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A denúncia da terra


No meu mundo, os humanos são apenas parte, não importa se a mais essencial.  Agasalho animais, plantas, ar, água  e qualquer outra forma de vida, numa só  composição de destino, onde o uno está sempre presente no todo, ou ambos expressam a mesma coisa.  Um atentado ao menor elo dessa rede, afeta o meu corpo por inteiro. Se sou danificada, na Indonésia ou no Caribe, padece todo o meu ser. O meu viver é complexo, dinâmico e integrado. Tudo que habita em mim me faz sentido, independentemente da origem ou espécie. Somente assim serei capaz de nutrir e dar morada a todos os meus seres.


Lamentavelmente, nos últimos anos, em progressão geométrica,  toda a minha natureza vem sofrendo a síndrome da poluição, disseminada aos quatro ventos pelos  poderosos  de todas as nações. Em busca de um falso e espoliador progresso, segue o homem poluindo e devastando, carregando consigo as armas de seu próprio suicídio. Tanta morte, tanto desespero a invadir o meu ecosssistema, biosfera, meio ambiente ou  que quer que venham a se chamar.


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Rios contaminados ferem a minha face. Nos  oceanos já não há o brilho de outrora. “Ainda sou azul?”  Os  mares, se não mortos, são transformados em cloacas.  A água do riacho, do lago, desde a muito perdeu a sua  pureza. Em minhas veias o líquido já  corre acre e infectado. Em prantos, tenho de suportar a chuva ácida. Meio cega, mal enxergo o lume das estrelas.


Ah!, esse calor me apavora. Eu não agüento esses gases, essas poeiras… Cinzentas nuvens cobrem o céu, e por vezes, nem o sol  vem nos ver. Lá, no horizonte,  ainda vejo, em ritmo de agonia, a teimosia das aves. Se a fumaça não diminuir, por certo, os meus pólos degelarão. E com o aumento do nível do mar, o que será dos que se aglomeram às suas margens? Sem a camada de ozônio, a minha membrana se romperá. Quem e  como sobreviver? Os inventos humanos bem que poderiam ser movidos a outro tipo de energia –  a solar, por exemplo -, ofertando a todos a suavidade da brisa ao invés da sufocante tempestade.


As florestas  que, por vezes, levo séculos para torná-las  adultas; de repente  é só  gemido. Agora só não pelo golpe do machado, mais pelo ronco da motosserra. Quando não, lacrimejam ao fogo das queimadas. Arvoredos, bosques, campos, prados, vales, ressequidos pela erosão faz deserto o meu sonho, a minha paisagem. E os continentes, sentindo falta do que antes era verde, estendem a solidão de seus braços entre o Atlântico e o Pacífico. Tudo que depende da fotossíntese para a obtenção do oxigênio, queda desamparado. A atmosfera empoeirada, faz o dia virar noite, tornando o respirar um esforço nunca dantes imaginado. Sem a cobertura da camada vegetal não é possível o amanhecer da vida!


Agrotóxicos, desfolhantes químicos, utilizados no combate aos insetos, no manejo do solo e nos desmatamentos, estão a intoxicar a todo o meu organismo.  Eufemisticamente, os agentes da destruição batizam esses venenos  de defensivos agrícolas. É rir o riso da tragédia!  Os frutos que germino já não têm a mesma seiva. Ao contrário, adoece o homem, a fauna, a flora e a toda a cadeia alimentar.  Em conseqüência, minha  superfície vai se tornando desgastada,  empestada, improdutiva. Os fertilizantes artificiais além de serem utilizados como uma fonte não renovável de recursos e transformarem as plantas em lixo, eles possuem um outro efeito muito mais nocivo, que é o de destruir o nicho ecológico vizinho. É cada vez maior o número de animais a caminho da extinção. Pássaros, peixes mamíferos, répteis, vêm sendo constantemente abatidos pela caça indiscriminada, quando não morrem sufocados por toda a sorte de resíduos lançados às águas. A gaivota já não pode fazer o seu canto, tudo é lamento, é azedume. Meus poros  são cobertos por  dejetos insuportáveis. Manguezais são soterrados, matando a comida do amanhã. O assoreamento da fertilidade,  anuncia mais seca, mais um rio que partiu. Bolsões de lixo invadem as periferias das cidades, contracenam com os mendigos, denunciando o mais grave efeito da poluição, que é a  fome.


O  barulho ensurdecedor me deixa mouca, perturba o meu espírito, estressa e adoece a todos. Todo o meu eu é atingido por rombos radiativos.  Chega de testes, bombas e arsenais nucleares! Já não basta Hiroxima, Nagasáqui, Chernobyl?  O que fazer com esse lixo atômico que se acumula sobre nós, seja no solo, seja no ar?  Quando os seus tanques começarem a pipocar serei capaz de dominá-los?  Hoje, o efeito radiativo tem o poder  de produzir as mais graves enfermidades, mutações genéticas e morte a todas as coisas vivas, imaginem como será amanhã?  Que nação estará livre da radiação, se uma descarga, um experimento, feito em qualquer parte, vai até mesmo além da atmosfera?


Entendam, povos de todos as crenças e lugares: sou um ser vivo, única, habitada em um pequeno espaço, no meio deste vasto universo!  O meu signo é ser mãe do minério, da árvore, do animal e do homem. Corações e mentes de todos os cantos e cânticos  não me deixem chegar ao fundo do poço!  Como posso oferecer o pão, a luz, o ar, a água se sou, cada vez mais, destruída?  Resistir é preciso, e tenho resistido. Até agora só tenho o amparo de alguns, estes muitas vezes chacinados pela sanha dos que se julgam ser os meus exclusivos donos. É necessário uma nova consciência, pois se eu morrer para os oprimidos, morrerei também para os opressores, ao menos para os de amanhã – sem medir fronteiras ou malabarismos tecnológicos. Não deixem que a minha primavera seja madrugada sem vocês! Tenho sede, tenho esperança, de salvar tudo que me fora arruinado, para poder preservar a própria espécie humana.



Informações Sobre o Autor

Miguel Sales

Promotor de Justiça em Pernambuco, professor de Direito


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Equipe Âmbito Jurídico

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