Resumo: Apesar de o processo penal em um Estado Democrático de Direito dever estar compromissado com a Constituição, assumindo o papel de verdadeira garantia do acusado diante de possíveis abusos do poder punitivo estatal, observa-se que o sistema processual pátrio acaba por consagrar a lógica inquisitória, produzindo um magistrado com fortes tendências autoritárias, altamente atentatórias à esfera de garantias do acusado. Diante da incompatibilidade constitucional dessa tendência violadora, torna-se essencial que o juiz negue a lógica inquisitória, transcendendo também o princípio dispositivo que consagra a lógica acusatória, sendo, portanto, o horizonte norteador dessa necessária postura democrática o objeto a ser analisado no presente estudo, através de pesquisa bibliográfica. [1]
Palavras-chave: lógica inquisitória; lógica acusatória; gestão da prova; postura do magistrado; democratização; conformidade constitucional.
Abstract: Even though the criminal proceedings of a Democratic State of Law should be committed to the Constitution, assuming the role of a true guarantee for the accused when faced with possible abuses of the State’s punitive power, it is noticeable that the nation’s procedural system ends up consecrating the inquisitorial logic, therefore producing a magistrate that possess Strong authoritarian tendencies, wich are in disaccord with the accused guarantees. Faced with the costitutional incompatibility of this violating tendency, it becomes essential for the judge to deny the inquisitorial logic and transcend the principle’s device that consecrates the accusatorial logic, therefore making this needed democratic stance the guiding horizon to be analyzed in this study, through bibliographic research.
Keywords: inquisitorial logic; accusatory logic; evidence management; magistrate’s stance; democratization; constitutional conformation.
Sumário: Introdução. 1. A lógica procedimental dos sistemas processuais penais históricos. 1.1. O sistema processual penal inquisitório histórico: a tessitura do procedimento inquisitivo enquanto puro. 1.1.1. Breves considerações acerca do processo de consolidação da inquisição medieval. 1.1.2. A lógica do procedimento inquisitório: o julgador a procura da verdade. 1.1.3. O declínio do sistema inquisitório puro diante do afloramento dos discursos humanistas. 1.2. A lógica procedimental do processo penal acusatório histórico. 2. O sistema processual brasileiro e a essência. 2.1. A inexistência do sistema misto como um terceiro sistema processual autônomo 2.2. O princípio unificador do sistema processual penal: a gestão da prova como elemento de identificação de sua essência. 2.3. O reconhecimento dos traços inquisitórios do sistema processual penal brasileiro. 3. O combate à lógica inquisitória a partir do comprometimento democrático. 3.1. A necessária compreensão do compromisso democrático do processo penal. 3.2. O juiz compromissado com a democracia: a consagração da Constituição Federal em detrimento do inquisitório CPP. 3.3. Estabelecendo novos horizontes: o magistrado para além da necessária inércia. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O nível de autoritarismo do processo penal, ou seja, as limitações que seu procedimento impõe aos direitos individuais do acusado, apresenta-se como uma expressão inversa ao nível de democratização de um Estado, na medida em que sua rigidez demonstra um afastamento em relação aos ideais democráticos. Logo, diante da relação política existente entre modelo de Estado e sistema processual, resta evidente que em um Estado Democrático de Direito o processo penal deve se encontrar nos moldes impostos pela Constituição Federal, representando uma verdadeira garantia do acusado contra possíveis abusos de poder.
Neste cenário, o papel do magistrado se revela como um ponto essencial para que se potencialize o processo de democratização promovido pela Constituição Federal. Seu compromisso com as demandas democráticas é condição indispensável para que o acusado consiga gozar de todas as garantias processuais, o que possibilita a consagração de um processo penal moldado a partir das exigências constitucionais, indispensável a sua democratização.
No entanto, a atuação do juiz no processo penal brasileiro se mostra como um verdadeiro obstáculo ao processo de democratização, bem como uma reinvenção do paradigma inquisitório. Tal barreira à consagração da democracia é verificada diante da possibilidade de que o magistrado assuma posturas ativas, com fortes tendências autoritárias em clara divergência com as determinações constitucionais.
Um magistrado detentor da gestão da prova, bem como norteado pela incansável busca da verdade em nome da proteção do bem comum, gera inadmissíveis lesões à esfera de garantias fundamentais do acusado, uma vez que limita diretamente a consagração dos princípios do contraditório e ampla defesa. Logo, essa postura inquisitiva, diante das restrições que inflige aos direitos do réu, acaba por evidenciar uma forte tendência autoritária do Código de Processo Penal, revelando sua desconformidade para com as exigências democráticas do atual contexto político e jurídico pátrio.
Evidente que o ideal seria uma reforma completa do CPP, para que ele passe a se situar dentro dos contornos constitucionais. Ocorre que tal reforma se mostra no mínimo improvável, sendo fundamental que o magistrado passe a assumir uma postura comprometida com a Constituição Federal, consagrando seus preceitos democráticos em detrimento das manifestações autoritárias decorrentes do CPP, como meio de evitar a produção de violências que decorre de sua estrutura autoritária. Logo, para além de se manter distante da gestão da prova, o Estado Democrático de Direito impõe ao juiz o dever de exercer a função de verdadeiro filtro constitucional.
Portanto, evidencia-se que ser democrático vai muito além de não ser inquisitório, ou de ser acusatório, devendo o magistrado assumir postura norteada pela contenção de possíveis manifestações inquisitivas que violem as garantias fundamentais do acusado. Assim, é justamente esta a ótica de que parte o presente estudo, servindo como horizonte para a reflexão acerca do papel do magistrado diante de seu compromisso para com Constituição Federal.
A partir dessas premissas, parte-se de uma análise histórica dos sistemas inquisitório e acusatório enquanto puros, na qual são levantadas suas principais características lógicas, bem como as consequências de suas estruturas procedimentais. Nesse ponto, é abordada a lógica que move cada um desses sistemas, a qual acaba por evidenciar tendências políticas e jurídicas completamente distintas, bem como reflexos contrários na esfera de garantias do réu, mostrando-se um exercício de extrema relevância para a identificação de possíveis manifestações antidemocráticas, oriundas de tais sistemas, que possam vir a ocorrer no atual contexto processual pátrio.
Em seguida, passa-se a analisar o sistema processual misto, herança do Código de Napoleão, que é comumente tratado pela doutrina pátria como sendo aquele empregado no processo penal brasileiro. Apesar de tal sistema ser reconhecido por alguns como uma terceira forma de sistema processual, o presente estudo passa a questionar a possibilidade de concebê-lo como distinto, em essência, do acusatório e do inquisitório, momento em que verifica a inexistência de um princípio unificador próprio capaz sustentar sua autonomia.
Após apontar que o sistema processual penal misto será, na verdade, acusatório ou inquisitório em essência, passe-se, a partir de tal entendimento, a verificar a verdadeira natureza da essência do processo penal brasileiro. Logo, é evidenciado o germe inquisitorial que se faz presente no sistema pátrio, uma vez que este consagra o princípio inquisitivo, ao permitir que o magistrado possa colher de ofício provas que ele mesmo irá apreciar, sendo assim, essencialmente inquisitório.
Uma vez constata tal natureza do sistema brasileiro, passa-se a construir uma aproximação entre a exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941 com o discurso legitimador da Inquisição medieval. Nesse ponto são apontadas diversas semelhanças valorativas e argumentativas que, assustadoramente, demonstram que o CPP foi fundado a partir de uma verdadeira preservação da lógica processual inquisitiva.
Em seguida, é abordado o caráter vinculante da Constituição Federal, a qual funciona como verdadeiro filtro de validade das demais normas do ordenamento jurídico pátrio. Neste ponto, é apontado o compromisso de fidelidade do processo penal aos preceitos constitucionais, que devem funcionar como norteadores de sua estrutura e finalidade de garantia.
Diante de tal constatação, passa-se a apontar a necessidade de que o magistrado, reconhecendo seu compromisso democrático, afaste os dispositivos autoritários do CPP e consagre as disposições da Constituição Federal, como meio de efetivar um processo penal que funcione como garantia do acusado, uma vez que não se pode esperar pacientemente uma improvável reforma legislativa enquanto lesões irreversíveis são causadas em razão da inobservância dos preceitos constitucionais.
Por fim, o presente estudo passa a analisar o dever do juiz em assumir uma postura mais do que meramente ativa ou passiva, diante de seu comprometimento constitucional. Destaca-se nesse ponto a obrigação do magistrado em consagrar a democracia por meio da efetivação das garantias fundamentais, diante da identificação e anulação das manifestações inquisitórias, sendo este seu papel fundamental em um Estado Democrático de Direito nos moldes da Constituição Federal.
No entanto, cabe destacar que os obstáculos ao processo de democratização não se esgotam na postura do magistrado. Apesar de ter sido este o ponto escolhido para ser abordado pela presente pesquisa, é preciso lembrar que o caminho para que se alcance um processo penal democrático envolve a superação de diversas outras formas de produção de violência.
Ainda que o reconhecimento dos riscos que decorrem de um magistrado descompromissado com a Constituição Federal represente ponto fundamental para a compreensão, bem como a anulação, das possíveis lesões que o poder estatal pode vir a causar à esfera de direitos do acusado, este foi apenas o horizonte de análise adotado para guiar a presente pesquisa, diante da forte tendência de maximização de danos daí resultantes. Reconhece-se que a construção do presente estudo representa apenas uma contribuição para o debate acerca do processo de democratização promovido pela Constituição Federal, sem qualquer pretensão de esgotar a discussão.
Por fim, em relação à metodologia adotada para a elaboração da presente pesquisa, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, que tomou como base tanto a doutrina processual penal como a criminológica, utilizando-se autores que desenvolveram teorias críticas significativas a respeito dos principais pontos para a construção do debate proposto, como Salo de Carvalho, Aury Lopes Jr., Jacinto Coutinho, Ricardo Glockner, Nereu Giacomolli, Rui Cunha Martins, Salah Khaled Jr, entre outros.
1. A LÓGICA PROCEDIMENTAL DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS HISTÓRICOS
1.1. O sistema processual penal inquisitório histórico: a tessitura do procedimento inquisitivo enquanto puro
O estudo da lógica inquisitiva, diante de sua forte influência no contexto processual pátrio contemporâneo, bem como de suas fortes inclinações antidemocráticas, merece especial atenção. Sua análise partirá de breves considerações acerca de seu processo de consolidação, abordando seus antecedentes históricos, além dos fatores da sua expansão pela Europa Continental. Em seguida será tratada sua estrutura processual, evidenciando suas práticas altamente atentatórias aos direitos do réu, até que, finalmente, será abordado o surgimento dos discursos humanitários e o completo questionamento aos valores inquisitoriais que promoveram.
1.1.1. Breves considerações acerca do processo de consolidação da inquisição medieval:
As primeiras manifestações da lógica inquisitória remetem ao processo penal romano, mais precisamente à cognitio, praticada durante o período de sua Monarquia, na qual toda função processual remetia ao magistrado, podendo ele partir ao conhecimento de uma imputação sem sequer ser provocado, bem como realizar a investigação e produção de provas de acordo com seu puro arbítrio.[2]
Ainda que, como será analisado posteriormente, as práticas processuais romanas tenham sofrido significativa alteração durante o último século da República, assumindo caráter acusatório, a lógica inquisitória retorna durante o período do Império, diante das novas necessidades políticas. Nesse sentido, Salah Khaled Jr, ressalta que:
“[…] os próprios juízes passaram a assumir as atribuições dos investigadores, reunindo em um mesmo órgão do Estado as funções de acusar e julgar, o que também fez com que os atos processuais passassem a ser secretos. O magistrado podia assim proceder de ofício sem uma acusação formal e fazer por si mesmo a instrução, pronunciando a sentença e absolvendo, ou aplicando penas públicas. Portanto, em Roma, tivemos abertura acusatória e fechamento inquisitório: a alteração dos modelos expressa claramente os distintos momentos políticos que atravessavam os romanos e, em consequência, as diferentes intenções em relação à contenção ou facilitação do poder punitivo”.[3]
Ocorre que esta estrutura processual sofreu grandes alterações diante da queda do Império Romano, momento em que as formas de resolução de conflitos passaram a se basear nos chamados Juízos de Deus, que consistiam basicamente no juramento, no duelo ou nas ordálias, conforme a posição social das partes.[4]
O sistema inquisitório, no entanto, renasce no medievo entre os séculos XII e XIII, diante do processo de retomada do direito romano, que levou a Igreja a promover modificações no procedimento persecutório daqueles que cometiam atos desviantes, ou assumiam posturas contrárias aos seus preceitos doutrinários.[5] Como aponta Eugenio Raúl Zaffaroni, “o poder punitivo inquisitorial não era um invento papal, e sim retomava o processo romano imperial em sua versão extraordinária, ou seja, a destinada a investigar o crime majestatis, tal como por exemplo o complô para morte do imperador”.[6]
Seu processo de legitimação se deu a partir de documentos pontifícios, como as Bulas Papais de Inocêncio III, Gregório IX, e Inocêncio IV, que possibilitaram, respectivamente, a equiparação da heresia com o crime de lesa majestade, confundindo a as concepções de crime e pecado,[7] a reivindicação por parte da Igreja da tarefa repressiva[8] e a permissão da tortura como meio de quebrar a resistência do herege,[9] consolidando, assim, a instauração do sistema inquisitorial.
Inicialmente, a Inquisição não tinha relação direta com a criminalidade, mas sim com os dogmas da Igreja, que se viam ameaçados diante proliferação de novas crenças e concepções, consideradas heréticas.[10] No entanto, conforme as lições de Salah Hassan Khaled Jr., “isso não impediu que os estados absolutistas europeus adotassem o processo inquisitório, que servia perfeitamente ao propósito de controle do corpo social”.[11]
Por fim, pertinente destacar ainda que, conforme aponta Salo de Carvalho com base nas lições de Brian Levack, a expansão do sistema inquisitório foi impulsionada por quatro circunstâncias determinantes: a mudança de procedimento decorrente da redescoberta do direito romano; a utilização da tortura que facilitou o alcance da verdade, busca que norteava o procedimento; a fusão das categorias de crime e pecado; e por fim a regionalização dos Tribunais.[12]
1.1.2. A lógica do procedimento inquisitório: o julgador a procura da verdade
Uma vez consolidado, o sistema processual inquisitório passou a ser adotado por séculos para a investigação e processamento da heresia. Esta englobava um rol incontável de condutas contrárias às verdades eclesiásticas.[13] Tais verdades representavam a única forma aceitável de interpretação da realidade, não sendo tolerada qualquer outra perspectiva, pois, conforme a lógica inquisitorial, “não nos cabe escolher […] de acordo com o nosso livre-arbítrio, mas ‘seguir’ o que Deus determinou para nós”.[14] Resultava, assim, em um elaborado instrumento de manutenção do status quo e controle do saber.
Neste cenário, o Magistério, composto pelo Papa e pelos bispos, era considerado o autêntico interpretador das escrituras sagradas, onde estavam todas as verdades necessárias para a salvação, sendo o portador exclusivo de uma verdade absoluta, incontestável, pois sua infalibilidade era uma garantia que decorria da vontade divina, fato que levava ao raciocínio de que todo aquele que seguisse a palavra do Magistério estava em conformidade com a palavra do próprio Deus,[15] e, consequentemente, contra a vontade divina aquele que não a seguisse.
O herege, com suas visões divergentes acerca da realidade, representava o maior inimigo dessa verdade, e o perigo que ele oferecia justificava as máximas repressões, levando a Igreja a ser intolerante em relação a esse inimigo perigoso.[16] Nesse sentido, Aury Lopes Jr destaca que:
“Nesse momento reforça-se o mito da segurança, oriundo da verdade absoluta, que não é construída, senão dada pelos concílios, encíclicas e outros instrumentos nascidos sob a assistência divina. Recordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. A verdade absoluta é sempre intolerante, sob pena de perder seu caráter “absoluto”. A lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta e, nessa estrutura, a heresia era o maior perigo, pois atacava o núcleo fundante do sistema. Fora dele não havia salvação. Isso autoriza o “combate a qualquer custo” da heresia e do herege, legitimando até mesmo a tortura e a crueldade nela empregada. A maior crueldade não era a tortura em si, mas o afastamento do caminho para a eternidade”. [17]
As características procedimentais deste sistema foram organizadas no Diretoctorium Inquisitorum, escrito por Nicolau Eymerich em 1376, e revisado por Francisco de La Peña, em 1578. Nesta obra, os autores formularam um verdadeiro manual, no qual detalharam a atividade e o papel do inquisidor no processo de extermínio da heresia.
Na obra estão previstas três formas de iniciar o processo inquisitório: acusação, denúncia e investigação, sendo, no entanto, muito rara a ocorrência da primeira forma, uma vez que, diante de sua requisição, promovia-se todo um incentivo para que o delator não assumisse o papel de acusador, deixando que o próprio magistrado realizasse tal função, como se dava na investigação e na denúncia.[18] De la Peña aponta ainda que na investigação o procedimento se dividia em duas etapas: geral e especial. Na primeira fase se buscava a materialidade de um crime, possuindo um caráter de investigação preliminar, onde o inquisidor apenas investiga existência de condutas heréticas sem prévia denúncia, enquanto na segunda etapa, por sua vez, se dava o processamento, isto é, a condenação e o castigo do acusado, nada impedindo, no entanto, que se partisse diretamente da segunda fase, diante da imprescindibilidade do combate à heresia, sendo dispensável também um delito prévio que justificasse a instauração do processo.[19]
Uma única testemunha, assim como duas que declarem fatos incompatíveis entre si, já era o bastante para autorizar a tortura do acusado, ao mesmo tempo em que a existência de dois depoimentos já era o suficiente para confirmar um rumor, originando processo e, posteriormente, sustentando a condenação. [20]
Quem procedia com o interrogatório das testemunhas e do acusado era o inquisidor. Ressalta-se que não havia publicidade no processo. O nome do delator, assim como das testemunhas, era mantido em segredo, sendo aceitas inclusive denúncias anônimas, enquanto o juiz atuava de ofício e secretamente na colheita do material probatório.[21] O réu, dessa forma, não tinha conhecimento algum sobre o conteúdo da investigação, ou sequer em relação ao seu andamento.
O Inquisidor, por sua vez, era norteado pela incansável busca da verdade, resumindo o processo a uma fórmula para sua descoberta.[22] Na realização dessa tarefa, o juiz atuava como parte, investigava, dirigia, acusava e julgava.[23] O acusado era mero objeto de verificação da qual o magistrado tinha a tarefa de extrair a verdade sem pudores ou reservas,[24] fato que levava sua prisão a ser uma regra geral no transcurso processo, pois deixava o réu à disposição do inquisidor para que realizasse sua função.[25]
O referido anseio pela descoberta da verdade se mostra presente em todo o Directorium Inquisitorium, porém resta evidente no seguinte trecho:
“Tomando assento no nosso Tribunal, em conformidade com a nossa função de juiz, com olhar fixo apenas em Deus e interessado apenas na verdade, com os Sagrados Evangelhos diante de nós, a fim de que nosso julgamento emane da face de Deus e para que nossos olhos vejam a verdade.”[26]
Tal ambição era saciada por meio da confissão do acusado, apresentada como prova máxima em um sistema de prova tarifada, no qual, uma vez extraída do acusado, não seria necessária a apuração de nenhuma outra prova para fundamentar sua condenação.[27] Nesse sentido, De la Peña aponta que “diante do Tribunal da Inquisição, basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu”.[28]
O direito de defesa ao acusado, dentro dessa lógica, era entendido como uma mera causa de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença.[29] A função do advogado, neste contexto, resumia-se a fazer o réu confessar logo e se arrepender, como simples meio de adiantar a execução da pena,[30] afastando por completo qualquer possibilidade de incidência do contraditório.
A verdade, representada pela confissão do réu, era buscada inicialmente por meio de interrogatórios, onde o inquisidor, de forma maliciosa, usava truques com intuito de forçar o herege a revelar seus erros, convertendo-os em verdade.[31] No entanto, Eymerich ressalta que:
“Se o acusado continuar negando, e o inquisidor achar que ele omite seus erros – embora não haja provas – intensificará os interrogatórios modificando as perguntas. Obterá, deste modo, ou a confissão ou, então, respostas discrepantes, Se obtiver respostas discrepantes, perguntará ao acusado por que, de repente, responde de um jeito, e depois, de outro: pressiona-o a dizer a verdade, explicando-lhe que, se não ceder, terá que ser torturado. Se confessar, tudo bem. Senão, isso bastará juntamente com outros indícios, para levá-lo à tortura e,deste modo, arrancar-lhe a confissão”.[32]
A respeito do valor jurídico da confissão adquirida por meio da tortura, De la Peña observa ainda que:
“[…] é absoluto quando obtido sob ameaça de tortura ou através da apresentação dos instrumentos de tortura. Nesse caso, considera-se que o réu confessou espontaneamente, tendo em vista que não foi torturado. A mesma coisa, se a confissão é obtida quando o réu já está despido e amarrado para ser torturado. Se confessar durante a tortura, deve, depois confirmar a confissão, já que esta foi obtida através do sofrimento e do terror”.[33]
Assim, caso o réu, após ser interrogado e posteriormente torturado, permanecesse sem confessar, era declarada sentença de absolvição.[34] No entanto, inquisidor deveria ser cuidadoso em tal declaração, afirmando apenas que nada foi legitimamente provado contra o acusado, pois, dessa forma, o processo poderia ser retomado sem prejuízos.[35]
Destaca-se a lição de Salo de Carvalho, na qual aponta que “a insuficiência de provas e/ou sua dubiedade não geravam absolvição, ao contrário, qualquer indício equivalia à semiprova, que comportava juízo de semiculpabilidade e, em consequência, semicondenação”.[36] Esta condenação, por sua vez, diante da equiparação entre as categorias de crime e pecado, era entendida, também, como um mecanismo de absolvição.[37]
Verifica-se, assim, diante da análise histórica de sua aplicação, que o processo inquisitório, em linhas gerais, caracteriza-se por ser escrito, secreto e não contraditório. A prova, por sua vez, é legalmente tarifada, enquanto a prisão é a regra cautelar.[38]
No entanto, as diversas peculiaridades procedimentais apontadas até este ponto possuem um caráter secundário diante da classificação de um sistema processual como inquisitório. A característica fundamental que configura tal sistema reside, na verdade, na gestão da prova, que se encontra essencialmente nas mãos do magistrado,[39] uma vez que recolhia de ofício o material que iria constituir seu convencimento.[40]
A capacidade do magistrado de atuar como gestor da prova que ele mesmo irá apreciar posteriormente privilegia a lógica dedutiva, pois permite ao inquisidor que decida antes e, depois apenas busque obsessivamente as provas necessárias pra justificar a decisão já tomada.[41] Nesse sentido, Salo de Carvalho aponta que esta sistemática do modelo inquisitorial “estabelece, pois, no magistrado, quadros mentais paranóicos, e tendências policialescas, visto que, ao invés de o juiz se convencer através da prova careada para os autos, inversamente a prova servia para demonstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz-inquisidor”.[42]
Assim, apesar de todas as violentas e abusivas características secundárias que foram aqui expostas, é justamente na gestão da prova nas mãos do magistrado que reside a essência do sistema inquisitório. A persistência histórica dessa capacidade do juiz se traduz em verdadeira consagração da lógica inquisitória, limitando os princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como impedindo desenvolvimento de um processo penal democrático.
1.1.3. O declínio do sistema inquisitório puro diante afloramento dos discursos humanistas
A estrutura do sistema processual inquisitório, com seu caráter autoritário e produtor de imensuráveis violências em nome da busca da verdade e do extermínio da temida divergência, predominou enquanto puro até finais do século XVIII, começo do XIX,[43] quando os Tribunais do Santo Ofício foram extintos de forma definitiva em Portugal, em 1821, e na Espanha, em 1834.[44] No entanto, como será analisado posteriormente, sua essência se faz presente até a atualidade, sofrendo apenas mudanças de caráter secundário.[45]
Fundamental para o processo de superação do modelo inquisitório foi o discurso médico, inaugurado pela obra de Johann Wier, intitulada “De Praestigiis Daemonun” (As artimanhas do demônio), em 1563.[46] Wier não chegou a negar a existência de pactos demoníacos, nem sequer questionou a legitimidade dos Tribunais da Inquisição, limitando-se a apontar que diversos acusados tidos como hereges possuíam, na verdade, doenças como humor melancólico e velhice caduca.[47] Sua obra, apesar de não ter sido bem recebida, foi gradativamente acolhida pela jurisprudência, onde diversos casos de heresia passaram a ser diagnosticados como enfermidades naturais, representando um novo meio de tratar com a questão do desvio, assim como um importante passo em direção à laicização do direito e do processo penal.[48]
No entanto, o questionamento direto aos valores inquisitoriais tem início a partir dos movimentos humanistas e racionalistas dos pensadores do Iluminismo europeu[49], por meio de diversos escritos, os quais formulavam fortes críticas em relação ao sistema penal, que surgiram na segunda metade do século XVIII.[50] Este movimento, como um todo, atribui uma nova tessitura às práticas penais, que determinará o contexto principiológico fundador das ciências criminais modernas, representando um momento de fundamental importância na busca da limitação do poder punitivo e de superação do paradigma inquisitório. Nesse sentido, conforme aponta Salo de Carvalho:
“A partir do florescimento do humanismo e do racionalismo, as reformas da cultura medieval, de forma genérica, e das técnicas processuais, em sentido estrito, revelam a incompatibilidade de métodos probatórios de busca da verdade fundados em intervenções corporais e psicológicas rudimentares. A incisiva luta para erradicação da tortura como meio probante, e da morte, como pena, é a expressão mais nítida da política criminal ilustrada humanitária”.[51]
A obra mais famosa desse período sem dúvida foi o tratado escrito por Cesare Beccaria, intitulado “Dos Delitos e das Penas”, que é tida por muitos como o ponto de partida das ciências criminais da Modernidade.[52] No entanto, ao analisar sua importância histórica, é fundamental ressaltar que tal obra representa a expressão de um movimento de pensamento, comum a toda filosofia política do Iluminismo europeu e não uma manifestação isolada de genialidade,[53] traduzindo-se, assim, em uma síntese das ideias penais em curso naquele período.[54]
Beccaria parte de uma perspectiva contratualista acerca do direito de punir, na qual este seria decorrente da cessão de parcelas mínimas da liberdade dos indivíduos, feitas com intuito de formar o Estado soberano como meio de garantia a seus interesses, sendo, dessa forma, injusta por natureza, qualquer pena que superasse a necessidade de proteção da saúde pública, ou que decorresse de fundamento distinto.[55]
Verifica-se uma verdadeira transferência da justificação do poder punitivo, passando de uma fundamentação de natureza teológica, onde o desviante era contrário a vontade de Deus, para uma de natureza antropocêntrica, onde este era contrário ao acordo de vontades firmado entre indivíduos.[56] Além disso, a pena, dentro desta perspectiva, deveria ser prevista por lei, proporcional ao delito cometido e o mais branda possível, para que não representasse um ato de violência contra o cidadão.[57]
Para a aplicação dessa pena, Beccaria, constrói uma estrutura processual na qual, diante de um delito, existiriam duas partes: o soberano afirmando que teria ocorrido uma violação do pacto social; e o acusado, negando que tenha cometido tal violação, cenário do qual emerge a necessidade de um terceiro que decida o litígio, sendo este justamente o magistrado, cujo papel estaria limitado a simplesmente pronunciar se houve, ou não, o fato delituoso.[58] Apenas após o julgamento o acusado poderia ser considerado culpado.[59] Neste ato, necessariamente público[60], o juiz teria sua atuação limitada pela lei, a qual não seria passível de segundas interpretações, mas sim de mera aplicação, como forma de assegurar a imparcialidade do julgamento.[61]
O emprego da tortura como meio de obtenção de prova também foi alvo de fortes críticas por parte de Beccaria, que considerava esse método uma injusta antecipação de pena, assim como um meio de condenação de inocentes, que se viam forçados a confessar crimes jamais cometidos com intuito de cessar o sofrimento a eles imposto.[62] No mesmo sentido, manifestou-se Pietro Verri, em sua obra “Observações Sobre a Tortura”, dedicada a expor a violência e a irracionalidade dos métodos probantes baseados na exposição do acusado ao sofrimento físico como forma de arrancar-lhe a tão buscada verdade. A crítica da obra vem exposta de forma sintetizada em suas considerações finais no seguinte trecho:
“Parece-me impossível que o costume de torturar privadamente no cárcere para obter a verdade possa ainda se sustentar por muito tempo, depois de se demonstrar que muitos e muitos inocentes foram condenados à morte pela tortura, que constitui um suplício de extrema crueldade, por vezes infligido de maneiro atroz, que se brutalidade depende apenas do capricho do juiz, sem testemunhas; que a tortura não é um meio para obter a verdade nem assim a consideram as leis sequer os próprios doutores, que ela é intrinsecamente injusta, que as nações conhecidas da Antiguidade não a praticavam, que os mais veneráveis escritores sempre a abominaram, que foi ilegalmente introduzida nos séculos da barbárie de outrora, e que finalmente, hoje em dia, várias nações a aboliram e continuam a aboli-la, sem qualquer inconveniente”.[63]
É visível o nascimento de uma nova concepção acerca da prática criminal, baseada em ideais inclinados à proteção dos indivíduos diante do poder punitivo desenfreado que se verificou no sistema inquisitório. A respeito desses novos postulados decorrentes da filosofia iluminista, é relevante destacar a lição de Salo de Carvalho, a qual aponta que:
“Os fundamentos do direito penal da Modernidade são apresentados de forma homogênea e coerente pela Ilustração: a lei penal (geral, anterior, taxativa e abstrata) advém de contrato social (jusnaturalismo antropológico), livre e conscientemente aderido pelas pessoas (culpabilidade/livre arbítrio), que se submetem à penalidade (retributiva) em decorrência da violação do pacto. A conduta punível, externamente perceptível e danosa (direito penal do fato) é reconstituída e comprovada em processo contraditório e público, orientado pela presunção de inocência, com a atividade imparcial de magistrado que valora a prova livremente (sistema processual acusatório). Assim, percebe-se claramente programa de intervenção penal limitada cuja centralidade é a tutela dos direitos individuais contra os poderes irracionais.”[64]
Assim, resta evidente a direta oposição que os pensadores iluministas assumiram quanto estilo inquisitório, que se via estruturado a partir de um processo secreto, onde o acusado era considerado um ser perigoso, bem como um mero objeto de verificação do qual o juiz deveria extrair a verdade através das provas que ele mesmo colhia de ofício, utilizando-se de tortura se necessário, com intuito de confirmar seu prejulgamento de culpa, de preferência por meio da rainha das provas, ou seja, a confissão, para que, finalmente, aplicasse uma pena, cuja legitimação tinha natureza divina.
Todo o arsenal discursivo desenvolvido desde a perspectiva médica até os movimentos humanistas e racionalistas serviu para deslegitimar a estrutura inquisitorial, fazendo com que o sistema, enquanto puro, deixasse de ser aplicado ainda na primeira metade do século XIX.[65] No entanto, como será analisado, sua essência sobrevive ao tempo, fazendo-se presente inclusive no sistema processual brasileiro contemporâneo.
1.2. A lógica procedimental do processo penal acusatório histórico:
Uma vez construída a análise acerca do modelo inquisitório, na qual foi exposto seu caráter violento e antidemocrático, decorrente da supressão dos direitos processuais do acusado, passa-se a um breve exame do sistema processual que se traduz em uma expressão completamente contrária à lógica inquisitória: o sistema acusatório. Sua estrutura procedimental demonstra uma forte inclinação em preservar as garantias do réu, entendido como sujeito de direitos, e não mero objeto.
Salo de Carvalho, a respeito desse mecanismo processual, ressalta que “o processo acusatório caracterizou-se, desde o princípio, como actus trium personarum, público, oral contraditório, no qual o juiz não tomava iniciativa de apurar coisa alguma”.[66]
Tal sistema teve sua origem no Direito grego, no qual o povo participava diretamente da acusação e do julgamento.[67] O processo penal grego, mais precisamente o ateniense, corresponde ao sistema acusatório puro, uma vez que qualquer cidadão podia formular uma acusação perante a autoridade competente, existindo inclusive pressupostos para sua admissibilidade.[68] O julgamento, por sua vez, era público e o acusado costumava ser mantido em liberdade durante o processo, estando sempre em igualdade com o acusador.[69]
Em razão de tais características, Salah Hassan Khaled Jr. ressalta que se percebe “a importância que o sistema atribuía à presunção de inocência do acusado, dando-lhe condições para efetivamente defender-se das acusações que lhe eram feitas e conformando uma estrutura processual de manifestação coibida e regrada do poder punitivo”.[70]
O autor destaca ainda que apesar da crueldade das penas, que geralmente desconsideravam os direitos do indivíduo perante o Estado,[71] em relação às questões processuais:
“[…] o sistema ateniense caracterizava-se por conter elementos que são fundamentais para o sistema acusatório: a separação das funções de acusar e julgar, a gestão da prova nas mãos das partes e a publicidade e oralidade. Trata-se de um procedimento estruturado com base na argumentação e em uma produção de verdade que era dinamizada pelo seu aspecto dialogal, ou seja, pela supremacia do contraditório, configurando um modelo de processo acusatório clássico, no qual o juiz não age por iniciativa própria, “ex officio”: ou seja, não pode impulsionar o procedimento e investigar os fatos não é missão sua. Seu papel consiste exclusivamente em examinar o que as partes trazem ao processo e decidir sobre a sua verdade: dirige o combate e anuncia o resultado.”[72]
Outro momento histórico que cabe ser destacado consiste no último século da República romana, em que o sistema acusatório assumia as características semelhantes àquelas analisadas no sistema grego.[73] Nesse período, o processo penal da accusatio tinha início por meio da acusação do ofendido ou de seu representante, sendo posteriormente empregada, também, ação popular pública, diante da introdução dos crimes contra a coletividade. O acusador, mediante autorização do magistrado, era quem procedia com a busca de provas da materialidade e da autoria do fato, sendo fiscalizado pelo acusado em todos os atos. [74]
Ademais, este acusador era um representante da comunidade que atuava em tal função como meio de satisfazer o ofendido e, ao mesmo tempo, desenvolver suas capacidades oratórias, demonstrando competência para atuar em cargos públicos.[75] Para que fosse constituído era necessário que, primeiramente, fosse admitida pelo magistrado a petição acusatória, que deveria relatar o fato e indicar a pessoa imputada,[76] estando sujeito à responsabilidade penal em razão do mau exercício da função, como no caso de calúnia.[77]
O magistrado, por sua vez, era o órgão que representava o Estado, limitando-se estritamente à função jurisdicional, ou seja, deliberação e pronunciamento da sentença.[78] Acrescenta-se ainda que os já limitados poderes do juiz foram lentamente absorvidos pelos jurados após o estabelecimento dos tribunais populares, ato que acentuou a democratização do processo penal romano.[79]
Logo, o procedimento acusatório romano possuía regras e princípios jurídicos que procuravam limitar a arbitrariedade, tendo como eixo central os debates orais e públicos dos quais insurgiam os fundamentos para a decisão do tribunal.[80] Dessa forma, diante de tal estrutura, delineavam-se característica essenciais ao sistema acusatório, o qual repousa na instrução da parte que assume as rédeas da investigação preliminar, bem como a carga da prova, tudo diante da postura inerte do magistrado.[81]
Por fim, outro contexto processual de imensa importância histórica que consagra o sistema acusatório é aquele introduzido na Inglaterra, a partir da Magna Charta Libertatum, em 1215, representando uma vitória dos barões na sua luta contra a concentração dos poderes do rei, bem como uma verdadeira cultura de respeito à cidadania[82].
Diante de tal documento, o processo penal inglês nasce caracterizado pela plenitude do contraditório, uma vez que consistia em uma disputa entre as partes, em local público e perante um júri, enquanto o juiz estatal permanecia inerte, distante da colheita de provas.[83] Nesse sentido, Salah Hassan Khaled Jr, aponta que:
“Nesse sistema, o papel do juiz não é dizer o direito, mas sim guiar o processo rumo à sua conclusão. Ele orienta e facilita o trabalho do júri, mas não é de modo algum um ministro da verdade: cabe ao júri dizer o verdadeiro e o falso, distinguir o justo e o injusto; o juiz não é sequer um árbitro, mas um intermediário entre as partes e o verdadeiro árbitro, que é o júri. O processo penal inglês em sua forma clássica é um procedimento de partes no qual o juiz dirige o juízo como uma espécie de condutor imparcial: trata-se de um processo acusatório puro, porque somente os fatos alegados pela acusação podem conduzir a uma condenação.”[84]
Apesar, da possibilidade de que os jurados tomassem decisões a partir de razões sociais, sendo inverificável o juízo que leva determinado fato ser considerado provado ou não provado, esse processo inglês possuía inegáveis virtudes no que se refere à contenção do poder, assumindo tessitura totalmente distinta daquela predominante na Europa durante o período.[85]
Verifica-se que, diante da análise dessas diferentes manifestações históricas, o modelo processual estruturado a partir do paradigma acusatório, conforme aponta Jacinto Coutinho:
“[…] não deixa muito espaço para que o juiz desenvolva aquilo que Cordero, com razão, chamou de “quadro mental paranóico”, em face de não ser, por excelência, o gestor da prova, pois quando o é, tem, quase, que por definição, a possibilidade de decidir antes e, depois sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a “sua” versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”.[86]
Assim, a gestão da prova como atividade exclusiva das partes apresenta-se como ponto central para compreender a lógica acusatória. Diante da inércia do juiz durante a instrução, o acusado tem plena possibilidade de gozar dos princípios do contraditório e da ampla defesa, fato que representa um processo penal comprometido com os ideais democráticos.
Dessa forma, mostra-se gritante a diferença das tendências políticas que decorrem da estrutura processual do sistema acusatório em relação àquelas que se desdobram do procedimento inquisitivo. O papel assumido pelo juiz reduz os espaços para ocorrência de possíveis lesões aos direitos do acusado, diferentemente do que se verificava no processo inquisitório, onde o magistrado era livre para assumir posição ativa durante todo o procedimento, impedindo o exercício de defesa do réu.
Logo, resta evidente que, diante disso, o sistema acusatório demonstra compatibilidade em relação às exigências constitucionais de um Estado Democrático de Direito, ainda que, como será analisado, tal afinidade sistêmica não represente por si só um processo penal plenamente inclinado à democracia.
2. O SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO E A ESSÊNCIA INQUISITÓRIA
2.1. A inexistência do sistema misto como um terceiro sistema processual autônomo:
Uma vez analisadas as estruturas procedimentais dos sistemas acusatório e inquisitório em suas manifestações puras no decorrer da história, o presente estudo passa a analisar a estrutura do sistema processual brasileiro contemporâneo a partir do Código de Processo Penal de 1941, ressaltando as inclinações antidemocráticas de seu procedimento, bem como o papel por ele atribuído ao magistrado.
Primeiramente, como ponto de partida da reflexão proposta, cabe apontar que o processo penal brasileiro é comumente classificado pela doutrina como “sistema processual misto”, em razão de que os sistemas acusatório e inquisitório, enquanto sistemas puros, seriam modelos históricos, que não se fariam presentes na atualidade. Seu procedimento, dividido em duas fases, seria predominantemente inquisitório na primeira, de natureza administrativa e preparatória, e acusatório durante a segunda, de caráter processual.[87]
Tal classificação é defendida por Guilherme de Souza Nucci, o qual sustenta que o processo penal brasileiro estaria sujeito a análise a partir de dois enfoques: o constitucional e o processual.[88] Do enfoque constitucional, considerando-se apenas aquilo que está disposto na Constituição Federal, emerge a faceta acusatória do sistema processual penal brasileiro, enquanto que o Código de Processo Penal prevê diversos princípios regentes do sistema inquisitivo.[89] O autor ressalta que:
“[…] não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida que se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um Código de forte alma inquisitiva, iluminado por uma Constituição Federal imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um código de Processo Penal, que estabelece as regras de funcionamento do sistema e não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto.”[90]
A origem do sistema misto se deu com Código de Napoleão, em 1808, que, posteriormente, veio a influenciar grande parte dos sistemas processuais de tradição latina.[91] Sua estrutura, como destaca Aury Lopes Jr, referindo-se às lições de Jacinto Coutinho, representava verdadeiro “monstro de duas cabeças; acabando por valer mais a prova secreta que a do contraditório, numa verdadeira fraude”.[92]
No entanto, o potencial que a prova levantada durante a fase preliminar, fora do alcance do princípio do contraditório, possui de fundamentar a decisão do juiz por meio de uma máscara discursiva não é o tema central de análise proposto pela presente pesquisa. A respeito do sistema misto, cabe aqui abordar o entendimento que aponta sua inexistência como um terceiro sistema, bem como o critério a ser empregado para que se possa classificá-lo como essencialmente inquisitório ou acusatório. Esse é o posicionamento sustentado por Jacinto Coutinho, o qual destaca que:
“Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje, sistemas puros, na forma clássica como foram estruturados. Se assim o é, vigora sempre sistemas mistos, dos quais, não poucas vezes, tem-se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba recepcionado como um terceiro sistema, o que não é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjunção dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou é essencialmente inquisitório (como o nosso), com algo (características secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório.”[93]
Assim, resta evidente a possibilidade de um sistema processual manter a natureza inquisitória e, ao mesmo tempo, utilizar-se de diversas características do sistema acusatório, que, ao assumirem papel secundário em sua estrutura, acabam ocultando sua essência. Logo, classificar o processo penal a partir de tais características secundárias resultaria em clara limitação ao exercício de contenção de posturas inquisitórias/antidemocráticas que podem vir a se manifestar no contexto jurídico pátrio, o que exige a construção de um critério que condizente com a complexidade da questão.
2.2. O princípio unificador do sistema processual penal: a gestão da prova como elemento de identificação de sua essência
Diante da inexistência do processo penal misto como um terceiro sistema, emerge a necessidade de eleger qual o princípio unificador a ser empregado para identificar a um sistema como essencialmente acusatório ou essencialmente inquisitório. Ressalta-se que deixar de realizar tal reflexão implica na permanência de práticas abusivas sem que sequer possam sejam identificadas como tais. Dessa forma, o estudo acerca do princípio unificador representa ponto fundamental para o controle de democraticidade do processo penal em um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, destaca-se que a divisão entre as funções de acusar e julgar, atribuída a sujeitos processuais distintos, é apontada pela doutrina como fator fundamental para estabelecer tal distinção.[94] Porém, utilizar-se dessa separação inicial de atividades como meio apto a configurar a natureza acusatória de um sistema representa um verdadeiro reducionismo, uma vez tal diferenciação de nada adianta se após a instrução for permitido ao juiz assumir um papel ativo, praticando atos típicos de acusador.[95] Logo, tal critério se mostra insuficiente para lidar com a complexidade do tema, sendo necessário outro parâmetro de identificação.[96]
Logo, conforme as observações de Jacinto Coutinho, uma vez que o objetivo do processo é a reconstituição de um fato histórico, ou seja, do crime, a partir do arsenal probatório levantado, é o modo como é realizada a gestão da prova que constitui o verdadeiro critério de identificação do princípio unificador que classifica a essência do sistema. [97]
A partir da gestão da prova surgem dois princípios informadores: o dispositivo, no qual ela está nas mãos das partes, fundando o sistema acusatório; e o inquisitivo, no qual ela se encontra nas mãos do juiz, fundando, por sua vez, o sistema inquisitório.[98] Dessa forma, um sistema que consagre, por exemplo, a separação inicial de atividades, bem como os princípios da oralidade e da publicidade, pode ser inquisitório em essência caso permita ao juiz a possibilidade de colher provas de ofício.[99]
Assim, verifica-se que o papel inerte do juiz durante a instrução, na qual a gestão prova se encontra exclusivamente nas mãos das partes, é essencial para que se tenha um sistema de natureza verdadeiramente acusatória, inclinado a proteção das garantias do réu. Características secundárias se tornam, como apontado anteriormente, meros detalhes caso o magistrado possua a iniciativa probante, uma vez que tal fato basta para que o sistema consagre a essência inquisitória, que atenta diretamente aos preceitos de um processo penal democrático.
Diante do critério de classificação apontado, torna-se fundamental, por meio de sua aplicação, verificar se o processo penal brasileiro consagra o princípio inquisitivo ou o dispositivo. O reconhecimento de sua essência é requisito indispensável para que se construa uma reflexão que transcenda o reducionismo investigatório, no qual meras características secundárias do sistema são utilizadas como meio de classificá-lo, enquanto as violências resultantes de sua natureza lógica permanecem limitando garantias e servindo como obstáculo à construção de um processo penal democrático. Sendo, dessa forma, a gestão da prova o critério determinante para evidenciar a essência do sistema, é necessário verificar como ela se apresenta no sistema processual penal brasileiro.
Nessa linha, destaca-se o art. 156, incisos I e II, do Código de Processo Penal brasileiro, que, ao tratar da iniciativa probante, prevê de forma expressa que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, no entanto, facultado ao juiz de ofício “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida” bem como, “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
Diante disso, evidencia-se que o sistema processual brasileiro se estrutura a partir do princípio inquisitivo, e por conseqüência, consagra um sistema processual de essência inquisitória, uma vez que permite ao magistrado assumir uma posição ativa, inclusive durante a instrução, para que busque o material probatório necessário à fundamentação de seu próprio convencimento. Nesse sentido, ressaltam-se as conclusões de Jacinto Coutinho, nas quais aponta que:
“[…] o sistema processual penal brasileiro é, na essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está primordialmente nas mãos do juiz, o que é imprescindível para a compreensão do Direito Processual Penal vigente no Brasil. No entanto, como é primário, não há mais sistema processual puro, razão pela qual tem-se, todos, como sistemas mistos. Não obstante, não é preciso grande esforço para entender que não há – e nem pode haver um princípio misto, o que, por evidente, desfigura o dito sistema. Assim, para entendê-lo, faz-se mister observar o fato de que, ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro.”[100]
Assim, resta devidamente estabelecido um segundo momento de concepção do sistema processual penal brasileiro, superando a perspectiva reducionista que partia da separação inicial das funções de acusar e julgar ao tomar como critério o seu princípio unificador, determinado a partir da gestão da prova, o qual revela sua essência inquisitória.
2.3. O reconhecimento dos traços inquisitórios do sistema processual penal brasileiro:
Diante do reconhecimento da essência inquisitória do sistema processual brasileiro que se deu a partir das lições de Jacinto Coutinho, é pertinente apontar também a aproximação que existe entre o discurso que fundamenta as normas procedimentais de nosso Código de Processo Penal de 1941 com aquele que se fazia presente na lógica inquisitorial sistematizada por Eymerich, no Manual dos Inquisidores, já considerado anteriormente.
Tal exame se mostra imprescindível para evidenciar a tendência autoritária presente nos argumentos de justificação e fundamentação desses procedimentos, representando, assim, um valioso exercício reflexivo diante da necessidade de identificação e superação da violência que decorre de sua prática.
Para tal exercício, deve-se resgatar, primeiramente, a já apontada concepção de magistrado como caçador incansável da verdade, que era sustentada por Eymerich e determinava a postura ativa do juiz em relação à colheita de provas durante o procedimento. Como foi exposto, a ambição em revelar a verdade norteava a atuação do inquisidor, que deveria buscá-la por meio das provas que levantasse ou, caso não fosse o bastante para tal, utilizava-se da tortura para extraí-la do réu que insistisse em ocultá-la.[101]
Essa mesma busca da verdade que, por conseqüência, legitima a criação de um juiz ativo e determinado a sua descoberta, se fez presente na elaboração no Código de Processo Penal brasileiro. Dessa forma, revela-se preservada em sua estrutura, a mesma lógica empregada no Manual dos Inquisidores, ainda que de forma atenuada.
Tal constatação é evidenciada na exposição de motivos do CPP, escrita por Francisco Campos e publicada no Diário Oficial da União em 14 de outubro de 1941, na qual é apontado que “[…] o juiz deixará de ser um espectador inerte na produção de provas. Sua intervenção é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe pareçam úteis ao esclarecimento da verdade”.
Não é de se surpreender que essa perspectiva altamente atentatória às garantias do réu tenha sido consagrada na formação do Código de Processo Penal, uma vez que, assim como na Inquisição, os direitos de natureza individual são tratados em sua exposição de motivos como meros obstáculos incômodos diante do abstrato ideal de proteção do bem comum. Tal afirmação se desdobra do seguinte trecho, no qual Francisco Campos ressalta que:
“De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a representação se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum”.
Tal concepção de supremacia do bem comum em detrimento da esfera de garantias fundamentais se revela como uma verdadeira preservação do discurso inquisitório, como é possível verificar diante da sua comparação com o seguinte trecho, no qual De La Peña, em sua revisão do Directorum Inquisitorum, no mesmo sentido destaca que:
“É preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo. Ora o bem comum deve estar acima de qualquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo.”[102]
Deste modo, a partir da aproximação discursiva apontada, constata-se que a lógica inquisitória orientou a formação do Código de Processo Penal brasileiro, desenvolvendo uma estrutura procedimental que se fundamenta a partir de um discurso de caráter autoritário, fortemente atentatório aos ideais do contexto político e jurídico contemporâneo. A imparcialidade do magistrado, ponto imprescindível para consagrar os princípios do contraditório e da ampla defesa, é abalada diante dessa estrutura argumentativa, apresentando-se como verdadeiro germe antidemocrático no contexto político e jurídico pátrio.
Como referido, a gestão da prova nas mãos do juiz leva à formação de quadros mentais paranóicos e tendências policialescas,[103] assim como à legitimação de crença no imaginário, diante da possibilidade de formular um julgamento prévio para que posteriormente junte as provas que demonstrem a sua versão.[104] Resta evidente, conforme ressalta Aury Lopes Jr, com base nas lições de Geraldo Prado, que:
“[…] o recolhimento da prova por parte do juiz antecipa a formação do juízo. Como explica GERALDO PRADO, “a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar”. O juiz, ao ter a iniciativa probatória, este ciente (prognóstico mais ou menos seguro) de que conseqüências essa prova trará para a definição do fato discutido, pois quem “procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do juiz”. Mais do que uma “inclinação ou tendência perigosamente comprometedora”, trata-se de sepultar definitivamente a imparcialidade do julgador”.[105]
Diante dessa preservação do pensamento inquisitorial realizada pelo Código de Processo Penal brasileiro, onde os princípios do contraditório e da ampla defesa são sacrificados em razão de um magistrado que atua como gestor da prova, em nome da ambição de verdade e do bem comum, não há como se falar em efetivação de um processo penal democrático.
Resta evidente que neste cenário os espaços para que se estruture um sistema processual moldado a partir dos preceitos constitucionais, inclinado à proteção das garantias do acusado, são fortemente reduzidos, o que demonstra a necessidade de urgente reforma. Portanto a superação da inquisitorialidade se revela como ponto essencial para que seja possível a consagração de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Ademais, a lógica inquisitiva não apenas infectou a elaboração do CPP, mas estruturou uma concepção autoritária acerca do papel do magistrado no processo penal, a qual permanece norteando a postura juiz mesmo após a Constituição Federal de 1988. Dessa forma a necessária consagração das garantias processuais constitucionais passa por uma reconstrução acerca do papel do magistrado, bem como do processo penal, quando inseridos em um contexto político democrático.
3. O COMBATE À LÓGICA INQUISITÓRIA A PARTIR DO COMPROMETIMENTO DEMOCRÁTICO
3.1. A necessária compreensão do compromisso democrático do processo penal
Diante desse contexto, onde o processo penal brasileiro se mostra estruturado a partir da lógica inquisitória/antidemocrática, torna-se fundamental que o juiz reestruture a sua conduda de forma que se possibilite uma efetiva proteção dos direitos fundamentais do acusado. Tal reforma de comportamento consiste em verdadeira condição para que se caminhe rumo a um processo penal democrático, condizente com o atual contexto político e jurídico pátrio, partindo necessariamente da compreensão do compromisso do processo penal para com a Constituição Federal, bem como de sua função protetiva.
É sabido que o sistema processual penal de um Estado reflete diretamente seus níveis de autoritarismo, diante da maior ou menor proteção que sua estrutura oferece aos direitos fundamentais do réu. Assim, a escolha do tipo de sistema a ser adotado decorre do próprio modelo de Estado no qual será inserido, bem como das relações entre este Estado e seus cidadãos, relacionando-se muito mais com questões políticas do que técnico-processuais.[106]
Nesse sentido, a partir das dimensões de um Estado Democrático de Direito, o processo penal assume prisma de garantia.[107] Considerando que o fenômeno punitivo está diretamente relacionado com a figura do poder e que este tem tendência de romper com todas as barreiras impostas, a instrumentalidade do processo penal assume sua legitimidade apenas quando associada à preservação dos direitos fundamentais do acusado.[108] Destarte, sendo o poder inclinado à expansão, o processo penal tem o dever de limitar ao máximo as possibilidades de danos aos direitos do réu que possam decorrer de tal avanço.[109]
Logo, dado que a imensa maioria das garantias processuais penais do acusado estão previstas na Constituição Federal, o processo só adquire legitimidade a partir de sua conformidade com os preceitos constitucionais.[110] Sua estrutura se encontra completamente vinculada às disposições da Constituição, sendo a proteção e efetivação dos direitos nela previstos a sua finalidade e razão de existir. Desse modo, valendo-se das lições de Ricardo Jacobsen Glockner:
“A instrumentalidade do processo penal somente assume sua legitimidade quando associada à preservação dos direitos fundamentais do acusado. Em outras palavras, se o poder é tendente à expansão, cabe ao processo limitar tal poder punitivo, de molde a minimizar ao máximo os riscos de lesão aos direitos primordiais do acusado. Desta arte, o termo instrumentalidade aqui é tratado como instrumentalidade constitucional do processo. A sua legitimação se encontra respaldada no momento em que tenciona evitar que a vontade de punir estatal produza violações àqueles direitos que o próprio Estado se obrigou à não ingerência. A esfera do indisponível, aquilo que o Estado não pode tocar (os direitos fundamentais de liberdade) configura um dos pontos cardeais do processo, cuja a existência deve necessariamente impedir atos arbitrários do poder punitivo estatal.”[111]
Dessa forma, o caminho para que se atinja um sistema processual penal condizente com o atual contexto político e jurídico pátrio, deve partir, necessariamente, dos preceitos democráticos previstos na Constituição Federal, cuja consagração constitui sua finalidade máxima, uma vez que a CF, “além de estabelecer uma nova ordem política e social, delineou uma nova ordem jurídica, com profundos reflexos no processo penal”.[112] Nesse sentido, conforme aponta Nereu José Giacomolli, o processo penal, diante da Constituição de 1988:
“[…] deixou de ser mero instrumento utilizado para condenar e aplicar as penas ou para absolver, na medida em que tutela direitos e garantias, conformadores do processo, cuja garantia compete ao terceiro imparcial (devido processo). A democracia da nova ordem constitucional reflete na democratização do processo, sem supremacia das partes ou do julgador, mas com o delineamento de funções a cada sujeito, as quais são interdependentes e constroem uma gama de decisões a cada situação criminal tensionada no espaço público processual. Em cada caso penal incidirão regras processuais referenciadas pela hermenêutica constitucional, no direcionamento da tutela jurisdicional efetiva”.[113]
Resta evidente que a Constituição representou um novo marco interpretativo do processo penal, que não pode mais ser pensado fora dos contornos garantistas nela consagrados. Os direitos constitucionalizados possuem, como bem refere Nereu José Giacomolli:
“[…] caráter normativo e supralegal vinculante, com aplicação direta, imediata e com entidade-jurídico positiva, ultrapassando-se a concepção de mera orientação programática, enunciativa e descritiva. Assim, as regras do CPP anteriores a CF, contrárias aos mandamentos constitucionais, não comportam aplicação válida e legítima.”[114]
Emerge, assim, um compromisso do processo penal em face da CF, funcionando esta como verdadeiro filtro de sua estrutura e finalidade, sendo inválido tudo aquilo que não apresenta compatibilidade com as garantias nela consagradas. Logo, valendo-se novamente das lições de Nereu José Giacomolli:
“O conteúdo do processo penal há de ser compreendido no contexto da complexidade fática e jurídica, do debate contraditório entre acusação e defesa, a partir dos princípios e das garantias constitucionais (princípios-garantia), os quais constituem marcos definidores do percurso a seguir e do resultado esperado e adequado à CF (Dworkin). Essa perspectiva contraditória e enraizada nos direitos e nas garantias blinda decisões conforme a consciência, ou a discricionariedade judicial (Streck), evitando a utilização do processo penal como plataforma de políticas públicas e partidárias. Esses princípios e garantias constitucionais possuem legitimidade cidadã, pois forjados na dialética da elaboração constitucional (soberania popular), e oferecem o suporte e o significado ao ordenamento jurídico.”[115]
Portanto, dado que é a lógica inquisitória/antidemocrática que orienta as disposições do Código de Processo Penal Brasileiro, evidencia-se que o necessário compromisso do sistema processual penal para com os preceitos constitucionais não se concretizou no cenário pátrio, onde ainda não foi ultrapassada a concepção de prevalência do CPP sobre a CF.[116] A reforma de tal cenário passa necessariamente por uma readequação do papel do magistrado, revelando-se assim como ponto determinante para que se consiga atingir a conformidade do modelo processual com a Constituição, além do processo de oxigenação e filtragem a partir das disposições constitucionais, o exercício de problematização acerca do controle de convencionalidade das leis processuais penais.[117]
3.2. O juiz compromissado com a democracia: a consagração da Constituição Federal em detrimento do inquisitório CPP
Desse forma, demonstra-se imprescindível a construção de uma perspectiva do sistema processual penal pátrio a partir da conformidade constitucional, funcionando como uma garantia do acusado contra possíveis abusos do expansivo poder punitivo estatal. Uma vez estabelecida tal premissa, insurge o dever do magistrado em realizar um exame de compatibilidade dos dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro com os preceitos democráticos da Constituição Federal, como condição indispensável para que se atinja um processo penal com verdadeira natureza de garantia.
Nesse sentido, apesar do projeto democrático consagrado pela Constituição Federal, o Código de Processo Penal de 1941, como anteriormente demonstrado, possui natureza inquisitória, altamente atentatória às garantias fundamentais do réu, apresentando incompatibilidade sistemática em relação aos preceitos da Constituição Federal.[118] Nessa linha, Aury Lopoes Jr, ao tratar de tal inconformidade, destaca que:
“Sua sobrevivência tem exigido verdadeiro contorcionismo jurídico, difícil e perigoso, pois deixa uma porta aberta para que os adeptos do discurso autoritário e paleopositivista neguem eficácia a determinadas garantias fundamentais, fechando os olhos para a substancial invalidade de uma série de normas processuais. Daí a necessidade urgente de uma reforma total do Código de Processo Penal, não podendo conceber altereções pontuais.”[119]
Uma reforma do CPP é mais do que urgente diante de seus já evidenciados traços antidemocráticos, potencialmente produtores de imensuráveis violências, o que revela a sua completa inconpatibilidade com as exigências democráticas oriundas da Constituição Federal. No entanto, merece destaque a advertência de Alexandre Morais da Rosa, o qual aponta que "o ideal seria, por evidente, que houvesse a consolidação das normas, para que assim e somente assim, pudéssemos articular um jogo coletivo e democrático. Entretanto, essa pretensão é no momento ilusória […]".[120]
Logo, antes de aguardar pacientemente uma necessária, porém improvável, reforma imediata do Código de Processo Penal, equanto incontáveis violências irreparáveis são práticas diariamente, mostra-se essencial o desenvolvimento de blindagens aptas a proteger tais direitos dos riscos decorrentes da lógica inquisitória que influencia as práticas processuais pátrias. Nessa missão, o magistrado, exerce papel indispensável, uma vez que, como referido, sua postura é determinante para que o acusado possa exercer plenamente sua defesa, gozando de todas as garantias que lhe são concedidas em um Estado Democrático de Direito.
Insurge, diante disso, a necessidade de que o juiz reconheça seu compromisso em face da finalidade protetiva assumida pelo processo penal a partir Constituição Federal de 1988, adotando postura compatível com suas previsões. Tal medida se releva como meio imperativo para que se atinja uma maior democratização do processo penal brasileiro, o que possibilita uma extremamente significativa redução dos danos e violências que decorrentes da lógica inquisitória. Conforme aponta Nereu José Giacomolli:
“O modelo constitucional é o processo devido, o qual também informa o “modo-de-ser” do processo penal e o “modo-de-atuar” dos agentes processuais, desvelando um paradigma democrático e humanitário de processo. A transposição da mera força política da CF permitiu a irradiação de sua validade normativa (Hesse) e a contaminação de todo ordenamento jurídico, em razão de sua legitimidade na soberania popular e na representativa e participativa.”[121]
Portanto, para a consagração do processo penal constitucional, o juiz deve passar a se comprometer com as exigências que o contexto político e jurídico pátrio impõe a sua atuação, devendo ele, diante disso, proteger as garantias do acusado por meio do afastamento dos dispositivos autoritários do CPP. Abster-se de tal reforma de conduta resulta em um obstáculo à construção de um processo penal verdadeiramente inclinado à consagração dos ideais democráticos. Como bem refere Nereu José Giacomolli:
“A incisividade constitucional necessita do exercício jurisdicional funcional e deontologicamente comprometido com a nova ordem constitucional, ciente dela e de sua função no processo, e preservação do espaço processual democrático e das garantias sem relegação à esfera meramente enunciativa ou declaratória”.[122]
Tal introjeção dos valores constitucionais passa pela necessária assimilação dos princípios processuais previstos na CF, servindo como horizonte norteador máximo da atividade do juiz, o que se mostra como um eficaz instrumento limitador de posturas violadoras e antidemocráticas que ele possa vir a assumir. Logo, sendo o processo uma garantia e o juiz aquele que determina o alcance de sua proteção no caso concreto, o compromisso constitucional do processo se estende a ele. Assim, conforme as lições de Nereu José Giacomolli, é preciso entender que:
“[…] os juízes e tribunais têm um relevante papel na construção da norma ao caso concreto. Não devem sujeitar-se, incondicionalmente, às leis, mas somente àquelas leis conformes à Constituição Federal. Espera-se do magistrado contemporâneo que possa declarar e questionar a constitucionalidade das leis, reinterpretá-las e adequá-las à Constituição”. [123]
3.3. Estabelecendo novos horizontes: o magistrado para além da necessária inércia
A partir dessa perspectiva, de que o processo penal deve ser a expressão das garantias constitucionais, devendo o juiz consagrá-las em detrimento das disposições incompatíveis, é preciso repensar a postura do magistrado para além da gestão da prova que delimita a dicotomia acusatório/inquisitório, para que somente assim se possa combater efetivamente a lógica inquisitiva que se manifesta tão fortemente nas práticas processuais pátrias. Sendo a missão do magistrado a proteção dos direitos fundamentais do réu em um processo penal com natureza de garantia, seu papel assume dimensões que transcendem a mera inércia probatória, ainda que essa se revele indispensável.
Nessa linha, Aury Lopes Jr. chama a atenção para “o completo abandono dessa discussão (sistemas processuais) na doutrina estrangeira, pois superadas as premissas que a fundam. Atualmente, debruçam-se os autores noutra problemática: eficácia ou ineficácia do sistema de garantias da Constituição e também das convenções internacionais de direitos humanos”.[124]
Primeiramente, cabe ressaltar que o total abano do estudo acerca dos sistemas acusatório e inquisitório enquanto modelos históricos, bem como de seus princípios unificadores que revelam a essência dos sistemas contemporâneos, não se mostra vantajoso, uma vez que é capaz de potencializar a identificação e contenção de manifestações inquisitivas. Ademais, tal análise evidencia com clareza as tendências e desdobramentos políticos que decorrem das características estruturais de cada sistema, compreensão de extrema importância para que se caminhe rumo à democratização do processo penal.
O fundamental a ser ressaltado é que diante da influência inquisitória no sistema processual penal brasileiro, não bastaria a consagração do princípio dispositivo pra proteger devidamente as garantias do acusado. Isso se dá em razão da inexistência de consenso sobre os critérios de classificação, – tendo autores que sustentam que o processo penal brasileiro é misto, ou inclusive acusatório, como referido anteriormente – o que acaba por limitar as possibilidades de efetivas reformas, dado que, diante de tal divergência, muitas manifestações inquisitivas que lesionam diretamente as garantias constitucionais não são sequer identificadas como tais, em razão da adoção de critérios distintos para compreensão dos sistemas.
Ademais, diversos poderes conferidos ao juiz pelo Código de Processo Penal, – tais como a decretação de preventiva de ofício (art. 311); a possibilidade de condenar ainda que diante do pedido de absolvição do Ministério Público (art. 385); a possibilidade de reconhecer agravantes não alegadas (art. 385) – consistem em claras manifestações inquisitórias que transcendem a questão da gestão da prova em si.
Verifica-se assim que, ainda que inerte probatoriamente, caso o juiz não venha a introjetar os princípios processuais protetivos previstos na Constituição Federal de 1988, tais como o da imparcialidade e da presunção de inocência, persistirá lesionando direitos fundamentais do acusado ao tomar medidas como as anteriormente mencionadas. Resta evidente que, sem a assimilação dos ideais democráticos constitucionais, nem a defesa do devido processo legal, por si só, poderia imunizar a atuação do magistrado, uma vez que não impediria que ele continuasse a priorizar as previsões do CPP em detrimento da Constituição.
Diante de tal cenário, para que se possa combater com eficiência a lógica inquisitória que infecta as práticas processuais pátrias, é preciso que magistrado seja mais do que meramente inerte probatoriamente durante a instrução, o que bastaria para consagrar o princípio dispositivo e, consequentemente, um sistema processual acusatório. Nesse sentido, como bem aponta Fabiano Kingeski Clemental:
“Defende-se que, no estágio em que se encontra o Brasil, no nível de ascensão política, social e econômica, o ideal é que se mantenham as regras do jogo, é dizer, que se respeite à Constituição Federal de 1988, e àquilo que os Tratados Internacionais venham a convergir com ela, de modo que assim se possa aproximar cada dia mais a um justo processo penal, humanamente ético e limpo.”[125]
Resta evidente que, para além de ser norteado pela lógica acusatória ou inquisitória, o magistrado deve ser, antes de tudo, guiado pelas disposições constitucionais/democráticas, ou seja, compatível com as previsões da Constituição Federal. Nesse sentido, fundamental ressaltar ainda as lições de Rui Cunha Martins, nas quais aponta que:
“[…] o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só “princípio unificador”: democraticidade; tal como só pode conceber um e um só modelo sistêmico: o modelo democrático. Dizer democrático é dizer o contrário de “inquisitivo”, é dizer o contrário de “misto” e é dizer mais do que acusatório. Inquisitivo, o sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê (porque se é misto haverá uma parte, pelo menos, que fere a legalidade); acusatório, pode ser, porque se trata de modelo abarcável pelo arco de legitimidade. Mas só o poderá ser à condição: a de que esse modelo acusatório se demonstre capaz de protagonizar essa adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais fundamental do que ele próprio. A sua bandeira é a da democracia e ele é o motivo instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade, se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal “princípio unificador”: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o caráter acusatório desse modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege.”[126]
Logo, evidencia-se que no sistema processual penal brasileiro o magistrado jamais poderia se guiar a partir da lógica inquisitória diante da total inclinação antidemocrática que se verifica em sua lógica funcional. Ademais, não bastaria consagrar o princípio dispositivo, norteando-se a partir da lógica acusatória, uma vez que todas as exigências democráticas que decorrem das disposições constitucionais, bem como a necessidade de proteção da imensa gama de garantias nelas previstas, transcendem seus limites. Conforme aponta Aury Lopes Jr.:
“O sistema processual penal democrático impõe a máxima eficácia das garantias constitucionais e está calcado no ‘amor ao contraditório’. É aquele que, partindo da Constituição, cria as condições de possibilidade para a máxima eficácia do sistema de garantias fundamentais, estando fundado no contraditório efetivo, para assegurar o tratamento igualitário entre as partes, permitir a ampla defesa, afastar o juiz-ator e o ativismo judicial para garantir a imparcialidade. No modelo fundado na democraticidade, há um fortalecimento do ‘individuo’, um fortalecimento das partes processuais. A decisão, na linha de FAZZALARI, é ‘construída em contraditório’, não sendo mais a jurisdição o centro da estrutura processual e tampouco o ‘poder’ jurisdicional se legitima por sí só. Recordemos que o conceito de democracia é multifacetário, mas sem dúvida tem com núcleo imantador o fortalecimento do individuo em todo feixe de relações que ele mantém com o Estado. Fortalecer o sujeito (de direitos) dentro e fora do processo é uma marca indelével do modelo democrático, que não pactua com a ‘coisificação’ do ser. É verificar se o processo efetivamente serve de limite ao exercício de poder punitivo. É condicionar o exercício do poder de punir ao estrito respeito das regras do jogo.”[127]
Dessa forma, a conformidade constitucional emerge como verdadeiro critério de compreensão do papel do magistrado dentro do processo penal democrático, delineando assim um processo inclinado a proteção das garantias fundamentais do acusado. Tais premissas são indispensáveis para que o juiz reoriente sua postura de forma compromissada para com o processo de democratização.
Nesse sentido, é de fundamental relevância a lição de Salo de Carvalho, na qual aponta que para além de dicotomizar os sistemas em inquisitório ou acusatório é preciso identificar o nível de inquisitorialidade, presente em seus discursos e leis processuais, como meio de “otimizar ações neutralizadoras de redução dos danos potenciais aos direitos fundamentais”.[128] Considerando-se a inquisitorialidade como um sinônimo de antidemocraticidade, aflora uma nova perspectiva para a defesa dos direitos fundamentais, muito mais atenta as diferentes formas de violação, devendo ser o horizonte máximo para a atuação do juiz em um Estado Democrático de Direito.
Diante disso, a conscientização do magistrado acerca do compromisso do processo penal para com a Constituição Federal, bem como do seu papel como garantia do acusado diante de possíveis violações por parte do Estado, revela-se como ponto essencial para a concretização da democracia, uma vez que permite que o juiz venha a introjetar a lógica democrática e faça prosperar as disposições constitucionais em detrimento da estrutura inquisitiva/inconstitucional/antidemocrática do Código de Processo Penal de 1941. Como referido, inviável aguardar pacientemente uma improvável reforma legislativa enquanto violências causadoras de danos irrecuperáveis são práticadas cotidianamente no cenário pátrio, cabendo ao magistrado assumir postura que efetive a defesa das garantias do acusado.
Essa postura deve consistir justamente no controle dos níveis de inquisitorialidade/antidemocraticidade que possam vir se manifesar no cotidiano das práticas processuas penais, privilegiando, em detrimento de tais manifestações autoritárias, os preceitos democráticos constitucionais. Portanto, mais do que simplesmente se afastar da gestão da prova, o que bastaria para consagrar o princípio dispositivo, o magistrado deve garantir a consagração do princípio da democraticidade, sendo este o horizonte máximo de sua atuação em um Estado Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo foram analisados, primeiramente, os sistemas acusatório e inquisitório, enquanto sistemas históricos e puros, sendo apontadas suas principais características procedimentais, bem como as consequências que decorrem de suas estruturas lógicas e funcionais na esfera dos direitos do acusado.
Tal exercício evidenciou que o sistema inquisitório puro se via estruturado a partir de um processo secreto, no qual o réu, em razão de sua visão distinta daquela sustentada pelo Magistério, era considerado um ser perigoso. Logo, como apontado, o acusado era reduzido a um mero objeto de verificação do qual o inquisidor tinha a tarefa de extrair a verdade, possuindo, para tal missão, livre iniciativa para colheita das provas, utilizando-se inclusive de tortura para confirmar seu prejulgamento de culpa, em um sistema de provas tarifadas, para que finalmente, aplicasse uma pena divinamente legitimada.
Já o sistema acusatório histórico, por sua vez, conforme foi observado, estruturava-se a partir da separação das atividades de acusar e julgar, sendo o acusado entendido como um sujeito de direitos. O magistrado permanecia inerte durante o processo, sendo as partes as detentoras da gestão da prova em um processo público e oral.
Ademais, no segundo capítulo foi abordada a classificação doutrinária do sistema processual penal brasileiro a partir da gestão da prova, utilizando-a como critério apto a identificar o princípio unificador que indica a natureza do sistema, podendo ele ser essencialmente acusatório, diante do princípio dispositivo, no qual ela está nas mãos das partes, ou essencialmente inquisitório, diante da consagração do princípio inquisitivo, no qual ela se encontra nas mãos do juiz. Diante disso, verificou-se que o atual sistema pátrio, ao conceder ao magistrado a possibilidade de livre iniciativa na colheita do material probatório, consagrou o princípio inquisitivo, sendo, com isso, essencialmente inquisitório.
Diante dessa constatação, o presente estudo passou a evidenciar a assustadora aproximação argumentativa e discursiva entre a lógica inquisitória e aquela que norteou a elaboração do Código de Processo Penal de 1941, a partir de uma comparação entre sua exposição de motivos e o Diretoctorium Inquisitorum. Nesse ponto, dada a preservação da concepção de juiz-inquisidor norteado pela busca da verdade e sacrifício dos direitos individuais em nome dos abstratos ideais de proteção do bem comum, evidenciou-se a infecção inquisitiva sofrida pelo sistema processual pátrio, demonstrando tendências autoritárias incompatíveis com o atual processo de democratização.
Por fim, no terceiro e último capítulo, ressaltou-se primeiramente o compromisso do processo penal para com os ideais democráticos consagrados na CF. Foi demonstrado o papel vinculante da Constituição Federal, que impôs ao processo penal a condição de garantia, protegendo o réu de possíveis abusos do poder punitivo estatal. Nesse contexto, revelou-se que o sistema processual penal em um Estado Democrático de Direito tem como finalidade, condição de existência e legitimidade a efetivação e proteção dos direitos fundamentais do acusado.
Em seguida, o presente estudo analisou o necessário exercício de verificação, por parte do magistrado, da convencionalidade e compatibilidade constitucional do CPP, que apresenta fortes tendências autoritárias. Logo, diante da improbabilidade de uma reforma do Código de Processo Penal, bem como de sua incompatibilidade sistemática em relação à Constituição Federal, revelou-se ser inadmissível aguardar esta improvável reforma legislativa enquanto incontáveis lesões às garantias fundamentais do acusado são praticadas diariamente, devendo o juiz, diante disso, priorizar a aplicação dos preceitos constitucionais em detrimento das práticas essencialmente inquisitivas, bem como reconhecendo que compartilha do dever protetivo imputado ao processo.
Por fim, o presente estudo abordou que o verdadeiro horizonte norteador do juiz compromissado com os ideais democráticos vai além das lógicas inquisitória e acusatória. Ressalvou-se que, em um Estado Democrático de Direito, a conduta do magistrado deve ser mais do que ativa ou inerte probatoriamente, devendo, antes de tudo, consagrar os preceitos constitucionais, identificando e anulando manifestações inquisitórias-antidemocráticas, para que assim se alcance um sistema processual penal inclinado a efetivação do processo democratização promovido pela Constituição Federal.
Diante do exposto, cabe ressaltar, primeiramente, que o estudo dos sistemas processuais clássicos possui grande relevância. Percebe-se que, da análise desses sistemas, é possível perceber nitidamente suas tendências políticas, diante da maior ou menor violação de garantias que seus procedimentos permitiam. Logo, o estudo dos sistemas acusatório e inquisitório puros representa uma importante contribuição para que se identifique possíveis manifestações antidemocráticas, uma vez que, diante das claras inclinações de cada um, vem a ser potencializado o exercício de reconhecimento de características oriundas de suas lógicas no cenário processual pátrio contemporâneo, revelando (in)compatibilidades aos preceitos constitucionais.
Ressalta-se ainda que a verificação da essência inquisitória, bem como a aproximação discursiva e argumentativa que foi construída entre a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941 e o Diretoctorium Inquisitorum, de Nicolau Eymerich, que representam claras manifestações antidemocráticas no cenário nacional, relevam-se importantes pontos para conscientização acerca da lógica autoritária que se faz presente em nosso ordenamento, dependendo, contudo, do estudo dos sistemas clássicos como referência determinante. Dessa forma, ainda que o processo de democratização exija que o magistrado reestruture sua conduta para além da dicotomia acusatório/inquisitório, revela-se inapropriado, contudo, o abandono do estudo de suas estruturas históricas.
Ademais, a partir da sustentação argumentativa construída no presente estudo, emerge como essencial a conscientização de que a conduta do juiz no sistema processual penal brasileiro jamais poderia ser guiada pela lógica inquisitória, diante da total inclinação antidemocrática que se desdobra de sua tessitura funcional, na qual o juiz assume posição ativa na colheita de provas, comprometendo sua imparcialidade, bem como os princípios do contraditório e ampla defesa. Além disso, não bastaria que ele se mantivesse inerte, adotando o princípio dispositivo que consagra um sistema processual penal de essência acusatória, uma vez que todas as exigências democráticas que decorrem das disposições constitucionais, bem como a imensa gama de garantias nelas previstas, transcendem seus limites.
Nesse sentido, o processo seria democrático apenas diante da adoção do princípio dispositivo? A totalidade dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal estariam devidamente protegidos diante da inércia probatória do magistrado? A resposta negativa a essas perguntas não deixa dúvidas de que o juiz no sistema processual brasileiro não pode se guiar meramente pela lógica acusatória, muito menos pela inquisitória, mas sim pela constitucional. Assim, orientar o magistrado com base na lógica acusatória, ainda que não contrarie a Constituição, acaba por limitar a compreensão do compromisso democrático que tanto ele como o próprio processo penal possuem no cenário pátrio contemporâneo.
Logo, para uma efetiva proteção dos direitos fundamentais do réu, bem como uma verdadeira democratização processual, é preciso repensar a atuação do magistrado para além da mera posição ativa ou passiva. Os riscos de produção de danos ao acusado, exigem que se construa uma concepção que parta do compromisso democrático do processo penal, tendo como base, antes de tudo, a efetivação da Constituição Federal e seu rol de garantias.
Portanto, uma vez que o processo penal, antes de tudo, deve ser democrático, diante da consagração dos preceitos constitucionais e proteção às garantias fundamentais do réu, a atuação do juiz deve ir além da necessária inércia probatória. Um magistrado com uma postura baseada nesse horizonte vai muito além da lógica acusatória, ao mesmo tempo que nega completamente a lógica inquisitiva, sendo assim imprescindível que entenda seu compromisso para com a democraticidade, ponto essencial para que se potencialize a percepção e contenção de possíveis lesões à esfera de garantias do acusado. Dessa forma, o exercício de identificação e anulação das inquisitorialidades/antidemocraticidades, a partir do exame de compatibilidade constitucional de seus atos, emerge como verdadeiro dever do magistrado diante das exigências a ele impostas pela Constituição Federal, determinando a proteção das garantias fundamentais do acusado como o horizonte máximo de sua postura.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG
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