Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender o novo papel dos bens jurídicos supra-individuais no Estado Democrático de Direito e, neste novo contexto, qual o papel do direito penal. Para esta tarefa, analisa-se o conteúdo do princípio da igualdade e sua relação com a seletividade do sistema penal. Identificando este problema, parte-se para a definição da criminalidade dos poderes, normalmente isentada dos processos de criminalização, e, considerando que este perfil criminoso tende a afetar mais diretamente os bens jurídicos supra-individuais, defende-se uma política criminal mais voltava para estas condutas.
Palavras-chave: Direito Penal; Seletividade do sistema penal; Criminalidade dos poderes; bens jurídicos supra-individuais.
Abstract: This article aims to understand the new role of supra-individual legal interests in a democratic state of law and in this new context, the role of criminal law. For this task, analyzes the content of the principle of equality and its relationship with the selectivity of the penal system. Identifying this problem, we proceed to the definition of the crime of power, usually exempt from processes of criminalization, and considering that this criminal activity tends to affect more directly the legal supra-individual, defends a criminal policy more focused on these behaviors.
Keywords: Criminal Law; Selectivity of the penal system; Crime of powers; supra-individual legal interests.
Sumário: 1. Introdução – os bens jurídicos supra-individuais no centro do debate penal contemporâneo. 2. Princípio da Igualdade e a seletividade do sistema penal na sociedade (pós) moderna. 3. A criminalidade dos poderes. 4. A proteção penal dos bens jurídicos supra-individuais. 5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução – os bens jurídicos supra-individuais no centro do debate penal contemporâneo
Os bens jurídicos supra-individuais, aos quais se dedica esta investigação, é um dos muitos bons frutos do Estado Social e Democrático de Direito, que inseriu de forma mais enfática na comunidade jurídica brasileira os direitos difusos e coletivos. Gradativamente, a proteção destes interesses, que não se identificam com apenas um cidadão individualmente considerado, mas com um grupo determinado ou determinável de pessoas, vem galgando uma posição de maior relevância.
Na esfera penal, porém, ainda existe um hiato muito grande na regulamentação e tutela de tais direitos. Ademais, mesmo quando a lei penal se lhes dispensa alguma atenção o faz de forma deficiente ou mesmo insatisfatória, de um lado ante a exigüidade das penas e a injustificada quantidade de benesses penais e processuais, de outro pela má técnica legislativa e por um sem número de antinomias e aporias.
Vários autores já se ocuparam de questões relacionadas ao tema proposto, normalmente abordando as polêmicas questões dos crimes contra o meio ambiente[1], contra a ordem econômica[2], a criminalidade exercida pelas grandes corporações[3], contra o patrimônio histórico e cultural[4], no âmbito da engenharia genética[5], dentre outros.
Este trabalho, por sua vez, apesar de beber nestas fontes, busca uma abordagem diferente, investigando questões mais gerais sobre a criminalidade de poder e sua tendência ontológica para lesionar os bens jurídicos supra-individuais, discussão que está no cerne de reflexão das legislações penais ocidentais e dos debates doutrinários. Assim compreende Maria Carmen Alastuey Dobón[6]:
“Como es sabido, la referida tendencia que caracteriza a las modernas legislaciones penales – de las que el Código penal español es solo um ejemplo – consistente em asumir la protección de nuevos âmbitos que constituyen bienes jurídicos colectivos o supraindividuales o ampliar la ya existente ha sido objetivo de duras criticas por parte de um sector doctrinal”.
Contudo, forçosa a constatação de que o Direito Penal, com amparo em parte significativa da doutrina, ainda intervém de forma mais enérgica para proteger bens jurídicos de cunho liberal iluminista, a fim de neutralizar as condutas criminosas das massas. Esta posição termina relegando a um segundo plano a tutela de bens jurídicos supra-individuais, aos quais se relaciona, por seu turno, a criminalidade de poder. Além disso, tem base em uma equivocada concepção de Estado liberal-iluminista, que não mais se adapta às necessidades e riscos sociais atuais.
Este conflito é, talvez, dadas as modernas exigências, o principal vetor para se repensar o Direito Penal[7], proposta atendida por este trabalho na medida em que confronta temas como bens jurídicos supra-individuais, a crise e expansão do direito penal, discurso de resistência e garantias. Como afirma Ferrajoli[8] “la questione penale, che il mutamento della questione criminale dovrebbe far oggi ripensare radicalmente, dal punto di vista sai dell´effetività delle tecniche di tutela e di garanzia”.
Pelo exposto, fica evidente a relevância e atualidade do tema proposto, pois investiga o atual Direito Penal sob o pressuposto da necessidade de uma mudança paradigmática, a fim de que ampare os bens jurídicos supra-individuais de forma mais efetiva, a despeito de um movimento doutrinário de resistência a esta tendência.
Para esta tarefa, primeiro se deve analisar o princípio da igualdade sob o prisma de sua faceta inversa no sistema penal: a seletividade. Tratadas algumas questões centrais sobre a distinção de classe efetuada na lei e perante a lei penal, é o momento de melhor definir o que é e como opera a criminalidade de poder.
Por fim, efetivamente desbravando o tema, cabe melhor compreender os bens jurídicos supra-individuais e a relevância de se tratar de forma mais séria e sistemática a sua proteção penal, de modo a, como conseqüência lógica, efetivamente combater a seletividade do sistema penal e a criminalidade de poder, típica da globalização e do liberalismo econômico.
2. Princípio da igualdade e a seletividade do sistema penal na sociedade (pós) moderna
O princípio da Igualdade, consagrado desde a Revolução Francesa nas Constituições modernas, implica, grosso modo, em dispensar a todos os cidadãos um tratamento equânime perante a Lei. Este conceito, todavia, possui cunho predominantemente formal, razão pela qual hoje deve se tratar também da concepção de igualdade material.
Esta última, diferentemente da primeira, implica na concretização deste princípio/objetivo no plano prático, não raro com a direta intervenção do Estado para a consecução de sua plena realização. Assim pensa Canotilho, com base em antigo preceito Aristotélico, quando concebe que “Exige-se uma igualdade material através da lei, devendo tratar-se por igual o que é igual e desigualmente o que é desigual”[9].
Sob outra perspectiva, tratando mais especificamente dos destinatários da isonomia, Celso Antonio Bandeira de Mello[10] tece a seguinte observação:
“O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é a norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.”
No entanto, apesar das obrigações impostas pela igualdade, seja material seja formal, em vários campos da vida social são verificadas profundas desigualdades que não escaparam à observação dos estudiosos das ciências sociais. Neste sentido, por exemplo, há muito que se aborda o caráter seletivo do sistema penal, que termina por escolher a sua clientela entre a massa de marginalizados e excluídos. Nestes termos, afirma o professor Paulo Queiroz[11]:
“Significa dizer, em outros termos, que o direito penal tende a privilegiar os interesses da classe dominante e isentar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos pertencentes a elas e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a orientar o processo de criminalização sobretudo até formas de desviação das classes inferiores. Exerce-se, portanto, por essa via, uma função ativa, de reprodução e produção de desigualdades.”
Nesta senda, constata-se que se por um lado o sistema punitivo se direciona contra os mais pobres, de outro isenta, de forma nada sutil e por meio de uma impunidade gritante, a classe diametralmente oposta. Heleno Cláudio Fragoso[12] faz semelhante crítica:
“A estrutura geral de nosso direito punitivo, em todos os seus mecanismos de aplicação, deixa inteiramente acima da lei os que têm poder econômico ou político, pois estes se livram com facilidade, pela corrupção e pelo tráfico de influências (…).
O quadro sombrio da realidade latino-americana apresenta comumente crimes e criminosos acima da lei, tornando puramente ilusória a igualdade proclamada nos documentos políticos.”
Esta crítica em muito se aproxima daquela elaborada pela Criminologia Crítica, que não se conforma com uma igualdade meramente formal, resíduo de uma deficiência histórica da humanidade na efetivação de alguns direitos fundamentais. Neste sentido, por todos, Juarez Cirino dos Santos[13]:
“A Criminologia Radical descobre o sistema de justiça criminal como prática organizada de classe, mostrando a disjunção concreta entre uma ordem social imaginária, difundida pela ideologia dominante através das noções de igualdade legal e de proteção geral, e uma ordem social real, caracterizada pela desigualdade e pela opressão de classe” (grifos no original).
A quebra desta situação perpassa, de forma inevitável, pela consagração da igualdade material no plano fático, seja no campo de estruturação normativa, seja no de execução desta legislação, o que, para determinados autores, poderia se traduzir numa igualdade material que atinja tanto o âmbito da criminalização primária quanto da secundária. Neste sentido, Zaffaroni e Nilo Batista[14].
“No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade, desconsiderado não apenas perante a lei mas também na lei. O princípio constitucional da isonomia (art. 5º, CR) é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distinta (arbitrária) dela.” (grifos no original).
Conclui-se, destas reflexões, que o sistema penal acaba por reproduzir uma lógica desigual que, no sistema capitalista, está intimamente relacionada à questão de classe. Isto se torna mais denso, outrossim, em países de pouca ou recente tradição democrática, fundados em sistemas político-econômicos que, como o Brasil, historicamente cultivam uma abissal disparidade social.
Esta criminalização seletiva conta ainda com o auxílio do mantra midiático de que a criminalidade é um fenômeno associado à pobreza, como se dela fosse conseqüência inevitável. Tal processo de criação de estereótipo foi desmistificado por Edwin Sutherland, nas já longínquas décadas de trinta e quarenta.
Por meio do conceito de White collar crime[15] o autor americano deixou claro que a criminalidade também é exercida por homens e mulheres bem sucedidos, financeira e/ou politicamente, geralmente no exercício e em razão de suas atividades profissionais. Com base no conceito do citado autor, tem-se os comentários de Zaffaroni e Nilo Batista[16]:
“(…) a comunicação oculta o resto dos ilícitos cometidos por outras pessoas de uma maneira menos grosseira e mostra as obras toscas como os únicos delitos. Isto leva à conclusão pública de que a delinqüência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo assumido por equivocados pensamentos humanistas que afirmam serem a pobreza, a educação deficiente, etc., as causas do delito, quando, na realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado da qual se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos de outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com refinamento.” (grifos no original).
Contudo, apesar da utilidade e do caráter transcendental do conceito formulado por Sutherland, profundas modificações ocorreram no mundo e nas relações sociais desde então. As Revoluções Industriais e tecnológicas trouxeram novos desafios para as ciências sociais e, neste âmbito, também para o Direito.
Alguns avanços, em regra positivos, são facilmente perceptíveis na velocidade da informação, da circulação de pessoas e capitais, na conectividade em tempo real ao redor do mundo e no princípio de formação de um cenário político-econômico multipolar.
Numa faceta oposta, que não merece ser comemorada, a criminalidade, valendo-se dos benefícios técnicos, tornou-se mais complexa, mais organizada e capaz de atingir maiores lucros com mais facilidade e, em contrapartida, em razão da maior interdependência econômica global, causar danos de maiores proporções à sociedade. Serrano-Piedecasas[17], ao tratar de associações e organizações criminosas, afirma:
“… estas organizaciones prefieren operar em operaciones que procuren grandes beneficios econômicos em poco tiempo, con poco riesgo y moderadas inversiones. Ejemplo de éstas serían: el trafico de drogas, que reporta ingentes dividendos, o la criminalidad económica de muy difícil persecución.”
Com isto, produz-se relevante paradoxo: se de um lado há um aumento significativo na complexidade e lesividade dos crimes cometidos pela classe dominante, por outro se dispensa a eles o mesmo tratamento diferenciado de outrora, tão contestado pela Criminologia Crítica. Na mesma esteira, Daniel Resende Salgado[18] alerta que:
“Passados, entretanto, quase setenta anos desde o início da ‘revolução copérnica’ viabilizada por Sutherland, os elaboradores das leis e seus aplicadores continuam, frequentemente, a conferir tratamento favorecido e desigual ao delinqüente econômico, se comparado ao criminoso comum.”
Resta evidenciado, portanto, que a seletividade do sistema penal ainda é uma questão central a ser trabalhada no sistema penal, tendo assumido dentro da sociedade atual um faceta ainda mais prejudicial, haja vista que a criminalidade das classes poderosas, aproveitando-se dos benefícios técnicos da globalização, ganhou contornos mais graves e ampliou significativamente o seu potencial lesivo.
Deste modo, antes mesmo de buscar soluções para uma proteção mais eficaz dos bens jurídicos supra-individuais, necessário compreender com maior profundidade o perfil desta criminalidade pós moderna, o que faremos no capítulo a seguir.
3. A criminalidade dos poderes
Conforme salientado acima, a investigação não pode se desenvolver sem uma melhor delimitação conceitual desta (pós) moderna criminalidade. Para tal tarefa, relevante trazer à baila o conceito de Ferrajoli, que melhor delimitando as características desta criminalidade organizada e altamente rentável, estabelece uma classificação segmentada em três grupos principais: A seguir, in verbis[19]:
“Qui mi limiteró a distinguire tre forme di criminalità del potere, accomunate dal loro carattere di criminalità organizzata: quella dei poteri apertamente criminali; quella dei crimini dei grandi poteri economici; quella infine dei crimini dei publici potere. Da um lato, dunque, i poteri criminali, dall´altro lato e crimini del potere, sia econômico che politico. Non si tratta di fenomeni criminali nettamente distinti e separati, ma di mondi tra loro intrencciati, per Le collusioni, fatte di complicità e di reciproca strumentalizzazione, tra poteri criminali, poteri economici e poteri istituzionali.”
Como se observa, o autor italiano põe lado a lado a criminalidade dita organizada, como o tráfico de drogas, que tem características abertamente criminosas, com a criminalidade velada dos grandes poderes econômicos e dos agentes públicos, que agem com maior discrição e refinamento.
Outro aspecto relevante a ser destacado é a relação praticamente simbiótica que existe entre estes três tipos de agir criminoso. Todos se relacionam e necessariamente terminam por colaborar para o sucesso dos demais. Pode-se dar como exemplo a contribuição da corrupção para o êxito das grandes operações de lavagem de dinheiro. A mesma corrupção dos agentes públicos também é fundamental para que os grandes traficantes possam operar em certos locais, muitas vezes com a colaboração de membros ou setores das corporações policiais.
Além disso, seria impensável que todo o dinheiro movimentado pelo tráfico de drogas, pela corrupção ou pelas grandes fraudes empresariais não circulasse pelo sistema financeiro internacional com espantosa facilidade. Pertinente questionar, inclusive: até quando será permitido aos ditos “paraísos fiscais” agir com este nível de conivência com atividades e inversões financeiras que, em boa parte das vezes, são notadamente criminosas?
Igualmente oportuno trazer à baila o entendimento de Luis Gracia Martín, que, averiguando a relação entre a criminalidade econômica e aquela denominada tradicional, expõe a primeira como fenômeno típico da globalização, altamente organizada, poderosa e cada vez mais escancaradamente criminosa[20].
“A delinqüência econômica em geral, e, dentro dela, sua macroscópica e mais complexa dimensão ligada à internacionalização e à globalização da economia, já não se mostra como um fenômeno social de tipo isolado, mas, ao contrario, como um fenômeno que ocorre, como destaca silva Sánchez, a partir de “elementos de organização, transnacionalidade e poder econômico. Até agora a criminalidade econômica e empresarial não internacionalizada se diferenciava nitidamente da chamada criminalidade organizada. A criminalidade econômica da globalização, entretanto, é uma criminalidade empresarial organizada que quase não se distingue da criminalidade organizada tradicional.” (grifos no original).
Destarte, diante das características imanentes à criminalidade dos poderes e de sua natural vinculação à globalização, possível perceber um perfil ontologicamente voltado a afetar os bens jurídicos de cunho supra-individual, aí compreendidos necessariamente aqueles mais caros ao Estado Democrático de Direito.
4. A proteção penal dos bens jurídicos supra-individuais
Restou demonstrado que a criminalidade de poder conta com um potencial lesivo muito amplo, valendo-se dos benefícios técnicos e científicos de modo a atingir interesses da sociedade como um todo, o que foge, neste particular, às características identificadas na criminalidade dita convencional.
Isto torna premente a necessidade de uma reflexão acerca dos bens jurídicos atingidos nestes crimes e da capacidade que detém o sistema penal de protegê-los, no âmbito da política criminal, de forma adequada. Preliminarmente, contudo, cabe melhor compreender a relação entre bem jurídico e política criminal, aproveitando-se dos dizeres de Paulo Vinicius Sporleder de Souza[21].
“(…) por vivermos em tempos de política criminal, como não poderia deixar de ser, a questão do bem jurídico (como conceito e teorização) exsurge naturalmente por ser a ela inerente. (…)
Se correto é que o objeto jurídico da tutela penal possui uma relevância inegável na teoria do delito como conteúdo material do injusto, precisa-se também reconhecer que a construção científica em torno do mesmo perfila-se como crucial em relação com a política criminal, já que a teoria do bem jurídico procura legitimar substancialmente as normas penais. (…) sendo figura central tanto nos discursos legitimadores da criminalização como nos discursos que propõem a limitação da intervenção penal, o bem jurídico-penal pode então ser encarado como o “conteúdo material” da política criminal legislativo-dogmática.”
Para caminhar nesta tarefa, pois, faz-se necessário perpassar pela relevante teoria do bem jurídico, delimitando seu conceito e suas funções sem perder de vista a sua natural e importante conexão com a evolução histórica dos direitos fundamentais.
No que tange ao conceito de bem jurídico, não há sobre ele uma definição pacífica na doutrina. No entanto, trazendo à baila alguns posicionamentos abalizados, permite-se uma compreensão mais ampla, tarefa que foi bem realizada por Luiz Regis Prado. Destacam-se os comentários feitos às posições de Welzel e Roxin[22].
“(…) Welzel considera o bem jurídico como um ‘bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente’. E que a missão do Direito Penal vem a ser a tutela de bens jurídicos mediante a proteção dos valores ético-sociais da ação mais elementares. (…)
Entende Roxin que bens jurídicos são ‘pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, que se caracterizam unma série de situações valiosas, como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação, ou a propriedade, que toda a gente conhece, e, na sua opinião, o Estado Social deve também proteger penalmente…’.”
Quando se passa a tratar das principais funções do bem jurídico se tem controvérsia um pouco menor. Regis Prado[23] afirma que serve o bem jurídico para limitar o poder punitivo do Estado, como critério informador na atividade legislativa penal. Tem ainda função teleológica ou interpretativa, na medida em que condiciona o sentido da norma à proteção de um determinado bem jurídico.
É também relevante a função individualizadora, servindo de parâmetro para a fixação da pena a gravidade e intensidade da lesão ao bem jurídico. Destaca-se ademais a função sistemática, auxiliando na organização, estruturação e classificação temática dos tipos no Código Penal.
Entretanto, esta concepção de bem jurídico, desde seu conceito até suas funções, merece ser revisitada, a partir da compreensão de que é fruto, como ciência social, de um processo evolutivo ainda em curso. Por esta razão, parte-se para um pequeno resgate histórico acerca da transição entre a consagração do Estado Liberal e, posteriormente, do Estado Social.
Com o primeiro surgiu uma gama enorme de novos direitos e garantias, de nítido caráter individual. Consagrando o liberalismo econômico e o liberalismo político, duas faces da mesma moeda, o cidadão passou a exigir do Estado uma atuação não invasiva (negativa) à sua esfera jurídica pessoal.
Contudo, após a crise de 1929 e com a política do Welfare State, a demanda por direitos de cunho social também logrou positivação constitucional, ao menos nos Estados que naquele momento gozavam regimes democráticos.
Diante das demandas criadas pelo Estado Social e pela criminalidade (pós) moderna, imperativo reconhecer a necessidade de proteger não só os bens individuais, mas igualmente os bens difusos e coletivos, rompendo com um paradigma nitidamente fundado numa concepção de Estado que não mais se adapta às necessidades práticas e aos riscos sociais atuais.
Diante deste novo contexto, a teoria do bem jurídico, por estar diretamente atrelada à Constituição, onde figuram implícita ou explicitamente os valores principais de determinada sociedade[24], deve laborar com a necessidade de uma reflexão acerca da eleição de novas prioridades. Não é outro o pensamento de Maria Auxiliadora Minahim[25]:
“Hoje, os bens jurídicos, para os quais se reclama a proteção do Direito Penal, têm natureza diferenciada daqueles que, desde o iluminismo, integravam o núcleo de suas preocupações. Pode-se mesmo afirmar que é a própria natureza do bem (difuso, supra-individual) e a forma de proporcionar-lhe proteção eficaz que constituem o cerne de toda a polêmica em torno do papel da intervenção do Direito Penal na chamada sociedade de risco.”
Parte significativa da doutrina[26], contudo, ainda crê que o Direito Penal deve intervir de forma mais enérgica para proteger bens jurídicos de cunho liberal iluminista, a fim de neutralizar as condutas criminosas das massas. Esta posição termina relegando a um segundo plano a tutela de bens jurídicos supra-individuais, aos quais se relaciona, por seu turno, a criminalidade de poder.
Tal conclusão parte da compreensão de que a legitimidade para a tutela penal não decorre necessariamente da índole individual ou coletiva do bem, mas sim de sua relevância constitucional. Yuri Carneiro Coelho[27] lembra que:
“(…) para que seja legítima a intervenção criminalizadora do Estado, é preciso que sejam considerados bens jurídicos fundamentais apenas aqueles que tenham suporte constitucional (…) dúvidas não restam de que a Constituição, e somente ela, pode fornecer o suporte valorativo para determinação dos bens jurídicos que necessitam de tutela penal.”
Neste particular, partindo do pressuposto de que o Direito Penal deve ser um instrumento de efetivação da realidade normativa da Constituição e tendo em mente que o “Direito Penal é resultado de escolhas políticas influenciadas pelo tipo em que a sociedade está organizada.”[28], há que se considerar uma eficaz proteção dos bens jurídicos supra-individuais como elemento central no combate à criminalidade de poder. Assim adverte Renato de Mello Jorge Silveira[29]:
“A categoria tradicional de bem jurídico está relacionada com a de Direito subjetivo, sendo que ambas remetam à idéia do indivíduo abstrato e isolado, própria do liberalismo, a qual serviu para legitimar a desigualdade substancial inerente ao sistema burguês. Dessa maneira, pretende-se articular uma vasta demanda política de satisfação de necessidade essenciais, reais e de participação no processo econômico, o que se produz mediante a tutela dos interesses difusos. Estes são definidos, pois, como um aspiração presente de modo informal e propagada massivamente em certos setores da sociedade, com um controle sobre o conteúdo e desenvolvimento das posições econômico-jurídicas dominantes, todavia, fechadas a uma participação.”
Para a consecução deste objetivo de concretização da demanda política por igualdade material é preciso superar a atual incongruência entre a legislação penal, elaborada sobre outro contexto histórico, e as demandas da criminalidade moderna. É o que Larenz[30] chama de “alteração da situação normativa”:
“Trata-se a este propósito de que as relações fácticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projectou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma dada deixou de se ajustar às novas relações. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação atuante com o seu tempo.”
Para tanto se fazem exigíveis novas incursões hermenêuticas e um processo organizado de reformulação da legislação penal atinente à matéria. Nesse contexto de crise, de questionamento do Estado Social projetado no pós-guerra e de eclosão de novas e desafiadoras formas de criminalidade pertinente questionar: quais alternativas jurídicas se mostram possíveis?
À guisa de resposta a tal pergunta, entende-se que é preciso se voltar aos direitos e garantias fundamentais e aos valores insertos na Constituição, buscando a concretização da igualdade material no plano normativo. Da mesma forma entende Oliveiros Guanais[31]:
“Para defesa e implementação da igualdade, deve o direito penal orientar-se para auxiliar a promoção dos interesses sociais, reprimindo-se condutas que atentem contra bens fundamentais de todos, alcançando indivíduos independentemente de classe social, desde que autores de condutas lesivas a bens jurídicos inseridos no plano constitucional de valores, praticadas de maneira reprovável.”
Há autores que, com razão de ser, creditam maior relevância qualitativa ao resguardo da classe de direitos supra-individuais, enquanto parte do instrumental realizador do Estado democrático de Direito. Neste sentido, Luciano Feldens e Lenio Streck[32]:
“No campo do direito penal, em face dos objetivos do Estado Democrático de Direito, estabelecidos expressamente na Constituição (…), os delitos que devem ser penalizados com (maior) rigor são exatamente aqueles que, de uma maneira ou outra, obstaculizam/dificultam/impedem a concretização dos objetivos do Estado Social e Democrático.”
Isto não significa, ressalte-se, perder de vista o fato de que se deve evitar uma inflação legislativa que extrapole o que aconselham a principiológica do próprio Estado Democrático e as garantias individuais consagradas, tendo que se buscar a conciliação entre a proteção penal de interesses relevantes e um exercício racional do jus puniendi.
Daí a necessidade, diga-se apenas de passagem, de se buscarem novas alternativas para a solução de conflitos, especialmente no âmbito dos crimes ditos clássicos, como os patrimoniais, com vítimas identificadas e maior viabilidade na utilização das modernas técnicas de mediação de conflitos penais, como a Justiça Restaurativa.
Flávio Pereira[33] comenta que “adverte com claridade Mir Puig, aduzindo que o Estado ‘social’ e ‘democrático’, deve ser uma síntese que complemente e aperfeiçoe o Estado ‘clássico’ e ‘liberal’, e não uma alternativa a esse”. No mesmo sentido, poeticamente enfatizando a importância do passado na construção do Direito presente, Gérson Pereira dos Santos[34]:
“O futuro do direito penal não importa na liquidação do seu passado porque esse passado não se perdeu para sempre como se fosse um dia que, no pós-crepúsculo, houvesse guardado todos os seus clarões no seio moreno da noite (…). No plano da ciência penal, o passado não estabeleceu um catálogo de princípios, e, desde sempre e para sempre, mas amanhou caminhos para uma evolução”.(grifos no original).
Isto posto, deve se compreender a importância de repensar o Direito Penal contemporâneo, especialmente a proteção penal dos bens jurídicos supra-individuais. Por este caminho parece passar a solução capaz de evitar a manutenção de um sistema penal ineficiente e seletivo, alheio às lesões mais grosseiras à coletividade, cometidas por agentes criminosos altamente poderosos e organizados e que contam, de modo equivocado, com o apoio de parte da doutrina e com um sem número de benesses de um Estado que se pretende democrático e igualitário.
Trata-se, por fim, de colocar o minimalismo penal diante do espelho, modificando a lógica punitiva em cento e oitenta graus. Ao invés de se dedicar a atenção do sistema e os parcos aparatos dos órgãos competentes para a persecução penal aos crimes tradicionais, deve ter como foco a criminalidade de poder, verdadeiramente atentatória à realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
5. Conclusões
Viu-se que a teoria do bem jurídico está atrelada de modo umbilical à evolução dos direitos fundamentais. Deste modo, na vigência do Estado Liberal, os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal tinham cunho eminentemente individual, partindo de uma concepção liberal iluminista que ainda permanece em grande medida no imaginário da comunidade jurídica e da sociedade como um todo.
Todavia, o ingresso brasileiro no sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais oriundo de uma concepção de Estado Social e, de modo simultâneo, num paradigma econômico neoliberal, fez despontarem novas exigências decorrentes tanto deste capitalismo moderno quanto do Estado Democrático de Direito.
Dentre tais exigências, destaca-se o desenvolvimento de uma criminalidade exercida de forma bastante complexa e organizada pelos grandes grupos econômicos e pelos agentes públicos, os quais, junto à criminalidade dita organizada, compõem, nos dizeres de Ferrajoli[35], a criminalidade de poder.
As características do capitalismo moderno, com a facilidade na circulação de capitais, informações e indivíduos, bem como as fusões, cisões e criação de conglomerados comerciais a nível mundial, potencializaram, às vezes em escala mundial, a danosidade social dos crimes praticados por tais agentes, além de tornar mais complexo seu combate pelos Estados nacionais.
Esta criminalidade, na maioria das vezes alijada de um processo efetivamente sancionador em razão da seletividade evidente (mas não declarada) do sistema penal, acaba tendo uma potencialidade lesiva muito mais intensa do que aquela exercida pela criminalidade tradicional, atingindo interesses sociais mais amplos, geralmente de cunho supra-individual, relacionados com os direitos fundamentais típicos do Estado Social.
Portanto, com o surgimento destas novas classes de Direitos Fundamentais, a maioria de cunho supra-individual, e com a emergência, no capitalismo moderno, de formas de criminalidade mais organizadas e complexas, exercidas normalmente pela elite política e econômica, a proteção penal dos bens jurídicos supra-individuais, normalmente mais atingidos por estas formas de criminalidade, deve ser um elemento central na atuação do Estado punitivo, de modo a contribuir com a consagração do princípio da igualdade material, a quebra da seletividade do sistema penal brasileiro e a realização no âmbito prático de relevantes preceitos do Estado Democrático de Direito.
Advogado Criminalista em Salvador, Bahia. Professor de Direito Penal da Faculdade Regional da Bahia – Unirb. Graduado em Direito e Mestrando em Direito Público (Direito Penal) pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado e Pós-graduando em Ciências Criminais pelo JusPodivm.
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