade e distância – implica limitação superior à deficiência parcial que afete os dois olhos.
3. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.
4. Recurso ordinário provido”.
Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça possui inúmeras decisões considerando a visão monocular uma espécie de deficiência visual[11]. A título exemplificativo, é importante citar o julgado RMS 22.613/RS:
“EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO DETENTOR DE VISÃO MONOCULAR. DIREITO A CONCORRER ÀS VAGAS DESTINADAS AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA.
1. O candidato portador de visão monocular enquadra-se no conceito de deficiência física, podendo concorrer às vagas de concurso público reservadas na forma prevista pelo art. 37, VIII, da Constituição Federal. Incidência da Súmula n. 377/STJ.
2. Recurso ordinário provido”.
Vale acrescentar, também, que a visão monocular é classificada como deficiência visual em várias leis estaduais[12]. À guisa de exemplo, traz-se à colação o teor do art. 1º, da Lei Estadual nº 10.664/18, do Estado do Mato Grosso, que preceitua: “Esta Lei classifica como deficiência visual a visão monocular, no âmbito do Estado de Mato Grosso, para todos os fins legais”.
Por último, é de salutar importância destacar que algumas Defensorias Públicas, como a de Santa Catarina e a do Rio de Janeiro categorizam a visão monocular como deficiência visual.
Nessa esteira, vale trazer à baila o art. 1º da Resolução CSDPESC nº 84, de 9 de março de 2018, da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, que resolve:
“assegurar às pessoas com visão monocular todos os direitos conferidos às pessoas com deficiência previstos na Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – Decreto nº 6.949/2009, na Lei nº 7.853/1989 e nos demais diplomas legais pertinentes, especialmente a prioridade no atendimento e a reserva de vagas nos concursos públicos da Defensoria Pública de Santa Catarina”.
Diante de todo o exposto, infere-se que a visão monocular é espécie de deficiência visual, garantindo-se, consequentemente, aos monoculares todos os direitos previstos na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, na Lei Brasileira de Inclusão e em todas as demais normas que compõem o ordenamento jurídico nacional.
CONCLUSÃO:
A visão monocular deve ser reconhecida como uma modalidade de deficiência visual, já que o monocular possui inúmeras limitações funcionais que concatenadas às barreiras sociais existentes podem vir a obstar a sua participação social em condições de igualdade com as demais pessoas.
Esse entendimento deve prevalecer por estar em perfeita consonância com os conceitos de pessoa com deficiência positivados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e no Estatuto da Pessoa com Deficiência, bem como em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e em inúmeras leis estaduais brasileiras.
Consequentemente, considerando-se a deficiência visual dos monoculares, deve-se estender a estes todos os direitos assegurados às pessoas com deficiência previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
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