Resumo: A democracia na América, de Alexis Tocqueville é considerada até hoje a melhor descrição do funcionamento político-administrativo e de características sociais dos Estados Unidos. Escrito em 1831, quando o jovem autor desembarcara em Rhode Island com o pretexto de percorrer o país para realizar estudos para um reforma no sistema penal francês, a obra é por muitos considerada ao lado do manifesto comunista de Marx e Engels como uma das obras políticas mais importantes do Século XIX. Ao longo da obra, poucos traços fundamentais do caráter e da sociedade americana escapara à percuciente análise do autor. No presente trabalho buscamos fazer uma viagem histórica, tomando como ponto de partida a América de 1830 analisada por Tocqueville até chegarmos aos dias atuais, imaginando o que diria este célebre autor sobre esta América do Século XXI.
Abstract: The democracy in America, of Alexis Tocqueville is considered until today the best description of the politician-administrative functioning and social characteristics of the United States. Writing in the 1831, when the young author disembarks in Rhode Island with the excuse to cover the country to carry through studies for one reform in the French criminal system, workmanship is for many considered to the side of the communist manifesto of Marx and Engels as one of the workmanships more important politics of Century XIX. Throughout the workmanship, few basic traces of the character and the American society escape to detail analysis of the author. In the present work we search to make a historical trip, taking as starting point America of 1830 analyzed by Tocqueville until arriving at the current days, imagining what it would say this celebrates author on this America of the XXI Century.
Sumário: Introdução; Capítulo I – a América do século XIX; Capítulo II – o relato de Tocqueville; capítulo III – a América do século XXI; Conclusões; Referências.
Introdução
No ano de 1835 foi editado na França um grande livro sobre a importância da democracia na América. Seu autor será um jovem jurista francês chamado Alex de Tocqueville, o qual se consagraria como um dos mais renomados escritores de inclinação liberal da política moderna.
Nascido numa ilustre família, descendente de um irmão de Santa Joana D’Arc, parente de Chateaubriand e bisneto do estadista Chrétien de Malesherbes (conselheiro de Luís XV e XVI), tendo, portanto, vínculos com o Ancien Regime, foi obrigado, em mais de uma ocasião, a deixar a França. Em 1831, devido a problemas pessoais que a derrubada dos Bourbons lhe causava, empreendeu uma viagem aos Estados Unidos cujo resultado o tornaria célebre.
Descontente com o novo regime implantado na França com a Revolução de 1830, Alexis de Tocqueville, descendente de uma família ultra-realista que padecera o diabo na época do terror (1793-4), viajou para a América do Norte juntamente com um outro jovem jurista como ele, chamado Gustave de Beaumont. Encontraram um pretexto para vir estudar as instituições penais norte-americanas à procura de novas idéias que pudessem ser aplicadas na reforma do Código Penal, que na ocasião se debatia em seu país.
Aportando em Newport, Rhode Island, em nove de maio de 1831, durante os onze meses seguintes, empregando todos os meios de transporte então disponíveis, os dois fizeram um longo périplo de 7.500 quilômetros por boa parte da América do Norte, passando por 18 dos 24 estados que então compunham a União, percorrendo-a de Nova Iorque ao Canadá e dali até o Sul, a Nova Orleans. Das margens do Mississipi, rumaram depois para o norte, para Washington DC, e dali de volta para Nova Iorque, onde tomaram um barco para a França em 20 de fevereiro de 1832. No caminho, entrevistaram inúmeras pessoas, entre elas dois ex-presidentes.
Como produto de sua viagem ao redor dos Estados Unidos não resultou apenas o relatório com o qual teria cumprido seu objetivo, mas também uma série de anotações que permitiriam ao autor escrever um livro com a melhor descrição (até hoje considerada insuperável), do funcionamento do regime político norte-americano: La Démocratie en Amerique (A Democracia na América, cujo 1º volume é de 1835 e o 2º é de 1840, com quase mil páginas).
Passados aproximadamente 176 anos desde a visita de Tocqueville e Beaumont à América, muitas transformações ocorreram. O que diria Tocqueville acaso aportasse na América do Século XXI? De país emergente a maior potência mundial. Qual o retrato da democracia neste novo país quase dois séculos depois? Para responder a tais questões é preciso estudar mais a fundo; fazer uma viagem ao longo da história americana desde o Século XIX até o presente.
Capítulo I – a América do século XIX
Em meados de 1830 os Estados Unidos da América limitavam-se, como já se viu, basicamente a 24 estados concentrados na costa atlântica e em parte do Meio-Oeste. Territorialmente ocupavam um pouco mais de um terço dos atuais Estados Unidos, sendo que a sua população não ultrapassava a 13 milhões de habitantes. O restante do continente era território índio, estados da República mexicana (Texas, Arizona, Novo México, Califórnia) ou ainda se encontrava em mãos das potências colonialistas, como a Grã-Bretanha (Canadá, Oregon) e a Rússia (Alasca). A escravidão confinava-se aos estados do sul, nas terras do tabaco e do algodão, enquanto o Norte e o Oeste recém-desbravado acolhiam os que para lá partiam em busca de oportunidades.
Quando chegou à América, Tocqueville encontrou em pleno curso as grandes transformações iniciadas no período de Andrew Jackson. A vitória deste em 1829 foi como o início de uma nova era na vida dos americanos. Foi um dos poucos presidentes dos Estados Unidos de alma e coração inteiramente simpáticos à gente mais simples. Acreditava no homem comum, na igualdade política e de oportunidades econômicas e detestava o monopólio e o privilégio.
Nos tempos de Jackson, o igualitarismo alcançava um grau jamais visto, mesmo em tempos jeffersonianos, quando se acreditava num governo do povo, para o povo, mas não pelo povo. Foi senão na época de Jackson que o igualitarismo se tornou fundamental na vida americana. Permitiu-se o domínio sem obstáculos da maioria afastando-se as restrições ao sufrágio, abolindo-se as qualificações da propriedade para exercício de mandatos, limitando-se a duração dos mesmos e cortando-se drasticamente o número de cargos eletivos ou não eletivos. Todos eram iguais em talentos e cada americano poderia ocupar qualquer posição do governo; e a democracia exigia um rodízio de mandatos de modo a impedir a formação de uma intocável elite burocrática.
Foi neste cenário de uma América com aproximadamente meio século de independência, entusiasmada e confiante, que Tocqueville, sem se desprender de suas origens francesas, pretendeu descrevê-la completa e fielmente.
Capítulo II – o relato de Tocqueville
O que, num primeiro momento, mais chamou a atenção de Tocqueville, no seu contanto direto com os americanos, foi o fato de que a soberania do povo (que na maioria das demais organizações políticas conhecidas jaz oculta, escondida ou sufocada pelas mais variadas artimanhas de reis ou de tiranos), lá estava às escancaras. O dogma da soberania popular não era algo retórico. A preponderância dos interesses dos comuns saltara da vida comunal, estabelecida na época da colonização inglesa, e empalmara o governo estadual e o federal, depois da Revolução de 1776. Mesmo em Maryland, observou ele, um estado que desde a sua fundação era dominado por grande proprietários, proclamou-se o sufrágio universal e práticas democráticas outras. Os antigos mandões da República se conformaram. Como não podiam impedir o acesso do povo às instituições e assembléias, o patriciado tratou de bajular as massas.
Percebeu ele a existência de uma dinâmica irrefreável na democracia. A cada concessão arrancada aos ricos, o regime popular avançava para outra exigência, e desta para mais outra ainda. Convenceu-se, então, que lá “o voto universal dá, pois, realmente, aos pobres o governo da sociedade”. Tanto era assim que dois anos antes de Tocqueville desembarcar, em 1829, Andrew Jackson assumira a presidência dos Estados Unidos (um coronel da milícia da fronteira e plantador do Tennessee), claramente apoiado no voto das classes de menor renda da sociedade norte-americana.
O deslumbramento de Tocqueville com a igualdade vivenciada pelos americanos foi objeto de inúmeras passagens de sua obra, dentre as quais destacamos:
“… à medida que estudava a sociedade americana, via cada vez mais, na igualdade de condições, o fato essencial, do qual parecia descender cada fato particular, e o encontrava constantemente diante de mim, como ponto de convergência para todas as minhas observações”. (TOCQUEVILLE, 1977, P.11)
Para Tocqueville, os Estados Unidos eram o país onde a grande revolução social tão idealizada pelos franceses parecia ter chegado, pouco a pouco, aos seus limites naturais. Segundo o autor (1977, p.18), “ali, a revolução se realizou de um modo simples e fácil, ou melhor, poder-se-ia dizer que aquele país vê os resultados da revolução democrática que se realiza entre nos sem ter passado pela própria revolução”.
Ao se debruçar sobre o sistema administrativo dos Estados Unidos, Tocqueville espantou-se com a pujança e autonomia política das pequenas comunidades norte-americanas. Os municípios (county) eram tudo, como se fossem as células vivas do regime. Deles partiam iniciativas que, num movimento ascendente, chegavam até as altas esferas do Estado e da União. E isso era possível exatamente porque o poder central era limitado.
Havia ali duas sociedades distintas, ligadas entre si, encerrada uma dentro da outra; viam-se dois governos completamente separados e quase independentes: um, habitual e indefinido, que responde às necessidades quotidianas da sociedade, o outro, excepcional e circunscrito, que só se aplica a certos interesses gerais. Nas palavras de Tocqueville, “trata-se, em suma, de vinte e quatro pequenas nações soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da União”.
A descentralização administrativa na América produziu efeitos políticos admiráveis aos olhos de Tocqueville. Diz ele:
“Nos Estados Unidos, a pátria faz-se sentir por toda parte. É objeto de anseios desde a aldeia até a União inteira. O habitante liga-se a cada um dos interesses de seu país como aos seus próprios. Glorifica-se na glória da nação; no triunfo que ela obtém, julga reconhecer a sua própria obra e nela se eleva; rejubila-se com a prosperidade geral da qual tira proveito. Tem por sua pátria um sentimento análogo àquele que experimentamos pela família, e é ainda por uma espécie de egoísmo que se interessa pelo Estado”. (TOCQUEVILE, 1977, p. 389)
As associações livres que Tocqueville encontrou na América foram as associações civis e as associações políticas. O autor chamou a atenção para a facilidade com que os americanos se associavam na vida civil tendo em vista os mais variados fins. Em suas palavras:
“Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos estão constantemente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais todos tomam parte, como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e muito pequenas …”. (TOCQUEVILE, 1977, p. 391)
Segue o relato descrevendo o sistema legislativo americano que, tal como hoje, é formado por homens eleitos pelo povo e dividido em duas assembléias: a Câmara e o Senado, sendo que a diferença básica entre estas era o período em que permaneciam no cargo os seus respectivos membros.
Ao tratar sobre o poder executivo, observou que ao representante do poder executivo do Estado, cabia expor ao corpo legislativo as necessidades do país e lhe dar a conhecer os meios que julgava úteis empregar a fim de provê-las. Reunia em suas mãos todo o poder militar do Estado e era o comandante das milícias e das forças armadas. Nunca interferia na administração das comunas e dos condados, salvo para a nomeação de juizes de paz que posteriormente não poderiam ser dispensados. Apesar das prerrogativas que lhe eram conferidas, na prática, pouco uso delas fazia, pois, ao contrário da França, os Estados Unidos não eram ameaçados por ninguém. Não herdaram, como a maioria dos Estados europeus, a “mistura de glória e miséria, de amizades e ódios nacionais”. Além disso, os imigrantes, que não paravam de chegar, vinham cheios de iniciativas.
A sincronia entre a inexistência de inimigos externos (que levou à política da neutralidade e isolacionismo) com a auto-suficiência dos indivíduos, fazia com que nos Estados Unidos a armada e o exército (uns seis mil homens no máximo) fossem inexpressivos. Evitavam-se assim as possíveis tentações autoritárias ou ditatoriais de parte dos líderes políticos. A isso se somava o que Tocqueville denominou de “instabilidade administrativa”, o fato de que na democracia americana a rotatividade no serviço público era a tônica, impedindo a formação de uma poderosa casta de burocratas que infernizasse os cidadãos com formulários, carimbos, e outros caprichos.
Mas ainda sobre este tema, o autor adverte para os perigos presentes no sistema eletivo americano, pois tanto maior o atrativo, tanto mais é excitada a ambição dos pretendentes, tanto mais também acha apoio numa multidão de ambições secundarias que esperam dividir o poder entre si, após ter triunfado o candidato. Sobre a possibilidade de reeleição, observa que com a proximidade do pleito, o chefe do executivo não pensa senão na luta que se prepara; ele não mais tem futuro; nada pode empreender, e só prossegue muito lentamente aquilo que venha talvez venha a ser terminado por outro.
Ao tratar do poder judiciário, identificou neste três características: A primeira delas era a de servir de árbitro, algo que prescindia da existência de processo, que por sua vez exigia que houvesse contestação. A segunda era a de apenas se pronunciar sobre casos particulares e não sobre princípios gerais. A terceira era a de somente agir quando provocado.
As decisões dos juizes eram fundadas na Constituição antes que nas leis e não era permitido jamais aplicar as leis que lhes parecessem inconstitucionais.
Na América a Suprema Corte era o único e exclusivo tribunal da nação, encarregado da interpretação das leis e dos tratados; das questões relativas ao comércio marítimo e de todas aquelas que em geral se relacionavam com o direito das gentes. Trata-se de algo que até então somente era visto na tória pelas nações européias, onde os governos sempre mostraram grande repugnância em deixar a justiça ordinária resolver as questões que interessassem a ele próprio. E essa repugnância era naturalmente maior quando o governo era mais absoluto.
Aquele órgão deveria ser composto por bons cidadãos, homens probos e instruídos, qualidades necessárias a todos os magistrados; é preciso encontrar neles homens de Estado; é preciso que saibam discernir o espírito de seu tempo, enfrentar o obstáculos que podem vencer, pois acaso viesse um dia a ser composta de homens imprudentes e corruptos, a confederação teria a temer a anarquia e a guerra civil.
Existe, na concepção do autor, um fato que facilita aos Estados Unidos adotar um governo federal. Os diferentes Estados não têm apenas mais ou menos os mesmos interesses, a mesma origem e a mesma língua, mas ainda o mesmo grau de civilização; esse fato quase sempre torna fácil o acordo entre eles. Entre os Estados de Maine e o da Georgia, situados nas duas extremidades do imenso país, existe menos diferenças do que entre a civilização da Normandia e da Bretanha que se acham separadas apenas por um curso d´água. A estas facilidades que os costumes e os hábitos do povo oferecem aos legisladores americanos, soma-se o fator geográfico, que os mantém afastados das guerras.
Nos Estados Unidos, país que no seu seio encerrava menos germes de revoluções, a imprensa tinha os mesmos gostos destruidores que a França eivada de profundas instabilidades.
No tocante à política externa, a Constituição Federal confiava a sua condução às mãos do Presidente e do Senado, o que a deixava até certo ponto fora da influência direta e quotidiana do povo, razão pela qual não se podia afirmar de maneira absoluta que a democracia conduzia os negócios exteriores do Estado. Essa forma de condução da política exterior deve-se a dois nomes: Jefferson e Washington.
Em sua carta admirável, Washington defendia uma neutralidade americana nos conflitos externos, algo que seria facilitado pelos fatores geográficos e que permitiria ao país se desenvolver com um povo unido sob um governo eficiente, até que chegasse o dia em que as nações nem de longe se arriscariam a provocá-los (os americanos), e quando teriam o poder de decidir entre a paz e a guerra, conforme os interesses e guiados pelo que a Justiça os viesse aconselhar. Perguntava-se: para que deixar nosso país para se arriscar em terras estranhas?
Na visão do autor, a política externa americana é expectante; consistente muito mais em abster-se que em saber. Bem difícil saber que habilidade iria desenvolver a democracia americana na conduta dos negócios externos do Estado.
Em interessante observação, Tocqueville assevera que, diferentemente do que ocorre na Europa, nos Estados Unidos cada um, na sua esfera, toma parte ativa no governo da sociedade. O homem do povo, naquele país, compreendeu a influência que a prosperidade geral tem sobre a sua felicidade. Acostumou-se a encarar a prosperidade como obra sua e por isso vê na obra pública a sua própria fortuna e trabalha para o bem do Estado, não só por dever ou orgulho, mas talvez por cupidez.
Após tecer alguns comentários sobre os perigos que o crescimento da nação americana, especialmente rumo a noroeste, questionando se a União resistiria a tais transformações, sobre o que não nos aprofundaremos neste trabalho, o autor passa a fazer prognósticos sobre o crescimento (sobretudo comercial) dos Estados Unidos. Este crescimento era muito favorecido pelos fatores geográficos, que permitiam aos Estados Unidos dotar-se de portos ao longo de sua extensa costa e exportar para a Europa a maior parte dos mantimentos de que precisa, fazendo da Europa o mercado da América assim como da América o mercado da Europa, de modo que jamais os dois continentes poderiam viver inteiramente independentes um do outro.
O território ocupado era de apenas um vigésimo do que à época compreendia os Estados Unidos da América. A terra do Novo Mundo pertencia ao primeiro ocupante e seu domínio era o preço da corrida a ela. A província do Texas pertencia ao México, mas em breve, previa, não se encontrariam ali mais mexicanos. O tratado que dividia o continente entre a raça inglesa e a espanhola, embora favorável àquela, viria a ser infringida com o avanço americano.
Em mais uma de suas premonições Tocqueville alertava para o surgimento de suas grandes potências no globo e os perigos quede tal fato derivavam. Segundo ele:
“Existem hoje sobre a terra dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para um mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos. Ambos cresceram na obscuridade; e, enquanto os olhares dos homens estavam ocupados noutras partes, colocaram-se de improviso na primeira fila entre as nações e o mundo se deu conta, quase ao mesmo tempo, do seu nascimento e da sua grandeza. Todos os outros povos parecem ter chegado mais ou menos aos limites traçados pela natureza, nada lhes restando senão manter-se onde se acham; mas aqueles estão em crescimento; todos os outros se detiveram ou só avançam à custa de mil esforços; apenas eles marcham a passo rápido e fácil, numa carreira a cujos limites não poderia perceber ainda. O americano luta contra obstáculos que a natureza lhe impõe; o russo está em luta contra os homens. Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização com todas as suas armas; por isso, as conquistas do americano se firmam com o arado do lavrador, as do russo com a espada do soldado. Para atingir a sua meta, o primeiro apóia-se no interesse pessoal e deixa agir, sem dirigi-las, a força e a razão dos indivíduos. O segundo concentra num homem de certa forma todo poder da sociedade. Um tem por principal meio de ação a liberdade, o outro, a servidão”. (TOCQUEVILE, 1977, p. 315-316)
Na segunda parte da obra Da Democracia na América, Tocqueville trata da sua influência sobre diferentes aspectos: no movimento intelectual; nos sentimentos dos americanos; sobre os costumes e sobre a sociedade política. Essa percepção obtida em 1831 justifica toda a fama granjeada por Tocqueville, ainda na juventude. retratar a influência que a igualdade e o governo da democracia exercem sobre a sociedade civil, sobre os hábitos e costumes na América.
O sucesso da democracia norte-americana devia-se também a uma razão de fundo cultural. Os ingleses que para lá foram povoar o Novo Mundo estavam acostumados “a tomar parte nos negócios públicos”. Traziam na sua bagagem um respeitável acervo de liberdades: de palavra, de imprensa, de organização, de participação em júris, etc., pois é bom lembrar que fora na Inglaterra do século XVII que dera-se a primeira revolução antiabsolutista da era moderna – a Revolução Puritana, liderada por Oliver Cromwell (1649-1658). Além disso, na América, não tinham que combater uma aristocracia, podendo desenvolver ao máximo a idéia dos direitos individuais e as liberdades locais. Para eles, a liberdade não era tanto algo a ser conquistado, mas sim a ser preservado. Pode-se até inferir que a Revolução de 1776 foi um movimento popular de legítima defesa, visto que para os colonos americanos o rei, com os seus decretos e leis repressivas, é quem estava lhes usurpando as liberdades.
Capítulo III – a América do século XXI
Se pudesse visitar a América hoje, Tocqueville encontraria uma situação bem diferente daquela que relatou. A população nos Estados Unidos é atualmente de 301.656.674 habitantes, mais de vinte e três vezes superior àquela dos anos 1830.
Essencialmente, pouco mudou entre a estrutura administrativa narrada por Tocqueville com relação a que encontramos hoje nos Estados Unidos. Permanece a separação dos poderes em executivo, legislativo e judiciário.
No poder legislativo encontram-se os representantes de cada um dos 50 estados. Ao Congresso é reservada a competência para elaborar leis e instituir impostos federais, declarar Guerras, ratificar ou propor tratados. No Senado, cada Estado americano é igualmente representado por dois membros, de um total de cem representantes. Os senadores cumprem um mandato de seis anos. A cada dois anos, são escolhidos os ocupantes de um terço das cadeiras do Senado por meio de eleições. O vice-presidente americano desempenha também o papel de presidente do Senado.
A Câmara dos Representantes é composta de membros eleitos bianualmente pelo povo dos diversos Estados. Os estados os mais populosos têm mais representantes do que os menores; alguns têm somente um. Ao todo, há 435 representantes na casa.
O chefe do executivo é o presidente, que junto com o vice-presidente é eleito para um mandato de 04 anos. Em conseqüência de uma emenda constitucional que entrou em vigor em 1951, um presidente pode ser reeleito para um mandato subseqüente. Como o formulador principal da política nacional, o presidente pode propor leis ao Congresso, assim como vetar leis emanadas do Poder Legislativo. É também o comandante-chefe das forças armadas e tem a autoridade para apontar juizes federais enquanto as vacâncias ocorrem, incluindo os membros da Suprema Corte.
O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma Suprema Corte e nos tribunais inferiores que forem oportunamente estabelecidos por determinações do Congresso. Os juízes, tanto da Suprema Corte como dos tribunais inferiores, conservarão seus cargos enquanto bem servirem, e perceberão por seus serviços uma remuneração que não poderá ser diminuída durante a permanência no cargo.
O julgamento de todos os crimes, exceto em casos de impeachment, será feito por júri, tendo lugar o julgamento no mesmo Estado em que houverem ocorrido os crimes; e, se não houverem ocorrido em nenhum dos Estados, o julgamento terá lugar na localidade que o Congresso designar por lei.
Se pouca coisa mudou na estrutura administrativa americana, além do crescimento populacional muitas outras transformações ocorreram nestes 176 anos que separam a América visitada por Tocqueville da que vemos hoje. Exemplo disto é o crescimento territorial dos Estados Unidos, hoje composto por 9 629 091 km², distribuídos em 50 Estados e um Distrito Federal (Distrito de Columbia). Cada Estado, por sua vez, está subdividido em condados, com excepção da Louisiana, em que as subdivisões se chamam “paróquias“, (parishes, em inglês) e do Alasca, onde as subdivisões estaduais são chamadas de “distritos” (boroughs). A maior parte dos Estados Unidos localiza-se na região central da América do Norte, possuindo fronteiras terrestres com o Canadá e com o México. Os Estados Unidos também possuem diversos territórios, distritos e outras possessões em torno do mundo, primariamente no Caribe e no Oceano Pacífico e cada Estado possui um alto nível de autonomia local, de acordo com o sistema federal.
Para chegar ao estágio de desenvolvimento atual, os Estados Unidos contaram com a força de trabalho de milhões de imigrantes dos mais diversos países do mundo, destacando-se os 500 mil escravos africanos que aportaram naquele país entre os anos de 1619 e 1808, quando a importação de escravos tornou-se ilegal, além de muitos outros que para ali rumaram em busca de um lugar na terra das oportunidades.
O que antes era tido como a força motora de um país do futuro passou a ser tido como um problema. Os negros descendentes dos escravos africanos, além de outos muitos que continuaram a desembarcar na América passaram a disputar trabalho com a população branca do país, algo que, somando-se às feridas ainda não cicatrizadas da guerra de secessão do século XIX, faz com que nos Estados Unidos ainda se verifiquem sentimentos racistas por vezes evidenciados de maneira bastante trágica.
Quanto aos imigrantes e seus descendentes de origem não negra, a situação não é de todo diferente. De acordo com um censo realizado em mais de 3 milhões de municípios dos Estados Unidos em 2005[1], 35 milhões de pessoas que vivem no país são imigrantes. Destes, 17 milhões têm origem hispânica, sendo 11 milhões provenientes do México. .
O serviço de imigração estima que cinco milhões de pessoas estejam vivendo nos Estados Unidos sem permissão, e o número está crescendo aproximadamente em 275.000 ao ano. Para conter a chegada de imigrantes no país, e numa tentativa de selecionar quem seria bem-vindo nessa nova América, teve início uma política de verdadeira repressão aos imigrantes que ilegalmente tentam ingressar ou permanecer no país. Contrariamente à época em que o país tinha portas abertas para os imigrantes, hoje já se fala na necessidade de uma reforma imigratória, e do uso de uso de “ferramentas mais efetivas” contra os imigrantes ilegais, punindo, por exemplo, as empresas que contratarem imigrantes ilegais.
Tamanha a quantidade de pessoas de origem hispânica no país que em alguns lugares, como Miami, o maior da cidade (Herald), publica edições separadas em inglês e em espanhol.
O uso difundido do espanhol em cidades americanas gerou um debate público sobre a língua. Alguns temem que temem que a situação se torne semelhante a do Canadá, onde a existência de duas línguas (inglesa e francesa) foi acompanhada por um movimento seccionista. Para evitar esse quadro, alguns cidadãos exigem a elaboração de uma lei que declare o inglês a língua americana oficial. Outros consideram tal lei desnecessária e acreditam que geraria efeitos contrários ao esperado.
Os Estados Unidos adotavam uma política isolacionista, muito bem relatada na obra de Tocqueville, não procurando intrometer-se em conflitos internacionais. Porém, isto mudou com o fim da Guerra Civil Americana. Durante o século XIX, os Estados Unidos tornaram-se uma potência econômica e militar mundial. O crescimento da influência dos Estados Unidos sobre o mundo continuou no século XX, um século que é por vezes chamado de O século americano, por causa da tremenda influência americana sobre o resto do mundo, onde o país se tornou o maior pólo de desenvolvimento tecnológico do planeta.
O isolacionismo de outrora se transformou no imperialismo do presente. As interferências militares antes restritas à luta por expansão territorial, como fora a Guerra do México (1846-1848) e a conflitos internos como a Guerra de Secessão (1861 a 1865), foi definitivamente esquecido à partir da Primeira Guerra Mundial (1917-1918).
Após ter navios afundados, os americanos entram na guerra em abril de 1917, sob o argumento de que o mundo seria salvo pela democracia (o conflito começara três anos antes). Milhões de soldados apóiam as tropas britânicas e francesas contra os alemães. Com a vitória dos aliados, os Estados Unidos surgem, no final de 1918, como uma nova liderança mundial.
Na Segunda Guerra Mundial (1941-1945) a participação direta dos Estados Unidos teve início após o ataque japonês a Pearl Harbor. Contra o nazi-fascismo, o país atinge seu ponto alto em 6 de junho de 1944, o Dia D, com o ataque aos alemães na França. Mas em agosto de 1945 surgiria o fato que sustentaria a ameaça de guerra nas próximas décadas: as primeiras bombas atômicas lançadas no Japão. Tinha início a ameaça nuclear.
Terminada a Segunda Guerra, as divergências continuam, tem início a Guerra Fria, opondo agora os capitalistas americanos aos comunistas da União Soviética. O conflito sem batalhas diretas entre os inimigos termina no final dos anos 1980, com o colapso do regime comunista.
Considerado o grande fracasso militar dos americanos, a Guerra do Vietnã também começa com a divisão do país, em 1954. Os americanos oferecem ajuda militar ao Sul contra os comunistas do Norte (mais de 530 mil soldados). Mesmo com a pressão popular, só em 1973 os Estados Unidos deixam o país. A guerra chega ao fim com a rendição do Sul e a reunificação do país dois anos depois.
O conflito conhecido como a Guerra do Golfo surgiu quando, para ter acesso ao Golfo Pérsico, o Iraque invade o Kuwait. O presidente George Bush (o pai) exige a retirada das tropas. O Iraque não se move e os americanos entram na guerra, libertam o Kuwait, mas não derrubam o iraquiano Saddam Hussein.
O descontentamento com a forte interferência americana nas questões externas fez gerar em diversas partes do planeta um forte sentimento anti-americanista, sobretudo nos países islâmicos, onde mais difícil a penetração dos hábitos e conceitos capitalistas. A aversão ao imperialismo americano foi campo fértil ao surgimento de grupos que, em nome da religião, se propuseram a destruir o grande Satã, isto é, os Estados Unidos e Israel.
O poder é posto em xeque: os terroristas suicidas da Al Qaeda atacam as torres do World Trade Center, em Nova York, em setembro de 2001, destruindo um dos maiores símbolos do progresso do país.
Ao invés de reverem sua política de atuação extremamente ativa nas questões internas de outros países e de sua tentativa de impingir sua cultura a outras nações, os americanos intensificam sua atuação militar em terras alheias, dando início, ainda em 2001, ao que se costumou chamar de Guerra Contra o Terrorismo. Com o apoio de outros países com os quais possuía estreitas relações e de outros sedosos por conquistar a simpatia e o capital americano, procedeu-se à invasão do Afeganistão, país da Al Qaeda, e derrubam o governo Talibã. Dois anos depois teve início uma nova invasão ao Iraque, onde, sob o pretexto de que o país possuía armas de destruição em massa o território iraquiano foi ocupado e seu presidente deposto, capturado e executado.
Tentaram os Estados Unidos criar naqueles países formas de governo e hábitos a que seus habitantes não se submeteram. O resultado de tudo isto, uma guerra civil que se acompanha dia a dia através dos noticiários, que exibem as ações terroristas realizadas pelos grupos cada vez maiores dos descontentes com a presença americana. Em lugar da democracia, da ordem e da paz prometidas, vê-se a ausência total de autoridade, a desordem e um número de mortos cada vez maior.
Esta nova política externa americana, que desrespeita todos os tratados e convenções já firmados pelos Estados Unidos e que ficou conhecida popularmente como “doutrina Bush” mostrou-se completamente incapaz de atingir aos seus propósitos e somente fez piorar o sentimento anti-americanista, elevando-o a um sentimento anti-ocidente que tornou vítimas de grupos terroristas também os países que a ela aderiram, como Espanha e Inglaterra, por exemplo.
As “invasões” americanas não se restringem ao plano militar. Também culturalmente os americanos tentam se impor sobre outras nações. Exportam-se o Baseball, basketball, filmes, jazz, Mickey Mouse, a música de país, entre tantas outras coisas e este se tornou cada vez mais intenso com a evolução dos meios de comunicação e a chamada globalização.
Tal fato fez surgir em alguns países uma barreira à cultura americana. Os franceses fazem campanha periodicamente para livrar sua língua de termos ingleses, e os canadenses colocaram limites em publicações americanas no Canadá. Aos poucos os países têm tentado preservar sua cultura para que não se tornem cidadãos com duas identidades, a própria e a americana.
Além de destruidores da identidade cultural e da paz no planeta, contra os Estados Unidos pesa a forte e fundamentada acusação de ser um dos grandes destruidores do próprio planeta. Décadas de progresso à custa de um total menosprezo às questões ambientais apesar das fortes pressões por parte de grupos ambientalistas e das inúmeras advertências e constatações resultantes de encontros globais como o Rio 92 e o encontro da África do Sul em 2002, por exemplo.
Conclusões
Nos Estados Unidos de hoje vive-se um progresso muito mais contido do que o daqueles anos dourados do período jacksoniano. Àquela época além da prosperidade econômica, a grande marca do país era a sua paz, resultado de uma política externa isolacionista extremamente oposta à política imperialista do século XXI. Esta política atual tem sido criticada por aliados históricos como a Franca, por exemplo.
A economia cresce em escala inversamente proporcional ao sentimento antiamericanista decorrente das políticas de intervenção noutros Estados e de controle imigratório, geralmente aliadas à violência e desrespeito a tudo o que os próprios americanos apregoam.
A questão dos índios, praticamente dizimados durante a expansão territorial americana hoje se ameniza, mas não pela adoção de políticas públicas voltadas para os mesmos, mas pela associação destes à indústria dos cassinos que investem vultuosas quantias em terras consideradas indígenas. A questão dos negros, por sua vez, ainda é algo bastante delicado, sendo poucos os que ocupam altos postos no mercado ou mesmo no governo americano.
No plano ambiental, somente após experimentar tragédias até então nunca vividas, cujas conseqüências nem mesmo a maior potência do globo foi capaz de amenizar, como foi o caso da quase destruição da importante cidade de Nova Orleans por tornados e enchentes, deu-se conta da importância de um meio ambiente equilibrado, mas a conscientização da população como um todo e principalmente das autoridades está longe de ser uma realidade.
Culturalmente, os Estados Unidos continuam a exportar seus hábitos e costumes por todo o planeta, mas o americanismo incontrolado impulsionado pelo cinema e pela mídia hoje já é objeto de discussão de paises que buscam medidas para preservar sua identidade cultural. Entre estes, dois aliados históricos dos americanos: a França e o Canadá.
A descrença na possibilidade de um novo rumo que traga ao povo americano o mesmo entusiasmo sentido no século XIX é notória. Pesquisa recente mostra que o índice de abstenção nas eleições americanas chegou a 46%. Este é o reflexo da falta de esperança dos americanos em mudanças que reflitam em melhorias para a população. Teria a democracia falhado?
A resposta mais comum que se ouve a respeito deste questionamento é a de que o problema não se encontra no sistema, mas naqueles que o conduzem. A resposta parece controversa na medida em que os ocupantes dos postos mais importantes da nação têm seus cargos indicados pelo voto de seus cidadãos que, como visto, têm se recusado a participar ativamente do processo democrático.
Referências
Nota:
Advogado. Mestrando em Direitos Fundamentais pela UNIFIEO, especialista em Direito Processual Civil pela Mackenzie e especialista em Direito Empresarial pela Unisinos.
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