Resumo: A construção do Tribunal do Júri é ideológica e se dá em bases mítico-transcendentais, a partir da concepção de que o julgamento pelos próprios pares é de caráter democrático. Tal afirmação se justifica, principalmente, pela não obrigatoriedade de fundamentação jurídica como requisito para o julgamento dos jurados. A consciência é o parâmetro para o julgamento proferido pelos jurados. Desmitologizar a instituição do Júri é, acima de tudo, esclarecer a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito em virtude da limitação da ampla fiscalidade e também da impossibilidade dos interessados participarem diretamente da construção do provimento. Tanto o acusado como os próprios jurados são excluídos da construção juridicamente participada do provimento, tendo em vista ser a consciência dos jurados o fundamento de suas decisões. A constituição do Tribunal do Júri na forma vigente é reflexo de uma construção teórica do Direito Processual Penal com raízes autocráticas e inquisitoriais. Trata-se de um julgamento que fica centralizado nas mãos dos jurados, sem qualquer possibilidade de participação dos interessados na construção do provimento. Caracteriza-se, assim, verdadeira afronta ao devido processo legal, uma vez que o decisionismo dos jurados se dá como se num golpe de martelo, alheio a qualquer discussão no âmbito da legitimidade democrática dos provimentos estatais.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Mito. Estado Democrático de Direito.
Abstract: The construction of the Grand Jury is ideological and takes place in mythical transcendental bases from the design of the trial by their own peers is democratic character.Such a claim is justified, principally by not mandatory legal reasoning as a requirement for trial jurors. Awareness is the parameter to the Judgement rendered by the jury. Demythologize the institution of the jury is, above all, to clarify its incompatibility with the democratic rule of law by virtue of the limitation of the broad tax and also the inability of the parties directly involved the construction of the provision.Both the accused and the jurors themselves are legally excluded from the construction subsidiary of the appointment in order to be the conscience of the jury the basis of their decisions.
The constitution of the jury court nowadays is a reflection of a theoretical construction of the Criminal Procedural Law rooted autocratic and inquisitorial.It´s about a trial that is centralized in the hands of jurors, without any possibility of involvement of stakeholders in the construction of the provision. Characterized thus real affront to due process, since the jurors decisionism occurs as a hammer blow, unrelated to any discussion in the democratic legitimacy of appointments state.
Keywords: Grand jury. Myth. Democratic State of Law.
Sumário: Introdução. 1. Historicidade e Mito. 1.1-O Mito do Contexto. 2. Fundamentos históricos do Tribunal do Júri. 3. A constitucionalização do Júri e o seu tratamento jurídico-infraconstitucional no Brasil. 3.1-O princípio da íntima convicção dos jurados visto sob a ótica da racionalidade crítica: o advento do Modelo Constitucional de Processo e a ruptura com a jurisdição-poder e com o processo-instrumento propostos por Bulow. Considerações Finais.
Introdução
A presente pesquisa cientifica tem como objetivo a construção de reflexões críticas acerca da Desmitologização do Tribunal do Júri a partir da racionalidade critica. A hipótese cientifica apresentada é o debate referente a compatibilidade da instituição do Júri com o Estado Democrático de Direito.
Por isso será imprescindível compreender os fundamentos teóricos e históricos da instituição do Júri para, assim, averiguar a existência de um caráter mitológico. Em seguida desenvolver-se-á um estudo ao longo das Constituições brasileiras para analisar o tratamento jurídico dado ao Júri pelo direito pátrio.
A obra de Karl Popper O Mito e o Contexto será o marco teórico inicialmente utilizado para o entendimento do aspecto mitológico do Júri e, assim, desconstruir o entendimento solidificado de que o julgamento pelos próprios pares viabiliza o caráter democrático da instituição.
O Modelo Constitucional de Processo será o parâmetro utilizado para o debate critico da legitimidade democrática e a construção participada dos provimentos jurisdicionais, através de uma pesquisa de cunho teórico-bibliográfico.
1. Historicidade e Mito
Historicamente o mito constitui uma realidade religiosa e antropológica. É considerado o fundamento utilizado pelo homem para explicar o mundo a partir de crenças, de uma sacralidade fundada na religiosidade e a partir do sobrenatural. A mitologia encontra o seu respaldo em construções centradas em um conceito de verdade caracterizado pela imutabilidade de conclusões suficientes para a busca de explicações sobre o existencialismo humano, as angústias dos homens e com o fim de alcançar maiores esclarecimentos sobre o mundo.
A característica central do pensamento mitológico é a reprodução de verdades absolutas ao longo da história, fazendo com que o homem perpetue algumas conclusões sobre o mundo em que vive, tais como a consciência de sua mortalidade, a existência de um criador e a dicotomização do bem e do mal[1]. “O mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicialmente não temos palavras. Portanto, o mito contempla o âmago de um imenso silêncio[2]”.
O pensamento mitológico viabiliza a construção de uma realidade invisível a partir do que as pessoas sentem intuitivamente. A criação do mundo dos deuses pelos homens representa a base da mitologia e tem a finalidade de auxilia-lo na compreensão do mundo a partir dos sentidos. É a partir dessas considerações iniciais que é possível verificar a inegável importância do mito na história da humanidade, “[…] porém a mitologia é uma forma de arte que aponta para além da história, aponta para o que é intemporal na existência humana, e nos ajuda a superar o fluxo caótico de eventos aleatórios, vislumbrando o âmago da realidade[3]”.
A relação entre o historicismo e o pensamento mitológico existe, uma vez que a compreensão que se tem é que a história e o mito se produzem e se reproduzem quase que de forma vegetativa. Nesse sentido verifica-se que “[…] os seres humanos se caracterizam por literalmente produzirem-se continuamente a si mesmos – o que indicamos ao chamarmos a organização que os define de organização autopoiética[4]”.
A autopoiesi é uma forma de alimentar a crença na evolução humana, ou seja, é confirmar o entendimento de que a história, de forma natural, determinará os rumos da humanidade através da perpetuação e da disseminação de verdades prontas, absolutas e imutáveis construídas a partir da sacralidade e das crenças que alimentam o pensamento mitológico.
A relação existente entre mitologia e cosmologia[5][6] é construída a partir do entendimento de que o mito é algo indiscutível que deve ser apenas reproduzido e passado de geração para geração. Não existe uma preocupação com a demonstração dos métodos e dos fundamentos utilizados na construção do mito. A desnecessidade dessa fundamentação teórica suficiente ao esclarecimento do mito autoriza a utilização da consciência e dos sentidos como substratos do pensamento mitológico. Assim, as conclusões advindas do pensamento mitológico nada mais são do que percepções individualizantes do mundo a serem estendidas à todos indistintamente, mediante a perpetuação da verdade sob a égide autoipoética. É nesse contexto que se encontra a base para o exercício do poder e da autoridade: os deuses são os seres considerados legitimados para a construção do pensamento mitológico a ser adotado pela humanidade.
Observa-se que o exercício do poder é uma construção do pensamento mitológico através do exercício da autoridade dos deuses. O mito nada mais é do que o produto de conjecturas sócio-culturais e religiosas vigentes em um determinado período da historia da humanidade como parâmetro para o controle e a busca da regularidade social. É por isso que se pode afirmar que o mito legitima o exercício autoritário do poder[7], como fica evidente no Mestre da Verdade:
“[…] [Os mestres da verdade na Grécia arcaica], a verdade não é separável do mestre que a enuncia e das condições claramente formalizadas de sua enunciação. O mestre da verdade é em primeiro lugar o poeta que arranca os homens e os deuses do esquecimento e lhes dá assim uma memória. Sua palavra eficaz institui por sua virtude própria um mundo simbólico-religioso que é o próprio real. Cabe ao poeta dizer o que verdadeiramente foi: sem sua palavra, os altos feitos dos homens mergulham no não-ser; através dela eles são, tendo sempre sido. Ao contrário do que fará o historiador clássico, o poeta arcaico não busca dizer o que foi tal como pôde estabelece-lo consultando e criticando as fontes, mas o estabelece pela escansão repetida e captadora de seu dizer, eco de todos os ditos, cuja beleza sublinha a verdade. O adivinho, outro mestre da verdade, diz de maneira uniforme o que foi, é ou será. Mas, contrariamente ao físico da época clássica, que do mesmo modo diz a natureza sob a forma do eterno, ele não busca dizer o ser tal como ele é, mas contribui para fazer com que ele seja por meio de seu dizer: sua palavra realiza, e por isso é cercada de desejo e temor e protegida da linguagem ordinária por seu cerimonial. O rei de Justiça da época arcaica igualmente diz a verdade como um mestre: ao contrário do júri da época clássica, que procura estabelecer o que foi feito e o que deve resultar disso, confrontando argumentações contraditórias, o antigo mestre da verdade faz ser o que ele diz, enunciando ritualmente o justo: ao fazer isso, atribui a cada um sua parte no mundo cósmico e portanto institui a ordem real da cidade”[8].
O mito como fundamento do exercício do poder explica a não implementação da Democracia na pós-modernidade.
A limitação ou a ausência de fiscalidade das decisões dos jurados compromete, sobremaneira, o entendimento democrático do Júri. Ao dissertar sobre o tema Norberto Bobbio[9] esclarece que o Poder Invisível é um dos fatores que comprometem a construção da Democracia, por se tratar de decisões palacianas tomadas obscuramente pelos detentores do poder e cujos efeitos atingirão diretamente a coletividade que ficou alheia ao debate das questões relacionadas diretamente aos seus interesses. Ou seja, a democracia consiste numa espécie de governo do poder visível, e não invisível.
A mitologização do exercício do poder, conforme explicita Bobbio, inviabiliza a fiscalidade e a publicidade[10] das decisões tomadas pelos titulares do poder por se colocarem muitas vezes na condição de deuses sem o dever de fundamentar suas decisões. A simples condição de detentor do poder o legitima ao exercício de sua autoridade, independentemente de fiscalidade e tampouco do dever de fundamentar juridicamente suas decisões.
É temerário afirmar que o pensamento mitológico é desprovido de racionalismo, até porque a razão é coextensiva à humanidade. Assim “[…] na medida em que a razão é pensada como uma determinação que se aplica ao homem ou aos homens, não há nenhuma razão de imputar-lhe um nascimento[11]”.
Em sendo o pensamento mitológico produto de construções humanas denota-se claramente suas raízes racionalistas, o que justifica a superação do entendimento de que não é possível a racionalização do mito.
O advento da razão precede o pensamento mitológico tendo em vista ser possível verificar o pensamento racional desde o momento em que o homem passou a intervir na natureza e a transforma-la. Portanto não é coerente limitar o entendimento da razão ao pensamento cientifico, mesmo sabendo que o método cientifico encontra sua base no pensamento racional. A sistematização do pensamento cientifico se deu a partir da razão, mas isso não justifica a desconsideração das colocações anteriormente expostas.
A superação do mito visto sob a égide historicista e autopoética dar-se-á através da racionalidade crítica, da ampla fiscalidade, do devido processo legal e do processo constitucional como corolários à implementação do Direito em bases democráticas. Por isso é imperioso o estudo do tema na obra de Karl Popper, para que seja possível o debate centrado na crítica cientifica.
1.1. O Mito do Contexto
O conhecimento cientifico construído em bases epistemológicas é considerado o fundamento inicial para o esclarecimento da superação da mitologização e da pressuposição do conhecimento em bases historicistas. É nesse contexto teórico que Karl Popper propõe a dessacralização e a desmitologização do conhecimento pela problematização cientifica. A falibilidade[12] e a ampla fiscalidade representam a base para o estudo da critica cientifica que, por sua vez, fundamentam a construção do devido processo legal no Estado Democrático de Direito.
O inacabamento e a construção infinita do conhecimento cientifico a partir da refutabilidade e da testificacao das teorias cientificas representam a base da obra de Karl Popper, tendo em vista a superação da dogmatização do conhecimento proposto pelo pensamento mitológico.
O método critico[13] proposto por Popper, que estabelece a proibição de vedação de liberdade de tentativas de refutação (base teórica do Devido Processo Legal), inaugura o estudo do Direito Democrático na pós-modernidade[14].
O erro é a causa da teorização e o fundamento da falibilidade e da testificação do conhecimento cientifico em Popper. O conhecimento é a forma legitima de compreendermos a nossa ignorância e o instrumento teórico de explicação do erro.
A ruptura com as crenças e com o conhecimento construído em bases metafísicas é pressuposto para o entendimento do Direito Democrático centrado não mais na clarividência e na sapiência inata dos julgadores.
A processualidade democrática do discurso voltado para a ampla fiscalidade implementa-se pela radicalização do Devido Processo Legal. Inicia-se, assim, o período de um direito emancipatório, através do qual a fiscalidade e o falibilismo[15] passam a ser exercidos pelos princípios institutivos do processo[16] (contraditório[17], ampla defesa, isonomia processual, devido processo legal e indispensabilidade do advogado).
Talvez um dos grandes erros cometidos pelos estudiosos em todo o mundo é admitir estaticamente a dicotomização supostamente existente entre o racionalismo e o irracionalismo. Tal questão não parecer ser tão simples assim de ser esclarecida pelos pesquisadores de uma forma genérica, tendo em vista que a doutrina do relativismo esclarece que o conceito de verdade é relativo e, por isso, a verdade mudaria de contexto para contexto. É nessa perspectiva que Karl Popper propõe o debate do “Mito do Contexto[18]”.
A discussão, o debate, os erros, a ignorância e a discordância são considerados por Popper a base da discussão, do debate, da argumentação e da critica cientifica. A superação da técnica e a teorização da crítica somente são possíveis quando há discordância. É por isso que é possível afirmar que Popper, em sua obra, não busca o consenso, mas sim o aprimoramento do debate cientifico. A desconstrução do mito é o caminho para o rompimento com o entendimento estático e absoluto de verdades prontas e acabadas que se perpetuam ao longo da história da humanidade.
O debate cientifico como pressuposto à construção do conhecimento tem que se desenvolver através da participação de todos aqueles interessados no objeto da discussão. Dessa forma pode-se definir o Mito do Contexto como “A existência de uma discussão racional e produtiva é impossível, a menos que os participantes partilhem um contexto comum de pressupostos básicos ou, pelo menos, tenham acordado em semelhante contexto em vista da discussão[19]”.
O mito limita o debate com o propósito de tornar a discussão fácil e moderada, a partir do momento em que condiciona o debate a existência de questões minimamente comuns e indiscutíveis. Ou seja, parte-se do pressuposto de que a discussão não será ampla, haja vista elementos não passíveis de debate por serem considerados pontos pacíficos entre os sujeitos do debate.
Ao contrário do exposto, o debate democrático tem sua base centrada no erro e na possibilidade de debater todas as questões possíveis e consideradas relevantes. A radicalização do principio do Devido Processo Legal assegura aos participantes a liberdade de divergir e discordar amplamente, uma vez que assim teremos o aprimoramento das proposições teóricas suficientes a construção da critica cientifica. Nesse sentido:
“Irei defender uma tese perfeitamente contrária: uma discussão entre pessoas que compartilham várias opiniões tem poucas probabilidades de vir a ser proveitosa, ainda que possa ser agradável; enquanto uma discussão entre contextos bastante díspares pode ser extremamente proveitosa, ainda que, por vezes, possa ser muito difícil e, talvez, não tão agradável (possamos embora aprender a aprecia-la).
Creio que podemos afirmar que uma discussão foi tanto mais proveitosa quanto mais os participantes com ela puderem aprender. Significa isto que quanto mais interessantes e difíceis tenham sido as questões levantadas tanto mais induzidos eles foram a pensar respostas novas, tanto mais abalados terão sido nas suas opiniões, pois foram levado a ver essas questões de forma diferente após a discussão – em resumo, os seus horizontes intelectuais alargaram-se.
A fecundidade neste sentido dependerá, quase sempre, do hiato original entre as opiniões dos participantes na discussão. Quanto maior ele for, tanto mais proveitosa a discussão – desde que esta se não torne, naturalmente, inviável como assere o mito do contexto”[20].
Ao contrário do entendimento de muitos estudiosos Popper defende que quanto mais divergência houver quanto à tese objeto do debate e quanto mais difícil for o consenso, mais proveitosa será a discussão. Tal afirmação se justifica a partir da concepção de que o debate não tem como escopo o consenso, mas sim o aprimoramento da argumentação, o aprendizado dos participantes e o amadurecimento das questões suscitadas no debate. Além disso, quanto mais díspares forem as teses levantadas, maior será a reflexão dos sujeitos do debate, para que os mesmos aprendam a lidar mais claramente com as diferenças e também venham a pensar sobre a tolerância, questão profundamente relevante nas sociedades democráticas e pluralistas.
É por isso que os juízos a priori, a dogmática, os mitos e a utilização de questões sedimentadas como parâmetro para a argumentação limitam ou muitas vezes suprimem o debate, por torna-lo não proveitoso à reflexão cientifica. A construção do Estado Democrático de Direito pressupõe o enfrentamento, pelo Devido Processo Legal, das questões de interesse das sociedades abertas, especificamente a problemática teórica envolvendo as esferas públicas e privadas.
Para Popper quanto maior for o debate maior será a probabilidade de produção critica do conhecimento científico. Nesse sentido:
“[…] mesmo sem discussão, é possível um confronto proveitoso entre pessoas profundamente enraizadas em marcos diferentes. Contudo, não devemos esperar demasiado: não devemos esperar que um confronto, ou até uma discussão prolongada, termine em acordo entre os participantes”[21].
Talvez um dos maiores desafios enfrentados pelos interlocutores de Popper é compreender que o consenso não pode ser considerado requisito indispensável do debate cientifico. É possível a discussão e a argumentação cientifica viabilize a crítica mesmo diante da permanência de divergências. Assim pode-se falar que o debate foi proveitoso na concepção e nas proposições teóricas de Popper, ao defender que o fosso existente entre contextos diferentes ou entre diferentes culturas poderá ser ultrapassado, o que não representa uma garantia de que sempre será ultrapassado[22].
O aprimoramento do convívio de individualidades em um espaço público é produto do choque de diferentes culturas e do confronto de diferentes contextos. Ou seja, o intenso e constante debate é o fundamento do processo de amadurecimento da vida e do convívio em sociedade. Para Popper certamente “[…] o choque cultural pode levar os homens a pensar de modo crítico […][23]”.
Verifica-se que as proposições filosóficas apresentadas por Popper denotam claramente a superação da retórica e da persuasão, uma vez que compreende o debate não como instrumento de convencimento ou de prevalência do melhor argumento, mas, acima de tudo, como forma de aprimorar as reflexões cientificamente críticas.
Ao teorizar suas proposições Popper parte do pressuposto de que o centro do debate e das decisões encontra-se na participação direta e efetiva de todos aqueles interessados no objeto do debate, mediante o reconhecimento da possibilidade de discussão ampla de todas as questões coerentemente relacionadas com o foco das discussões e das divergências.
A compreensão do universo talvez seja uma das buscas mais constantes do homem. O mito e a invenção de histórias é a forma mais antiga e até hoje muito utilizada para explicar o universo essencialmente a partir da fé irracional. Em contrapartida temos a racionalidade como fundamento para o entendimento objetivamente cientifico sobre o universo. O método da discussão crítica centrado nos erros ou divergências é a teorização apresentada por Popper[24] para demonstrar a insuficiência do mito para a compreensão do universo.
A Epistemologia Quadripartite (técnica – ciência – teoria – crítica) encontra a sua fundamentação teórica proibição de vedação da liberdade de tentativa de refutação. É impossível conciliar a Democracia com a vedação de tentativa de refutação, tendo em vista que em Popper não se pode falar em resolução conclusiva, uma vez que o conhecimento fornece mais teorias para o enfrentamento dos erros. Por isso Popper abomina as conclusões peremptórias fundadas em verdades absolutas.
A liberdade nas tentativas de refutação é o que garantirá a autonomia dos sujeitos na participação da discussão e do debate. Popper preconiza ao longo de todas as suas discussões que a liberdade dos indivíduos é requisito essencial para assegurar efetivamente a sua participação no debate.
O Método Crítico de Popper é a garantia de que a liberdade e a igualdade de participação são corolários das reflexões criticas no Estado Democrático de Direito. Nesse ínterim não se pode ver o Método Critico como uma disposição de idéias e de raciocínios que possibilitem o entendimento cientifico com ordem e coerência, até porque a coerência máxima é a base da ditadura do conhecimento.
No âmbito do Direito o Método Crítico não pode ser visto como uma técnica de interpretação a partir da experiência profissional do intérprete, ou seja, não é uma forma de estabilização do sentido do Direito pela conciliação interpretativa do decisor. A interpretação do Direito deverá partir de uma argumentação jurídica decorrente de um debate entre interessados que se encontrem em igualdade jurídica, o que inviabiliza o julgador suprir as lacunas da lei pelo método sistemático de interpretação pautado no juízo da autoridade Toda a base do método critico encontra-se na discordância, e por isso “seja o que for que tenha acontecido, a invenção do método crítico dificilmente se teria dado sem o impacto do choque de culturas[25]”.
A finalidade das discussões não se encontra centrada na vitória de uma das partes envolvidas no debate, mas sim no esclarecimento cientifico, por mínimo que possa parecer. Processualmente a analise de um caso concreto não perpassa pela prevalência do melhor argumento jurídico, mas no seu estudo conforme o contexto do debate que se propõe. É importante esclarecer a necessidade de prevalência da racionalidade como parâmetro do debate jurídico, para não prevalecer as concepções pessoais do julgador. Nesse sentido Popper afirma
“As discussões sérias e criticas são sempre difíceis. Nelas entram sempre elementos não racionais, tais como os problemas sociais. Muitos participantes numa discussão racional, ou seja, crítica, consideram particularmente difícil ter de desaprender aquilo que os instintos lhes impõem (e aquilo que lhes é ensinado por todas as sociedades que debatem): ou seja, vencer. Pois o que têm de aprende é que uma vitória num debate não significa nada, ao passo que a mínima clarificação de um problema que se tenha – mesmo a mais pequena contribuição para uma compreensão mais clara da sua própria posição ou da de um opositor – constitui um grande sucesso. Uma discussão que se vence, mas que não ajuda na alteração ou clarificação da vossa mente, nem que seja só um pouco, deverá ser considerada uma perda completa. Por isso, nenhuma mudança de posição se deve fazer sub-repticiamente; pelo contrário, há que realça-la juntamente com as sua conseqüências exploradas.
A discussão racional, neste sentido, é uma coisa rara. Mas é um ideal importante e podemos aprender a dar-lhe valor. Não tem por objectivo converter niguém e é modesta nas expectativas: é suficiente, mais do que suficiente, se sentirmos que conseguimos ver as coisas sob uma nova luz ou que até nos aproximamos um pouco mais da verdade”[26].
A construção do mito, para Popper, varia conforme o contexto, pois as verdades são definidas a partir das conclusões cientificas obtidas pelos estudiosos. Muitas conclusões obtidas através da pesquisa cientifica tornam mitos por serem vistos como verdades absolutas e não passiveis de refutabilidade. Para Popper qualquer verdade cientifica, por mais absoluta que possa parecer, é passível de refutabilidade em decorrência do falibilismo cientifico. Sendo assim propõe a liberdade e a autonomia dos sujeitos no debate cientifico como forma de aprimoramento das reflexões críticas.
Dessa forma o tema Tribunal do Júri é a oportunidade que se tem de debater que a construção do provimento jurisdicional pelo corpo de jurados deverá se dar não através de juízos a priori, nem tampouco de convicções pessoais materializadas na íntima convicção dos julgadores, mas sim mediante a ampla oportunização do debate jurídico em que são ofertadas à discussão todas as questões fáticas suficientes à construção participada da argumentação jurídica sob a égide do devido processo penal democrático e constitucionalizado.
2. Fundamentos históricos do Tribunal do Júri
A análise da historicidade do tema remonta os judeus do Egito Antigo, que sob a égide das leis de Moisés, encontramos o primeiro registro do Tribunal do Júri. Ao dispor sobre a existência do Conselho de Anciãos, que nada mais era do que a materialização do julgamento pelos próprios pares, verifica-se a estreita relação existente entre o Júri e a religião, tendo em vista que os julgamentos eram de natureza teocrática e se davam em nome de Deus. As regras a serem observadas encontravam-se estabelecidas no grande livro, o Pentateucho, onde não havia limite para a fixação da pena do condenado, garantia-se a publicidade do julgamento, assegurava-se a defesa do acusado mas, desde esse período da historia o julgamento dava-se de acordo com a consciência do jurado[27][28].
Há registros históricos na Grécia que merecem uma breve análise com a finalidade de esclarecer cientificamente a origem do Tribunal do Júri através do estudo do Areópago e da Heliéia, dois órgãos colegiados com a incumbência de proferir julgamentos pautados essencialmente na consciência e no senso de justiça dos seus julgadores. Nesse sentido Nádia de Araújo e Ricardo R. Almeida expõe
“Na Atenas clássica, duas instituições judiciárias velam pela restauração da paz social: o Areópago e a Heliéia. Ambas apresentam pontos em comum com o Júri. O Areópago, encarregado de julgar os crimes de sangue, era guiado pela prudência de um senso comum jurídico. Seus integrantes, antigos arcontes, seguiam apenas os ditames de sua consciência. A Heliéia, por sua vez, era um Tribunal Popular, integrado por um número significativo de heliastas (de 201 a 2.501), todos cidadãos optimo jure, que também julgavam, após ouvir a defesa do réu, segundo sua íntima convicção. Parecem elementos bastantes para identificar aqui os contornos mínimos, o princípio ao qual a idéia de justiça popular historicamente se remeteria”[29].
Para Guilherme de Souza Nucci “Na Grécia, desde o século IV aC., tinha-se conhecimento da existência do Júri. O denominado Tribunal de Heliastas era a jurisdição comum, reunindo-se em praça pública e composto de cidadãos representantes do povo[30]”.
O advento do Tribunal do Júri no Direito Romano ocorreu no sistema acusatório com o surgimento da quaestiones perpetuae, que através da Lex Calpurnia de 149 aC. viabilizou inicialmente o julgamento colegiado de funcionários do Estado que tivessem cometido qualquer ilicitude contra um provinciano. O pretor romano era quem presidia a sessão de julgamento e o órgão colegiado legitimado para julgar era composto por cidadãos idôneos, com idade mínima de 30 anos e que não tivesse qualquer punição anterior. Toda acusação devia ser precedida de provas e se o acusado fosse absolvido o acusador era posteriormente processado; assegurava-se o direito de defesa do acusado, o julgamento se dava de acordo com a consciência dos julgadores e sem necessidade de qualquer motivação[31].
A Magna Charta da Inglaterra de 1215 é considerada um marco do constitucionalismo europeu medieval e representa uma verdadeira conquista histórica em termos jurídicos. Foi implantada na Inglaterra quando o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e os juízos de Deus. O Júri foi institucionalizado na Inglaterra centrado na ideologia de ser um Tribunal do Povo em que os acusados seriam processados e julgados pelos seus próprios pares[32]. Nesse contexto é oportuna a colocação de Jackson Ferreira de Matos;
“Surgiu como uma necessidade de julgar os crimes praticados por bruxarias ou com caráter místico. Para isso, contava com a participação de doze homens da sociedade que teriam uma “consciência pura”, e que se julgavam detentores da verdade divina para a análise do fato tido como ilícito e a aplicação do respectivo castigo.
Infere-se desde a sua origem o caráter religioso imposto ao Júri, se não pelo número de jurados – uma suposta referência aos doze apóstolos de Cristo – pelo poder dado aos homens comuns de serem detentores da verdade julgando uma conduta humana, papel reservado naquela época exclusivamente a Deus”[33].
A formação histórica do Tribunal do Júri decorre do interesse em democratizar os julgamentos. Traz no seu bojo uma forte influência religiosa, especificamente cristã, centrada na idéia de justiça decorrente de decisões proferidas pelos jurados de acordo com a sua consciência, ou seja, independente de qualquer fundamentação ou motivação jurídica. Assim, a consciência dos jurados, produto de suas crenças e de suas convicções pessoais, bem como o caráter sacro dos julgamentos ocorridos em um espaço composto por pessoas supostamente preparadas para distribuir e garantir a justiça entre os homens representa alguns dos traços característicos e marcantes do Tribunal do Júri. Nesse contexto Nucci expõe
“Após a Revolução Francesa, de 1789, tendo por finalidade o combate à idéias e métodos esposados pelos magistrados do regime monárquico, estabeleceu-se o júri na França. O objetivo era substituir um Judiciário formado, predominantemente por magistrados vinculados à monarquia, por outro, constituído pelo povo, envolto pelos novos ideais republicanos.
A partir disso, espalhou-se pelo resto da Europa, como um ideal de liberdade e democracia a ser perseguido, como se somente o povo soubesse proferir julgamentos justos. Relembremos que o Poder Judiciário não era independente, motivo pelo qual o julgamento do júri apresentava-se como justo e imparcial, porque produzido por pessoas do povo, sem a participação de magistrados considerados corruptos e vinculados aos interesses do soberano”[34].
No Brasil o Tribunal do Júri foi instituído por Decreto no ano de 1822, com a finalidade de julgar os crimes de imprensa sob a justificativa de que as leis antigas impunham penas muito duras. Por isso o príncipe regente D. Pedro ordenou que os juízes fundamentassem suas decisões com base na Constituição Portuguesa de 1821, até que a primeira Constituição brasileira fosse promulgada no ano de 1824[35]. O júri era composto por 24 cidadãos bons, honrados, inteligentes e patriotas, prontos a julgar os delitos de abuso de liberdade de imprensa, sendo suas decisões passiveis de revisão somente pelo Príncipe Regente[36]”.
A primeira previsão legislativa no Brasil sobre o Tribunal do Júri se deu no plano infraconstitucional, uma vez que foi somente com a Constituição de 1824[37], em seus artigos 151 e 152 que visualizamos o status constitucional do Júri no Brasil: “Artigo 151 – O Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar assim no Cível, como no Crime, nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem. Artigo 152 – Os Jurados pronunciam sobre o fato, e os juízes aplicam a Lei[38]”.
Verifica-se que legislador constituinte não definiu constitucionalmente de forma detalhada a competência do Tribunal do Júri, deixando tal encargo ao legislador infraconstitucional. Ressalta-se, ainda, que a competência do Tribunal do Júri englobava tanto fatos de repercussões penais quanto cíveis, conforme exposto no caput do artigo 151. Não houve também no plano constitucional qualquer menção aos princípios regentes do Tribunal do Júri, tal qual ocorre na Constituição brasileira de 1988, a ser analisada posteriormente.
Antes do advento do primeiro Código Criminal do Império no ano de 1832, foi promulgada em 20 de setembro de 1830 a segunda lei de imprensa:
“Mais tarde, em 20 de setembro de 1830, foi promulgada a segunda lei de imprensa, que tratava sobre o abuso da liberdade de imprensa, e criou o júri de acusação e o júri de julgamento. O primeiro era responsável por julgar a admissibilidade da acusação. O conselho ouvia a acusação, defesa e testemunhas, se fosse o caso, e se reunia a portas fechadas para decidir, por maioria absoluta, a viabilidade da acusação. Após, reunia-se o júri de julgamento e, ouvindo as alegações das partes e analisando as provas colhidas, respondiam aos quesitos formulados pelo juiz de direito e decidiam por maioria absoluta a culpa do réu”[39] (grifo nosso).
No ano de 1832 verifica-se o advento do Código de Processo Penal, que recebeu fortes influências do direito norte-americano, o direito francês e inglês. Houve, nesse período, o tratamento legislativo detalhado da competência e do procedimento do Tribunal do Júri, o que limitou sobremaneira a atuação dos jurados e do juiz presidente. Com a promulgação da Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, houve uma limitação da competência do Tribunal do Júri ao extinguir o júri de acusação e estabelecer que a instrução criminal passou a ser responsabilidade dos Delegados de Policia e dos Juizes Municipais[40].
“Outra derrocada sofreu o júri com o advento da Lei n. 562, de 2 de julho de 1850, regulamentada pelo Decreto n. 707, de 9 de outubro do mesmo ano, que atribuiu aos magistrados a competência para o julgamento dos crimes de moeda falsa, roubo, homicídio nos municípios da fronteira do Império, resistência e tirada de presos, além da bancarrota
Mas, em 1871, ocorreu nova reforma processual que trouxe significativas alterações para a instituição do júri. Com efeito, a Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871, ampliou novamente a competência do júri, cessando as limitações impostas pela Lei n. 562, de 7 de julho de 1850”[41].
No Governo Provisório de 15 de novembro de 1889, Rui Barbosa exerceu a função de Ministro da Defesa e, por isso, participou ativamente na elaboração do texto da segunda Constituição brasileira, do ano de 1891. Trata-se de uma Constituição bastante objetiva, com exatamente 91 artigos, que em seu artigo 72, §31 estabeleceu apenas a manutenção da instituição do Júri, atribuindo-lhe status de garantia ou direito individual[42]. Em virtude da objetividade do legislador constituinte sabe-se que a Constituição brasileira de 1891 recepcionou o tratamento legislativo infraconstitucional referente à competência e ao procedimento adotado no Tribunal do Júri. Ressalta-se, nesse período da historia, a criação do Tribunal do Júri vinculado à Justiça Federal, conforme preceitua o Decreto 848 de 1890[43].
O Supremo Tribunal Federal, por meio de acórdão de 07 de outubro de 1899, fixou as características do Tribunal do Júri:
“a) composição por jurados qualificados periodicamente pelas autoridades designadas por lei; b) conselho de julgamento composto de certo número de juízes, escolhidos à sorte; c) incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas ao Conselho; d) alegações e provas da acusação e defesa produzidas publicamente perante ele; e) julgamento segundo a consciência; f) irresponsabilidade pelo voto”[44].
Chefe do Governo Provisório, com a Revolução de 1930, Getúlio Vargas convocou a Constituinte que, ao fim de seus trabalhos, em julho de 1934, o elegeu, por meio de eleição indiretas, Presidente, por 04 anos. Em seu artigo 72 a Constituição de 1934 estabeleceu: “É mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei[45]”. Novamente o legislador constituinte confiou ao legislador infraconstitucional a atribuição de regulamentar a procedimentalização e a enumeração das atribuições do Tribunal do Júri. Confirmaram-se os fundamentos histórico-jurídicos do Júri: a democratização dos julgamentos através da participação popular dos jurados, legitimados para proferir suas decisões conforme sua convicção.
Francisco Campos foi o principal autor da Constituição de 1937, que instituiu o Estado Novo, período da historia brasileira marcado por um direito autoritário utilizado para legitimar a permanência do então Presidente da República Getulio Vargas no poder. A respectiva Constituição brasileira foi omissa quanto ao Tribunal do Júri, o que desencadeou a promulgação do Decreto-lei 167 em 05 de janeiro de 1938, visando demonstrar explicitamente a permanência do Tribunal do Júri no ordenamento jurídico brasileiro, conforme preceitua o disposto no artigo 183: “Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariem as disposições desta Constituição[46]”.
Em 1945 a eleição direta para Presidente da República de Marechal Eurico Gaspar Dutra, por maioria absoluta de votos, inaugurou um novo período da história do Brasil, marcado pela redemocratização do país após o término de um período de exceção. Em 1946 adveio uma nova Constituição, fortemente influenciada pela Carta Constitucional de 1891 e 1934, que resgatou, através do Decreto-lei 167, de 1938, o Tribunal do Júri, omitido pela Constituição de 1937. Tal Decreto-lei disciplinou o procedimento, a organização e a composição do Tribunal do Júri[47].
A Constituição de 24 de janeiro de 1967 foi outorgada em um período ditatorial da história do Brasil, marcado pelo autoritarismo dos militares. Mesmo assim verifica-se a manutenção do Tribunal do Júri e a institucionalização de sua competência para o processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida, conforme preceitua o artigo 153, §18[48]. Verifica-se que essa é a primeira Constituição brasileira a definir expressamente em seu texto a competência da instituição do Júri, deixando para o plano infraconstitucional a regulamentação das atribuições e das questões procedimentais. Com o advento da Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969, foi mantida a instituição do Júri nos termos ora expostos, embora verifica-se a supressão de inúmeros direitos e garantias fundamentais.
A seguir será debatido os reflexos da Constituição brasileira de 1988 no que tange ao estudo do Tribunal do Júri sob a ótica democrática e da racionalidade crítica.
3. A constitucionalização do Júri e o seu tratamento jurídico-infraconstitucional no Brasil
O Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.689/41) tem natureza inquisitorial[49], o que exige uma compreensão sistemático-constitucionalizada com o advento do Estado Democrático de Direito. É necessário compatibilizar todas as discussões e debates referentes à reforma[50] do Código de Processo Penal brasileiro com o modelo constitucional de processo penal, de cunho garantista e com o propósito de assegurar a implementação dos Direitos Fundamentais. É nesse contexto teórico que se pretende debater o Tribunal do Júri com o propósito de esclarecer cientificamente se tal instituição pode ou não ser considerada compatível com o Estado Democrático de Direito, nos moldes propostos pela Constituição brasileira de 1988.
Os grandes problemas que se vislumbram no sistema inquisitorial são os seguintes: a) concentração das funções de julgar nas mãos do juiz; b) a valoração e a interpretação das provas produzidas por meio de juízos axiologizantes centrados na autoridade do julgador; c) a liberdade do magistrado determinar ex officio a produção de provas suficientes à formação do seu convencimento; d) a dispensa da fundamentação das decisões judiciais, especificamente na atuação do jurados, que proferirão seus julgamentos de acordo com sua íntima convicção.
O foco dessa análise centra-se na seguinte premissa: a concentração do exercício da jurisdição na autoridade do magistrado e dos jurados.
Enquanto a jurisdição continuar sendo vista como um poder do juiz de dizer o direito no caso concreto, continuaremos convivendo com um processo penal de raízes inquisitoriais.
Pensar o processo penal no Estado Democrático de Direito é revisitar o processo e a jurisdição sob a égide constitucional. Ou seja, o processo deixa de ser visto como mero instrumento para o exercício da jurisdição e passa a ser compreendido sistematicamente como uma instituição constitucionalizada garantidora da implementação efetiva dos Direitos Fundamentais. A Jurisdição não é mais vista como um poder do juiz, mas sim como um Direito Fundamental assegurado indistintamente a todos os cidadãos e uma função estatal hábil a viabilizar a discussão do mérito das pretensões.
Pensar o modelo constitucional de processo penal é compreende-lo sob a égide principiológica. O contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal e a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais representam a garantia de participação dos sujeitos juridicamente interessados no provimento estatal. Nesse sentido Flaviane de Magalhães Barros afirma
“Assim, tomando como base a noção de processo como garantia, o contraditório deve ter o seu conceito ampliado, de modo a ser compreendido como o espaço procedimentalizado para garantia de participação dos afetados na construção do provimento. Assim, o contraditório tem como característica o principio da influência, no sentido de que as partes tem direito de influir argumentativamente nas decisões do processo, ou seja, influir no desenvolvimento e no resultado do processo”[51].
A imparcialidade do juízo tem como corolário a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, a possibilidade de ampla fiscalidade, a construção legítima dos provimentos mediante a participação dos interessados.
A afirmação de que a concepção vigente do Tribunal do Júri não é compatível com o modelo constitucional do processo penal no Estado Democrático de Direito justifica-se no sentido de que a dispensa de motivação nas decisões tomadas pelos jurados viabiliza a substituição da argumentação jurídica por juízos axiologizantes.
No Tribunal do Júri o amplo debate jurídico pelos interessados na construção do provimento jurisdicional fica comprometido com a exclusão dos jurados do espaço de argumentação jurídica de construção do provimento. Além disso, o acusado fica à margem da construção participada do provimento, no momento em que os jurados são legitimados a tomarem suas decisões conforme sua consciência e seu senso de justiça.
A previsão do Júri na Constituição brasileira de 1988 como Direito Fundamental não é suficiente para considera-lo compatível com o Estado Democrático de Direito.
A procedimentalização do Tribunal do Júri no Brasil é de cunho inquisitorial no momento em que concentra nas mãos do jurados a legitimidade para julgar, conforme suas convicções pessoais, impossibilitando a participação dos interessados na construção do provimento jurisdicional.
A soberania dos veredictos e o sigilo das votações denotam o caráter autoritário do Tribunal do Júri, uma vez que a dispensa da fundamentação jurídica das decisões dos jurados.
As hipóteses ensejadoras da nulidade das decisões proferidas pelos jurados concentram-se essencialmente no cerceamento de defesa, ou seja, na violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. O fato do acusado não participar da construção do provimento jurisdicional, do qual é juridicamente interessado, não é hipótese suficiente para ensejar a nulidade do julgamento.
Com o advento da Lei 11.689/08 a formação da culpa ainda se encontra concentrada nas mãos do Ministério Publico e do magistrado. A primeira fase do procedimento, denominada judicium accusationis e designada pela nova legislação de instrução preliminar, se inicia com o oferecimento da denúncia ou queixa pelo querelante, que poderá ser recebida ou rejeitada pelo juiz.
Antes do recebimento da denuncia pelo magistrado o acusado é intimado para, querendo, manifestar-se sobre a denúncia. Posteriormente à defesa a acusação terá mais 05 dias para se manifestar sobre as alegações e as provas produzidas e requeridas pela defesa. A intenção do legislador, ao prever tal possibilidade no procedimento, foi assegurar ao acusado o contraditório.
A seguir o magistrado designará Audiência de Instrução e Julgamento para a produção das seguintes provas: oitiva do ofendido, se possível; inquirição das testemunhas da acusação; inquisição das testemunhas de defesa; oitiva dos peritos; acareações; reconhecimento de pessoas ou coisas, e, ao final, o interrogatório do acusado.
As alegações finais devem ser orais, pelo prazo sucessivo para a acusação e defesa de vinte minutos, prorrogáveis por mais dez. Em caso de mais de um acusado o prazo de vinte minutos será individual. Todo o procedimento, desde o oferecimento da denuncia até a apresentação das alegações finais deverá ser concluído no prazo máximo de 90 dias. Se o réu estiver preso e o prazo acima não tiver sido respeitado o acusado deverá ser imediatamente colocado em liberdade[52].
A primeira critica que pode ser feita a essa primeira fase diz respeito à ausência de previsão legal que estabeleça um recurso especificamente cabível contra a decisão que recebe a denúncia. Mesmo assim, tem sido admitido o cabimento do Hábeas Corpus como sucedâneo recursal em virtude da pretensão deduzida em juízo referir-se especificamente ao Direito Fundamental de Liberdade. No que tange ao não recebimento da denuncia admitir-se-á o cabimento do recurso em sentido estrito[53]. Ante o exposto verifica-se a violação do principio da isonomia processual, tendo em vista o tratamento jurídico diferenciado dado à acusação e à defesa no que tange o Direito Fundamental de Recorrer e de Participar Isonomicamente da Construção do Provimento Jurisdicional.
Outro ponto relevante para analise critica diz respeito ao tratamento jurídico dado ao Ministério Publico pelo legislador infraconstitucional ainda como órgão acusador, e não como a atribuição constitucionalizada de viabilizar o exercício e a implementação dos Direitos Fundamentais no Estado Democrático de Direito.
A primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri se encerra com a decisão de pronúncia, através da qual o acusado deverá ser pronunciado apenas quando evidente a prova da existência do crime e os indícios suficientes de autoria ou participação, conforme preceitua o §1º do artigo 413 do Código de Processo Penal brasileiro vigente. Dessa forma o magistrado ao pronunciar ou impronunciar o acusado jamais deverá adentrar ao mérito da pretensão, restringindo sua análise ao que se encontra estabelecido no dispositivo legal acima mencionado[54]. Na decisão de pronúncia o juiz também deve especificar as circunstâncias qualificadoras e causas de aumento da pena, sob pena de não poderem ser argüidas no plenário. Isso se deve ao fato da pronuncia estabelecer precisamente os limites da acusação a ser objeto de debate no plenário do Júri.
A impronúncia somente será possível em caso de existência de duvidas acerca da autoria ou da materialidade do crime. Isso não representa o trancamento definitivo da ação penal. Como a decisão de pronúncia ou impronúncia não versam sobre matéria de mérito, em caso de impronúncia enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova acusação se houver prova nova.
Em caso de evidentes provas nos autos que demonstram claramente a inexistência de autoria poderá o magistrado proferir a decisão de absolvição sumária. Tal situação será possível quando houver um conjunto probatório incontestável em que não é possível extrair versões conflitantes, uma vez que a competência para a analise do mérito da pretensão é do Tribunal do Júri. É cabível o recurso em sentido estrito quando houver decisão de pronúncia e apelação quando houver impronúncia ou absolvição sumária.
Na segunda fase, denominada judicium causae, a defesa e a acusação debaterão publicamente suas teses, expondo a interpretação fático-jurídica do caso concreto, sempre com o intuito de alcançar o convencimento dos jurados.
A problemática cientifica do presente trabalho encontra-se especificamente nas seguintes premissas:
a) dispensabilidade de formação jurídica pelos jurados denota a utilização, pelos mesmos, de critérios metajurídicos para a analise e interpretação do caso concreto;
b) não se pode falar em construção participada do provimento jurisdicional enquanto o Ministério Público continuar assumindo inquisitorialmente a condição de acusador e também enquanto o acusado ficar à margem do debate jurídico, cujo decisionismo encontra-se centrado nas mãos dos jurados;
c) a dispensabilidade de fundamentação jurídica das decisões judiciais proferidas pelos jurados legitima o exercício da autoridade no ato de julgar, tendo em vista autorizar que os jurados formem o seu convencimento a partir do seu senso de justiça e subjetivismo;
d) a violação dos princípios constitucionais do processo, uma vez que a supressão da participação do acusado na construção do provimento, juntamente com a violação da ampla defesa e da imparcialidade do juízo decorrente da ausência de dever de fundamentação jurídica das decisões dos jurados são argumentos para explicar que o Tribunal do Júri no Brasil não é compatível com o Estado Democrático de Direito, conforme preceitua o principio da supremacia da constituição[55].
3.1-O princípio da íntima convicção dos jurados visto sob a ótica da racionalidade crítica: o advento do Modelo Constitucional de Processo e a ruptura com a jurisdição-poder e com o processo-instrumento propostos por Bulow
A problemática jurídica existente quando da análise do principio da íntima convicção dos jurados gira em torna da sua incompatibilidade com o modelo constitucional de processo adotado como parâmetro para o estudo critico da legitimidade dos provimentos jurisdicionais no Estado Democrático de Direito. O fundamento da legitimidade democrática é a garantia assegurada a todos os interessados de fiscalizar amplamente a construção participada do provimento. Nesse sentido ressalta-se o entendimento de Dhenis Cruz Madeira:
“Por conseguinte, obstruir a fiscalidade popular sobre a norma jurídica é dar margem à vida nua, criando-se um espaço discursivo indemarcado e não-fiscalizável. Com isso, fomenta-se o aparecimento do espaço do soberano (e não o da soberania popular), do locutor autorizado da lei, que, à semelhança do soberano de Kafka, diz o que pode e o que não pode, sem, contudo, ofertar os fundamentos de suas decisões, ou mesmo, permitir que o destinatário da norma aponte as ausências do discurso normativo. Esse espaço do soberano, a nosso ver, permite a criação de uma dimensão política acima da jurídica”[56].
A decisão proferida no Tribunal do Júri não pode ficar adstrita aos jurados, uma vez que deve ser proferida por todos aqueles afetados juridicamente pelo provimento jurisdicional.
O principio da intima convicção dos jurados é considerado um dos fundamentos que justificam o exercício do poder e da autoridade do julgador enquanto decisor legitimado a garantir a justiça entre os homens.
Trata-se de uma construção teórica centrada na concepção de que o julgador (jurado) tem liberdade no ato de julgar, podendo se utilizar ou não de argumentações jurídicas como pressupostos de seus julgamentos. Essa pode ser definida como a liberdade que o julgador tem para aplicar e criar o direito mais adequado para o caso concreto.
O exercício dessa liberdade pelo julgador o autoriza a utilizar tanto argumentos jurídicos como também metajurídicos para proferir julgamentos com base em sua sensibilidade jurídica e senso de justiça. Historicamente pode-se ressaltar que um dos fundamentos para o entendimento da jurisdição enquanto poder do juiz de criar o direito encontra-se no Movimento do Direito Livre:
“Os adeptos do direito livre – no sentido de livre da lei 0, de acordo com Kaufmaann, afirmavam que não pregavam a decisão contra legem, mas apenas indicavam qual o procedimento a ser adotado pelo juiz nos caso de lacuna da lei. Todavia, tinham um conceito excessivamente amplo de lacuna, entendendo sua existência sempre que a lei não resolvesse o caso de forma expressa e inequívoca. Daí sustenta Kantorowicz, citado por Kaufmann, que não existem menos lacunas do que as palavras e que apenas por uma improvável coincidência um caso jurídico poderia encaixar-se em todos os conceitos da lei a ser aplicada. Assim, nestas situações, ou seja, sempre, deveria o juiz recorrer ao direito livre.
Esse direito livre seria descoberto pelo juiz, por meio de sua sensibilidade jurídica, no meio social. Caberia ao juiz recorrer às convicções que no seu meio social, e naquele momento, se tem como justo […][57]”.
O Tribunal do Júri denota caráter democrático ao transparecer a participação popular mediante o julgamento do acusado pelos seus próprios pares, porém tem cunho autocrático. O decisionismo encontra-se centrado nas mãos dos jurados através da exclusão dos interessados na construção participada do provimento jurisdicional. Nesse sentido explicita André Cordeiro Leal
“A jurisdição, assim concebida, é, in integrum, atividade de juizes que revelam, pelo ato sentencial, suas próprias vontades (como em Bulow), ou um outra vontade pronta na lei, a de mens legis ou a de mens legislatoris (num enfoque que, por imprestável, o próprio Ronald Dworkin [1999] já se esforçara em afastar) ou, ainda, intervenções solipsistas e contingenciais em realidades sociais que estariam a suplicar socorro prestante em razão da inércia (ou inaptidão) do legislador soberano”[58].
A racionalidade critica com pressuposto da reflexão cientifica do Tribunal do Júri é o fundamento hábil a demonstrar a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito em virtude da violação do Devido Processo Legal decorrente de uma concepção mitológica de um debate jurídico limitado ou praticamente inexistente. A procedimentalização de um debate jurídico amplo e a construção isonomicamente participada do provimento jurisdicional são fatores suficientes a uma releitura do Júri enquanto instituição cognominadamente considerada democrática.
Considerações Finais
Desmitologizar o Tribunal do Júri a partir da racionalidade critica consiste inicialmente demonstrar sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito pelos motivos a seguir expostos:
1. a idéia de julgamento pelos próprios pares advém de uma concepção de exercício da autoridade com uma falsa aparência democrática. Tal afirmação se justifica porque os jurados fazem parte de um grupo seleto de pessoas escolhidas e autorizadas a proferir seus julgamentos com base na sua consciência e senso de justiça, sem ter o dever de prestar qualquer esclarecimento a alguém. Observa-se a supressão da ampla fiscalidade dos atos e a restrição de participação apenas para os escolhidos, o que denota claramente a sua incompatibilidade com o modelo constitucional e democrático de processo vigente;
2. além de restringir a construção do provimento à participação apenas dos jurados, excluindo-se a participação de todos aqueles interessados no provimento (inclusive o acusado), verifica-se que o objeto do debate encontra-se circunscrito aos argumentos e as provas constantes nos autos. Trata-se de uma concepção instrumentalista e autocrática de processo, uma vez que a garantia de amplo debate de todas as questões relacionadas à pretensão deduzida em juízo é o pressuposto para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito;
3. a dispensa de obrigatoriedade de fundamentação jurídica das decisões dos jurados mediante a aplicabilidade do principio da intima convicção representa outra afronta ao modelo constitucional de processo vigente. Em plena pós-modernidade continua-se convivendo com uma concepção pretoriana e autoritária de processo, através do qual a jurisdição encontra-se concentrada nas mãos do julgador, conforme preconiza Bulow. A soberania dos veredictos e a impossibilidade de declaração de nulidade de uma decisão dos jurados sob a alegação de ausência de fundamentação jurídica são marcas características de predominância da sensibilidade jurídica do julgador utilizada como parâmetro nos julgamentos.
A desmitologização do Tribunal do Júri pela racionalidade critica é uma construção científica visando a crítica falibilista do modelo adotado hoje no Brasil.
A ampla fiscalidade e a participação dos interessados na construção do provimento, como corolários do devido processo legal, são considerados os pilares do Estado Democrático de Direito. É nesse contexto teórico que se pretende construir reflexões cientifica no sentido de demonstrar a incompatibilidade do Tribunal do Júri com o Estado Democrático de Direito compreendido na contemporaneidade.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogado militante em Belo Horizonte. Professor da graduação em Direito da Faculdade de Pará de Minas, Fundação Pedro Leopoldo e Faculdade Pitágoras Unidade Divinópolis. Professor da pós-graduação em Direito do Instituto de Educação Continuada da Pucminas. Professor convidado dos cursos de pós-graduação em Direito da Universidade de Montes Claros e da Universidade de Araxá. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Membro da Comissão de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção Belo Horizonte. Especialista em Direito Processual e Direito de Família pela Pucminas. Mestre e Doutorando em Direito Processual pela Pucminas.
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