Resumo: O presente trabalho analisa o instituto de desconsideração da personalidade jurídica aplicado às associações. Segundo o Código Civil, as associações são também pessoas jurídicas de direito privado. Nesse sentido, podem configurar como parte em contrato e também atuar como polo ativo ou passivo na esfera judicial. Por esse motivo, podem também sofrer a desconsideração da personalidade jurídica. Em outras palavras, diante de uma situação de o abuso da personalidade jurídica, fica a dúvida se há a possibilidade do magistrado pode levantar o véu da personalidade para atingir o patrimônio pessoal dos membros da associação. Considerando que há diferenças significantes entre a associação e uma sociedade empresária, pode-se afirmar que a legislação brasileira é clara e auxilia os magistrados na aplicação desse instituto nas associações? Desta maneira, delimita-se o objetivo deste trabalho na reflexão sobre a forma como a desconsideração da personalidade jurídica é aplicada no âmbito judicial em relação às associações.
Palavras – chaves: associações; desconsideração da personalidade jurídica; legislação brasileira; âmbito judicial.
Abstract: This paper analyzes the disregard institute legal personality applied to associations. According to the Civil Code, associations are also legal entities of private law. In this sense, they can set up as part of contract and also act as active or defendant in court. For this reason, may also suffer the piercing the corporate veil. In other words, in a situation of abuse of legal personality, the question is whether there is the possibility of the magistrate can lift the veil of personality to reach the personal assets of members of the association. Whereas there are significant differences between the association and a business company, it can be stated that Brazilian law is clear and assists judges in the application of this instrument in the associations? Thus, marks up the goal of this work to reflect on how piercing the corporate veil is applied in the legal framework in relation to associations.
Keywords: associations; piercing the corporate veil; Brazilian legislation; judicial framework.
Sumário: 1. A Desconsideração da Personalidade Jurídica: Conceito e Características. 1.1. Pessoa Jurídica e Personalidade Jurídica. 1.2. Autonomia Patrimonial. 1.3. Desconsideração da Personalidade Jurídica. 1.4. Requisitos para a utilização do instituto. 1.5. Teoria Maior Subjetiva e Objetiva. 1.6. Teoria Menor. 1.7. Leis no ordenamento jurídico brasileiro que adotam a Teoria. 1.7.1. Código de Defesa do Consumidor. 1.7.2. Falência. 1.7.3. Lei n° 9605/98. 1.7.4. Lei Antitruste – Lei nº 12529/2011. 1.7.5. Código Tributário Nacional. 2. O Direito de Associação nas Constituições Brasileiras. 2.1. Conceito. 2.1.2. Organização com vista à finalidade comum. 3. A desconsideração da Personalidade Jurídica das Associações.
Introdução
O ordenamento jurídico brasileiro defende a liberdade de iniciativa econômica. Também foi a intenção de legislador de criar meios para que as sociedades empresárias não abusassem do seu direito de pessoas jurídicas para poder prejudicar terceiros. Nesse diapasão, destaca-se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que consiste em superar a personificação concedida a empresa, para que a responsabilidade de ressarcimento de danos não atinja o patrimônio social e sim o patrimônio de bem particular do sócio. Nesse cenário, não devemos nos esquecer das associações. Essa configuração de pessoa jurídica de direito privado (conforme assentado pelo Código Civil vigente) não tem finalidade lucrativa. É possível afirmar que a aplicação do mencionado instituto no âmbito das associações é exequível, como se verá no presente trabalho.
1 A Desconsideração da Personalidade Jurídica: Conceito e Características.
1.1 Pessoa Jurídica e Personalidade Jurídica
Apesar de toda pessoa natural ser dotada de capacidade jurídica, não são a elas somente que o ordenamento confere esse atributo. Muitas vezes sentem os homens a vontade ou necessidade de se juntarem para explorar atividade econômica de alta complexidade ou para outro fim comum. De fato, a evolução da humanidade tornou-se muito rápida principalmente após o nascimento das sociedades que investiram em produção de bens necessários a vida humana. Roupas, sapatos, e todo o resto indispensável à sobrevivência humana hoje é produzido, a maioria, por grandes empresas. E todos os tipos de empresas, exceto a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) e o empresário individual, tem um pressuposto básico: a pluralidade de membros.
Nesse diapasão, a lei confere personalidade e capacidade jurídica ao grupo de pessoas que possuem um mesmo objetivo, seja este a aferição de lucros ou metas sociais, por exemplo. No entanto, “não basta que alguns indivíduos se reúnam, para que tenha nascido a personalidade jurídica (…). É preciso (…) que se estabeleça uma vinculação jurídica especifica que lhe imprima unidade orgânica” [1].
Desta forma, tem o escopo de uma pessoa jurídica. Fala-se em escopo, pois para o nascimento da pessoa jurídica há ainda mais requisitos que devem ser preenchidos, como, por exemplo, a observância de requisitos impostos pela legislação. Afinal, como já foi dito acima, a união de duas ou mais pessoas que trabalham com o mesmo fim, por si só, não adquirem personalidade jurídica autônoma [2].
Nesse sentido, é a lei que proporciona a conversão de um aglomerado de pessoas naturais para uma pessoa jurídica, esta dotada de direitos e deveres, através de atos como exigência previa de autorização governamental para funcionamento de certas entidades econômicas, necessidade de inscrição de ato constitutivo no Registro Público como condição de aquisição de personalidade[3], quantidade prévia de bens moveis ou imóveis para a instituição de fundação, etc. A partir do registro então nasce a PJ.
A lei estabelece como requisito para a criação de uma pessoa jurídica, a inscrição do ato constitutivo no Registro Público, conforme dito acima. Tal exigência encontra-se no artigo 45 do Código Civil:
“Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo [4].”
Somente com o registro ter-se-á a aquisição de personalidade jurídica. Maria Helena Diniz define pessoa jurídica como “unidade de pessoas naturais ou de patrimônio que visa à obtenção de certas finalidades, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações” [5].
Clóvis Beviláqua, citado por Caio Mário da Silva Pereira, afirma que “a ideia de personalidade está intimamente ligada a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações” [6]. Como as relações jurídicas possuem o homem como sujeito, diz-se que a personalidade é uma faculdade reconhecida a ele [7]. Explica também Washingtom Monteiro de Barros acerca da personalidade jurídica.
“A personalidade jurídica não é, pois, ficção, mas uma forma, uma investidura, um atributo, que o Estado defere a certos entes, havidos como merecedores dessa situação […] a pessoa jurídica tem assim realidade, não a realidade física (peculiar às ciências naturais), mas a realidade jurídica ideal, a realidade das instituições jurídicas.” [8]
Segundo Rubens Requião, a sociedade é transformada em um novo ser, que é alheia a individualidade das pessoas, tendo um patrimônio próprio e órgãos deliberativos e executivos [9]. “Investida de personalidade, a sociedade está apta a contratar em nome próprio (…),assumir compromissos e exigir direitos, tendo legitimidade para qualquer ato que não haja proibição legal expressa, denominadas como ‘consequências da personalização’” [10].
1.2 Autonomia Patrimonial
Um dos efeitos da personalização é a distinção entre os patrimônios dos sócios e da sociedade. Desse modo, a personalidade confere a sociedade, um patrimônio próprio. Essa distinção de patrimônios caracteriza o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Uma vez que os bens dos sócios não podem responder por dividas da sociedade, senão depois de executados todos os bens sociais, há um favorecimento ao desenvolvimento econômico.
Já dizia Fabio Ulhôa Coelho que “a autonomia patrimonial das sociedades empresárias é um dos mais importantes instrumentos de atração de investimentos na economia globalizada” [11].
Isso acontece porque há uma possibilidade maior de investimento por parte dos sócios, em projetos vultosos sem o receio de que se atinja o patrimônio pessoal, caso os investimentos não resultem em sucesso. Dessa forma, “a segregação dos riscos motiva e atrai novos investimentos por poupar o investidor de perdas elevadas ou totais, em caso de insucesso da empresa” [12].
“Afinal, se o fato de a empresa não prosperar e vir a experimentar perdas que acabem por levá-la à quebra, (…) colocar em risco a totalidade do patrimônio do investidor (…) é provável que ele opte por direcionar seu capital para outro lugar” [13]. Fábio Ulhôa Coelho leciona a respeito do princípio da autonomia patrimonial:
“Em sendo assim, pelas obrigações da pessoa jurídica responde, em regra, apenas o patrimônio. É, em geral, incabível a responsabilização do membro da pessoa jurídica por obrigação que não é dele, mas dela. O credor do ente moral (sociedade civil ou comercial, associação ou fundação) não pode, em princípio, pretender a satisfação de seu crédito no patrimônio individual de membro da entidade, mesmo em se tratando da pessoa que a representa no negócio ou na ação judicial, já que são sujeitos de direito distintos. Esta regra geral, decorrente do dispositivo de lei acima mencionado, é referida através do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica” [14] (grifo nosso).
Via de regra, a lei requisita um valor pecuniário mínimo para a constituição da sociedade, como, por exemplo, a sociedade limitada. Esse valor inicial também é denominado capital social. É o capital social que responderá futuramente pelas dividas adquiridas pela sociedade. Nas palavras de Adalberto Simão Filho “o capital social é a somatória das contribuições de responsabilidade dos sócios para que a sociedade possa bem cumprir o seu objetivo social.” [15].
Referido capital, na prática, representa os recursos empreendidos pelos proprietários para a constituição (ou criação) da empresa. Assim, temos que quando do início de suas atividades, a empresa necessita de capital (dinheiro, bens ou direitos) que deverão ser providos por aqueles que a constituíram, ou seja, os acionistas ou sócios.
Nesta oportunidade, prescreve o artigo 997, III do Código Civil que qualquer bem passível de avaliação pecuniária pode integrar o capital social:
“Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:(…)
III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária;”[16]
No entanto, convém ressaltar que existe diferença entre o patrimônio da sociedade e o capital social. Patrimônio é total de bens da sociedade, podendo ser elevado ou reduzido a qualquer tempo, enquanto o capital social permanece imutável durante a existência da sociedade, exceto quando for deliberadamente alterado.
No mesmo sentido, tem-se a lição de José Edwaldo Tavares BORBA:
“Verifica-se, por conseguinte, que o capital é um valor formal e estático, enquanto o patrimônio é real e dinâmico. O capital não se modifica no dia-a-dia da empresa – a realidade não o afeta, pois se trata de uma cifra contábil. O patrimônio encontra-se sujeito ao sucesso ou insucesso da sociedade, crescendo na medida em que esta realize operação lucrativas, e reduzindo-se com os prejuízos que se forem acumulando.
O patrimônio inicial da sociedade corresponde a mais ou menos o capital. Iniciadas as atividades sociais, o patrimônio líquido tende a exceder o capital, se a sociedade acumular lucros, e a inferiorizar-se, na hipótese de prejuízos” [17].
“A função econômica do capital relaciona-se com a própria capacidade da sociedade para operar e funcionar com vistas à realização do objeto social, e o capital [social] possui duas funções básicas” [18] que segundo Adalberto Simão fixar a relação patrimonial entre os sócios e regular a participação social nos lucros e nos riscos, além de representar “a segurança dos terceiros que com a sociedade entabulem negócios jurídicos” [19].
Dessarte, quando bem gerido, o capital social é fator de desenvolvimento econômico: aumentando a produtividade individual. Portanto, o capital social tem o primordial objetivo de dar o pontapé inicial da vida societária.
1.3 Desconsideração da Personalidade Jurídica
A Desconsideração da personalidade Jurídica é o instituto do ordenamento jurídico brasileiro válido para levantar o véu da personalidade jurídica das sociedades, fazendo com que se atinjam os sócios da mesma. Em outras palavras, “a aplicação da teoria da desconsideração implica, tão somente, uma suspensão temporária dos efeitos da personalização num determinado caso específico, não estendendo seus efeitos para as demais relações jurídicas das quais a pessoa jurídica faça parte ” [20].
Essa teoria foi criada para evitar abusos da utilização da pessoa jurídica, uma vez que as sociedades criadas, através da lei, na maior parte das vezes protegiam os patrimônios dos sócios. A responsabilidade limitada dos sócios em relação a dividas empresariais foi um fator preponderante para a criação desse instituto. Devido à personalidade jurídica das sociedades, muitos sócios mascaravam negócios jurídicos, agindo muitas vezes de má-fé, desta forma, blindavam seu patrimônio pessoal, pois esse não respondia e consequentemente lesavam credores.
Sobre a teoria da desconsideração, manifesta-se Ulhoa:
“A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa, justamente, a impedir que as fraudes e o abuso de direito perpetrados com a utilização do instituto da pessoa jurídica, se consumam. É uma elaboração teórica destinada à coibição das práticas fraudulentas que se valem da pessoa jurídica. E é, ao mesmo tempo, uma tentativa de preservar o instituto da pessoa jurídica, ao mostrar que o problema não reside no próprio instituto, mas no mau uso que se pode fazer dele”. [21]
Desta forma, não é permitido ao homem formar sociedade com o intuito de lesionar futuros credores, pois através do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o sócio pode ter o seu patrimônio pessoal atingido e utilizado para liquidar dividas societárias, decorrentes do uso da má-fé.
Assim, quando ocorre a gestão fraudulenta da sociedade, a parte interessada ou o Ministério Público pede ao magistrado que desconsidere a personalidade jurídica da sociedade para que as dividas atinjam os bens dos sócios [22].
Convém lembrar também que a aplicação da teoria da desconsideração não implica desconstituição do registro da pessoa jurídica. Apenas os atos fraudulentos são afastados para acarretar a execução contra os reais responsáveis pelos danos. O Ministro Ruy Rosado de Aguiar observou:
“Assim, estou me pondo de acordo com os que admitem a aplicação da doutrina da desconsideração, para julgar ineficaz a personificação societária sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. Ou, em outras palavras: o juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito “[23].
Portanto, diante de situações de utilização abusiva da sociedade empresarial, a autonomia patrimonial pode ser desconsiderada, o que não acarreta a desconstituição da pessoa jurídica que sofre a desconsideração.
1.4 Requisitos para a utilização do instituto
A lei define pelo Código Civil, artigo 50, os casos de aplicação desse instituto:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica” (grifo nosso). [24]
Assim, quando houver abuso de personalidade jurídica, pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica. Não só o abuso, mas também a fraude é, segundo alguns doutrinadores, motivo para sua desconsideração.
Para fins de melhor entendimento legislativo, Alexandre Alberto Teodoro da Silva, explica o conceito de desvio de finalidade, que é o “uso indevido ou anormal” da pessoa jurídica, visto que “o sócio que detém a liberdade de iniciativa de se servir de uma personalidade jurídica, distinta dos membros que compõem a pessoa jurídica, emprega seus esforços para dar outro destino a tal personalidade [25].
Já a definição do termo “confusão patrimonial” pode ser definida pela ausência de separação entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da sociedade empresária. Nas palavras do ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, “se o próprio controlador da pessoa jurídica, maior interessado na manutenção do princípio da autonomia patrimonial o descumpre, misturando o seu patrimônio com o da pessoa jurídica, sob o seu controle, não há razão para que os juízes respeitem tal princípio” [26].
Há também na doutrina discussão acerca do encerramento irregular da pessoa jurídica. Conforme o Enunciado 282 da IV Jornada de Direito Civil afirma que: “O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica” [27].
No entanto, Flávio Tartuce, que discorda do presente enunciado, afirma que o encerramento irregular da empresa, por si só, caracteriza o abuso da personalidade jurídica, nos termos do artigo 187 do Código Civil [28], sendo suficiente para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que o encerramento irregular da empresa excede os limites impostos por sua finalidade, cometendo abuso de direito, pois os parâmetros utilizados pelo artigo supracitado o definem como ato ilícito.[29]
Já decidiu o Conselho de Justiça Federal que “só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela haja incorrido” conforme o Enunciado 7 da 1ª Jornada de Direito Civil. [30]
Outrossim, o Enunciado 281 da IV Jornada de Direito Civil determina que o emprego da Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica deve ser realizado somente após a comprovação de insolvência da empresa: “A aplicação da teoria da desconsideração, descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica.” [31].
Ademais, é necessário que a sociedade tenha como característica a responsabilidade limitada dos seus sócios uma vez que integralizado o capital social (isso significa que todos os sócios já contribuíram com suas respectivas quantias), os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, mesmo que os bens sociais não sejam suficientes para pagamento das dívidas [32].
Portanto, “a aplicação da desconsideração pressupõe uma sociedade na qual o exaurimento do patrimônio social não seja suficiente para levar responsabilidade aos sócios” [33]. Tanto é que o Enunciado 229 da III Jornada de Direito Civil determina que a “responsabilidade ilimitada dos sócios pelas deliberações infringentes da lei ou do contrato torna desnecessária a desconsideração da personalidade jurídica, por não constituir a autonomia patrimonial da pessoa jurídica escudo para a responsabilização pessoal e direta” [34].
Apesar das explicações já demonstradas, foram criadas duas teorias acerca da utilização da pessoa jurídica. Essas teorias se diferem na medida em que cada uma elenca requisitos específicos para a utilização do instrumento da desconsideração da personalidade jurídica. Ambas as teorias foram introduzidas no espaço jurídico brasileiro por Fábio Ulhoa Coelho. São denominadas de Teoria Maior (que se subdivide em teoria objetiva e teoria subjetiva) e Teoria Menor.
1.5. Teoria Maior Subjetiva e Objetiva
“A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva” [35]. Consoante a Teoria Maior Subjetiva, cujo grande defensor era Rubens Requião, para que seja permitida a desconsideração, é preciso que ocorra o abuso de direito [36] ou a fraude. “Cuida-se, desse modo, de uma formulação subjetiva, que dá destaque ao intuito do sócio ou administrador, voltado à frustração de legítimo interesse de credor.” [37]. “É preciso, assim, a demonstração da má-fé, da intenção dos sócios de se valerem da pessoa jurídica desviando os fins que permitiram a sua criação.” [38].
Para o doutrinador Fabio Ulhoa Coelho, a teoria subjetiva é mais consistente e melhor elaborada, porquanto exige, para aplicação episódica do afastamento da autonomia patrimonial da empresa, a caracterização da manipulação fraudulenta, ou abusiva do ente moral [39].
Segundo a doutrinadora Raquel Nunes Bravo:
“A teoria subjetiva baseia-se na fraude e no abuso. O agente tem a intenção de usar a estrutura da pessoa jurídica, patrimônio distinto do seu, para fins diversos daqueles previstos no contrato social, estatuto, objeto social. A conduta caracteriza o abuso do direito e fraude no uso da personalidade jurídica. Seus efeitos trazem prejuízos a credores ou a terceiros” [40].
Sob o abuso do poder o professor Guilherme Nogueira da Gama diz: “Abuso do direito é o exercício irregular ou abusivo de direito pelo seu titular; e a conduta licita que se mostra desconforme com a finalidade que o ordenamento pretende alcançar e promover naquela circunstancia fática [41]. Já para o professor Vinicius Gontijo: “(…) abuso do direito àquele que, podendo realizar um ato, exerce-o além daquilo que o legislador tinha a intenção de assegurar quando editou o regramento legal. O abuso do direito consiste no exercício irregular de um direito [42].
De outra banda, para a Teoria Maior Objetiva, com esteio nos estudos de Fábio Konder Comparato [43], o requisito essencial e único para que a desconsideração ocorra é a confusão patrimonial. Como já foi dito, a confusão patrimonial é a ausência de separação do patrimônio dos sócios com o patrimônio da sociedade empresária. Coelho exemplifica:
“Se, a partir da escrituração contábil, ou da movimentação de contas de depósito bancário, percebe-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou este recebe créditos dela, ou o inverso, então não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas. Outro indicativo eloquente de confusão, a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, é a existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade, e vice-versa” [44].
No entanto, não basta somente que seja caracterizada a confusão patrimonial para que possa ocorrer a despersonalização. É necessário que haja também prejuízo a terceiro. Deste modo, nem sempre que houver confusão patrimonial haverá a possibilidade de desconsiderar a pessoa jurídica, tendo em vista a necessidade de prejuízo [45]. Segundo alguns estudiosos do assunto, “a linha objetiva é mais vantajosa, pois não há maiores dificuldades probatórias na busca pelo elemento intencional” [46].
A jurisprudência pátria já emitiu algumas manifestações acerca da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Colhem-se aqui algumas decisões que demonstram principalmente a preferência pela Teoria Maior nas soluções da lide:
“PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE FALÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INVIABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ART. 50 DO CC/02. APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ALCANCE DO SÓCIO MAJORITÁRIO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. 1. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração. 2. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pelo recorrente em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial. 3. A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro, prevista no art. 50 do CC/02, consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva. 4. Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. 5. Os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio majoritário ou controlador. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido” [47] (grifo nosso).
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DECISÃO DEFERINDO A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. APLICAÇÃO. ENCERRAMENTO IRREGULAR DA SOCIEDADE. DEMONSTRAÇÃO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. 1. A desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional, a qual deve ser aplicada apenas se presentes os requisitos exigidos legalmente. No ordenamento jurídico, o referido instituto encontra-se previsto no art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, no art. 4º da Lei n. 9.605/1998 e no art. 50 do Código Civil de 2002. 2. O art. 50 do Código Civil adota a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, uma vez que condiciona a desconsideração à ocorrência do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial. Assim, para que seja aplicada a desconsideração, é necessária a existência de fatos concretos que apontem para o uso indevido da distinção patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros”[48] (grifo nosso).
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC/2002. TEORIA MAIOR. MUDANÇA DE ENDEREÇO DA EMPRESA.”
Explica Garcia que “a teoria maior tem base sólida e se trata da verdadeira desconsideração, vinculada à verificação do uso fraudulento da personalidade jurídica, ou seja, apresenta requisitos específicos para que seja concretizada” [49].
Logo, a Teoria Maior somente reconhece a desconsideração da personalidade jurídica quando ficar configurado que os sócios agiram com fraude ou abuso, ou, ainda, que houve confusão patrimonial entre os bens da pessoa física e os bens da pessoa jurídica.
1.6. Teoria Menor
Alguns estudiosos tem defendido a tese de que haveria necessidade somente da insolvência da pessoa jurídica para que ocorresse a desconsideração da PJ. Essa ideia é basicamente a definição da Teoria Menor. Assim, essa teoria baseia-se unicamente na inadimplência da PJ. Colhe-se jurisprudência acerca do tema emitida pelo STJ:
“Informativo .415, STJ – Resp 97o635/SP: DESCONSIDERAÇÃO. PERSONAUDA· DE JURÍDICA. A controvérsia está a determinar se a simples inexistência de bens de propriedade da empresa executada constitui motivo apto à desconsideração da personalidade jurídica – o que, como é cediço, permite a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores. Explica a Min. Relatora que são duas as principais teorias adotadas no ordenamento jurídico pátrio: a teoria maior da desconsideração (consagrada no art. 50 do CC/ 2002) – é a mais usada -, nela mera demonstração da insolvência da pessoa jurídica não constitui motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica, pois se exige a prova de insolvência ou a demonstração de desvio de finalidade (ato intencional dos sócios fraudar terceiros) ou a demonstração de confusão patrimonial (confusão quando não há separação do patrimônio da pessoa jurídica e de seus sócios). Já na outra, a teoria menor da desconsideração, justifica-se a desconsideração pela simples comprovação da insolvência de pessoa jurídica, e os prejuízos são suportados pelos sócios, mesmo que não exista qualquer prova a identificar a conduta culposa ou dolosa dos sócios ou administradores. Essa teoria tem-se restringido apenas às situações excepcionalíssimas. Na hipótese dos autos, a desconsideração jurídica determinada pelo TJ baseou-se na aparente insolvência da empresa recorrente, pelo fato de ela não mais exercer suas atividades no endereço em que estava sediada, sem, contudo, demonstrar a confusão patrimonial nem desvio de finalidade. Por isso, tal entendimento não pode prosperar, sendo de rigor afastar a desconsideração da personalidade jurídica da recorrente. Diante do exposto, a Turma deu provimento ao recurso especial. REsp 970.635-SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/11/2009.”
Assim, de acordo com a teoria menor, bastaria ao magistrado constatar que a personalidade jurídica tornou-se, de alguma forma, um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados a terceiros para que a desconsideração pudesse ser realizada.
Apesar de ser adotada por algumas normas jurídicas pátrias, há quem não concorde com a aplicação da Teoria Menor. É o entendimento de Rolf Hanssen Madaleno:
“Para adeptos da formulação menor da desconsideração da personalidade jurídica, também reconhecida como aplicação objetiva do desvendamento, existe completo desprezo à forma jurídica, sendo suficiente, tão-somente a demonstração da insolvência da empresa e a não satisfação do credito” [50]
Apesar de existir doutrinadores que não concordem, a Teoria Menor é muito adotada na legislação pátria, como será visto a seguir.
1.7 Leis no ordenamento jurídico brasileiro que adotam a Teoria
1.7.1 Código de Defesa do Consumidor
Essa Teoria é adotada pelo Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 28:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores [51].”
Analisando um pouco mais a fundo o artigo 28 do CDC, é de se observar que este trata a teoria da desconsideração com uma amplitude maior de incidência, abarcando hipóteses outras, além da fraude e do abuso de poder.
Pela literalidade do dispositivo, verifica-se que podem ensejar a desconsideração da personalidade jurídica o excesso de poder, a infração à lei, fato ou ato ilícito, violação ao contrato social e, ainda, nas hipóteses de falência ou estado de insolvência, quando provocada por má administração. Isso sem contar a ampla hipótese do parágrafo quinto, que autoriza a desconsideração sempre que a personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Por não exigir exige prova da fraude ou do abuso de direito, a Teoria Menor é uma teoria ampla, mais benéfica ao consumidor. Assim, basta somente que o credor da sociedade empresária demonstre a insolvência desta última que a impossibilite de ressarcir prejuízos causados ao primeiro.
Nesse sentido o STJ já se pronunciou:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL PROPOSTA CONTRA A CONSTRUTORA E SEUS SÓCIOS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 28, CAPUT E § 5º, DO CDC. PREJUÍZO A CONSUMIDORES. INATIVIDADE DA EMPRESA POR MÁ ADMINISTRAÇÃO. 1. Ação de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel movida contra a construtora e seus sócios. 2. Reconhecimento pelas instâncias ordinárias de que, em detrimento das consumidoras demandantes, houve inatividade da pessoa jurídica, decorrente da má administração, circunstância apta, de per si, a ensejar a desconsideração, com fundamento no art. 28, caput, do CDC. 3. No contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, § 5º, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária. 4. Precedente específico desta Corte acerca do tema (REsp. nº 279.273/SP, Rel. Min. ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Min. NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJ de 29.03.2004). 5. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. “[52] (grifo nosso).
Para esta teoria, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica [53].
No entanto, insta salientar, que Fábio Ulhôa critica claramente esse dispositivo, uma vez que defende a ideia de que muitas das hipóteses previstas no Código de Defesa do Consumidor não se encaixam com a teoria da desconsideração “mas sim com subsídios da teoria da aparência, fato próprio, ultra vires” [54]. Falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração também são casos que se enquadram na responsabilidade direta e pessoal do administrador e não no conceito de desconsideração [55] [56].
De toda maneira, percebe-se claramente que tal dispositivo visa proteger o consumidor, assegurando-lhe livre acesso aos bens patrimoniais dos administradores sempre que o direito de crédito resultar de quaisquer das práticas abusivas elencadas pelo artigo supracitado.
1.7.2 Falência
Igualmente, a Teoria Menor é aplicada nos casos de falência da pessoa jurídica, pouco importando se o sócio utilizou fraudulentamente o instituto, se houve abuso de direito, tampouco se foi configurada a confusão patrimonial. A preocupação maior é não frustrar o credor da sociedade. Conforme leciona Fabio Ulhoa Coelho:
“A teoria menor da desconsideração é, por evidente, bem menos elaborada que a maior. Ela reflete, na verdade, a crise do principio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. O seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menos da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela “[57] (grifo nosso).
Ademais, o STJ já se manifestou:
Está correta a desconsideração da personalidade jurídica da Sociedade Anônima falida quando utilizada por sócios controladores, diretores e ex-diretores para fraudar credores. Nesse caso, o juiz falimentar pode determinar medida cautelar de indisponibilidade de bens daquelas pessoas, de ofício, na própria sentença declaratória de falência, presentes os requisitos do fumus boni iuris e os do periculum in mora” [58].
1.7.3 Lei n° 9605/98
“Em atenção ao imperativo constitucional contido no inciso VI do art. 170 da CRFB, a Defesa do Meio Ambiente se apresenta como um Princípio Constitucional, ao qual a Livre Iniciativa deve respeitar” [59]. Por esse princípio, deve-se não medir esforços ao evitar danos ambientais. “Isto se dá, principalmente, em razão de que este infringe deterioração a um bem considerado de uso comum, de toda a coletividade humana, o qual se constitui em bem incorpóreo, imaterial, autônomo e insuscetível de apropriação exclusiva” [60]. Ademais, é fato notório que danos ambientais geralmente são sinônimos de prejuízos financeiramente imensuráveis e a recuperação do bem que sofreu o dano não é rápida e, na maior parte das vezes, o bem nunca volta ao seu estado original.
Do mesmo modo, no Direito Ambiental, há de se observar o acolhimento da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica nos termos do artigo 4° da lei n° 9605/98, que tratam das sanções penais e administrativas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente: “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente” [61].
Leciona ainda Fabio Ulhoa Coelho:
“Se determinada sociedade empresária provocar sério dano ambiental, mas, para tentar escapar à responsabilidade, os seus controladores constituírem nova sociedade, com sede, recursos e pessoal diversos, na qual passem a concentrar seus esforços o investimentos, deixando a primeira minguar paulatinamente, será possível, por meio da desconsideração das autonomias patrimoniais, a execução do crédito ressarcitório no patrimônio das duas sociedades” [62].
Portanto, nota-se que a intenção do legislador foi em facilitar a desconsideração da personalidade jurídica empresária a fim de defender o meio ambiente.
1.7.4 Lei Antitruste – Lei nº 12529/2011
Está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 176, §4º, que a lei deverá tutelar o livre mercado, reprimindo o abuso de poder econômico que vise a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. Nesse ambiente, há a Lei Antitruste que admite a Teoria Menor. Essa Lei declara em seu artigo 34 e Parágrafo único que:
“Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração “[63].
Esse artigo guarda semelhança com o artigo 28 do CDC. No entanto, tal qual o Código de Defesa do Consumidor, o art. 34, da citada lei, também não toca no que tange a fraude, preceituado apenas o abuso de direito [64].
1.7.5 Código Tributário Nacional
Ainda no espaço jurídico brasileiro, é oportuno lembrar que o Código Tributário Nacional, também permite a aplicação desse instituto, conforme artigo 135:
“Artigo 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.” (grifo nosso) [65].
O artigo 135 do Código Tributário Nacional resolve que só haverá responsabilidade dos administradores (diretores, gerentes ou representantes) em relação às obrigações tributárias da empresa quando estas forem resultantes de atos praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”. Essa responsabilidade é solidária, conforme Gilberto Gomes Bruschi, ao examinar o artigo 135 do Código Tributário:
“Ao se analisar tal artigo do CTN, nota-se que há responsabilidade solidária entre a pessoa jurídica e as demais pessoas enumeradas nos seus incisos, a partir do momento em que ocorre abuso de poder ou ainda infração de lei, fazendo com que seja permitido avançar na esfera patrimonial particular dos sócios, caracterizando em uma derivação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito tributário, pois esses são os mesmos requisitos para sua aplicação de acordo com a legislação não tributaria, […] [66].
Como se vê, tal qual Comparato, o código tributário Nacional responsabiliza os administradores da sociedade que agem de forma antiética.
2. O Direito de Associação nas Constituições Brasileiras
Conforme comenta Gilmar Mendes Ferreira, a Associação “ganhou valor constitucional, na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial” com a Constituição Italiana de 1947, a qual garantia aos cidadãos, em seu artigo 18, o direito de se associarem livremente para fins não repelidos pela legislação penal, sendo dispensada a autorização dos Poderes Públicos. Desde a aquela época, eram vedadas as associações secretas e as organizações paramilitares [67].
Na Alemanha, em 1949, a liberdade de associação destacou-se na com a Lei Fundamental do Bom. Em Portugal, a autonomia de associar-se foi defendida pela Carta Magna de 1976, pelo seu artigo 46º. E na Espanha pela Constituição de 1978, em seu artigo 22.
Cumpre ressaltar, que todas as normas jurídicas supracitadas, apesar de permitirem a liberdade de associação, proscreviam àquelas associações que tinham como objetivo agir em oposição à lei penal da época, e associações que possuíam cunho secreto e/ou paramilitar [68].
Para melhor entendimento, com assente na doutrina de Uadi Lammêgo Bulos, as organizações paramilitares são aquelas corporações privadas que tem como membros, cidadãos ou estrangeiros, que se apresentem fardados, e até armados, embora não integrem o Exército e nenhum órgão policial de nenhum país. Tem finalidade de treinar os seus membros para manusearam armas de fogos ou armas brancas, em operações bélicas ou de extermínio de pessoas.
Ainda, segundo o doutrinador, não se deve confundir organização paramilitar com associações de militares, pois esta última, são lícitas e legítimas, e tem como finalidade a representação da classe militar.
No Direito Constitucional Brasileiro, ensina José Afonso da Silva[69], que a liberdade concedida ao homem para associar-se ganhou relevo em 1891, no § 8º do art. 72 da Constituição Federal[70].
A referida Constituição Federal assegurou ampla liberdade de associação, sem limitações, salvo quanto a proibição de armas.
Entrementes, permitia-se a intervenção da polícia a pretexto de garantia da ordem pública, possibilitando, destarte, ainda que discretamente, a interferência estatal, dado o caráter subjetivo da expressão “ordem pública”.
Posteriormente, o direito de associação foi melhor detalhado pela Constituição Federal de 1934. Dentre as alterações da nova redação constitucional, destaca-se a (i) a distinção conceitual entre direito de associação e direito de reunião; (ii) a possibilidade de associação subsistir por tempo indeterminado, só podendo ser dissolvida compulsoriamente por decisão judicial; (iii) a exigência de finalidade lícita.
A propósito, a finalidade lícita é característica do direito de associação que, com exceção da Constituição Federal de 1967, perpetuou-se nas Constituições Brasileiras.
Nota-se, ainda, que a Constituição Federal de 1934 inaugurou a possibilidade de discussão judicial da dissolução da associação, no entanto, sem mencionar a necessidade de trânsito em julgado.
Na Constituição Federal de 1937, decorrente do golpe de estado que institui a ditadura militar, o direito de associação não teve aplicação satisfatória. A finalidade deveria obedecer à lei penal e aos bons costumes, cuja interpretação do termo, por ser vago, ficava ao exclusivo critério dos ditadores.
A retomada do direito de garantia de associação se deu através da Constituição Federal de 1946, que consagrou o Estado Democrático, primando pela liberdade individual.
Em 1946, a associação poderia ser constituída por tempo indeterminado, com finalidade lícita, e dissolvida compulsoriamente apenas por decisão judicial, com trânsito em julgado.
Além disso, a Constituição inovou ao vedar a constituição e funcionamento de associação com programa contrário à democracia.
Até 1961, o texto constitucional não sofreu alteração consideráveis relativamente ao direito de associação. A partir dessa data, apesar de subsistir a garantia do direito à associação ela permaneceu inócua na prática, pois a Constituição passou a prever o denominado “abuso dos direitos individuais e políticos”, que traduzia o autoritarismo da época.
Atualmente, Constituição Federal de 1988, consagra plenamente a liberdade de associação nos incisos XVII a XXI do artigo 5º:
“XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX – as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;”[71]
Semelhantemente às legislações Europeias, o nosso texto constitucional vedou a associação de caráter paramilitar, discorreu sobre as cooperativas, e determinou certa “liberdade” ao funcionamento das associações, tendo em vista que aboliu a interferência estatal.
Como se pode notar, o direito brasileiro “importou” algumas características do espaço jurídico europeu e implantou com muita maestria esse direito fundamental.
2.1 Conceito
Para o ilustre jurista Pontes de Miranda, Associação é:
“Toda coligação voluntária de algumas ou de muitas pessoas físicas, por tempo longo, com o intuito de alcançar algum fim (lícito), sob direção unificante. Não está em causa a personalidade, nem, sequer, certa capacidade indireta de direito […], corno a de receber benefícios (e.g., modus). Por outro lado, não pode invocar o princípio constitucional a pessoa jurídica que se proponha a associar-se a outras pessoas jurídicas, ou a pessoas físicas; nem a que deseje aderir ao negócio jurídico de associação[72]”,.
Nathalia Masson, por sua vez, leciona que o direito de associação “constitui-se em direito individual de expressão coletiva o que significa que muito embora seja atribuído a cada pessoa individualmente considerada, somente poderá ser exercido de forma coletiva” [73].
Para o respeitável Ministro Gilmar Mendes, a liberdade de associação, conforme disposta pelo Direito Brasileiro, propicia autoconhecimento e desenvolvimento da personalidade, constituindo-se em meio orientado para a busca da auto realização [74].
Demais disso, tal liberdade pode ser considerada um “amálgama de direitos”, pois abarca direitos individuais e coletivos, portanto, de diferentes titulares. Tais direitos podem ser exemplificados pelas faculdades de: “a) a de constituir associações; (b) a de ingressar nelas; (c) a de abandoná-las e de não se associar; (d) a de os sócios se autoorganizarem e desenvolverem as suas atividades associativas” [75].
Ainda discorrendo sobre atributos desse direito, Celso de Mello ensina que a liberdade de associação possui também uma dimensão positiva e outra negativa:
“(…) Revela- se importante assinalar, neste ponto, que a liberdade de associação tem uma dimensão positiva, pois assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar- se e de formar associações. Também possui uma dimensão negativa, pois garante a qualquer pessoa o direito de não se associar, nem de ser compelida a filiar- se ou a desfiliar- se de determinada entidade. Essa importante prerrogativa constitucional também possui função inibitória, projetando- se sobre o próprio Estado, na medida em que se veda, claramente, ao Poder Público, a possibilidade de interferir na intimidade das associações e, até mesmo, de dissolvê -las, compulsoriamente, a não ser mediante regular processo judicial [76] (grifo nosso).”
Em síntese, a Associação pode ser definida como uma coligação de indivíduos que possuem um objetivo em comum.
2.1.2 Organização com vista à finalidade comum
O segundo elemento caracterizador da associação é a organização com vista à finalidade comum. Significa dizer que a associação precisa de uma institucionalização jurídica, “acerto entre os componentes, estruturação interna”[77], nas palavras de José Afonso da Silva.
O Código Civil Brasileiro já traz algumas obrigações legais acerca da organização da associação. Dentre elas, o artigo 54 estabelece que, sob pena de nulidade, o estatuto da associação deve conter: (i) a denominação, os fins e a sede da associação; (ii) os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; (iii) os direitos e deveres dos associados; (iv) as fontes de recursos para sua manutenção; (v) o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos; (vi) as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; (vii) a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas[78].
Outrossim, o artigo 55 do Código Civil determina que todos os associados devem ter iguais direitos, ressalvada a possibilidade de previsão, em estatuto, de categorias com vantagens especiais[79].
Maria Helena Diniz traz dois exemplos da aplicação do artigo: (i) Quando a assembleia da associação votar pela alteração dos fundadores e tal mudança só ser realmente válida se os mesmos consentirem com a alteração; (ii) Quando os sócios remidos de determinado clube, que pagam certa importância em dinheiro para ter o direito de pertencer vitaliciamente à associação, sem mais dispêndios, não podendo assim, a assembleia exigir deles o pagamento de contribuição social de anuidade, salvo se houver expresso consentimento ou deliberação emanada da vontade majoritária da assembleia ou se for tal exigência imprescindível para obter meios necessários a sobrevivência da associação[80].
Em continuidade, além da instituição de regras e princípios a reger o funcionamento e existência da associação, é necessário que entre os membros exista uma comunhão de propósitos.
A associação deve ter como escopo o alcance de interesses comuns entre os seus integrantes, que, para tanto, devem guardar solidariedade uns com os outros.
O que não significa, todavia, que entre os associados existam direitos e obrigações recíprocas. Inclusive, o Parágrafo Único do artigo 53 do Código Civil, dispõe:
“Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.
Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.[81]”
Sobre a relação entre os associados, Silvio de Salvo Venosa explica que não se trata de negócio jurídico bilateral, pois não se contrapõe ou antagonizam as vontades, mas as vontades se unem em prol de uma entendida que irá atender a todos. “Cuida-se de negócio jurídico plurissubjetivo, que não se identifica com o negócio jurídico plurilateral.”[82]
Quanto às finalidades que motivam a criação de uma associação, podem ser diversas, desde que lícitas como se verá adiante. A título de exemplo pode haver associações com fins religiosos, políticos, educativos, culturais, esportivos, filantrópicos e etc.
No que toca à finalidade comum como artefato de organização da associação, é imperioso destacar que tal finalidade não pode visar lucros.
Embora o texto constitucional não seja claro nesse particular, é notável que a lucratividade fere a essência do direito fundamental individual, já que o lucro não está elencado no rol do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Ademais, a finalidade associativa é disposta pelo art. 53 do Código Civil, conforme o qual considera-se associação o agrupamento de pessoas que não tenha finalidade lucrativa.
Por isso, o objetivo coletivo não pode ter nenhum tipo de cunho econômico: “Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos” [83].
Nesse sentido, a ilustre jurista Maria Helena Diniz define a associação como:
“Pessoa jurídica de direito privado voltada à realização de finalidades não lucrativas, ou seja, culturais, educacionais, esportivas, sociais, pias, religiosas, recreativas, etc., cuja existência legal surge com a inscrição do estatuto social, que a disciplina, no registro competente [84]. “
Por oportuno, cumpre transcrever a disposição do §1º do artigo 1º da Lei 9790/99 sobre a “finalidade não lucrativa”:
“§ 1o Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social [85].”
Portanto, a associação não pode ter como fim a atividade lucrativa, e por consequente, a distribuição de lucros entre os associados é vedada.
No entanto, a associação pode exercer atividade econômica. “Pode-se ir além. Nada impede que as associações exerçam, profissionalmente, atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de produtos ou serviços” [86]. O que é proibido é o lucro subjetivo, ou seja, aquele que é distribuído aos associados.
De Page caracteriza a associação sem fins lucrativos como a que não se dedica a operações industriais ou comerciais, nem proporciona aos membros uma vantagem pecuniária, tendo o cuidado de assinalar que a procura de vantagens materiais acessórias, indispensáveis a que a associação viva e atinja sua finalidade de ordem moral, não retira o caráter não lucrativo do fim social: a contribuição dos associados, remuneração de certos serviços, cobrança de ingresso a conferencias e concertos, não são característicos do fim lucrativo, como não o é igualmente a verificação do superávit na apuração de balanços periódicos [87].
Segundo Carlos Roberto Gonçalves, a redação atual do artigo 53 do Código Civil está equivocada ao utilizar a expressão “fins não econômicos”, uma vez que já foi dito que a mesma pode exercer ou participar de atividades econômicas.
Sublinha-se, mais uma vez, que o que é proibido legalmente é a finalidade lucrativa. O ilustre doutrinador completa ainda que “[…] a circunstância de uma associação eventualmente realizar negócios para manter ou aumentar o seu patrimônio sem, todavia, proporcionar ganhos aos associados não a desnatura […]” [88].
3 Desconsideração da Personalidade Jurídica das Associações.
Como já foi visto, que a constituição de uma pessoa jurídica tem, como principal efeito, a distinção entre o ente coletivo e seus membros, que passam a ter personalidades próprias e patrimônios inconfundíveis.
Ademais, característica que se destaca na diferença da sociedade empresária para a associação é a distribuição de lucros, ato que nesta última não é permitido por expressa disposição legal. Assim, a vedação legal é de incorporação dos ganhos da associação ao patrimônio dos associados, que não podem lucrar com as atividades da pessoa jurídica da qual fazem parte.
“Entretanto, não é difícil vislumbrar uma associação repartindo periodicamente o saldo do seu caixa aos seus associados, ou proporcionando ganho patrimonial aos seus membros através de uma complexa ginástica contábil ou mesmo cínica e diretamente” [89]. Desta forma, “é possível existir associações somente "de fachada" para permitir aos seus associados a execução de atividades profissionais de intuito inegavelmente lucrativo ” [90].
Nesse interím, conforme Requião, todos os tipos de sociedade podem ser utilizados para fraudar a lei: “todos percebem que a personalidade jurídica pode vir a ser usada como anteparo de fraude, sobretudo para contornar as proibições estatutárias do exercício de comércio ou outras vedações legais” [91].
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, citando Miguel Reale, confirma a preocupação do legislador de que as associações cometam fraudes:
“Preocupa-se a lei, portanto, em estabelecer o conteúdo mínimo necessário do estatuto de uma associação, visando, sobremaneira, a coibir abusos por parte de pessoas inescrupulosas, que constituem associações fraudulentas apenas para causar danos à Fazenda Pública ou a terceiros de boa-fé. […] Daí as regras disciplinadoras da vida associativa em geral, com disposições especiais sobre as causas e a forma de exclusão de associados, bem como quanto à repressão de uso indevido da personalidade jurídica, quando esta for desviada de seus objetivos socioeconômicos para a prática de atos ilícitos e abusivos” (grifo nosso) [92].
Outrossim, Jairo Cavalcanti lembra que “o ordenamento jurídico não impõe qualquer patamar mínimo de recursos financeiros para que uma associação seja criada ou funcione” [93]. É possível, desta maneira que pessoas se unam e constituam uma associação sem desembolsar qualquer quantia, nem destinar quaisquer bens para a composição do patrimônio da associação. Isto posto, pode ser que se caracterize a confusão patrimonial, uma vez que os sócios, muito provavelmente, realizarão as atividades associativas com bens de patrimônio próprio.
Pode até mesmo ocorrer que a associação aparente ter inúmeros bens e patrimônio extenso e considerável, “quando na realidade seu patrimônio é nulo ou ocorre um intercambiamento entre o acervo da corporação e de seus membros” [94].
Nesse cenário, pode a associação, como pessoa jurídica de direito privado cometer abuso de personalidade jurídica, até mesmo conforme já aceito pelo Enunciado nº 284 aprovado na IV Jornada de Direito Civil, realizada de 25 a 27 de outubro de 2006, pelo Conselho da Justiça Federal: “Enunciado nº 284: Art. 50. As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica ” [95].
No entanto, “frise-se bem, [a legislação] não traça qualquer diferenciação entre a desconsideração da personalidade jurídica de associações e sociedades, ainda que ambas sejam estrutural e funcionalmente tão diferentes” [96].
Deve-se lembrar ainda que “a inexistência de responsabilidade dos associados é fator inerente à existência da associação civil […] os efeitos da personificação redundam na intangibilidade do patrimônio particular dos associados perante os credores da associação” embora não haja determinação legislativa sobre o assunto, que balize a responsabilidade dos associados por obrigações da associação [97].
Prosseguindo, na desconsideração da pessoa jurídica da associação, já existe jurisprudência que responsabiliza o associado administrador ou aqueles que ocupam cargos de gerencia, quanto ao abuso da personalidade jurídica:
“[…] Comprovado o encerramento irregular da executada, somado à inexistência de patrimônio penhorável (conforme se depreende dos autos, a exequente, ora agravante, tomou todas as providências razoáveis para obter dos devedores a garantia da execução, mas sem lograr êxito), legitima a desconsideração da personalidade da associação filantrópica, não para atingir seus associados, mas para atingir seus dirigentes, que a representam na forma dos estatutos” [98]
Há precedente ainda da jurisprudência trabalhista sustentando a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da associação para efeito de responsabilidade civil dos associados ou administradores, mesmo que esse administrador não receba remuneração:
“EMENTA: Execução. Associação. Despersonalização de Pessoa Jurídica. Atividade expropriatória em face dos administradores. Demonstrado que a associação não apresenta liquidez mínima à satisfação da dívida, seja por insolvência, por fraude à execução (CPC, art. 593, II), ou ainda, por abuso da personalidade jurídica (Código Civil, art. 50), os bens de seus administradores ficam ao alcance da atividade expropriatória devido ao contido nos arts. 50 do Código Civil e 28, caput e parágrafo 5º, do CDC, c/c o art. 8º da CLT, bem como pela aplicação analógica do art. 592, II e V, do CPC. VOTO: (…) Não se pode tolerar irresponsabilidade e descaso dos administradores de uma associação pela simples razão de não receberem, em tese, remuneração por suas atividades, eis que cientes dessa condição quando assumem esse munus público. O risco do empreendimento, pouco importando sua finalidade, não pode ser transferido aos seus empregados, tampouco à sociedade. A responsabilidade pelo gerenciamento de uma associação sempre será daqueles que a administram. (…)” [99]
Desta forma, verifica-se que o legislador teve como principal intenção atingir somente aqueles que foram responsáveis pelo ato ilícito. Ademais, comenta Leonardo Xavier que é considerado inadequado a responsabilização dos demais associados pelo ressarcimento de prejuízos derivados de atos ilícitos praticados somente pelos administradores, ou nas palavras do próprio pensador:
“Uma determinada ordem religiosa se organiza em associação e tem no quadro de seus associados os inúmeros fiéis que seguem a doutrina de um determinado religioso, que preside a entidade. Suponhamos que, a partir dessa associação, sejam praticados atos extremamente onerosos e abusivos por esse dirigente da associação religiosa. Ocorrendo eventual desconsideração da personalidade jurídica seria razoável imputar a responsabilidade patrimonial aos fiéis associados? [100]
Suponhamos uma associação desportiva, em que se associam esportistas amadores e profissionais de determinada modalidade. Na hipótese da prática de atos indevidos pelos dirigentes dessa entidade seria razoável que, a partir de uma desconsideração da pessoa jurídica, fosse imputada a responsabilidade patrimonial a todos esses esportistas pelos atos praticados pela associação?”
Quanto a aplicação da teoria, alguns tribunais brasileiros, especificamente os trabalhistas, tem-se decidido em usar a teoria maior, conforme jurisprudência exemplificativa:
“AGRAVO DE PETIÇÃO. ASSOCIAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. Não é razoável entender que a mera ausência de patrimônio da entidade sem fins lucrativos para adimplir o crédito trabalhista, por si só, faça incidir a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Assim, em regra, a chamada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica não se aplica às instituições filantrópicas, beneficentes ou sem fins lucrativos. Contudo, nada impede que se recorra ao instituto com o fim de responsabilizar os administradores associados e/ou presidente da associação pelas dívidas contraídas pela entidade sem fins lucrativos, desde que haja prova cabal de que estes tenham efetivamente praticado atos com culpa em sentido amplo (art. 1016 do CC), com abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e/ou pela confusão patrimonial (art. 50 do CC) ou com abuso de direito, excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social (art. 28 do CDC), caso em que fica autorizada a aplicação da chamada teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Na espécie, o abuso da personalidade jurídica restou sobejamente comprovada nos autos pelo desvio de finalidade nas prestação dos serviços disponibilizados pelo exequente em prol da entidade sem fins lucrativos, ora executada. Agravo de petição a que se nega provimento” (grifo nosso)[101].
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica é aplicável também às associações, uma vez que esse tipo de pessoa jurídica está também sujeita a cometer fraudes, embora não haja legislação especifica ou a variedade de decisões judiciais que tratam do assunto.
Conclusão
Foi visto o conceito da desconsideração da personalidade jurídica e algumas características. Foram estudadas também as leis vigentes que adotam essa ferramenta em face do abuso de direito e da fraude. Perpassou-se pela análise da pessoa jurídica das associações e suas características. Por fim, destacou-se a relevância do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para evitar a má-fé dos sócios tanto da pessoa jurídica quanto das associações.
Graduada em Direito pelo Centro Univ. São Camilo ES e com especialização em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio de Jesus
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