Resumo: O presente artigo se centra no estudo da teoria da desconsideração da personalidade societária no direito privado brasileiro. Ainda que não se trate de uma doutrina de criação recente, ela suscita questões relacionadas com a possibilidade de ruptura do princípio da autonomia da pessoa jurídica, o que reclama uma precisa distinção entre as situações nas quais é possível desconsiderar a personalidade jurídica das que cabe tão somente a imputação da responsabilidade pessoal dos sócios. Esse equilíbrio aborda temas como: segurança jurídica, economia privada, proteção das relações contratuais, além dos conceitos de má-fé, fraude e abuso de direito.
Palavras-chave: Sociedade de capital. Abuso da personalidade jurídica. Código Civil. Desconsideração da personalidade societária.
Resumen: El presente artículo se centra en el estudio de la teoría del levantamiento del velo societario en el derecho privado brasileño. Aunque no se trata de una doctrina de creación reciente, ella plantea cuestiones relacionadas con la posibilidad de quebrantar el principio de la autonomía de la persona jurídica, lo que reclama una precisa distinción entre las situaciones en las que es posible desconsiderar la personalidad jurídica de las que cabe solamente la imputación de la responsabilidad personal de los socios. Ese equilibrio aborda temas como: seguridad jurídica, economía privada y protección de las relaciones contractuales, más allá de los conceptos de mala fe, fraude y abuso de derecho.
Palabras-clave: Sociedad de capital. Abuso de la personalidad jurídica. Código Civil. Levantamiento del velo de la personalidad societaria.
Sumário: Introdução. 1. Sociedade de capital: autonomia patrimonial e abuso da personalidade jurídica. 2. A reação ao desvio da personalidade jurídica: desconsideração do ente societário. 3. A desconsideração da personalidade jurídica no Brasil: regulação no Código Civil. 3.1. O pressuposto do abuso da personalidade jurídica: caracterização do desvio de finalidade e a confusão patrimonial. 3.2. Efeitos materiais e aspectos processuais da desconsideração da personalidade. 3.3.Superior Tribunal de Justiça: os grupos de casos na jurisprudência brasileira. Considerações finais.
Introdução
Desde muito tempo, os juristas têm se preocupado em conter as manifestações de descumprimento de obrigações legais/contratuais e a evasão de responsabilidades patrimoniais mediante à forma da sociedade de capital, direta ou transversalmente, dirigidas a atentar contra o normal desenvolvimento das atividades econômicas. A alternativa para superar esse problema seria a de atribuir aos juízes as faculdades para prescindir do modelo societário e averiguar os reais interesses dos sócios que a controlam.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surge como um patrimônio do direito de sociedades, cuja finalidade é a de evitar o uso injusto da personalidade jurídica do ente societário como caminho de fraude ou abuso de direito. Nesse sentido, essa construção doutrinária se consolidou na prática jurisprudencial como a possibilidade de responsabilizar os sócios por estas condutas indesejáveis, os quais deverão responder com os seus respectivos patrimônios pelos danos causados aos direitos de terceiros.
Neste artigo pretendo analisar o marco legislativo, bem como os efeitos da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, sem deixar de lado uma perspectiva histórica, para sancionar ações corruptas e desleais no campo das relações civis-comerciais. Além disso, o texto se pergunta sobre o modo como o Superior Tribunal de Justiça vem aplicando a teoria ao mesmo tempo em que apresenta uma sistematização dos principais grupos de casos, a partir dos quais se pode identificar os argumentos usados no momento de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade.
1. Sociedade de capital: autonomia patrimonial e abuso da personalidade jurídica
As sociedades de capital constituem um instrumento essencial na produção e circulação de riquezas, permitindo aos indivíduos superar as barreiras existentes em certas práticas civis e comercias por meio da união de esforços e vontades na consecução de objetivos comuns. Elas são, antes de tudo, pessoas jurídicas a que se lhes reconhecem a possibilidade de travar relações no mundo jurídico e também de operar, ao lado das pessoas físicas, como sujeitos de direitos e centros de imputação de obrigações próprias.
Uma vez cumpridas todas as formalidades constitutivas exigidas pela lei (celebração do contrato social e posterior apresentação e arquivamento na Junta Comercial) se atribui à sociedade uma personalidade jurídica (distinta e independente da dos seus membros), que se traduz em uma autonomia patrimonial para agir e assumir compromissos e responder pelas dívidas sociais. Dessa forma, se produz um “hermetismo societário” ao separar os bens e responsabilidades da sociedade com as dos sócios e, finalmente, declarar a incomunicabilidade dos débitos contraídos por um ao outro.
No entanto, esta concepção formal de sociedade, assim compreendida como ente dotado de independência patrimonial com capacidade para intervir nas relações externas com terceiros, tem dado lugar ao uso da sua personalidade como veículo útil e atrativo à prática de vários tipos de fraudes e abuso de direitos. A afirmação anterior adquire especial relevância na medida em que se observa que os sócios têm se valido, frequentemente, do instituto para se esquivar ao cumprimento das normas legais em nome da maximização de benefícios e conveniências pessoais[1].
Alguns estudos empíricos revelam o emprego abusivo da técnica da personificação jurídica quando, por exemplo, se cria uma pluralidade fictícia de compradores para a realização de um leilão ou se elide o regime de trespasso de um local de negócios. Igualmente, se elide a proibição de que o cidadão estrangeiro possa adquirir bens imóveis em zonas estratégicas do território nacional. Em outras ocasiões, através da sociedade empresarial se pode produzir uma fraude aos credores ao flexibilizar a norma segundo a qual o devedor responde pelas suas obrigações com os seus bens presentes e futuros. Ainda em outros casos, se pode cometer uma fraude aos direitos dos sócios de uma sociedade quando da criação de sociedades filiais, com personalidade jurídica e patrimônios próprios, e se transferem a elas os benefícios derivados de certos negócios[2].
Estes desvios caracterizados pelo distanciamento entre os interesses do ente com os de seus membros deixaram de ser um risco potencial para se converter em problema efetivo. O uso fraudulento da personalidade jurídica em detrimento de terceiros tem desvirtuado o princípio da autonomia patrimonial, que passou a ser usado em favor do devedor que, coberto pela máscara da empresa, buscava amparo no seu patrimônio pessoal e se aproveitava da dificuldade de ser demandado pelas obrigações particulares.
Com referência ao anteriormente dito, cabe formular três perguntas: 1) as atitudes dolosas, fraudes ou outras atividades produzidas mediante uma sociedade de capital, contrárias aos fins que justificaram a sua criação, devem ser atribuídas unicamente a ela, isentando de responsabilidade os sujeitos que a dirigem?; 2) Qual seria a resposta do direito frente a estas ações corruptas alimentadas por pensamentos pessoais e egoístas de quem pretende se enriquecer em prejuízo de outras pessoas?; 3) Que instrumento nos fornece o ordenamento jurídico para combater a suposta crise do conceito de empresa?
Em que pese estas e outras indagações, o certo é que se verificou um amplo movimento em vários países europeus onde se pretendeu conferir matizações e limitações ao postulado da autonomia patrimonial e substituir a concepção formalista da sociedade por uma noção realista da mesma. Por sua vez, este realismo determinava que a personalidade jurídica consistia em um procedimento técnico que seria utilizada pelos operadores do direito para agrupar e justificar certas necessidades que lhes são impostas, ao mesmo tempo em que permitia um maior controle sobre os fins daquele instituto[3].
Nesse contexto, aparece no sistema jurídico ocidental a chamada teoria da desconsideração da pessoa jurídica como solução para enfrentar as dificuldades teóricas surgidas do rigor conceitual da ideia de sociedade. Na verdade, se assistiu a uma nova prática no plano dogmático na medida em que se tentou resgatar um conceito compatível com um direito voltado para a realidade com a finalidade de corrigir os problemas relativos ao reconhecimento da personalidade jurídica.
2. A reação ao desvio da personalidade jurídica: desconsideração do ente societário
É inegável a importância que historicamente adquiriram as sociedades de capital no sentido de assumir investimentos e reduzir os riscos inerentes à atividade empresarial através do reconhecimento da sua existência como distinta da de seus membros. Contudo, a regulação legal dessas sociedades tem se prestado para que as mesmas pudessem ser utilizadas como mecanismos para lograr fins contrários para os quais foram concebidas[4].
Frente a isso, os juízes e tribunais têm admitido, em determinados casos, a necessidade de ultrapassar a estrutura externa da sociedade para investigar a sua realidade subjacente e alcançar os seus integrantes e bens, quando da suposta prática de condutas fraudulentas e antijurídicas com prejuízo de interesses públicos ou privados. Desse modo, se prescinde da ficção ou mesmo da forma legal da pessoa jurídica e a julga de acordo com a sua realidade interior com a finalidade de perseguir os sócios acusados da prática de atos contrários àqueles princípios essenciais que orientam as relações contratuais.
A doutrina do “Disregard of the legal entity” ou “Piercing the corporate veil”, traduzido ao português como desconsideração da pessoa jurídica, tem sido aplicada pela jurisprudência de vários países. Nessa linha, os tribunais dos Estados Unidos foram os primeiros a reagir contra os abusos da personalidade jurídica ao aplicar tal doutrina[5], cuja introdução e sistematização se deu com a publicação da obra de Rolf Serick intitulada: Aparência e realidade das pessoas mercantis: o abuso do direito através da pessoa jurídica.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Heidelberg transpôs a doutrina do “Disregard” da jurisprudência norte-americana, regida pelo modelo do “Commom Law”, a um sistema diferente “Civil Law”, sob o pretexto de examinar como se daria a superação da forma da pessoa jurídica. Com isso, Serick construiu uma teoria que se configurou na possibilidade de examinar uma sociedade ante um caso concreto, tomando em consideração todos os indivíduos que a conformam ou bens que possui (substrato humano e patrimonial), enfrentando como transparente a sua personalidade.
Como se pode inferir, a doutrina da desconsideração da personalidade significa que se a aparência externa da pessoa jurídica está sendo manejada como mecanismo para descumprir a lei ou cometer fraude, o juiz poderá desconhecer a diferença entre ela e os sócios e averiguar os reais interesses que se escondem por detrás da mesma. A ideia é remediar a discordância entre formato e realidade para punir aqueles que se servem da sociedade para fins ilícitos ou abusam do seu esquema jurídico no campo econômico. Ainda cabe advertir que tais condutas não são exclusivas do âmbito cível, mas também se verificam em outros setores como: administrativo, tributário, trabalho e consumidor.
Apesar da utilidade da doutrina, o grande inconveniente que reveste o seu edifício teórico refere-se à demarcação dos limites entre o respeito a autonomia societária e as situações nas quais seria possível desconhecê-la. Em virtude disso, muitos juristas procuraram adotar uma diretriz geral no que diz respeito a sua aplicação aos casos em que o conceito de pessoa jurídica foi empregado para violar uma obrigação, burlar uma norma, conseguir ou perpetuar um monopólio e proteger ações criminosas. Para isso, os tribunais de justiça deixaram de um lado a figura jurídica da entidade comercial e passaram a contemplá-la como uma agrupação de sócios para fazer justiça entre pessoas reais.
Ainda assim, subsiste a ausência de um critério firme que dê tratamento uniforme a esses casos, dificuldade essa que se transforma em uma poderosa crítica dos especialistas ao uso da doutrina. Por outra parte, é indiscutível que a desconsideração da personalidade jurídica não pode dar margem à insegurança das relações jurídicas. É por isso que o Poder Judiciário passou a fazer uso daquela doutrina somente nas situações consideradas excepcionais, porque tem-se entendido que se deve valer de toda medida, antes de transgredir o princípio da responsabilidade limitada das sociedades de capital[6].
3. A desconsideração da personalidade jurídica no Brasil: regulação no Código Civil
A desconsideração da personalidade jurídica está regulada no artigo 50 do Código Civil – CC (Lei n° 10.406/2002). Com base nesse preceito, o pressuposto geral se relaciona com o abuso da personalidade jurídica, ou seja, com as situações nas quais a consecução dos fins extra societários constitui um recurso para violar a lei, a ordem pública, a boa-fé e, finalmente, frustrar direitos alheios. Em todas elas, se imputará a responsabilidade aos sócios que responderão solidária e ilimitadamente pelos danos[7].
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Como foi dito ao princípio, a sociedade empresarial é um centro autônomo de interesses jurídicos, onde se produz uma limitação de responsabilidade e uma cisão patrimonial entre ela e os sócios. Diante da constatação de que estes abusam desta circunstancia para cometer atos incompatíveis com os objetivos societários se abandona, momentaneamente, a figura da personalidade jurídica como medida efetiva para superar essa distinção. Este fenômeno recebe o nome, no direito brasileiro, de Teoria Maior.
Não obstante a sua predominância, existe a previsão do artigo 28 do Código de Direito do Consumidor que traz consigo uma teoria, cuja solução ainda vem sendo questionada. A Teoria Menor se funda na simples alegação de prejuízo do credor como critério para proceder a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade direta do sócio. Tanto é assim que essa teoria se aplica quando a diferenciação patrimonial da sociedade e do sócio seja um obstáculo à satisfação do direito dos credores.
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”[8]
Paralelamente, muitos juristas e o Superior Tribunal de Justiça têm reconhecido e aceitado, em ocasiões excepcionais, a viabilidade da denominada desconsideração inversa da personalidade jurídica. Mesmo diante da falta de disposição legal, ela tem sido aplicada nas hipóteses em que os credores particulares do sócio foram defraudados em razão da transferência dos bens pessoais do devedor ao patrimônio da sociedade; tudo isso com a clara finalidade de escapar às suas obrigações comerciais[9].
Entretanto, o que agora interessa destacar é que o artigo 50 estabelece como parâmetro essencial para a aplicação da desconsideração o pressuposto do abuso da personalidade jurídica, representado pelo desvio de finalidade e pela confusão patrimonial. Isso leva a um exame desses requisitos autorizadores, cujo objetivo é o de orientar a correta aplicação daquela doutrina pelos juízes e tribunais de justiça do país.
3.1. O pressuposto do abuso da personalidade jurídica: caracterização do desvio de finalidade e a confusão patrimonial
Nos termos do artigo 50 do CC, o abuso da personalidade se materializa através do desvio de finalidade da sociedade empresarial, o que equivale dizer ao seu uso anormal ou anômalo. Avançando um pouco mais, essa deformação institucional se baseia na prática de atos pelos sócios que contrariam os objetivos estabelecidos no próprio contrato de sociedade e no texto constitucional (artigos. 5°, inciso XXIII e 170, inciso III).
“Art. 5°, XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III – função social da propriedade.”
Por conseguinte, o abuso da personalidade societária, caracterizado pelo desvio de finalidade, deve ser interpretado como a quebra dos objetivos previstos no regulamento estatutário e à luz do princípio da função social da propriedade privada. De fato, os tribunais alemães têm reconhecido que o progresso da sociedade comercial é considerado como objeto da garantia constitucional do direito de propriedade.
Feitos estes esclarecimentos sobre o desvio de finalidade, passa-se ao próximo requisito para proceder à desconsideração da personalidade jurídica. Como o nome parece sugerir, a confusão patrimonial faz menção à situação na qual não é possível distinguir o patrimônio dos sócios com os da sociedade. Nessa perspectiva, se pode presumir que a pessoa jurídica não se converteu em um centro autônomo de interesses, porque certamente estaria sendo empregada como veículo de fraude ou abuso de direito[10].
A este respeito, convém ressaltar que tem surgido uma preocupação com o tema da descapitalização; situação na qual a pessoa jurídica não dispõe de capital suficiente para satisfazer seus objetivos institucionais. No entanto, aqui, é necessário diferenciar duas modalidades: de um lado, as hipóteses em que o fenômeno vai se manifestar em virtude da insuficiência de fundos para cumprir com uma atividade pretendida (forma qualificada); e de outro lado, a descapitalização se presume quando a sociedade possui um patrimônio razoável para satisfazer seus compromissos sociais (forma simples)[11].
Outra situação que tem motivado juízes e tribunais de justiça a aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com fundamento na questão da escassez patrimonial, se refere ao que se tem denominado de dissolução irregular da entidade societária. Em situações como essas, os credores se encontram totalmente desprovidos de sua garantia (patrimônio social), tendo em vista que a sociedade comercial foi aparentemente dissolvida sem observância das formalidades exigidas pela legislação civil para decretar o fim das atividades que até o presente momento vinha realizando.
Por tudo isso, a confusão patrimonial procede da desordem no que se refere aos negócios da sociedade e dos sócios individualmente considerados, o que suscitam dúvidas sobre a intenção idônea daqueles na condução da atividade empresarial. Assim como no desvio de finalidade a existência da confusão patrimonial, por si só, não é um critério suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica; isso porque, a confusão requer a vinculação com o abuso da personalidade, isto é, quando o conflito de patrimônios ou mesmo de personalidades tenha sido realmente pensado para prejudicar terceiras pessoas.
3.2. Efeitos materiais e aspectos processuais da desconsideração da personalidade[12]
Com respeito às consequências materiais derivadas da desconsideração da personalidade jurídica, o artigo 50 do CC preceitua que: “se poderá estender os efeitos de determinadas relações obrigatórias aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. A partir dessa previsão normativa se observa que a desconsideração deve alcançar, em princípio, somente os indivíduos que figuram ativamente como sócios de uma empresa, sem afetar os bens daqueles que não estariam mais naquela condição.
Percebe-se, então, que a técnica da desconsideração deve restringir-se apenas aos bens do sócio que pode ser efetivamente responsabilizado pela eventual conduta abusiva da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. O que se pretende evitar é que os bens de um determinado sócio, com participação no capital social, sejam alcançados por uma dívida contraída em um período prévio à data em que ele assumiu a função de gerência da sociedade empresarial.
Algo que também pode ser alvo de perguntas é se o desconhecimento da personalidade pode ser aplicado de maneira solidária como garantia e proteção dos interesses legítimos que foram violados mediante à pessoa jurídica. O artigo 50 não dispõe nada sobre isso, o que leva a crer que não se considera a solidariedade em atenção à noção de que ela se presume, uma vez que resulta da lei ou da vontade das partes[13].
Ao lado dos efeitos materiais já anteriormente comentados, tanto a doutrina como jurisprudência têm enfrentado questões de ordem processual. Na verdade, isso tem a ver com a observância dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, os quais estão consagrados expressamente no artigo 5° da Constituição Federal, precisamente no capítulo que trata sobre o catálogo de direitos fundamentais.
Se por um lado é certo que a teoria da desconsideração implica na possibilidade de que o credor da pessoa jurídica possa perseguir os bens dos sócios (que serão partes no processo judicial); por outro lado, também é verdade que se tem debatido sobre a necessidade de um procedimento especial específico ou, se basta ao credor arguir essa questão em sede de ação de execução movida contra a sociedade. Não obstante às opiniões no sentido de que deve existir uma ação autônoma na qual se solicite a desconsideração, os tribunais têm entendido que tal providência não seria necessária[14].
Da mesma maneira, se pode indagar se o juiz pode decretar “ex officio” no processo executivo (sem iniciativa do credor), a indisponibilidade dos bens dos sócios diante da carência de patrimônio da empresa para a satisfação do crédito. Tal procedimento cautelar não é comum, pois os juízes deveriam aguardar a manifestação de terceiro para determinar a desconsideração. Porém, se se leva em conta o poder geral de cautela sob o fundamento da garantia da ordem econômica e social, eles poderão tomar medidas, previstas em lei, com a intenção de assegurar um bem contra o risco de lesão[15].
Mais adiante, outra interessante questão processual se refere à desconsideração da pessoa jurídica sem a citação prévia dos sócios para que exercitem os seus respectivos direitos ao contraditório sobre a medida judicial adotada. Trata-se de uma controvérsia sobre o uso das tutelas de urgência, ou seja, quando o juiz atende a uma das partes sem interrogar a outra. A excepcionalidade da desconsideração unida à postura do juiz em determiná-la “inaudita altera pars” se apresenta como risco à deterioração do contraditório, o que desvirtua o benefício da figura da desconsideração societária[16].
Como se não bastasse, também se pensou na possibilidade de postular a desconsideração da personalidade jurídica no momento de interpor recurso perante o Tribunal de Justiça. Geralmente, tem-se desqualificado essa medida em virtude do grave atentado aos princípios do contraditório e do devido processo legal. A desconsideração para perseguir bens dos sócios deve ser autorizada por ato judicial após a prova detalhada dos fatos que conduziram ao abuso do direito através do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial; e isso só será admissível na fase de instrução do processo.
Por último, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que a decisão que decreta a desconsideração da personalidade do ente coletivo deve ser impugnada através de recurso ordinário e não por Mandado de Segurança (MS). Tal justificativa se baseia em que esta ação constitucional não é a via adequada para a discussão de matéria relacionada com a desconsideração, pois não comporta a possibilidade de investigação probatória para averiguar a existência de abuso da personalidade societária, caracterizada pelo desvio de finalidade/confusão patrimonial[17].
3.3. Superior Tribunal de Justiça: os grupos de casos na jurisprudência brasileira
Nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Corte de justiça com competência constitucional para interpretar e uniformizar a aplicação das leis federais em toda a extensão territorial do país – tem dirimido inúmeras controvérsias no que concerne à desconsideração da personalidade jurídica. Os ministros têm invocado o dispositivo 50 do CC para resolver importantes casos sobre esta matéria no campo do direito privado.
Por questões eminentemente didáticas e com a finalidade de facilitar ao máximo a compreensão sobre a atividade do STJ se usará, aqui, o método de grupos de casos, onde se poderá encontrar as situações mais comuns que versam sobre a desconsideração da personalidade. Nesta perspectiva, os grupos de casos construídos com apoio da base de dados “online” daquele Tribunal Superior foram sistematizados nos seguintes tópicos:
a)Fraude à lei e aos credores, simulação, descapitalização e má-fé
A decisão no Recurso Especial n° 1395288, de 11 de fevereiro de 2014, desconsidera a personalidade jurídica da Acácia Veículos Ltda., dada a verificação de dissolução irregular da sociedade. Os argumentos dos ministros foram na direção de que:
“Diante das peculiaridades do caso concreto, o encerramento das atividades da Acácia Veículos Ltda., constitui um incontestável indício de abuso da personalidade jurídica, o que autoriza a aplicação da desconsideração com o fim de buscar a satisfação do credor no patrimônio individual dos sócios. Neste contexto, a dissolução irregular não pode servir de fundamento isolado para a desconsideração da personalidade jurídica, sendo necessário comprovar que o esvaziamento do patrimônio societário foi intencionalmente provocado para impedir a satisfação dos credores em benefício de terceiros (abuso de direito). Por sua vez, este abuso se materializa por meio do uso ilegítimo da pessoa jurídica com o intuito de fraudar o cumprimento das obrigações (desvio de finalidade) e na ausência de separação entre o seu patrimônio com os dos sócios (confusão patrimonial).”[18]
b)Responsabilidade civil de natureza extracontratual
No acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial n° 1169175, de 17 de fevereiro de 2011, os ministros do STJ firmaram entendimento no sentido de que:
“Diante da dificuldade de que empresa Brasil Turismo Orla Ltda., satisfaça o valor determinado em sede judicial a título de indenização pelos danos experimentados em virtude de acidente ocorrido dentro das instalações de um parque aquático, se aplica a desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar os sócios com os seus bens pela garantia da respectiva dívida. Tal medida, de caráter excepcional, tem sido concedida após a constatação de que o sócio praticou atos contrários a lei e ao estatuto social com a finalidade de defraudar o interesse do credor.”[19]
c)Obrigações relacionadas com o pagamento de títulos extrajudiciais
O Recurso Especial n° 706242, de 06 de dezembro de 2011, cuida de ação de execução de título extrajudicial contra a ADB – Consultoria Empresarial Ltda., pelo descumprimento de um contrato de cessão de quotas no valor de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais), as quais deveriam ser pagas em 12 (doze) parcelas mensais e sucessivas, parte das quais ficaram inadimplidas. Em razão da suposta alegação de inexistência de bens suficientes da citada sociedade empresarial (ADB) para quitar a dívida, o juiz e o tribunal de justiça decidiram desconhecer a personalidade jurídica para que os sócios respondessem com os seus bens pessoais frente o credor. O STJ, então, concluiu que:
“Não foram demonstrados os requisitos formais de fraude ou confusão patrimonial, e que tanto o juiz monocrático como o Tribunal de segunda instância não haviam discutido tal questão, motivo pelo qual a medida contra a empresa não deveria prevalecer.”[20]
d) Grupos de empresas, sociedades vinculadas ou instrumentais
O julgamento do Recurso Especial n° 907915, de 07 de junho de 2011, determinou que a acusação de fraude à satisfação do crédito e a confusão patrimonial entre sócios e a empresa Indústrias Reunidas São Jorge S.A., autoriza claramente a desconsideração da personalidade corporativa diante das provas que apontam na direção da ocultação do patrimônio derivado de um conglomerado de empresas. Para o STJ:
“A conduta de fraude, por si só, autoriza a desconsideração. Além disso, existem indícios entre os sócios e a empresa devedora, ou entre esta e outros conglomerados, denotando uma divisão societária meramente formal entre as sociedades e que, portanto, o arresto dos ativos financeiros é o único meio para o ressarcimento do crédito diante da ocultação do patrimônio decorrente de um grupo de empresas.”[21]
Considerações finais
A análise da teoria da desconsideração da personalidade jurídica está vinculada a um duplo compromisso aparentemente difícil de manter: a garantia da satisfação dos créditos de terceiros pela sociedade empresarial, sem que isso afete os limites da autonomia patrimonial. Dito de outro modo, seria conciliar a tutela dos direitos dos credores com a proteção dos interesses empresariais, os quais giram em torno da ideia de um patrimônio autônomo e a separação de responsabilidades entre sócios e a sociedade.
É comum afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica revela uma série de problemas de natureza prática e de interpretação jurídica, principalmente quando se refere a conceitos como: abuso de direito e fraude. A experiência brasileira, até o presente momento, tampouco conseguiu determinar um critério objetivo que permita distinguir as situações nas quais se pode desconhecer a personalidade corporativa daquelas em que somente se deve responsabilizar pessoalmente os sócios da empresa.
Portanto, é necessário, antes de qualquer coisa, readaptar a doutrina da desconsideração societária aos seus elementos essenciais (abuso de direito, fraude, má-fé, etc.,). Nesse sentido, se pode apostar no incessante trabalho da jurisprudência comparada, de modo que aquele método judicial, que busca impedir a prática de atos ilícitos mediante o uso da pessoa jurídica, conquiste uma efetiva sistematização e segurança legislativa.
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