Juan Pablo Ferreira Gomes[1]
Resumo: O presente trabalho se propõe a investigar a relação entre verdade, valor, prova e poder a partir da perspectiva da teoria do direito, aproximando a arqueologia discursiva do inquérito, ou “política da verdade”, proposta por Michel Foucault, em articulação com os materiais teóricos-discursivos acerca da noção de verdade e poder na obra de Nietzsche e os atuais mecanismos de dissuasão do conflito-litígio, bem como suas estratégias de obtenção (im)possível da verdade. Mais do que a assimilação de uma estrutura dogmática que pressupõe o “justo” diante do cumprimento da legalidade sob o verniz principiológico, o que se tem em jogo é identificar as estratégias de barganha da verdade no palco jurídico-processual, quais as relações de poder-dominação que ela forja, dissimula, qual o papel e a (ir) relevância da noção de prova na contemporaneidade. O que está em jogo quando se pretender buscar dentro de uma narrativa qualquer concepção que se tenha de verdade?
Palavras-chave: Verdade, Poder, Valor, Prova.
Abstract: The present work proposes to investigate the relationship between truth, value, evidence and power from the perspective of the theory of law, approaching the discursive archeology of the inquiry, or “the politics of truth”, proposed by Michel Foucault, in articulation with the materials discursive theorists about the notion of truth and power in Nietzsche’s work and the current mechanisms for dissuading litigation-conflict, as well as their strategies for obtaining the (im)possible truth. More than the assimilation of a dogmatic structure that presupposes the “fair” in the face of the fulfillment of legality under the principled veneer, what is at stake is to identify the truth bargaining strategies in the legal-procedural stage, which are the power relations -domination that it forges, conceals, what is the role and (ir) relevance of the notion of proof in contemporaneity. What is at stake when one intends to search within a narrative for any conception that one actually has?
Keywords: Truth, Power, Value, Evidence.
Sumário: Introdução; 1. Mecanismos de obtenção da verdade alcançável na narrativa processual; 2. O último homem e o exaurimento do conflito; Conclusão; Referências Bibliográficas.
Introdução
A ousadia-arbitrariedade do título introdutório se dá pela ambição de em cada passo proposto desta investigação não se escapar do norte perspectivo de uma desconstrução conceitual, da recusa assumida de qualquer viés dogmático ou preconcebido dos institutos abordados. Como no lampejo genioso de Levinas[2]:
“a palavra prefácio, que procura perfurar a tela entreposta entre o autor e o leitor pelo próprio livro, não é dada como uma palavra de honra. Está apenas na própria essência da linguagem que consiste em desfazer, em cada instante, a sua fase pelo preâmbulo, ou pela exegese, em desdizer o que foi dito, em tentar redizer sem cerimônias o que foi já mal entendido no inevitável cerimonial em que se compraz o dito”.
O que se tem em jogo é suspender as concepções de “verdade” e “prova”, colocando-as entre parênteses, suspendendo o juízo[3], epokhé, lançando-as num horizonte mais amplo: o surgimento-fabricação da verdade no pensamento Ocidental e na relação sujeito-objeto.
Ora, para além do truísmo terminológico que se tem da concepção de prova enquanto veículo condutor de um juízo processual analítico, a prova testemunha uma pretensão, uma crença pressuposta: a verdade (seja de qual ordem for) é tangível, apreensível, alcançável dentro de um sistema-método, processo, desde que cumpridos determinados ritos-requisitos, atendida determinada forma, observada certa liturgia.
É inevitável deduzir que tal pressuposição, ou juízo apriorístico tomado arbitrariamente conforta o julgador, jurista, exegeta do desconforto em lidar com a inquietude de se conceber que quase nada do que lhe é dado enquanto material teórico-jurídico seja capaz de lhe afiançar a garantia de afugentar o elemento da indeterminação (radical ou não) existente em todo processo decisório que se pretende fundar em premissas que se julgam verdadeiras.
O que se esconjura em si é o “sofrimento da desconstrução” como salientaria Derrida, o questionamento se, a “vontade de verdade” (Nietzsche), dentro de uma “política da verdade” (Foucault), não traduziria melhor a genealogia do direito do que qualquer historiografia sistematizante que busca inserir a história da prova e do processo como o consequente resultado de um longo e evolutivo avanço racional.
Para além dos cuidados ou reservas que se tenham quanto ao peso que o próprio Foucault deu ao resultado de seu ciclo de palestras realizadas no Brasil, entre 21 e 25 de maio de 1973, conhecido como “As Verdades e as Formas Jurídicas”[4], neste trabalho que encontramos a imediata relação entre a análise do discurso que o pensador estava a se deter e o tema que nos é caro: a genealogia da prova e do processo.
Em tais conferências, Foucault antecipa questões que mais tarde seriam desenvolvidas em Vigiar e Punir (1975), além de propor uma leitura epistemológica de Nietzsche, a revelação da existência de uma tensão entre prova e inquérito na antiguidade greco-romana através de uma fascinante análise do Édipo de Sófocles e a hipótese de um processo ternário, articulando as formas de produção da verdade no Ocidente.
O que se tem expresso é a demonstração do vínculo entre os sistemas de verdade e as práticas sociais e políticas, de onde provêm e onde se investem, na esteira das articulações propostas por Foucault desde o dealbar de seus cursos ministrados a partir de 1970, no Collège de France, incluindo sua aula inaugural “A Ordem do Discurso” (1970), “Aulas sobre a vontade de saber” (1970-1971), “Teorias e Instituições Penais” (1971-1972), “A Sociedade Punitiva” (1972-1973).
Temos então nosso ponto de partida: o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as próprias formas do conhecimento são de certo modo dados prévia e definitivamente, as condições econômicas, sociais e políticas da existência não fazem mais do que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente dado.
As práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. A própria verdade tem uma história[5]. O segundo eixo de pesquisa é um eixo metodológico, que poderíamos chamar de análise dos discursos[6].
O discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro. Para Michel Foucault as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as práticas judiciárias, estão entre as mais importantes[7].
O que se tem em perspectiva são as formas e materiais jurídicos e, por conseguinte, sua trajetória como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade. O que denominamos de inquérito (enquête), investigação tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII, e também por cientistas, fossem eles geógrafos, botânicos, zoólogos, economistas – é uma forma bem característica da verdade em nossas sociedades.
Ora, onde encontramos a origem do inquérito? Nós a encontramos em uma prática política, administrativa e também judiciária. E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica. Foi para saber exatamente quem fez o quê, em que condições e em que momento, que o Ocidente elaborou as complexas técnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser utilizadas na ordem científica e na ordem da reflexão filosófica[8].
Da mesma forma, no século XIX também se inventaram, a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais, formas de análise bem curiosas que chamaria de exame (examen) e não mais de inquérito.
Sob a perspectiva de Michel Foucault tais formas de análise deram origem à Sociologia, Psicologia, Psicopatologia, Criminologia, Psicanálise, em ligação direta com a formação de um certo número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista, no final do século XIX.
Na esteira do legado estruturalista, a semiótica abriu novas sendas de investigação quanto as práticas discursivas, inclusive as que se desdobram-extrapolam no terreno da juridicidade. Um novo léxico passa a ser incorporado dotado de referências administrativas, práticas de gestão, intermediação, mecanismos pré-processuais ou paraestatais concorrem como alternativas na resolução de controvérsias: justiça restaurativa, compliance, arbitragem, transação, mediação. Busca-se ênfase na eficácia resolutiva, abdicando-se da procura de uma verdade oculta a ser desvelada pelo julgador.
A publicação dos cursos e conferências ministrados por Michel Foucault, além de permitir novas perspectivas sobre um multifacetado trabalho espraiado em diversos fronts, trouxeram relevante material para os pesquisadores interessados nos temas do direito e da justiça.
O direito não foi objeto próprio das reflexões de Foucault, mas um foco de análise, dado que “não há discurso judicial em que a verdade não ronde”[9]. A justiça seria um teatro da verdade e, como tal, espaço privilegiado para analisar as articulações entre discurso e poder.
As aulas sobre a vontade de saber trazem os passos intermediários desse contraste: a forma de resolução dos conflitos de classe levou à institucionalização de uma medida comum para as relações econômicas, políticas e sociais na cidade. Nas novas formas jurídicas está presente o sujeito do discurso apofântico: o juiz e a testemunha, que se colocam como terceiros perante o litígio, tendo por único interesse fazer emergir a verdade.
O processo de racionalização da prova encontra seu cume sob a perspectiva formal enquanto instrumento de efetivação da justiça dentro do direito. Toda uma rede conceitual passa a ser desenvolvida na modernidade sob aspectos processuais de reflexo material em uma matriz principiológica: princípio do devido processo legal, verdade real, garantia da motivação da decisão judicial, garantia do acesso ao duplo grau de jurisdição, entre outros.
A obediência-observância do rito pretende garantir ao jurisdicionado a segurança de não estar sendo vítima de uma arbitrariedade. A complexa estrutura dialética processual e recursal oferece aos litigantes a idoneidade de uma decisão ainda que lhe seja desfavorável.
Não enveredando por agora em uma questão fundamental da teoria do direito: o fundamento último da norma, seja um pressuposto metafísico, uma abstração ou ficção jurídica tal qual uma norma hipotética fundamental, o que se tem em jogo é a gestão de tal processo, do acesso ao desfecho.
Segundo Cappelletti e Garth, a expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos, seja lá o que se entende por justo[10].
Nos estados liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente direito ‘formal’ do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção[11].
Como afirma Kazuo Watanabe[12], uma das maiores preocupações dos processualistas modernos repousa na efetividade do processo como instrumento de tutela de direitos, ante o fenômeno da litigiosidade contida, ou seja, os conflitos que ficam completamente sem solução, não raro pela renúncia total do direito pelo prejudicado e que são considerados extremamente perigosos para estabilidade social, considerando a incapacidade do sistema de Justiça em proporcionar à parte aquilo a que faz “jus”. Exige-se que a pretensão deduzida em juízo seja satisfeita de forma plena, dentro de lapso compatível com a natureza do litígio, propiciando a efetiva e tempestiva proteção contra qualquer forma de denegação de justiça. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”, articula-se o princípio da “duração razoável do processo”.
Há um deslocamento valorativo: jurisdição sumária sempre foi reconhecida como jurisdição autoritária-arbitrária. O cumprimento do rito, mais do que performativo, observa os ditames de uma justiça que não deixa de reconhecer seu caráter de indeterminação, mas precisa lidar com um exponencial crescimento de demandas dantes reprimidas e as consequências de seu papel autodeclarado de pacificador social.
Uma nova semântica é desenvolvida, novos conceitos e uma nova linguagem passam a ser articulados muito próximos de uma terminologia administrativa. Não basta “dizer o direito”, é preciso gerir as demandas, formular alternativas, propor mecanismos não de extração da verdade, mas de prática resolução de conflitos, dissuasão pelo consenso.
Juizados especializados, justiça restaurativa, mediação, arbitragem, transação, compliance, delação premiada, empréstimos e intercâmbios de provas. O que tantos institutos peculiares possuem em comum? Todos se desenvolvem sob o ânimo ou de afastar o monopólio estatal na resolução de controvérsias, fugir da ineficiência dos aparelhos do Judiciário, fazendo com que este reconheça e busque aderir ao novo paradigma valorativo.
Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber[13].
Nietzsche afirma que, em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo, animais inteligentes inventaram o conhecimento. a palavra que emprega é “invenção” (Erfindung), frequentemente retomada em seus textos, e sempre com sentido e intenção polêmicos. Quando fala de invenção, Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem (Ursprung). Quando diz invenção é para não dizer origem; quando diz “Erfindung” é para não dizer “Ursprung”[14].
Existe a famosa passagem no final do primeiro discurso de “A Genealogia da Moral”[15] em que Nietzsche se refere a essa espécie de grande fábrica, de grande usina, em que se produz o ideal. O ideal não tem origem. Ele também foi inventado, fabricado, produzido por uma série de mecanismos, de pequenos mecanismos. A invenção (Erfindung) para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável.
Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da Filosofia ocidental, quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência e do objeto de experiência eram idênticas. Nietzsche pensa ao contrário, que entre conhecimento e mundo a conhecer há tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza humana. Temos, então, uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza.
O caráter do mundo seria o de um caos eterno; não devido à ausência de necessidade, mas devido à ausência de ordem, de encadeamento, de formas. É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo.
O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbitrariedade? O que garantia isto na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além e ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado, em verdade, nas coisas do mundo, Descartes precisou afirmar a existência de Deus.
Em segundo lugar, se é verdade que entre o conhecimento e os instintos – tudo o que faz, tudo o que trama o animal humano – há somente ruptura, relações de dominação e subserviência, relações de poder, desaparece então, não mais Deus, mas o sujeito em sua unidade e soberania.
Existe um texto da Gaia Ciência (parágrafo 333) que podemos considerar como uma das análises mais estritas que Nietzsche fez dessa fabricação, dessa invenção do conhecimento. Nesse longo texto intitulado – “Que significa conhecer?” – Nietzsche retoma um texto de Spinoza, onde este opunha “intelligere”, compreender, a “ridere”, “lugere”, “detestari”.
Spinoza dizia que, se quisermos compreender as coisas, se quisermos efetivamente compreendê-las em sua natureza, em sua essência e, portanto, em sua verdade, é necessário que nos abstenhamos de rir delas, de deplorá-las ou de detestá-las. Somente quando estas paixões se apaziguam podemos enfim compreender.
Nietzsche diz que isto não somente não é verdade, mas é exatamente o contrário que acontece. “lntelligere”, compreender, não é nada mais que um certo jogo, ou melhor, o resultado de um certo jogo, de uma certa composição ou compensação entre “ridere”, rir, “lugere”, deplorar, e “detestari”, detestar. Nietzsche diz que só compreendemos porque há por trás de tudo isso o jogo e a luta desses três instintos, desses três mecanismos, ou dessas três paixões que são o rir, o deplorar e o detestar (o ódio).
Rir, detestar e deplorar – têm em comum o fato de serem uma maneira não de se aproximar do objeto, de se identificar com ele, mas, ao contrário, de conservar o objeto à distância, de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se proteger dele pelo riso, desvalorizá-lo pela deploração, afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo ódio.
Eis a maldade radical do conhecimento. Chegamos assim a uma segunda ideia importante. A de que esses impulsos – rir, deplorar, detestar – são todos da ordem das más relações. Atrás do conhecimento, na raiz do conhecimento, Nietzsche não coloca uma espécie de afeição, de impulso ou de paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer, mas, ao contrário, impulsos que nos colocam em posição de ódio, desprezo, ou temor diante de coisas que são ameaçadoras e presunçosas.
Se esses três impulsos – rir, deplorar e odiar – chegam a produzir o conhecimento não é, segundo Nietzsche, porque se apaziguaram, como em Spinoza, ou se reconciliaram, ou chegaram a uma unidade. É, ao contrário, porque lutaram entre si, porque se confrontaram. É porque esses impulsos se combateram, porque tentaram, como diz Nietzsche, prejudicar uns aos outros, é porque estão em estado de guerra, em uma estabilização momentânea desse estado de guerra, que eles chegam a uma espécie de estado, de corte onde finalmente o conhecimento vai aparecer como “a centelha entre duas espadas”.
Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário, uma relação de distância e dominação; não há no conhecimento algo como felicidade e amor, mas ódio e hostilidade; não há unificação, mas sistema precário de poder. Os grandes temas tradicionalmente apresentados na filosofia ocidental foram inteiramente questionados no texto citado de Nietzsche. A filosofia ocidental – e, desta vez, não é preciso referir-nos a Descartes, podemos remontar a Platão – sempre caracterizou o conhecimento pelo logocentrismo, pela semelhança, pela adequação, pela beatitude, pela unidade.
Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos, mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder.
Existe em Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica denominada por Foucault de política da verdade. O conhecimento é, cada vez, o resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem do conhecimento. O conhecimento é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob o signo do conhecer.
Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha, com o direito não poderia ser diferente. É por isso que encontramos em Nietzsche a ideia, que volta constantemente, de que o conhecimento é ao mesmo tempo o que há de mais generalizante e de mais particular. O conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade.
Acontece que parecemos experimentar a recusa da batalha pela ineficiência. A indeterminação radical do direito e a inoperância da máquina estatal nos leva ao poder de barganha, a resolução rápida e descomprometida com a verdade, que não implica, que fique claro, a recusa da força ou o fim das relações de poder-dominação, que passam a ser reagrupadas ou rearticuladas sob um novo horizonte conceitual, uma nova rede-estrutura que se fia sob outra moral: a da eficiência e da melhor gestão, valores típicos da sociedade contemporânea e das relações vigentes.
Se o direito passa a se restringir ao jogo retórico, um exercício hermenêutico em que um lance de dados não seja capaz de abolir sua indeterminação e ou imprevisibilidade, se é instado a fazer uso dos mecanismos de consenso e conciliação que lhe são postos à disposição visando atingir o melhor resultado possível sem que se passe pelo risco inerente ao campo de batalha da prova e da verdade.
Alguns autores, como Peter Pál Pelbart, sinalizam o desdobramento de megamáquinas de neutralização do acontecimento, não enfrentamento, recusa e evacuação da batalha[16].
“Em outras palavras, é toda uma megamáquina de neutralização do acontecimento. O que está em jogo na ofensiva, aqui, não é ganhar algum enfrentamento, mas ao contrário, fazer com que o enfrentamento não aconteça, esconjurar o acontecimento em sua raiz, prevenir todo salto de intensidade no jogo das formas-de-vida, por meio do qual o político adviria. O fato de que nada aconteça já é para o Império uma vitória massiva. Frente ao inimigo qualquer’, frente ao Partido Imaginário, sua estratégia consiste em ‘substituir o acontecimento que se queria decisivo, mas que permanece sendo aleatório (a batalha), por uma série de ações menores, mas estatisticamente eficazes, que chamaremos, por oposição, a não batalha”[17].
Não se vislumbra uma ontologia ou hermenêutica jurídica sem que se perpasse uma nova epistemologia do saber jurídico, que abra novas sendas, clarões, que não se recuse ao confronto nem se dissolva ou dilua no dogmatismo idealista ou pragmático, mascarando relações de dominação e suas novas estruturas de poder-dominação que não costumam considerar quaisquer fronteiras de juridicidade que se pretendam impor.
Por trás de toda estrutura existe um discurso, por trás de todo discurso há uma valoração, um reforço ou um desprendimento de algo que seja caro ou interessante para quem o articula. “Verdade” e “prova” são historiografáveis por agenciarem em torno de si uma vastidão de narrativas que possuem em comum a possibilidade de observação da trajetória do poder, a quem ele se impõe, a quem ele se entrega, se concede, se exerce.
Por meio do “último homem”, Nietzsche concebe uma crítica aos valores da modernidade, realizando uma projeção da ruptura com as estruturas tradicionais da sociedade e a crise que se instaura com o declínio dos valores vinculados à noção de Deus, emergindo a figura do “último homem” como paradigma humano decorrente do niilismo reinante na Europa.
Frouxo de ânimos, desinteressado em qualquer força criativa ou afirmativa, o último homem restringe-se a defender sua liberdade adquirida pelo conforto e segurança, ajustado perfeitamente como engrenagem no maquinário social e político forjado em seu favor.
Considerando-se que essa crise continua a ser atual, apesar das circunstâncias peculiares nas quais atualmente se desenvolve, nos parece importante destacar a presença do “último homem” no fenômeno cultural contemporâneo, permitindo-se evidenciar, sobretudo, o parentesco das estruturas existentes entre tais momentos históricos. Se, com efeito, essa figura metafórica delineada por Nietsche expressa traços dominantes no sistema de valores da cultura ocidental contemporânea, a questão do “último homem” continua em aberto inclusive no espectro jurídico.
É inconteste que poucos autores angariam tantas controvérsias exegéticas acerca de seu trabalho quanto Nietzsche, tanto em face da complexidade de sua obra e características peculiares de seu estilo (a técnica aforística, a construção imagética levada a efeito por si)[18], quanto em face das deliberadas apropriações sofridas de seu pensamento ao interesse, escuso ou não, de determinados segmentos filosóficos, sociais e políticos[19].
Tais impasses se agigantam quando se tenta traçar um perfil de Nietzsche enquanto pensador político, uma vez que sua obra encontra uma miríade de proposições que contestam diferentes linhas de pensamento de tal natureza, bem como podem, em um primeiro plano, situá-lo em correntes e tradições distintas e até antagônicas, daí inclusive se apontar a inatualidade de sua obra, bem como seu caráter inclassificável, o que exige até uma orfandade conceitual de seu hermeneuta que, desarmado de soluções prontas no âmbito psicológico, sociológico e estruturalista, necessita investigar seu trabalho.
Decerto, eventual análise da perspectiva política do autor não poderá prescindir de considerar a especificidade do discurso filosófico de Nietzsche, consistente, em um primeiro plano, como o reconhecimento da moral como aspecto fundamental na observação da realidade, gerando-se consequentemente uma investigação sobre os valores que perpassam determinados fenômenos, inclusive as convicções que permeiam nossa civilização.
Assim, desde o dealbar de “Assim Falou Zaratustra”, a concepção da morte de Deus traz consigo a derrocada de todos os valores imbuídos na concepção de um além-mundo, daí a necessidade de “transvaloração” de todos os valores vigentes e o advento do super-homem enquanto sentido da terra. Contudo, Nietzsche observa a existência do que define como “último homem”, o resultado de determinados valores de nossa cultura.
A figura do último homem é apresentada por Zaratustra logo no prólogo da obra, quando a personagem procura falar “ao orgulho’’ dos homens, após o anúncio do super-homem e como resposta aos risos e incompreensão do orbe[20].
De plano, surge o questionamento: como o “último homem” se desenvolve no contexto da obra de Nietzsche? Decerto, verifica-se que a expressão metafórica decorre como resposta de Zaratustra ao escárnio e indiferença da multidão diante de seu super-homem, ou seja, um fenômeno condicionado, perfeitamente compreensível no contexto cultural em que o viu aparecer. A partir dessa perspectiva, a noção do “último homem” responderia, na filosofia de Nietzsche, ao problema e à noção do “niilismo”. De início, depreende-se que o “super-homem” é uma resposta à morte de Deus, com a qual a cultura europeia inicia a sua imersão no niilismo, tal como essa perspectiva é apresentada no prólogo de “Assim Falou Zaratustra”.
Para Nietzsche, “viver é valorar” e nesse sentido define a moral. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimento existem valorações, ou falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida.
Portanto, o questionamento essencial se formula no seguinte sentido: em que moral, determinado fenômeno, conceito, ou perspectiva, pretende se fundar e sustentar determinado valor de vida? O mesmo pode ser empregado com relação ao direito: em que moral é tomado como baldrame tal concepção de direito e justiça?
Assim como a metafísica tem sua origem histórica em Platão, sua imagem do homem presente é também o resultado desse grandioso feito de “patologia social” que sofre sua época: o que Nietzsche denomina de “décadence”, termo que se transforma em um conceito central de sua filosofia.
Desde “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche reconhece em Sócrates e em Platão o sinal de declínio de determinadas forças que alijam o espírito trágico da cultura helênica, dando lugar a um otimismo cego na razão e na relação entre a verdade e o bem, como virtudes, ocasionando um preconceito que se estenderá por toda a história da civilização ocidental.
“Sócrates, o herdeiro dialético no drama platônico, nos lembra a natureza afim do herói euripidiano, que precisa defender as suas ações por meio de razão e contrarrazão, e por isso mesmo se vê tão amiúde em risco de perder a nossa compaixão trágica; pois quem pode desconhecer o elemento otimista existente na essência dialética, que celebra em cada conclusão a sua festa de júbilo e só consegue respirar na fria claridade e na consciência? Esse elemento otimista que, uma vez, infiltrado na tragédia, há de recobrir pouco a pouco todas as suas regiões dionisíacas e impeli-las necessariamente à destruição – até o salto mortal no espetáculo burguês?”[21]
A realidade, por conta do forjar de um mundo ideal, em contraponto ao que seria a realidade sensível aparente, sofre um duro golpe, “a realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal. A insidiosa oposição entre “o mundo verdadeiro” e o “mundo aparente”.[22]
O “último homem”, vinculado ao sentido dessa palavra, é a expressão de uma determinada “moral”, a do “homem bom”, na qual Nietzsche detecta um tipo “decadente” de vontade de potência, característico da modernidade.
A concepção do “último homem” parece formalmente enunciada pela primeira vez em um texto de “Aurora”. Todavia, aqui essa ideia não se apresenta como uma simples negação ou como um desfecho definitivamente niilista. Ao contrário, Nietzsche tratou de introduzir o “último homem” como “presença provisória” e na ótica de um “passo para a luz”, quer dizer, como uma negação que precede a uma afirmação criadora ulterior. O filósofo alemão assinala desde o Prólogo: “Não parece que alguma fé o guia, algum consolo o compensa? (…) porque sabe o que também terá: sua própria manhã, sua redenção, sua aurora?[23]
Sendo assim, essa tarefa implica necessariamente uma transição. Essa transição exige um primeiro esforço de destruição para limpar o terreno onde estará presente a humanidade vindoura. Nesse sentido, como o “último homem”, no que nos diz respeito, vivemos também uma angústia que faz clamar, num grito, por sua libertação. A tirania do pensamento racional alija o homem de seu ser e o separa da vida. Ora, posto assim, o homem perece ao não se reconhecer por inteiro em sua filiação terrestre.
“Antigamente buscava-se chegar ao sentimento da grandeza do homem apontando para sua procedência divina: isso é agora um caminho interditado, pois à sua porta se acha o macaco, juntamente com outros animais terríveis, e arreganha sabidamente os dentes, como que a dizer: ‘Não prossigam nesta direção!’. Então se experimenta agora a direção oposta: o caminho para onde vai a humanidade deve servir para provar sua grandeza e afinidade com Deus. Oh, tampouco isso resulta em algo! No final desse caminho se encontra a urna funerária do último homem e coveiro (com a inscrição: ‘nihil humani a me alienum puto [nada de humano me é estranho]’), Não importa o quanto a humanidade possa ter evoluído- e, talvez ela esteja, no fim, ainda mais baixa do que no começo!”[24]
Em verdade, Nietzsche parece apontar como risco absurdo de nossa civilização a negação de nossa condição humana, vinculada à terra e à efemeridade da existência. A ideia do “último homem” aparece enunciada de forma evidente e frequente no “Assim Falou Zaratustra” e nos fragmentos póstumos desse período[25].
Quando Zaratustra desce das montanhas para as profundezas, para aumentar a sua sabedoria e voltar a ser homem, como o sol poente se submerge no mar para atingir uma nova aurora, aparece como o “último homem”. Sabe que buscando o seu cume, encontrará o abismo, que é a mesma coisa. Portador de uma grave notícia: a morte de Deus, traz também aos homens uma dádiva, porque vem para lhes ensinar o “além-do-homem”.
Porque o “além-do-homem” é o sentido da Terra. Com ele poderemos superar o “desprezo do homem” e “tomar partido contra todos os detratores da humanidade”. Eis aqui a razão do “último homem”, do desprezo, que adquire um sentido muito positivo. Ela anuncia, certamente, o niilismo, mas para superá-lo. De fato, Zaratustra nos apresenta a imagem de sua esperança, e diz:
“Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra!
Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não”[26].
O “último homem”, por sua vez, perdeu todo contato com sua natureza originária. Está separado de suas raízes naturais, orgulhoso do que chama cultura, incapaz de desprezar a si mesmo, tem-se em alta conta por “inventar a felicidade”, evita o duro viver, necessita de calor e por isso ama o seu vizinho que o aquece e conforta. Adentramos, assim, no plano do utilitarismo.
Nesse sentido, a concepção de felicidade então desenvolvida perpassa todas as relações do “último homem”, que a protege e cerca de todos os perigos e ameaças, confundindo a própria necessidade de segurança como ideal de bem-estar. A boa saúde é levada em conta, o veneno ministrado em doses homeopáticas garantindo-lhe o pequeno prazer diário, sendo somente excedente quando de seu desfecho na terra, evitando-se a grande dor. Neste sentido denominava Zaratustra ora “os últimos homens”, ora “o começo do fim”: “sobretudo percebe-os ele como a espécie mais nociva do homem, porque impõem sua existência tanto à custa da verdade como às custas do futuro”[27].
O trabalho é prescrito, apenas enquanto distração, cuidando-se para que o mesmo não fadigue: nada em excesso, nada vale o esforço, tampouco o acúmulo da riqueza ou a insuficiência da pobreza, muito menos a má consciência da condição de comando ou o espírito de comandado, em última palavra, vigora o reino da mediocridade, o homem do rebanho encontra assim e defende sua felicidade.
Registre-se que tal resultado decorre de um processo de valores, como um paroxismo da própria moral do rebanho, que, de tanto fomentar o culto à obediência, não promove mais os aptos a ordenar:
“Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos que mandaram – considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz: ‘você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo’, em suma, ‘você deve’ (…). Se imaginarmos esse instinto levado à aberração, acabarão por faltar os que mandam e são independentes; ou sofrerão intimamente de má consciência e precisarão antes de tudo se iludir, para poder mandar, isto é, acreditar que também eles apenas obedecem. Essa situação existe realmente na Europa de hoje: eu a denomino a hipocrisia moral dos que mandam”.[28]
Sob o discurso da igualdade, as ideias modernas tão somente reproduziriam os velhos valores cristãos, que por sua vez, representam a negação do mundo através de uma idealidade, um mundo real dissociado de nosso mundo aparente, tal qual o platonismo, tido como “cristianismo para o povo”. Assim, a modernidade, ainda que abdicada das concepções tradicionais teológicas, permanece a sustentar os velhos valores, a mesma moral decadente que aparentemente fizera sucumbir.
“Igualdade geral perante a lei: nisso a natureza não é diferente nem está melhor do que nós’, uma bela dissimulação, na qual mais uma vez se disfarça a hostilidade plebeia a tudo que é privilegiado e senhor de si, e igualmente um segundo e mais refinado ateísmo. ‘Ni Dieu ni maitre [Nem Deus, nem senhor] – assim querem vocês também: e por isso viva a lei natural!”[29]
Sob o pretexto do bem comum – “como poderia haver um bem comum? O termo se contradiz: o que pode ser comum sempre terá pouco valor”[30] – os homens são nivelados, aguilhoados em uma bondade que nega todas as forças, que aspira uma felicidade universal de rebanho, forjando-se “uma espécie diminuída, quase ridícula, um animal de rebanho, um ser de boa vontade, doentio e medíocre, o europeu de hoje”.[31]
Nietzsche nos mostra, portanto, a imagem de nossa vida moderna, totalmente nivelados, equilibramos o trabalho e o ócio, a fim de enganar o tédio de uma vida que, no fundo, já não quer nada, que quer “nada”, “pois o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”[32], a fina flor do niilismo em escala global. Tal é, segundo Nietzsche, a hora mais sombria: “Inventamos a felicidade” – sem conceber que “felicidade e virtude não são argumentos”[33].
Pois bem, para Nietzsche, ao contrário, essa constatação não deve servir senão como ponto de partida a fim de reencontrar, com “o sentido da terra”, novos valores, já que vacila o ideal metafísico.
“O que é bom? – Tudo o que aumenta no homem o sentimento do poder, a vontade de poder, o próprio poder.
O que é mau? – Tudo o que nasce da fraqueza.
O que é a felicidade? O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência foi vencida.
Não o contentamento, mas mais poder. Não a paz finalmente, mas a guerra; não a virtude, mas a excelência (virtude no estilo do Renascimento, virtù, virtude isenta de moralismos)”[34].
Com efeito, o niilismo representa o abalo de uma determinada noção da essência humana e de uma “visão do mundo” que Nietzsche entende como o descobrimento da “morte de Deus”. Para ele, diante da contradição entre o mundo que veneramos e o mundo em que vivemos, o que somos, resta-nos ou suprimir nossa veneração ou nos suprimir a nós mesmos. O segundo caso é o niilismo.
Nessa perspectiva, o niilismo é a consequência inevitável do idealismo metafísico, a saber: supor que o “verdadeiro” e o “bem” são idênticos, porque essa equivalência implica uma negação da vida. Entretanto, esse niilismo é uma forma preparatória do além-do-homem. O “último homem” é por um lado iconoclasta. Quer dizer, “o mais feio dos homens”, quem assume a ausência de Deus, mas quem previne Zaratustra de se proibir qualquer classe de piedade, porque reconhece que seu caminho não conduz a nenhuma parte. Não é sua senda o que se tomará para encontrar uma claridade.
Por outro lado, o “último homem” serve de ponte para o além-do-homem. São, então, os filósofos-artistas quem preparam, por meio do adestramento e da seleção, o surgimento do gênio do povo e, por conseguinte, a chegada do “além-do-homem”. Mas o niilismo mais desesperado é o do tempo presente. Com o desmoronamento dos valores interpretamos o que permanece como “sem valores”, quando na realidade é uma mediação essencial para uma transvaloração dos valores e para levar a cabo positivamente a superação do niilismo.
Com efeito, Nietzsche vive a angústia de sua época como uma necessidade histórica para abrir o caminho para uma transvaloração ativa e desejada. Porque somente ao se trocar nossos juízos de valor podemos trocar nossas condições de existência. Nessa perspectiva, o fenômeno da decadência está essencialmente vinculado ao fenômeno mesmo da vida. De fato, a vida tende, sem cessar, a se acrescentar, se multiplicar. Além disso, exterioriza-se como vontade de potência. Por isso, o niilismo verdadeiro significa para Nietzsche o anúncio de uma formidável esperança. A do renascimento dos homens superiores, com o nascimento de um novo tempo de vontade de potência que seja afirmativa e criadora.
“Nós que somos de outra fé – nós que considerarmos o movimento democrático não apenas uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde apontaremos nós as nossas esperanças? Para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar ‘valores eternos’, para os precursores e arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a coação que impõe caminhos novos à vontade de milênios”[35].
Se é imperiosa uma democracia efetivamente criadora e transvalorante, outro direito também urge para além do formalismo travestido de positivismo, neopositivismo ou de uma concepção enraizada em pressupostos transcendentais seja Deus, razão, direito natural.
Conclusão
Em 1943, sob o horror da Segunda Grande Guerra, Salvador Dalí pinta sua icônica “criança geopolítica observando o nascimento do novo homem”. A criança que assiste ao nascimento parece assustada e a mulher que aponta o nascimento do tal “novo homem” é, ao mesmo tempo, musculosa e esquelética. O ovo de onde o homem sai representa o mundo com uma casca mole, onde os continentes também são representados e quase se diluem. O “novo homem” seria o “último homem” aquele narrado por Zaratustra como a fina flor do niilismo?
O novo filósofo, apontado por Nietzsche em “Além do bem e do mal”, ainda não identificado como o super-homem, todavia, sabe “como o homem está ainda inesgotado para as grandes possibilidades, e quantas vezes o tipo homem já defrontou decisões misteriosas e caminhos novos”[36].
Esse novo filósofo, essa criança geopolítica, observa atônita e angustiada o nascimento do “último homem”, “a degeneração global do homem”, “essa animalização do homem em bicho-anão de direitos e exigências iguais”, “Conhecendo um nojo a mais que os outros homens, e também, talvez, uma nova tarefa!”
A crise instaurada pela ruptura com velha estrutura metafísica trouxe incontáveis reflexos para a modernidade e inevitavelmente para as ciências jurídicas. No âmbito político, o ideário da Revolução Francesa consolidou um conceito de regime, tido como democrático, influenciando todo o Ocidente, lançando-o ao patamar de mito e única alternativa ao fundamentalismo islâmico, apontando-se este como o novel adversário após o declínio da utopia marxista. Em todas as esferas vemos se multiplicar formações discursivas pautadas na ideia de liberdade de expressão, tolerância mútua e sincretismo religioso, laicismo e secularização, defesa das conquistas adquiridas pela civilização, igualdade de direitos, redução das desigualdades, a própria noção de cultura “da qual nos orgulhamos”, uma defesa da pluralidade que mais se afigura como defesa do nivelamento[37].
Nesse contexto, a denúncia de nossos valores formulada por Nietzsche ganha cada vez mais pertinência ao vislumbrarmos o impasse, o beco sem saída que a civilização ocidental experimenta no plano individual, social, ideológico e político. Cumpre questionar se nós já não somos o reverberar do “último homem”, “incapaz de se doar integralmente para algo, recolhido ao conforto e prazeres cotidianos, imunizado, mas ao mesmo tempo ameaçado por inimigos invisíveis”[38].
Diante de tal cenário, uma investigação sobre o pano de fundo comum moral das diferentes vertentes ideológicas contemporâneas poderá apontar novos rumos ou perspectivas no contexto da modernidade.
“Em todos os países da Europa, e também na América, existe atualmente quem abuse desse nome, uma espécie bem limitada de espírito, gente prisioneira e agrilhoada, que quer mais ou menos o oposto daquilo que está em nosso intento e nosso instinto – sem falar que, em relação aos novos filósofos que surgem, eles com certeza serão portas fechadas e janelas travadas. Em suma, e lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados ‘espíritos livres’ – escravos eloquentes e folhetinescos do gosto democráticos e suas ‘ideias modernas’; todos eles homens sem solidão, sem solidão própria, rapazes bonzinhos e desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis, mas que são cativos e ridiculamente superficiais, sobretudo em sua tendência básica de ver, nas formas da velha sociedade até agora existente, a causa de toda miséria e falência humana: com o que a verdade vem a ficar alegremente de cabeça para baixo! O que eles gostariam de perseguir com todas as forças é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem estar e felicidade para todos; suas duas doutrinas e cantigas mais lembradas são ‘igualdade de direitos’ e ‘compaixão pelos que sofrem’ – e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve abolir”[39].
No atual contexto político, indiferentemente das orientações ideológicas, nota-se a consolidação de uma hegemonia discursiva, que atende em prol do bem comum, em total afinidade à moral do rebanho que de tão incutida em nossa cultura e civilização, mesmo a despeito da derrocada dos valores supraterrenos, persiste num discurso nivelador, decorrente da má consciência daqueles que detém o poder, que
“não sabem se defender de sua má consciência, a não ser posando de executores de ordens mais antigas ou mais elevadas (dos ancestrais, da Constituição, do direito, das leis ou inclusive de Deus), ou tomando emprestadas máximas-de-rebanho ao modo de pensar do rebanho, aparecendo como ‘primeiros servidores de seu povo’ ou ‘instrumentos do bem comum’[40].
Em que pese a derrocada das concepções metafísicas trazer um sentimento de vazio ao homem, culminante no niilismo, o próprio Nietsche, em seu “Humano, Demasiado,Humano” já trazia o “germe da mais alta esperança” advindo com a libertação do homem do jugo quimérico dos ideais.
Após o fim da crença de que um deus dirige os destinos do mundo e, não obstante as aparentes sinuosidades no caminho da humanidade, a conduz magnificamente à sua meta, os próprios homens devem estabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antiga moral, notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem de todos os homens: o que é algo belo e ingênuo, como se cada qual soubesse, sem dificuldades, que procedimento beneficiaria toda a humanidade. (…) Talvez uma futura visão geral das necessidades da humanidade mostre que não é absolutamente desejável que todos os homens ajam do mesmo modo (…) Em todo o caso, para que a humanidade não se destrua com um tal governo global consciente, deve-se antes obter, como critério científico para objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da cultura que até agora não foi atingido, Esta é a imensa tarefa dos grandes espíritos do século[41].
Esse homem contemporâneo, que experimenta o niilismo como consequência inevitável do processo de bancarrota dos valores metafísicos, ainda permanece como uma incógnita, como uma possibilidade, como um horizonte não experimentado. Inobstante as incontestes dificuldades metodológicas[42] em face de uma filosofia tão original, o pensamento nietzschiano particularmente oferece um horizonte diferenciado quanto ao método de investigação aplicado, uma vez que centra sua perspectiva na crítica dos valores através de uma genealogia que vise lançar luzes sobre a realidade para além dos típicos preconceitos e vícios da dialética e da tradicional inquirição da verdade nos moldes da filosofia tradicional. Desse modo, pensar sobre Nietzsche, consiste em “pensar com Nietzsche”[43] e seu perspectivismo, sob pena de se “dialetizá-lo”, incorrendo-se nos mesmos paradigmas que o mesmo aponta como paralisantes, engessadores e comprometidos com a moral estabelecida, ou seja, “dogmática”[44].
Entre o sacerdote e o profeta, o jurista comprometido a transvalorar todos os valores se encontra mais próximo do último, não renunciando ao seu poder criador, pelo contrário, articulando conceitos e lançando novos horizontes que retirem o direito de seu engessamento ou mero compromisso ideológico seja com a classe dominante, seja com valores decadentes.
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[1] Advogado OAB-AM 7.716. Bacharel (2010) e Mestre em Direito (2017) pela Universidade do Estado do Amazonas. Email juanpablogomes1@gmail.com.
[2] LEVINAS, Emmanuel. “Totalidade e Infinito”. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70; 1ª edição, 2008, p. 17.
[3] DERRIDA, Jacques. “Força de Lei: o fundamento jurídico da alteridade”. Tradução Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes; 2ª edição, 2010.
[4] FOUCAULT, Michel. “A Verdade e as Formas Jurídicas”. Rio de Janeiro: Nau, 2005.
[5] Obra citada, p. 8.
[6] “Ainda aqui existe, parece-me, em uma tradição recente, mas já aceita nas universidades europeias, uma tendência a tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção. Há alguns anos foi original e importante dizer e mostrar que o que era feito com a linguagem – poesia, literatura, filosofia, discurso em geral – obedecia a um certo número de leis ou regularidades internas – as leis e regularidades da linguagem. O caráter linguístico dos fatos de linguagem foi uma descoberta que teve importância em determinada época. Teria então chegado o momento de considerar esses fatos de discurso, não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico, mas, de certa forma – e aqui me inspiro nas pesquisas realizadas pelos anglo-americanos – como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta”. Obra citada, p. 9.
[7] “A hipótese que gostaria de propor é que, no fundo, há duas histórias da verdade. A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências. Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade. As práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas”. Obra citada, p. 11.
[8] Obra citada, p. 12.
[9] La volonté de savoir, in _______, Œuvres, Paris, Gallimard, vol. 2, pp. 617-736 (col. Pléiade) ([1976] 2015), p.76.
[10]CAPPELLETTI, Mauro; GRATH, Bryant. “Acesso à Justiça”. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio fabris Editor, 2002.
[11] Obra citada, p. 9.
[12]WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: WATANABE, Kazuo; DINAMARCO,Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrine (Coords). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28.
[13] Obra citada, nota 3, p. 51.
[14] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “A Gaia Ciência”. Tradução Paulo César de Souza. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[15]_________________________. “Genealogia da Moral: uma Polêmica”. Tradução Paulo César de Souza. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[16] PELBART, PETER P. “Ensaios do Assombro. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
[17] Obra citada, p. 45.
[18] Nesse sentido, o próprio Nietzsche assinala em Genealogia da Moral: “No que toca ao meu Zaratustra, por exemplo, não pode se gabar de conhecê-lo quem já não tenha sido profundamente ferido e profundamente encantado por cada palavra sua: só então poderá fluir o privilégio de participar, reverentemente, do elemento alciônico do qual se originou aquela obra, da sua luminosa claridade, distância, amplidão e certeza. Em outros casos, a forma aforística traz dificuldade: Isto porque atualmente não lhe é dada suficiente importância. Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda ‘decifrado’, ao ser apenas lido: deve ter início, então, a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação”. (NIETZSCHE, 1998, p. 14)
[19] Sobre o tema, observa Scarlett Marton: “E, com os anos, multiplicam-se as interpretações de sua filosofia. Alguns fazem dele o precursor do nazismo, outros, o crítico da ideologia, no sentido marxista da palavra. Há os que o consideram um cristão ressentido e os que vêem nele o inspirador da psicanálise. Há os que o tomam por defensor do irracionalismo e os que o encaram como fundador de uma nova seita, o guru dos tempos modernos. Hoje mesmo, enquanto na Alemanha ainda se vincula a filosofia de Nietzsche a posições políticas de direita, na França a extrema-esquerda faz dela o suporte de suas teorias. E acadêmicos discutem longamente se se trata, de fato, de uma filosofia ou de mera literatura”.(MARTON, 1999, p.11)
[20] “Eu vos digo: é preciso ter um caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda caos dentro de vós.
Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível, que já não sabe desprezar a si mesmo.
Vede! Eu vos mostro o último homem.
‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela? – assim pergunta o último homem, e pisca o olho.
A terra se tornou pequena, então, e nela saltita o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextinguível como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais longa.
‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam o olho.
Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pois necessita-se de calor.
Adoecer e desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou homens!
Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer.
Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse.
Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obedecer? Ambas as coisas são árduas.
Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício.
‘Outrora o mundo inteiro era doido’ – dizem os mais refinados, e piscam o olho.
São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então sua zombaria não tem fim. Ainda abrigam, mas logo se reconciliam – de outro modo, estraga-se o estômago.
Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a saúde.
‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam o olho. –
E aqui findou o primeiro discurso de Zaratustra, que é chamado de ‘prólogo’: pois nesse ponto interromperam-no os gritos e o júbilo da multidão. ‘Dá-nos esse último homem, ó Zaratustra’ – clamavam as pessoas – ‘torna-nos como esse último homem! E nós te presenteamos o super-homem!’ E toda a gente exultava e estalava a língua. Zaratustra entristeceu-se, porém, e disse ao seu coração: Eles não me compreendem: não sou a boca para esses ouvidos”. (Assim Falou Zaratustra, 2011, p. 17-19)
[21] 2007, p. 86-87.
[22] “Ecce Homo: como alguém se torna o que é”. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras, 2008, p.15.
[23] 2004, p. 9.
[24] 2004, p. 43-44.
[25] “a ideia do ‘último homem’ aparece enunciada de forma evidente e frequente no Assim Falava Zaratustra e nos fragmentos póstumos desse período. Nietzsche diz: ‘O contrário do além-do-homem é o último homem; criei ao mesmo tempo um e outro” (X, 4 (171)). Nessa ótica, ‘a meta: desenvolver todo o corpo e não somente o cérebro’ (X, 16(21)) significa que o homem deve, a partir de agora, assumir eternamente seu ser e voltar a dar um sentido à terra, extraindo de sua humanidade natural tudo o que necessita para elevar seus sonhos para além-do-homem. Para ele: ‘Algo mais magnífico que a tempestade e a montanha e o mar deve surgir também, mas originado do homem’ (X, 13 (1))” (VISBAL, Marta de La Veja. Ética e política. Genealogia e alcance do “último homem” na filosofia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 17, p; 58-86, 2004.
[26] “Assim falou Zaratustra, 2011, p. 14.
[27] Ecce Homo, 2008, p. 105.
[28] Além do Bem e do Mal, 2005, p. 85.
[29] Obra citada, p. 25-26.
[30] Obra citada, p. 44.
[31] Obra citada, p. 61.
[32] Ecce Homo, 2008, p. 93.
[33] Além do Bem e do Mal, 2005, p. 41.
[34] Anticristo, 2014, p. 16.
[35] Além do Bem e do Mal, 2005, p. 91.
[36] Obra citada, p. 92.
[37] Nesse sentido, bem salienta Slavoj Zizek, duas referências filosóficas se apresentam imediatamente a propósito do antagonismo ideológico entre o modo de vida consumista do Ocidente e o radicalismo de seus inimigos: Hegel e Nietzsche. Não seria esse antagonismo o que existe entre o niilismo ‘passivo’ e ‘ativo’ de Nietzsche? Nós, no Ocidente, somos os Últimos Homens de Nietzsche, imersos na estupidez dos prazeres diários, ao passo que os radicais engajados na luta estão prontos a arriscar tudo, até a autodestruição. (ZIZEK, 2003, p. 56-57).
[38] Obra citada, p. 164.
[39] Além do Bem e do Mal, 2005, p. 45.
[40] Além do Bem e do Mal, 2005, p. 85-86.
[41] Humano, demasiado humano, 2000, p. 33-34.
[42] Nesse sentido, bem assinala Carlos Alberto Ribeiro de Moura: “Nenhum autor parece suscitar tantas dificuldades metodológicas para o seu intérprete quanto Nietzsche, o que já se evidencia pela exuberante diversidade de interpretações a que sua obra foi submetida” (MOURA, 2014, p. IX).
[43] Expressão de Gerard Lebrun, citado por Scarlett Marton: “Mas que outra coisa pretender, quando nos propomos a ler Nietzsche hoje? – pergunta Gérard Lebrun. ‘Muito se enganaria quem pretendesse travar conhecimento com um filósofo a mais. Nietzsche não é um sistema: é um instrumento de trabalho – insubstituível. Em vez de pensar o que ele disse, importa acima de tudo pensar com ele. Ler Nietzsche não é entrar num palácio de idéias, porém iniciar-se num questionário, habituar-se com uma tópica cuja riqueza e sutileza logo tornam irrisórias convicções que satisfazem as ideologias correntes”. (MARTON, 1999, p. 11)
[44] Nesse sentido, bem salienta Deleuze: “O projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor. É evidente que a filosofia moderna, em grande parte, viveu e ainda vive de Nietzsche. Mas talvez não da maneira como ele teria desejado. Nietzsche nunca escondeu que a filosofia do sentido e dos valores deveria ser uma crítica. Kant não conduziu a verdadeira crítica porque não soube colocar seus problemas em termos de valores; este é então um dos principais móveis da obra de Nietzsche. Ora, aconteceu que na filosofia moderna a teoria dos valores gerou um novo conformismo e novas submissões. (…) A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: referir todas as coisas e toda a origem de alguma coisa a valores; mas também referir esses valores a algo que seja sua origem e que decida sobre o seu valor”. (DELEUZE, 1970, p.1).
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