Resumo: De acordo com o princípio da precaução, se houver incerteza científica quanto à existência de um risco de dano grave ou irreversível ao ambiente ou à saúde deve-se agir de modo a gerir esse suposto risco, mesmo que isso represente a proibição de uma atividade econômica. Se, por um lado, a intenção desse princípio é proteger a vida humana e o meio ambiente, por outro ele pode desvirtuar-se em um instrumento de protecionismo econômico a serviço dos Estados. O presente artigo analisa em que medida o Brasil está comprometido com a aplicação do princípio da precaução. Em primeiro lugar, é fundamental contextualizar a questão na crise de vínculos e limites entre o Homem e a natureza, apontada por Ost. Em segundo, a constituição brasileira não só o permite como acolhe implicitamente o princípio da precaução. Enfim, o direito do MERCOSUL corrobora o compromisso brasileiro e abre espaço para a aplicação deste princípio. *
Introdução
Nos termos do princípio 15 da Declaração do Rio sobre meio ambiente e desenvolvimento: “de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. A idéia central do princípio da precaução é que a suspeita quanto à existência de um risco deve ser considerada, ainda que haja incerteza científicasenvolvimento econrtant innovations of the Rio Declaration” quanto à existência desse risco. A precaução evita um dano em potencial, grave e irreversível, cujo risco não foi comprovado. O princípio da precaução diferencia-se, então, do princípio da prevenção – pois este evita riscos cientificamente comprovados.
O presente artigo visa a analisar em que medida o Brasil está comprometido com a aplicação do princípio da precaução. O enfrentamento se dará sob um triplo enfoque. Na primeira parte será analisada a crise entre o Homem e a natureza, que segundo François Ost é uma crise de vínculos e limites. Em segundo, será investigado o compromisso constitucional brasileiro com a saúde e com o ambiente e a inclusão implícita do princípio da precaução. Como, porém, trata-se de um desafio global, na terceira parte será analisado o compromisso brasileiro no âmbito do MERCOSUL e a possibilidade de aplicação do princípio da precaução pelo sistema de solução de controvérsias do bloco.
1. A crise: do vínculo e do limite
Ensina François Ost que a crise ecológica não está apenas na destruição dos recursos ambientais finitos sem a sua necessária reposição ao ambiente. Muito além disso, e bem mais profunda, a crise está na própria relação humana com a natureza. No seu dizer,
enquanto não for repensada a nossa relação com a natureza e enquanto não formos capazes de descobrir o que dela nos distingue e o que a ela nos liga, nossos esforços serão em vão, como o testemunha a tão relativa efectividade do direito ambiental e a tão modesta eficácia das políticas públicas neste domínio.[1]
O autor então esclarece o conteúdo dessa afirmação, explicando que há uma dupla crise. Por um lado, há uma crise do vínculo do Homem com a natureza, o qual é “a própria possibilidade da alteridade e da partilha”[2]. Ou seja, o Homem, com o cartesianismo[3], perde a noção de vinculação com a natureza, em troca de um dualismo que promove um equívoco, qual seja, o de que o Homem, racional, não possuiria limitações.
Por outro lado, há dialeticamente uma crise do limite entre o Homem e a natureza, também decorrente do cartesianismo dualista. Quanto ao limite, “princípio de encerramento, ele é de igual modo princípio de transgressão”, ou seja, “ele é ponto de permuta e, simultaneamente, sinal de diferença”[4].
Enfim, nessa primeira parte do presente trabalho, referente a essa crise, cumpre, primeiro, compreender a dialética do tratamento da natureza pelo homem (1.1) para, a seguir (1.2), perscrutar a possibilidade de uma natureza-projeto no âmbito latino-americano.
1.1. A dialética de Ost: natureza-objeto e natureza-sujeito; enfim, natureza-projeto
Em dúvida com relação ao que o vincula à natureza, bem como no que diz respeito aos seus limites diante dela, o Homem ora a trata como mero objeto, ora como absurdo sujeito das suas relações jurídico-econômicas. Entre esses dois extremos antitéticos e reciprocamente equivocados, o citado autor procura uma síntese, a que chama natureza-projeto.
A natureza reduzida a objeto é, para Ost, a tese do raciocínio, a qual é identificada em três momentos. Primeiro, ela está no paradigma cartesiano do artifício, que provoca a ilusão do dualismo entre o Homem, racional, e a natureza, irracional.[5] Depois, como decorrência deste dualismo, a natureza é coisificada e, então, apropriada pelo Homem, com fundamento no liberalismo iluminista, especialmente na noção dogmática de propriedade, até o problema atual do direito das patentes.[6] Enfim, os problemas da natureza-projeto, quando atacados, não rompem com a lógica do objeto, e surge um direito ambiental, mas que ainda é limitado, porque somente existe após ser negociado[7].
Já a antítese desse pensamento está na natureza ampliada a sujeito, vale dizer, nos equívocos da ecologia profunda[8], malgrado a tentativa de retorno a um período arcaico. Isso conduziu a um exagero no outro extremo, o exagero de superestimar a organicidade do mundo, sujeitando de maneira absoluta o Homem e sua vontade.[9]
Em outras palavras, na idéia de natureza-objeto o elemento natureza é desconsiderado, ao passo que na idéia de natureza-sujeito o é o elemento Homem. Por isso ambas são equivocadas e geram a crise do vínculo, porque, logicamente, “só podem existir vínculos entre elementos previamente reconhecidos”[10].
Assim, é importante chegar a uma síntese, a qual é desenhada por Ost como natureza-projeto. Para resolver o problema dialético entre o natural (natureza-sujeito) e o positivo (natureza-objeto), o autor traz uma terceira categoria, a do justo[11], que informa a natureza-projeto. Pela perspectiva da justiça o autor desenha um especial direito intergeracional, cujos postulados fundamentais (referentes à responsabilidade e ao patrimônio) têm as seguintes linhas gerais.
A limitação da nossa vontade actual de poder e de usufruto é o garante do estabelecimento de vínculos com as gerações que nos precederam e com as que nos sucederão. Longe de ser um meio termo medíocre entre dois extremos, o meio justo surge como uma alternativa radical: radicalidade da exigência ética da partilha, radicalidade epistemológica do ‘espaço intermédio’ (o meio como tensão entre o objecto e o sujeito).[12]
A partir dessa dialética, Ost chega ao problema fundamental, que consiste precisamente em saber “o que fazemos da natureza e o que ela faz de nós”[13]. Compreendida essa idéia teórica, pode-se olhar para o problema da sustentabilidade no âmbito do sub-continente latino-americano.
1.2. Por uma natureza-projeto latino-americana
Ao se pensar em uma natureza-projeto latino-americana, aplicável, portanto, aos países do MERCOSUL, é importante considerar alguns aspectos abordados por Franza com relação à temática do desenvolvimento sustentável. Muito embora este autor não trabalhe com os conceitos de Ost, é válido tratar analogamente as idéias do primeiro como uma forma de pensar a natureza-projeto na América Latina.
Tendo em mente a dupla questão do que fazer da natureza e do que ela faz de nós, proposta por Ost, uma variável desta equação, fundamental para que se conheça o seu resultado, é o desenvolvimento sustentável. Para Franza, a sustentabilidade tem cunho intergeracional e possui três dimensões: ecológica, econômica e social[14]. Por um lado, a lição de Franza indica um tratamento eminentemente econômico dos problemas ambientais, o que é discutível. Por outro, há a exigência de uma maior participação da sociedade civil nas discussões e decisões referentes do desenvolvimento sustentável, o que se harmoniza com os sistemas democráticos, mas com uma ressalva, qual seja, a necessidade de diminuição das desigualdades sociais. De fato, voltemos a Ost, para quem “a injustiça das relações sociais gera a injustiça das relações com a natureza”[15].
Franza lembra, ainda, a necessidade de definição, em cada Estado, do seu interesse nacional[16], para viabilizar uma concreta sustentabilidade. Assim, seja no que se refere ao social, seja no que diz respeito ao estatal, os desafios com que se depara a América Latina poderiam ser enfrentados através da perspectiva do justo, que Ost quer aplicar a um direito ambiental eficiente até as gerações futuras.
Dito isso, para se pensar em uma natureza-projeto latino-americana há que se enfrentar, primeiro, o hercúleo obstáculo das desigualdades sociais, de sociedades em que estão presentes, além da miséria econômica, que por vezes é absoluta, também a miséria intelectual, a miséria democrática, a miséria humana, enfim. Eis uma questão prejudicial.
2. A constituição brasileira e o princípio (implícito) da precaução
O direito ambiental se constrói no contexto de crise de vínculos e limites entre o Homem e a natureza. A construção deste direito se dá, fundamentalmente, pelo desenvolvimento de uma principiologia própria que lhe dá a tessitura de um direito intergeracional. Contido nessa principiologia se encontra o princípio da precaução.
O princípio da precaução, embora não seja explícito no texto constitucional brasileiro, pode ser interpretado a partir das disposições constitucionais de direito sanitário e de direito ambiental (2.2). Essa interpretação é possível à luz da democracia e da concepção de Estado defendida por Gomes Canotilho (2.1).
2.1. O compromisso democrático
Consoante o pensamento jurídico-democrata contemporâneo, de José Joaquim Gomes Canotilho, o Estado possui quatro dimensões inseparáveis: a juridicidade, a democracia, a socialidade e a sustentabilidade ambiental[17]. Para este autor o Estado só é de direito se for democrático. O autor sugere que a não-democracia significa o império da força e esta, quando confundida com o “direito”, constitui o “não-direito”[18].
O ambiente é, então, uma dimensão fundamental do Estado, que depende da democracia[19]. Isso porque a opção democrática vincula o Estado a determinados princípios jurídicos próprios da ordem democrática; ou seja, não se pode fazer democracia à la carte, ela é uma opção radical. Os Estados do MERCOSUL, uma vez que são democráticos e se comprometem com os direitos humanos, estão igualmente vinculados a esse compromisso com o ambiente e com a saúde.
A evidência da opção democrática desses Estados é palpável nas suas constituições. A vigente constituição brasileira considera a democracia o cerne do próprio Estado, ao passo que apresenta os seus “fundamentos” somente após afirmá-lo como “Estado Democrático de Direito” (art. 1º).
Além da imposição constitucional, há uma importante norma criada em conjunto pelos quatro Estados mercosulinos, no âmbito do processo de integração. Trata-se da cláusula democrática[20] do MERCOSUL, inserida no texto do Protocolo de Ushuaia[21]. Tal mecanismo jurídico possibilita, em caso de rompimento da ordem democrática em algum dos Membros (art. 2º), que os demais, após consultas e por unanimidade, apliquem medidas “desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos” (art. 5º), até que se convençam de que tenha sido restaurada a ordem democrática. Trata-se de uma sanção a ser imposta pelos demais membros, ainda que de caráter temporário, pois tais medidas “cessarão a partir da data da comunicação a tal Estado da concordância dos Estados que adotaram tais medidas de que se verificou o pleno restabelecimento da ordem democrática” (art. 7º). Esse importante mecanismo de controle democrático tem como requisito de aplicação a ruptura da ordem democrática, sem uma expressa definição do que seja, de quais sejam suas condições ou exigências fáticas. A decisão pela imposição das referidas sanções fica ao alvitre dos demais Membros, caso consultem o Estado periclitante sem obter resultados frutíferos.
A vinculação à ordem democrática no âmbito das relações exteriores desses Estados, inclusive o Brasil, sobretudo por se tratar do campo da integração regional, corrobora seus compromissos constitucionais.
2.2. O compromisso sanitário-ambiental e o princípio da precaução
Embora implícito ao direito à vida, o direito à saúde e ao meio ambiente sadio é objeto de disposições expressas em cada uma das constituições dos Estados Partes do MERCOSUL. O princípio da precaução, junto com o princípio da prevenção, são os principais instrumentos para a realização desse compromisso constitucional.
O art. 225 da constituição brasileira garante a todo brasileiro a realização da dimensão ambiental do Estado democrático e contempla, ainda que de modo implícito, o princípio da precaução. Afinal, a precaução, assim como a prevenção, é elemento fundamental para que o ambiente esteja ecologicamente equilibrado para as gerações futuras. Além disso, o inciso IV do § 1° do art. 225 dispõe sobre a exigência do estudo prévio de impacto ambiental. Neste sentido, Solange Teles da Silva refere o seguinte:
Explicitamente consagrado pelo ordenamento jurídico, como ocorre em direito internacional ou, por exemplo, no direito alemão ou francês, ou implicitamente fazendo parte da estrutura normativa, aflorando do artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de 1988, o princípio da precaução busca responder aos objetivos de segurança reforçada e à necessidade de regulamentação jurídica das dúvidas que advêm do desenvolvimento da ciência.[22]
O texto constitucional brasileiro é, entre os mercosulinos, o que mais se aproxima de uma referência explícita à precaução, tanto no que se refere à saúde, como no que diz respeito ao ambiente. Quanto à saúde, a constituição brasileira, no art. 196, traz expressa a referência ao risco. Ora, é precisamente este o objeto do princípio da precaução, o risco – especialmente quando não houver certeza científica quanto a sua existência. Além disso, a professora Sueli Gandolfi Dallari leciona que a tutela da saúde na constituição brasileira pressupõe a democracia e pauta-se no direito fundamental de toda pessoa humana a ter acesso à saúde, impondo políticas públicas que atendam a tudo o que está incluído no conceito de saúde[23].
Além da inclusão implícita do princípio da precaução na ordem constitucional, é relevante a vinculação do Brasil e dos demais países do MERCOSUL a tratados internacionais – ou ao menos a instrumentos de soft law internacional – que expressamente refiram a precaução. Assim, há que se considerar, por exemplo, o princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável, o preâmbulo da Convenção sobre Diversidade Biológica, o art. 3º da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a mudança climática, o preâmbulo e o art. 1º do Protocolo de Cartagena sobre biossegurança da Convenção sobre diversidade biológica, bem como o preâmbulo e o art. 1ºda Convenção de Estocolmo sobre contaminantes orgânicos persistentes. Embora com nuanças, estes documentos de alguma forma referem o princípio, ou enfoque, da precaução.
3. O compromisso sanitário-ambiental brasileiro no âmbito do MERCOSUL
A precaução é um princípio jurídico de direito ambiental e sanitário aplicável no sistema jurídico do MERCOSUL. No MERCOSUL não há uma ordem jurídica de tipo comunitária, havendo grande dependência do direito interno de cada Estado Membro, em função da ficção jurídica da vigência simultânea. Tampouco há referência expressa ao princípio da precaução nos textos do MERCOSUL – embora muitas vezes seja afirmado o princípio da prevenção. No entanto, vários elementos levam a concluir pela inclusão do princípio da precaução como uma norma aplicável diante de incertezas científicas quanto a riscos de danos graves ou irreversíveis à saúde humana ou ao meio ambiente. Assim, é importante compreender por que pode ser feita essa afirmação (3.1). É importante, também, analisar a possibilidade de o sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL atuar nesse sentido (3.2).
3.1. O princípio da precaução no direito mercosulino
A opção democrática, que vincula os Estados ao compromisso da sustentabilidade ambiental, logicamente os vincula aos princípios da precaução e da prevenção. Uma vez que o princípio da precaução é implícito à constituição de cada Estado Membro, ele é, por transposição, princípio aplicável no contexto do MERCOSUL. A comunhão constitucional promove a elevação de normas internas fundamentais à categoria de normas regionais. O Protocolo de Ushuaia sobre o compromisso democrático no MERCOSUL, por exemplo, traduz esse fenômeno. Quanto ao princípio da precaução, ainda não há um Protocolo que, formalmente, estabeleça este como um princípio do direito originário do MERCOSUL. O reconhecimento explícito seria importante, embora não seja imprescindível.
Especialmente no MERCOSUL, há o Anexo I ao TA, que contém o Programa de Liberalização Comercial do período de transição. Na lição de Olivar Jimenez, tem-se:
O parágrafo inicial do artigo 1° do Anexo consagra o princípio fundamental do programa de liberação: a eliminação dos gravames e demais restrições aplicadas ao comércio recíproco dos Estados-partes. A definição de gravames e restrições está prevista no artigo 2°, que especifica com relação às segundas ‘…Não ficam compreendidas no mencionado conceito as medidas adotadas em virtude das situações previstas no artigo 50 do Tratado de Montevidéu 1980’.[24]
O art. 50 do Tratado de Montevidéu de 1980 – constitutivo da ALADI – prevê exceções à liberalização comercial para a proteção da vida e da saúde das pessoas, animais e vegetais. O MERCOSUL obedece a esse mesmo preceito. Lembre-se que o TA foi inscrito na ALADI, bem como é condição para o ingresso de novos Membros ao MERCOSUL a sua participação naquela organização internacional. Ademais, como se verá logo em seguida, esse dispositivo do Tratado de Montevidéu já foi referido no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL.
O uso dessa exceção – do art. 50 do Tratado – não pode desvirtuar a sua razão de ser, de modo que deve haver um controle na sua aplicação. Assim, as medidas de proteção da vida e saúde das pessoas, dos animais e dos vegetais precisam, tanto quanto possível, de contornos jurídicos precisos. Não há dúvida de que medidas de precaução ou de prevenção podem ser adotadas sob as letras deste dispositivo citado. Mais uma vez no magistério de Olivar Jimenez,
as hipóteses consagradas no art. 2° [do Anexo I ao TA] constituem, na realidade, exceções ao princípio geral. Sendo assim, sua interpretação deve ser restrita e as medidas não poderão ser nem discriminações arbitrárias, nem restrições disfarçadas ao comércio entre os Estados-partes.[25]
Além das exceções do art. 50 do Tratado de Montevidéu de 1980, também é importante analisar o Acordo-Quadro sobre meio ambiente. O Acordo-quadro sobre meio ambiente abre novas possibilidades para a aplicação de medidas excepcionais ao livre comércio, bem como amplia as possibilidades de discussão desse tema no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL. Com efeito, quando, no art. 1°, são reafirmados os princípios da Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento, de 1992, é reafirmado o princípio da precaução – Princípio 15 da Declaração. Antes, cada um dos Estados Membros já havia acolhido, individualmente, a principiologia sedimentada na ECO-92. Agora, houve uma afirmação comum dessas normas. Agora, esses são princípios do direito ambiental do MERCOSUL. Combinadamente com o art. 1°, o art. 8° permite que esses princípios ratificados globalmente em 1992 sejam levados ao sistema estipulado em Olivos.
A atuação jurisdicional é fundamental no sentido de maior afirmação deste princípio. Por um lado, compete a cada magistrado dos Países Membros estar atento ao direito do MERCOSUL para aplicá-lo concretamente no âmbito interno. Por outro, os árbitros mercosulinos têm nas mãos a possibilidade de oferecer aportes jurídicos à integração de um modo geral, mas especialmente à afirmação de conteúdos jurídicos que ainda carecem maior reconhecimento, como é o caso do princípio da precaução. Assim, para que o MERCOSUL alcance verdadeiramente o status de processo de integração, em alguma medida supranacional, e não de simples cooperação intergovernamental, é urgente a existência de um Tribunal do MERCOSUL – autônomo, vinculante, obrigatório e que atue em constante cooperação com aos juízes nacionais.
3.2. O princípio da precaução no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL
Como visto, existe a possibilidade de os Estados Membros do MERCOSUL aplicarem medidas que excepcionem o princípio da não-discriminação. Essas medidas, que excepcionariam o livre comércio, poderiam representar entraves indevidos ao comércio regional, mas também poderiam ser legítimas manifestações de preocupações governamentais com a vida, com a saúde, com o ambiente. O art. 50 do Tratado de Montevidéu de 1980 permite a adoção de tais medidas. Diante da possibilidade de desvirtuamento do discurso do princípio da precaução, é importante a atuação de um eficiente sistema de solução de controvérsias.
O sistema de solução de conflitos vigente na atualidade é o estabelecido pelo PO e complementado pela normativa de direito derivado correspondente. Embora tenha substituído o Protocolo de Brasília (PB), que por sua vez substituíra o Anexo III ao TA, Olivos ainda não é um sistema definitivo (art. 53 do PO).
O PO estabelece que, em primeiro lugar, são realizadas negociações diretas (arts. 4° e 5°). Caso não se obtenha êxito com essas negociações, poderá haver a intervenção do GMC, o qual se pronunciará por recomendações e poderá contar com o auxílio de especialistas (arts. 6° a 8°). A etapa propriamente arbitral contempla a atuação do Tribunal Arbitral Ad Hoc (TAH) e do Tribunal Permanente de Revisão (TPR). O TAH, composto por três árbitros, decidirá através de laudo arbitral (arts. 9° a 16). O PO, inovando com relação ao PB, prevê um procedimento de segunda instância; trata-se do recurso de revisão que poderá ser interposto perante o TPR e limitar-se-á a questões de direito (art. 17). O TPR “poderá confirmar, modificar ou revogar a fundamentação jurídica e as decisões do Tribunal Arbitral Ad Hoc” (art. 22.1) e seu laudo “será definitivo e prevalecerá sobre o laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc” (art. 22.2). Não obstante a dupla instância, há a possibilidade de as partes submeterem a contenda diretamente ao TPR, que nesse caso decidirá em única instância (art. 23). Os laudos, tanto do TAH como do TPR, são obrigatórios (art. 25 e 26) e permite-se a interposição de recursos de esclarecimento (art. 28). O vencedor, caso considere insuficientes as medidas adotadas pelo vencido para o cumprimento do laudo, poderá impor medidas compensatórias, as quais poderão ser contestadas perante o TAH ou o TPR, conforme o caso (art. 30 e 31). Além disso, a qualquer momento poderá haver acordo ou desistência, nos termos do art. 45 do PO.
Recorde-se que um princípio de direito pode fundamentar uma decisão do sistema de Olivos, nos termos do art. 34.1, in fine, do PO – regra, aliás, que já era contemplada pelo art. 19.1, in fine, do PB. Logo, o princípio da precaução pode ser aplicado pelo TAH ou pelo TPR. Interessam, quanto ao tema, dois casos: o caso dos fito-sanitários e o recente[26] caso dos pneus remoldados.
A Argentina, através da Lei 25626 de 2002, proibiu a importação de pneumáticos remoldados, medida que prejudicaria as exportações uruguaias deste produto. Frustradas as negociações, o Uruguai provocou o procedimento arbitral. O laudo, por maioria, declarou a compatibilidade da legislação argentina com a normativa MERCOSUL. O Uruguai então interpôs recurso de revisão, acolhido pelo TPR por maioria.
O Uruguai sustentou que a Lei 25626, da Argentina, criou uma injustificada proibição de circulação de bens, precisamente os pneumáticos remoldados, sem nenhuma justificativa nas exceções do art. 50 do Tratado de Montevidéu[27]. A Argentina defendeu-se sustentando que sua legislação encontra respaldo no art. 50, d, do Tratado de Montevidéu de 1980, o qual excepciona o livre comércio quando se trata de proteger a vida e a saúde humana, animal e vegetal. A proibição determinada pela lei 25626 seria informada pelos princípios da prevenção e da precaução, no sentido de evitar possíveis danos sanitários e ambientais decorrentes dos pneumáticos remoldados.
O TAH aplicou os princípios da precaução e da prevenção, entendendo que são de princípios seguramente aplicáveis no âmbito do MERCOSUL. Para tanto, o TAH acolheu a idéia de que a incerteza científica é um elemento inafastável da realidade hodierna. Ademais, o TAH convenceu-se de que é necessário que as políticas ambientais – de cada um dos Estados e do próprio bloco – acolham as incertezas científicas. Conseqüentemente, o próprio direito abre-se a elas, desde que fundamentadas, e então o princípio da precaução é norma aplicável.
Em recurso de revisão à decisão do TAH, o TPR foi chamado, pela primeira vez, a atuar. Em seu laudo, o TPR revogou e substituiu o laudo do TAH, alterando a decisão de primeira instância. O TPR reconheceu que no direito mercosulino não há critérios específicos para aplicação de exceções ao livre comércio; especialmente, faltam critérios específicos para a aplicação das exceções do art. 50 do Tratado de Montevidéu[28]. Ao não perseguir esses critérios, ao não os determinar jurisprudencialmente, o TAH teria incorrido, segundo o TPR, em grave erro de direito[29]. Então, o Tribunal de Assunção passou a explicar que elementos, no seu entender, devem ser analisados quando se está diante da possibilidade de impor exceções ao livre comércio intrabloco.
O primeiro elemento seria a efetiva restrição ao comércio intrabloco. O laudo assevera que é possível aplicar medidas restritivas ao livre comércio, desde que devidamente justificadas. Tais medidas restritivas, em um segundo aspecto a ser analisado, podem ou não ter caráter discriminatório – no caso em tela, o TPR entendeu haver discriminação. A seguir, o terceiro elemento para a aplicação de exceções ao livre comércio é saber se a medida restritiva, ainda que seja discriminatória, encontra justificação juridicamente aceitável. Nesse ponto, o TPR parte da idéia de que as exceções devem ser interpretadas restritivamente, o que é razoável, e afirma a proporcionalidade como prumo. No caso concreto, o Tribunal entende que a proibição não respeita a exigência de proporcionalidade, entre outras razões porque o dano que a Argentina quer evitar não seria grave ou irreversível.[30]
Especialmente no que tange a esta última consideração – de que não se trataria de um dano grave ou irreversível – a interpretação do TPR já afasta a aplicação do princípio da precaução. Ora, são bastante aceitos os critérios de gravidade e irreversibilidade do possível dano como elemento fundamental para a aplicação do princípio da precaução – nunca se esqueça que a aplicação deste princípio deve ser criteriosa, para evitar que ele sirva ao protecionismo econômico como barreira injustificada ao comércio.
No correr da fundamentação do laudo de revisão, o TPR diversas vezes sustentou-se na experiência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE), especialmente sob o enfoque do livre do livre comércio. É seguramente positivo que o Tribunal de Assunção se socorra no TJCE – e não no sistema da OMC –, pois o exemplo europeu é um exemplo de integração. No entanto, ao referir a jurisprudência comunitária européia o TPR curiosamente ignorou a construção jurisprudencial do TJCE que diz respeito especificamente aos parâmetros de aplicação do princípio da precaução. Ou seja, o TPR analisou o caso sob o ponto de vista do livre comércio e suas exceções, e não do princípio da precaução diretamente. Assim, no laudo de revisão, protagonista é o comércio, restando à saúde e ao ambiente os papéis coadjuvantes.
Considerações finais
Evidentemente, não será apenas pelo aprofundamento dos laços de integração de se resolverão os problemas ambientais de cada um desses Estados, mas o esforço comum se torna mais do que a simples soma de cada parte. Ou seja, há um ganho qualitativo nas instituições e, portanto, no ordenamento jurídico desses Estados. Mesmo na sua atual e limitada natureza intergovernamental, o MERCOSUL já teve um exemplo desse ganho qualitativo na sua Cláusula Democrática, comprovando que o interno se beneficia do regional. Por que, então, não pensar que o mesmo ganho possa advir de uma política, ou mesmo um direito, ambiental comum?
Preocupado com isso, Bonesso de Araujo indica dois caminhos. O primeiro, implica a existência de leis eficientes em cada Estado-Membro, e que estas leis sejam harmonizadas. Apontando o desafio que representa a harmonização normativa, o autor apresenta esse caminho como um caminho a longo prazo. Indo além, Araujo propõe que a harmonização seja uma etapa, a ser superada, então, pela unificação normativa ambiental, isto é, pela existência de leis comuns. O autor fundamenta sua proposta na necessidade de tratar um problema global (o problema ambiental) de modo internacional, isto é, na existência do direito ambiental internacional, citando exemplos de problemas transfronteiriços entre os quatro signatários do Tratado de Assunção.[31]
O segundo caminho indicado pelo Professor Bonesso de Araujo é a necessidade de que os povos latino-americanos abandonem a lógica desenvolvimentista do interesse a curto prazo[32], o qual, despreocupado com o ambiente, o dilapida sistematicamente com praticamente nenhum benefício social para as populações autóctones. Trata-se, assim, de repensar os “padrões de produção e consumo”[33]. A superação dessa lógica antiecológica pode ser conseqüência da efetivação do primeiro dos dois pontos abordados por Ost para o direito ambiental na natureza-projeto, o qual se refere a uma nova concepção ética da responsabilidade, caso isso seja alcançado.
De qualquer forma, este segundo caminho, a princípio, depende mais da sociedade do que do direito. Evidentemente, o direito pode o estimular, sobretudo com políticas públicas positivas para os amigos do ambiente. Porém, essencialmente, trata-se de algo que depende de todos os cidadãos e de cada um. Aqui, podemos retomar a idéia de um novo compromisso social, um novo pacto, que tenha conteúdo ambiental intergeracional. Enfim, no que se refere aos países mercossulinos, segundo Araujo,
basta sair de uma velha rota conhecida e pouco eficaz, a da aposta no curto prazo e, investir, solidariamente, num desenvolvimento que se traduza em sustentabilidade econômica e qualidade de vida para todos.[34]
Ao cotejar a constituição brasileira com os compromissos no âmbito do MERCOSUL, em matéria sanitária e ambiental, pode-se concluir que há amplo espaço para a aplicação do princípio da precaução. Por certo esse princípio deve ser aplicado criteriosamente, para que não sirva de instrumento para o protecionismo econômico disfarçado. Portanto, é importante que o sistema de solução de controvérsias do bloco tenha força garantir uma aplicação cuidadosa do princípio da precaução. O recente caso dos pneumáticos tem a importância de demonstrar que assuntos sanitários e ambientais são assuntos centrais em um processo de integração.
Doutorando em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP. Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (MILA/UFSM)
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