A doutrina da Proteção Integral e a Constituição Federal de 1988

Resumo: O presente artigo tem almeja o estudo da Doutrina da Proteção Integral, em especial dos direitos fundamentais e das garantias processuais-penais dos adolescentes infratores, à luz da Constituição Federal de 1988, já que esta encampou a referida doutrina, tornando-a norteadora do tema “Criança e Adolescente”. Infelizmente, boa parte da doutrina e da jurisprudência pátria, ainda hoje, incorpora uma concepção de infância e juventude desprovida de cidadania, visualizando o adolescente como mero objeto da intervenção estatal. Todavia, a única forma de reduzir a violência é a concretização dos Direitos Fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, permitindo que a parcela marginalizada da sociedade possa gozar de um mínimo existencial. Assim, o enfrentamento da delinquência juvenil reclama necessariamente a assunção por todos de deveres impostergáveis, tendentes a assegurar proteção integral e a resguardar os direitos básicos de todas as crianças e adolescentes, indistintamente, através da promoção de ações realizadoras passíveis de reduzir as situações degradantes que impulsionam para a marginalidade um enorme contingente de crianças e adolescentes pobres.

Palavras-chave: Doutrina da Proteção Integral. Constituição Federal. Criança e Adolescente.                   

Sumário: I – Introdução. II – A Doutrina da Proteção Integral e a Constituição Federal de 1988. III – Considerações finais. Referências.

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I – Introdução

O presente artigo tem almeja o estudo da Doutrina da Proteção Integral, em especial dos direitos fundamentais e das garantias processuais-penais dos adolescentes infratores, à luz da Constituição Federal de 1988, já que esta encampou a referida doutrina, tornando-a norteadora do tema “Criança e Adolescente”. Frise-se, contudo, que inúmeros documentos internacionais de proteção e promoção dos quais o Brasil é signatário, já adotavam a Doutrina da Proteção Integral, antes mesmo do advento de nossa Carta Magna.

Inicialmente, se afigura necessário esclarecer os conceitos envolvidos no tema. O referido Estatuto considera como criança, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (art. 2º da lei 8069/90). Isto posto, será tido como adolescente infrator o jovem na faixa etária supracitada que realizar conduta descrita como crime ou contravenção em nosso ordenamento jurídico (art.103 do mesmo diploma legal).

Em matéria de responsabilização criminal das crianças e adolescentes, comumente se destacam três etapas: a 1.ª etapa compreendeu o século XIX até a primeira década do século XX, sendo marcada pelo caráter penal indiferenciado, já que se dispensava àqueles tratamento similar ao de um adulto, sendo, inclusive, todos recolhidos ao mesmo espaço; a 2.ª etapa originou-se nos EUA no início deste século e se desenrolou até 1959, ostentando feição tutelar e a 3.ª etapa inaugurou-se em 1959 e transcorre até aos nossos dias. Preconiza um processo juvenil caracterizado pelos conceitos de separação, participação e responsabilidade.

Com efeito, somente no século XX, alavancada pelos avanços dos conhecimentos médicos e sob o impacto da revolução pedagógica, as crianças e os adolescentes viriam a ter reconhecidos seus direitos fundamentais.

Contudo, boa parte da doutrina e da jurisprudência pátria, ainda hoje, incorpora uma concepção de infância e juventude desprovida de cidadania, visualizando o adolescente como mero objeto da intervenção estatal.

Neste ponto, indaga-se: como proceder para conciliar esta postura à atual doutrina da proteção integral da criança e do adolescente encampada pela nossa Constituição Federal de 1988 e pela Lei n.º 8069/90 (ECA)?

A temática ganha relevo em razão da discussão acerca da redução da maioridade penal, com base na teoria da Lei e da Ordem, que equivocadamente centra o combate nas conseqüências e não nas causas da criminalidade. A única forma de reduzir a violência é a concretização dos Direitos Fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 e a integral efetivação da Doutrina da Proteção Integral, posto que, apesar de nosso ordenamento jurídico adotar formalmente a referida doutrina, grande parcela de nossos jovens vive em situação precária e indigna, não tendo acesso à educação, saúde, alimentação, profissionalização, lazer e cultura, acabando por ser dragada para o mundo da marginalidade. 

II – A doutrina da proteção integral e a constituição federal de 1988

 O Código de Menores de 1927 (Código Mello Matos) e o Código de Menores de 1978 encamparam a doutrina da situação irregular, na medida em que se abstiveram de enunciar direitos e de exigir do Estado a priorização de gastos públicos em programas sociais, retratando a criança e o adolescente como mero objeto de intervenção estatal restrita às hipóteses da prática de infração penal e às situações de risco decorrentes de abandono.

Com efeito, olvidando as limitações do ente familiar, muitas vezes incapaz de resolver, por si só, os problemas sociais decorrentes da miséria e da ignorância, os citados diplomas legais persistiram em atribuir-lhe o dever de zelar, com exclusividade, pelo bem-estar das crianças e dos adolescentes. A intervenção estatal restringia-se à repressão das situações irregulares denotadoras de patologia social (efeitos da ausência), decorrentes, em síntese, de omissões familiares geradoras de carência ou da prática pelo adolescente de conduta anti-social.

As denominadas “condutas anti-sociais” eram focalizadas pelo Estado brasileiro como sendo eminentemente questões de natureza policial. Em conseqüência, a internação do jovem infrator figurava como medida corriqueira, excludente e estigmatizante.

Contudo, diversos estudos concluíram que a delinqüência juvenil, a despeito de ser alimentada por diversos outros fatores, se acha umbilicalmente associada à marginalização social.

A título meramente ilustrativo, é de se consignar que, em 1980, um grupo de juristas coordenados por José Alencar Rios[1] estudou as causas da criminalidade e da violência envolvendo o menor infrator, apresentando, em síntese, dentre outros, os seguintes fatores:

“a) Desorganização ou inexistência de um grupo familiar “; “ (…) “;  “ c) renda familiar insuficiente, modesta ou mesmo vil “; “ (d) desemprego, subemprego com rentabilidade deficiente “; “ (e) falta de instrução e de qualificação profissional dos membros familiares ”; “ (f) moradia ou habitação inadequada e condições precaríssimas (…).”

Depreende-se, facilmente, que as crianças e os adolescentes integrantes de grupos socialmente marginalizados são infratores em potencial.

Conforme registra com rara felicidade o Desembargador Antônio F. do Amaral e Silva[2]:

“O prefixo sub caracteriza suas vidas: subnutridos, vivendo de subsalário, na submoradia, no subemprego, pertencem a um submundo, impenetrável às políticas públicas, salvo a da segurança e, assim mesmo, de forma equivocada.”

Dentro do contexto acima traçado, cogitar-se de vida social dissociada de criminalidade e delinqüência soa uma utopia. Contudo, acreditar-se que a realização de políticas públicas redutoras dos níveis de exclusão social de muitas famílias, que é incumbência do Estado, da comunidade e da sociedade em geral, pode guindar a violência a níveis toleráveis, erige-se num sonho passível de concretização.

É exatamente nesta filosofia da reinserção social como prevenção da delinqüência juvenil que se ancora a doutrina da proteção integral, já encampada antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 em dois documentos internacionais de proteção e promoção dos menores: a) a Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, documento este que, não obstante desprovido de força normativa, ostentava repercussão internacional inestimável, afirmando, em dez princípios, direitos básicos de todas as crianças, sem qualquer exceção e b) as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), aprovadas em 29 de novembro de 1985 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que consubstanciam, em caráter preventivo, orientações básicas, de caráter geral, objetivando evitar que os jovens entrem em conflito com a lei e, ao mesmo tempo, em caráter repressivo, um conjunto mínimo de regras uniformes a serem observadas pelas diversas estruturas jurídicas nacionais nos procedimentos administrativos e nos processos relativos à persecução decorrente da prática de ato infracional por parte de jovens, de modo a que a Justiça da Infância e da Juventude contribua, simultaneamente, para a proteção e          bem-estar, bem como para a manutenção da paz e da ordem na sociedade.

O Código de Menores de 1978, fundado na doutrina da situação irregular, achava-se, pois, em descompasso com a doutrina da proteção integral, que veio a ser agasalhada pela Constituição Federal de 1988.

O art. 5.º da Constituição Federal de 1988, em seus setenta e sete incisos, enuncia os direitos e garantias fundamentais de todos. É intuitivo que o termo “todos” também engloba as crianças e adolescentes, na condição de pessoas humanas.

Por outro lado, é cediço que os direitos fundamentais podem estar expressos em outras partes do texto constitucional distintas do rol do art. 5.º (direitos fundamentais dispersos). Em abono desta afirmação, note-se que o § 2.º do art. 5.º alude a direitos e garantias “expressos nesta Constituição”.

Conseqüentemente, a par dos direitos fundamentais genéricos constantes do rol dos diversos incisos do art. 5.º, usufruem as crianças e os adolescentes de direitos fundamentais específicos enunciados em outras disposições normativas da Carta Magna, merecendo especial destaque aquelas consubstanciadas no art. 227, caput e no art. 228, in verbis:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, às liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (…).

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”

Paralelamente aos direitos fundamentais genéricos comuns a todos e aos direitos fundamentais específicos que lhes são peculiares, as crianças e os adolescentes ostentam direitos fundamentais decorrentes de documentos internacionais, por força da regra insculpida no parágrafo 2.º do art. 5.º da nossa Lei Fundamental:

Art. 5.º (…).

§ 2.º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Neste ponto, é de se registrar que a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente veio a ser incorporada pelas Nações Unidas em outros três documentos internacionais subseqüentes à Constituição Federal de 1988: a) Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1989 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990; b) Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad), adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 14 de dezembro de 1990 e c) Regras das Nações Unidas para Proteção de Jovens Privados de Liberdade, aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas também em 14 de dezembro de 1990.

Os direitos fundamentais ostentam aplicabilidade imediata (CF, art. 5.º, § 1.º) e são insuscetíveis de abolição por emenda constitucional, haja vista a limitação material imposta pelo art. 60, § 4.º, IV da Constituição Federal, que os guindou à condição de cláusula pétrea. Consequentemente, encontra-se constitucionalmente vedada a redução do patamar da imputabilidade penal fixado em 18 anos no art. 228 da Constituição Federal

Sabidamente a pobreza e as injustiças sociais, comumente apontadas como principais causas da criminalidade e da violência infantil, são insuscetíveis de erradicação imediata. Em conseqüência, aqueles que são partidários do movimento da Lei e da Ordem e da intolerância zero (Direito Penal Máximo), ao preconizarem, dentre outras medidas legislativas, a redução da idade da imputabilidade penal, encontram na violência urbana e no sentimento generalizado de insegurança e de revolta um catalisador ávido a alimentar soluções simplistas. Contudo, a nosso sentir, qualquer tentativa de redução da imputabilidade penal para um patamar inferior a 18 anos esbarrará num óbice irremovível, consistente na circunstância da disposição normativa contemplada no art. 228 da CF ostentar a natureza jurídica de direito fundamental, insuscetível, portanto, de modificação seja através da legislação infraconstitucional ou mesmo por emenda constitucional. Acresce salientar que o item 4 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing), aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução n.º 40/33, preconiza a não fixação de idade demasiado precoce para a responsabilização penal dos jovens pelos diversos sistemas jurídicos.

O acentuado descompasso entre o Código de Menores de 1978, ancorado na doutrina da situação irregular, de um lado, e os documentos internacionais de proteção e promoção dos menores e a Constituição Federal de 1988, fulcrados na doutrina da proteção integral, de outro, exigia a edição de um novo estatuto amoldado à nova realidade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n.º 8069, de 13 de julho de 1990, encampou expressamente a doutrina da proteção integral, ao estatuir em seu art. 1.º: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

A adoção da doutrina da proteção integral em substituição à doutrina da situação irregular importa, de imediato, em profunda revisão de conceitos e de posturas: a) o ECA passa a abranger indistintamente todas as crianças e adolescentes, independentemente da circunstância destas haverem praticado qualquer ato infracional ou de se encontrarem em situação de risco decorrente de abandono (ECA, art. 1.º); b) as crianças e os adolescentes deixam de ser mero objeto de intervenção estatal, transformando-se em sujeitos de direito, gozando de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (direitos fundamentais genéricos), sem prejuízo da titularidade de direitos fundamentais específicos, enunciados em consideração às suas peculiaridades de ser humano em desenvolvimento (ECA, art. 3.º). Estes direitos são passíveis de serem exigidos judicialmente; c) incumbe solidariamente à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público o dever de zelar pelo bem-estar e pela concretização dos direitos fundamentais das crianças, com absoluta prioridade (ECA, art. 4.º) e d) a garantia de prioridade compreende preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas (ECA, art. 4.º, parágrafo único, c).

Inobstante, mesmo entre os defensores da doutrina da proteção integral, encampada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, formaram-se dois grupos antagônicos[3].

De um lado, posicionam-se os juristas que preconizam ter o ECA encampado o princípio garantista e responsabilizante do direito penal juvenil. Para esta corrente, em síntese: a) conquanto não se possa negar sua precípua finalidade pedagógica e ressocializante, as medidas sócio-educativas ostentam, concomitantemente, cunho punitivo ou retribuitivo. Consequentemente, sua imposição pelo juiz acha-se adstrita à observância do princípio da legalidade estrita; b) no processo de interpretação-aplicação da legislação especial, os operadores jurídicos devem atentar para importante princípio jurídico: não se admite que o adolescente que tenha praticado ato infracional seja submetido a tratamento jurídico mais desfavorável que aquele dispensado pela lei penal ao adulto infrator e c) as crianças e os adolescentes, na qualidade de sujeitos de direito, gozam de todos os direitos fundamentais e garantias processuais-penais conferidas aos adultos que são réus em processos criminais.

Este é o posicionamento adotado, entre outros, por Emílio Garcia Mendez, Consultor da Unicef para a América Latina e o Caribe; Antônio Fernando do Amaral e Silva, Desembargador do Estado de Santa Catarina, e João Batista da Costa Saraiva, Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul. São denominados pelo grupo antagônico de “sofistas”.

Por outro lado, outro grupo de juristas repudia, com veemência, a assertiva no sentido de haver o ECA incorporado o Direito Penal Juvenil. Sustenta esta corrente doutrinária, em síntese: a) as medidas sócio-educativas ostentam natureza exclusivamente pedagógica e ressocializante, sendo desprovidas de qualquer caráter retributivo ou punitivo, razão pela qual não se confundem com a pena criminal; b) nas palavras de Gercino Gerson[4] “as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa são garantias constitucionais próprias da cidadania, que nada têm de exclusiva em relação ao direito penal”; c) enquanto o direito penal ancora-se no crime e na pena, o direito da criança se centra no indivíduo.

Comungam deste entendimento, dentre outros, Gercino Gérson Gomes Neto, Promotor de Justiça de Santa Catarina, Gustavo Mereles Ruiz Diaz e Edson Seda. São denominados pela corrente contrária de “eufemistas”.

Neste ponto, impõe-se, a nosso sentir, duas observações:

a)A  circunstância de se reconhecer que as medidas sócio-educativas ostentam, concomitantemente, cunho punitivo ou retribuitivo, não impede que se preconize atenção especial do juiz para as circunstâncias pessoais do adolescente infrator, optando por medida(s) sócio-educativa(s) e/ou protetiva(s) que o adolescente tenha capacidade de cumprir e que contribua(m) para o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (ECA, art. 100). Um estudo multiprofissional do caso afigura-se crucial para que o juiz possa escolher a medida adequada. Justifica-se a assertiva, na medida em que não se olvida a precípua finalidade pedagógica e ressocializante das medidas sócio-educativas.

b)A assunção da doutrina do direito penal juvenil não se incompatibiliza com a vedação constitucional de redução do patamar da imputabilidade penal fixado em 18 anos no art. 228 da Constituição Federal (direito fundamental específico, insuscetível de ser alterado até por emenda constitucional, vez que guindado à condição de cláusula pétrea). Tampouco se antagoniza à priorização de políticas públicas tendentes a reduzir a marginalização social, prevenindo a delinquência juvenil.

Ao revés, ao negarem qualquer caráter retributivo ou punitivo às medidas sócio-educativas, os “eufemistas” deram ensejo ao surgimento de respeitável corrente doutrinária e jurisprudencial que propugna pelo abrandamento da “legalidade estrita”, do “rigor probatório” e do “sistema de nulidades”, acarretando a inobservância e o desrespeito de diversos direitos fundamentais de feição processual-penal dos adolescentes no curso da ação sócio-educativa. Em síntese, ainda que involuntariamente, os “eufemistas” municiaram todos aqueles que ainda não romperam com os princípios e posturas vigentes sob o império do Código de Menores de 1979, o qual, refletindo uma concepção de infância e adolescência desprovida da idéia de cidadania, visualizava o adolescente como mero objeto da intervenção estatal, passível de ser excluído a qualquer tempo do convívio social em nome da salvaguarda da ordem pública.

Certo é que, conforme conclui com rara perspicácia Esther Arantes[5]:

  “  Transcorridos 13 anos de sua aprovação, no entanto, o Estatuto não logrou melhorar a vida de crianças e adolescentes brasileiros, em parte devido à resistência de operadores do próprio Direito, que insistem em interpretar o Estatuto da Criança e do Adolescente na ótica do Código de Menores mas, sobretudo, devido ao agravamento da situação econômica, o que vem trazendo como conseqüência altos índices de desemprego e desagregação do tecido social.”

A observação continua mais atual do que nunca.

Bom seria que “sofistas” e “eufemistas” superassem os ressentimentos e as diferenças afloradas nos embates acalorados travados em torno do Projeto de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas e se unissem em torno de um ideal comum: a busca de efetividade para a doutrina da proteção integral no Brasil.

Noutro giro, reitere-se que a adoção da doutrina da proteção integral pela Constituição Federal de 1988 e pelo ECA, fez com que as crianças e os adolescentes deixassem de ser mero objeto de intervenção estatal, transformando-se em sujeitos de direito, gozando de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana constantes do rol dos diversos incisos do art. 5.º (direitos fundamentais genéricos), sem prejuízo da titularidade de direitos fundamentais específicos enunciados em outras disposições normativas da Carta Magna (p. ex., art. 227, caput e art. 228) e em documentos internacionais (CF, parágrafo 2.º do art. 5.º).

Esta é a exegese que se extraí do art. 3.º do ECA, ao dispor: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei (…)“ – grifos nossos!

Logo, urge reconhecer que as crianças e os adolescentes usufruem de todas as garantias processuais-penais e direitos fundamentais conferidos aos adultos que são réus em processos criminais.

A respeito, Márcio Mothé[6] argutamente observou:

“o infrator deve ser encarado como réu e, como tal, também deve ser detentor de uma série de direitos e garantias (…). Inaugurou-se, queremos crer, uma verdadeira doutrina dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.”

Afinado com esta linha exegética, preceitua o art. 110 do ECA: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal“.

Trata-se de reprodução da fórmula do direito anglo-saxão adotada pela Constituição Federal de 1988, ao assegurar, em seu art. 5.º, LIV, que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Com efeito, esta garantia genérica desdobra-se em inúmeras outras garantias específicas, tais como: a) garantia do juiz natural (CF, art. 5.º, XXXVII e LIII); b) contraditório e ampla defesa (CF, art. 5.º, LV); c) inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos ou ilegítimos (art. 5.º, LVI); d) impossibilidade de haver juízo ou tribunal de exceção (art. 5.º, XXXVII); e) publicidade[7]dos atos processuais e dever de motivar as decisões judiciais (CF, art. 5.º, LX e 93, IX); f) igualdade processual, decorrente do princípio da isonomia (CF, art. 5.º, I); g) defesa judiciária gratuita para os necessitados (art. 5.º, LXXIV)”, etc.

Paralelamente, podemos mencionar diversas outras garantias específicas do processo penal, tais como a) presunção da não culpabilidade (CF, art. 5.º, LVII); b) a vedação da identificação criminal dactiloscópica das pessoas já identificadas civilmente, ressalvadas as hipóteses previstas em lei (CF, art. 5.º, LVIII); c) a indenização por erro judiciário e pela prisão que supere os limites da condenação (CF, art. 5.º, LXXV); d) a regra que impõe a comunicação imediata da prisão ao juiz (CF, art. 5.º, LXII); e) o direito à identificação dos responsáveis pela prisão ou pelo interrogatório (CF, art. 5.º, LXIV); f) a regra que veda a incomunicabilidade do preso e lhe assegura o direito a permanecer calado, comunicar-se com a família e ser assistido por um defensor (CF, art. 5.º, LXIII); g) a regra que autoriza a liberdade provisória, com ou sem fiança, nos casos previstos em lei (CF, art. 5.º, LXVI), etc.

A amplitude da significância do princípio do devido processo legal, nos autoriza a recorrer a ele para resguardar determinada garantia que não tenha sido expressamente contemplada em lei.

Em síntese, o princípio do devido processo legal objetiva assegurar um processo penal justo, capaz de assegurar o contraditório, a ampla defesa, a igualdade das partes e a imparcialidade do órgão julgador, tudo como condicionantes de um processo de apuração da prática de ato infracional legítimo.

Conclui-se que a imposição de medida sócio-educativa ao adolescente autor de ato infracional pressupõe a observância prévia do procedimento sócio-educativo previsto no arts. 171 / 190 do ECA. Frise-se, ainda, que no art. 111 do ECA são elencadas diversas garantias processuais asseguradas aos adolescentes.

Todavia, há, ainda hoje, muitos julgados que apregoando serem as medidas sócio-educativas desprovidas de qualquer caráter retributivo ou punitivo, razão pela qual não se confundiriam com a pena criminal, entendimento este, com consequências nefastas para o garantismo que se preconiza em nosso ordenamento jurídico, na medida em que serve de argumento à inobservância e ao desrespeito de diversos direitos fundamentais de feição processual-penal do adolescente no curso da ação sócio-educativa.

Pesquisando julgados oriundos de Tribunais de Justiça de diversos Estados da Federação, deparamo-nos com acórdãos confirmando sentenças que impuseram medidas sócio-educativas a adolescentes, sem que, a nosso sentir, nos respectivos processos houvessem sido devidamente observados seus direitos fundamentais e as garantias processuais-penais aplicáveis na espécie.

Em alguns processos, em razão da confissão do adolescente, o juiz a quo dispensou a oitiva de testemunhas. Processos houve, alusivos a ato infracional correspondente ao crime de tráfico de entorpecentes, em que sequer se procedeu à juntada aos autos do laudo de exame toxicológico definitivo. Constatamos, ainda, a aplicação de medida sócio-educativa de internação, sem que a hipótese, por exemplo, ato infracional correspondente ao crime de tráfico de entorpecentes, se amoldasse a qualquer uma dos três permissivos legais consubstanciados no art. 122 do ECA.

Se acaso os autores desses ilícitos fossem maiores de 18 anos, a reprodução de algumas das situações acima mencionadas conduziria, indubitavelmente, à decretação da nulidade das sentenças condenatórias prolatadas nos respectivos processos criminais, com a consequente determinação da renovação dos atos processuais viciados e daqueles que a eles se seguiram.

Numa cognição sumária, parece-nos que esses julgados ainda não romperam com os princípios e posturas vigentes sob o império do Código de Menores de 1979, o qual, refletindo uma concepção de infância e adolescência desprovida da idéia de cidadania, visualizava o adolescente como mero objeto da intervenção estatal, passível de ser excluído a qualquer tempo do convívio social, em nome da salvaguarda da ordem pública, sem que o Estado fosse sequer compelido a assegurar-lhe defesa técnica, tida como meramente facultativa.

Assim, evidencia-se a necessidade de uma mudança paradigmática no processamento e julgamento das ações relativas aos atos infracionais, tendo em vista a adoção da Doutrina da Proteção Integral, que se baseia num modelo totalmente diferente da doutrina anterior.

Embora já adotada em nosso ordenamento em inúmeros documentos internacionais ratificados pelo Brasil antes mesmo da Constituição Federal de 1988, e consagrada por esta, a referida doutrina ainda carece de uma aplicação substancial e efetiva, constituindo, por muitas vezes, letra de lei morta.

Nesse sentido, é imperioso reconhecer que a situação de miséria em que se encontra nossa juventude, ou seja, o futuro de nosso país, acaba muitas vezes por ceifar um futuro que poderia ser brilhante e transformá-lo numa vida de crime e sofrimento, que abala toda a sociedade.

III – Considerações finais

Diante do exposto, evidencia-se que a simples adoção da Doutrina da Proteção Integral, ainda que consagrada por nossa Constituição Federal de 1988, não foi suficiente para melhoria das condições de nossos jovens, já que nos deparamos diariamente com uma realidade assustadora, com crianças trabalhando em sinais, isso, quando não estão sendo sexualmente exploradas, e vivendo embaixo de marquises e pontes, sem que tenham seus direitos básicos assegurados.  Essas condições de vida degradantes acabam, muitas vezes, por impulsionar para a marginalidade um enorme contingente de jovens pobres.

Todavia, restou demonstrado que a busca pelo resgate de nossa juventude e pelo fim da violência, da qual essas crianças e adolescentes são vítimas e autoras, passa, necessariamente, pela concretização dos Direitos Fundamentais previstos na Constituição, permitindo que essa parcela marginalizada da sociedade possa gozar de um mínimo existencial e da tão desejada proteção integral.

Registre-se que na fase pós-positivista do processo evolutivo dos direitos fundamentais, cujo desenvolvimento se processou a partir de meados do século XX, os princípios jurídicos foram transportados dos códigos do direito privado, onde se limitavam a desempenhar a atividade integratória do direito, para as constituições. Esta constitucionalização dos princípios jurídicos operou uma verdadeira revolução principalista. É que os princípios constitucionais, agora situados no ápice da pirâmide normativa, na medida em que sintetizam os valores éticos e sociais fundantes do ordenamento jurídico decorrentes de opções políticas fundamentais, erigem-se em premissas (proposições diretoras ou viga mestra do sistema) que servem de supedâneo ao desenvolvimento das demais normas jurídicas (função axiológica), operando eficácia derrogatória, na eventualidade destas revelarem incompatibilidade vertical, tudo sem prejuízo de prosseguirem desempenhando o seu papel anterior (função integradora do ordenamento jurídico).

É nesse sentido, a nosso sentir, que a correta compreensão do significado e alcance da doutrina da proteção integral está intimamente associada ao estudo dos princípios da dignidade da pessoa humana; do devido processo legal; do contraditório e da ampla defesa e da legalidade. Assim sendo, imperioso reconhecer a doutrina da proteção integral como norte na interpretação das normas menorísticas.

Por fim, merece ser trazido à baila o art. 227 de nossa Carta Magna, que preceitua com clareza:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Conclui-se, portanto, que o enfrentamento da delinquência juvenil reclama necessariamente a assunção por todos de deveres impostergáveis, tendentes a assegurar proteção integral e a resguardar os direitos básicos de todas as crianças e adolescentes, indistintamente, através da promoção de ações realizadoras passíveis de reduzir as situações degradantes que impulsionam para a marginalidade um enorme contingente de crianças e adolescentes pobres.

Referências:
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Notas:
[1] RIOS, José Arthur. Criminalidade e Violência. Relatórios dos Grupos de Trabalho de Juristas e Cientistas Sociais. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 1, 1980, p. 33.
[2] SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. A Criança e o Adolescente em Conflito com a Lei. Florianópolis: Jurisprudência Catarinense, n.º LXX, 1993, p. 42.
[3] ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Estatuto da Criança e do Adolescente: treze anos depois. LEITE, Alexandre Corrêa; PRADO, Geraldo e CASARA, Rubens Roberto Rebello (coordenadores). Revista do MMFD, n.º 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 152-154.
[4] GOMES NETO, Gersino Gérson. Proposta da lei de Diretrizes Sócio-Educativas: redução da idade penal para doze anos. Disponível em http://www.direitosfundamentais.com.br/html/artigos_colaborador.asp. Acesso em: 24 março. 2009.
[5] ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Obra citada, p. 150.
[6] FERNANDES, Márcio Mothé. Ação Sócio Educativa Pública – inovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998, pp. 3-5
[7] Por força das regras restritivas insculpidas nos arts. 143 e 144 do ECA, que encontram respaldo nos arts. 5.º, LX e 93, IX da CF, em matéria de procedimento de apuração de ato infracional, tanto na fase preliminar como na fase judicial, não vigora o princípio da publicidade popular, que se manifesta através da presença do público nas salas de audiência e de sessões, e sim o princípio da publicidade restrita , já que a publicidade dos atos processuais restringe-se às partes, seus defensores e a um número restrito de pessoas.

Informações Sobre o Autor

Anderson de Paiva Gabriel

Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, já tendo sido Delegado de Polícia no Estado de Santa Catarina, sendo bacharel em Direito pela UFRJ e especializado em Direito Constitucional pela UNESA, Direito Público e Privado pelo ISMP e em Gestão da Segurança Pública pela UNISUL


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Equipe Âmbito Jurídico

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