Resumo: A ineficácia do Poder do Estado e das políticas públicas frente aos paradigmas discriminatórios que permanecem na sociedade contemporânea, suscita o reconhecimento de que a concretização dos direitos positivados não é imediata, mas gradual e em consonância com o contexto social, econômico, político e cultural do espaço no qual ela acontece. Com fundamento em revisão bibliográfica, o objetivo desta pesquisa acadêmica consiste em observar a influência dos fatores culturais na limitação de direitos, considerando-se, primordialmente, os caracteres de inferioridade e dependência historicamente vinculados ao papel feminino. A educação para a paz se apresenta como uma alternativa para a diminuição da discriminação em razão do gênero, que prejudica o acesso das mulheres aos direitos com mais frequência do que aos homens, oportunizando-se a disseminação de uma cultura consubstanciada nos direitos humanos e na revitalização da solidariedade.
Sumário: Notas Introdutórias; 1.Novas Liberdades: a igualdade; 2.Velhos Poderes: a questão cultural; 3.Uma alternativa: a educação para a paz; 4. Considerações finais.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Apesar da consagração de direitos que priorizam a igualdade no acesso aos direitos, com a eliminação de todas as formas de discriminação, inclusive pertinentes ao gênero, a realidade demonstra que às mulheres ainda é atribuída uma posição de inferioridade no âmbito familiar, social e de trabalho. A recorrência de atos de violência contra a mulher é qualificada como um grave problema de saúde pública da humanidade e confirma a existência de resquícios culturais que sustentam a dominação masculina em face da submissão feminina e consolida, por consequência, a desigualdade de gênero.
A intensa mobilidade das ideias, das mercadorias, das informações e das pessoas, que caracteriza a vida social contemporânea, diminui as fronteiras entre os territórios, favorece a afirmação do espaço global e interfere nos padrões de comportamento que predominaram ao longo da história.
E é neste panorama, mesclado por transformações paradigmáticas e repleto de inovações científicas e tecnológicas, que se apresenta um desafio importante para a humanidade: alcançar um ambiente de vivência que permita a diversidade pacífica, onde não se estabeleça violência em razão das diferenças de estilos de vida, de valores e de comportamentos, e que ostente estruturas institucionais que oportunizem, conforme Boulding[1], o cuidado mútuo e o bem-estar.
Considerada a prevalência de velhos costumes diante dos novos direitos que prescrevem a igualdade e a dignidade da pessoa humana, que instrumentos poderiam interferir na propagação de valores morais em benefício da convivência pacífica e da solidariedade, com o afastamento dos conceitos estereotipados em relação ao gênero feminino e masculino, que, por sua vez, prejudicam a mulher no que diz respeito à concretização dos direitos individuais?
De forma genérica, esta pesquisa acadêmica se destina à observação dos entraves culturais e conceituais que envolvem o direito à igualdade, sob a perspectiva das questões de gênero, assim como, pretende a qualificação da educação para a paz como uma alternativa para a concretização dos direitos individuais. O escopo particular deste trabalho, no entanto, consiste no aprimoramento científico dos pesquisadores e na sensibilização do leitor para a situação de desigualdade experimentada pela mulher em relação aos direitos individuais no âmbito da sociedade contemporânea, motivo pelo qual, serão abordados, sequencialmente, a igualdade, caracterizada como uma “nova liberdade” diante da prevalência dos padrões culturais, ou então, “velhos poderes”, para, ao final, ser identificada a educação para a paz como um alternativa para a superação dos conceitos estereotipados em relação aos papéis masculinos e femininos que prejudicam a efetivação da igualdade.
1. NOVAS LIBERDADES: A IGUALDADE.
A submissão dos indivíduos às normas e aos valores que priorizavam as necessidades da comunidade, passou, na concepção de Touraine[2], a ser relativizada diante da consagração dos direitos humanos. A contraposição entre os interesses coletivos e os individuais fez com o sujeito se fortalecesse e as instituições coletivas perdessem respaldo, ou, ao menos, a amplitude de soberania que possuíam no passado.
“O sujeito, tal como o concebemos e defendemos hoje, não é uma figura secularizada da alma, a presença de uma realidade sobre-humana, divina ou comunitária em cada indivíduo. A história do sujeito é, ao contrário, a da reivindicação de direitos cada vez mais concretos, que protegem particularidades culturais cada vez menos produzidas pela ação coletiva voluntária e por instituições criadoras de pertença e de dever.”[3]
Elias[4], ao observar a distinção hipotética entre “o ser humano singular” e a “pluralidade de pessoas”, alude que uma das grandes controvérsias suscitadas consiste em definir se a sociedade, em suas diversas manifestações, é apenas um meio para alcançar o fim, que seria o bem-estar do indivíduo singular, ou, se o bem-estar individualizado é menos importante do que a manutenção da unidade social. Para concluir o pensamento, o autor sugere a compreensão de que cada indivíduo representa uma parte da sociedade, e, sob este aspecto, o seu bem-estar pessoal é de suma importância para a saúde do contexto, conforme o tempo e o espaço nos quais as sociedades se desenvolvem de forma espontânea.
Ao analisar a fluência das relações humanas a partir do espaço geográfico, Santos[5] identifica a interação entre três esferas distintas: o nível mundial, os territórios dos Estados e o plano local. Para o autor, verifica-se a coexistência de uma norma global “desterritorializada” e de um território local normativo, perante o qual os indivíduos exercem as suas prerrogativas de liberdade, igualdade e fraternidade conforme os preceitos constitucionais.
No entanto, a positivação dos direitos, isoladamente, não é suficiente para alcançar a justiça social teoricamente proposta, pois, pode-se constatar, na vivência cotidiana, a predominância de “velhos poderes” diante das “novas liberdades”.[6] A ausência de força política e a escassez de recursos por parte dos entes governamentais, são, por exemplo, elementos que, conjuntamente com a intrincada questão cultural, dificultam a solução de determinados problemas sociais, como o fato de que às mulheres, com mais frequência do que aos homens, é obstruído o acesso aos direitos.
“O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter. No primeiro caso, investigo o ordenamento jurídico positivo, do qual faço parte como titular de direitos e de deveres, se há uma norma válida que o reconheça e qual é essa norma; no segundo caso, tentarei buscar boas razões para defender a legitimidade do direito em questão e para convencer o maior número possível de pessoas (sobretudo as que detêm o poder direto ou indireto de produzir normas válidas naquele ordenamento) a reconhecê-lo.”[7]
No final do século XVIII, através da limitação da autonomia governativa e das declarações de direitos que adicionaram caráter formal aos direitos individuais, o poder absolutista foi contrariado e consolidou-se o Estado liberal como resultado dos movimentos políticos e sociais que culminaram com a Revolução Francesa.
A partir formalização das declarações de direitos fundamentais, o direito à igualdade adquiriu caráter universal atribuível a todos os indivíduos componentes da respectiva jurisdição. Há que se considerar, no entanto, que a igualdade pressupõe, contraditoriamente, a identificação das diferenças reais, que são resultado da formação de cada indivíduo conforme a conjuntura social, política, econômica e cultural que o envolve, como exemplifica Touraine,
“(…) é lógico procurar por trás de uma diferença sensível, facilmente constatável, não apenas outras diferenças, mas sobretudo configurações diferentes.
Admitiremos sem dificuldade o fato da dominação tradicional dos homens sobre as mulheres. Ora, esta dominação não se explica pelas respectivas características dos homens e das mulheres, mas por um pattern (padrão) cultural que atribui um papel central aos homens conquistadores e aos caçadores. Não é a produção que triunfa sobre a reprodução; não é nem mesmo o controle do intercâmbio entre as mulheres por parte dos homens. O que está em questão aqui, a meu ver, é uma visão da sociedade dominada, sob formas diversas, por uma elite que é dona dos recursos e está encarregada de transformar essa mesma sociedade e seu ambiente, elite à qual as outras categorias, como as mulheres, estão subordinadas.”[8]
Leal[9], ao abordar os limites da jurisdição constitucional, assevera que a Constituição representa, ao mesmo tempo, “a ordenação da vida em sociedade” e “o ato constitutivo dessa ordenação”. A Constituição não se restringe a um “ato aleatório”, mas representa uma “construção dos indivíduos” que possuem a capacidade de estabelecer os fundamentos da ordem social. Para a autora, os princípios que norteiam a Constituição são a representação dos valores supremos eleitos pelos indivíduos por ocasião do pacto formado entre a instituição e o povo, seriam os fins que devem ser perseguidos pelo Estado e serviriam como um “impositivo para o presente e projeto para o futuro, que se renova cotidianamente, constituindo-se numa eterna construção da humanidade”. [10]
No Brasil, o texto constitucional consagra como objetivo fundamental da República Federativa[11] a promoção do bem de todos sem preconceitos de sexo ou de outras formas de discriminação e define a igualdade como um direito fundamental ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Ocorre que, historicamente, as mulheres ocupavam uma posição de submissão não só na família, no trabalho e na sociedade, mas também juridicamente – a elas não era atribuída a condição de cidadão de direitos e deveres e a própria legislação fazia restrições literais ao exercício de certos direitos pelas mulheres.
Apesar da consagração de direitos e da adoção de políticas públicas que priorizam a igualdade no acesso aos direitos para homens e mulheres, com a eliminação de todas as formas de discriminação em virtude do gênero, as estatísticas[12] demonstram que às mulheres, com mais freqüência do que aos homens, são obstruídos direitos. A violência doméstica e a ocupação minoritária de cargos políticos e de direção, por mulheres, bem como, a prevalência de um discurso que enaltece as diferenças, exemplificam a permanência de relações de poder que exaltam a autoridade masculina e a submissão feminina, consolidando, num sistema estável de desigualdade, a ideologia de gênero.
Na concepção de Strey[13], a violência doméstica não respeita fronteiras de ordem geográfica, étnica ou econômica. Ela alcança as mulheres em todos os âmbitos, ainda na atualidade e com muita freqüência dentro dos lares, no mercado de trabalho e na vida social, como conseqüência da prevalência de uma cultura que enaltece as diferenças e favorece a hierarquia, a apropriação e a dominação em detrimento das mulheres.
“Concebo na espécie humana dois tipos de desigualdade: uma a que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença de idades, de saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral, ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e é estabelecida, ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios, de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o de serem ricos, mais homenageados, mais poderosos ou mesmo o de se fazerem obedecer.”[14]
Ao definir que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, a Declaração Universal dos Direitos do Homem[15] indica um padrão ético a ser adotado pelas instituições, pelos governos e pelas pessoas nas condutas e interrelações. E é a partir desse marco referencial que se pretende superar os fracassos da humanidade, como, por exemplo, a situação indigna vivenciada por muitas mulheres ao longo dos tempos e, também, atualmente.
Quando o papel culturalmente elaborado transmite, espontaneamente, preconceitos e costumes baseados nas premissas de inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros, que legitimam ou exacerbam a violência, este comportamento contradiz os preceitos que constituem o Estado Democrático de Direito e macula os direitos humanos. Para compensação dessa disparidade, são traçadas estratégias de inclusão pautadas no empoderamento econômico, social e político dos grupos nos quais se perpetuou a concentração da desigualdade de oportunidades, como no caso das mulheres.
Em virtude da identificação de determinadas vulnerabilidades e particularidades, as mulheres passaram a ser sujeito de direitos específicos, com a concepção de medidas legislativas e administrativas de caráter protetivo. Richter e Terra[16] apresentam argumentos que atestam a legitimidade da discriminação positiva em contraponto ao risco de se positivar a desigualdade. As autoras defendem “o tratamento legislativo e jurídico igualitário aos iguais, e por questão de justiça, da mesma forma tratar os desiguais desigualmente”. As ações afirmativas de caráter compensatório representariam, na concepção das autoras, a justiça distributiva, que “baseia-se na equidade na redistribuição de encargos e benefícios sociais”.
“Ao passo que se torna necessária à explicitação mais esmiuçada do contorno da dignidade feminina, impõe-se acentuar, que não se faz por que, alega-se que a mulher tem dignidade diferente enquanto ser humano, mas porque, esses sujeitos chamam a atenção das discussões que constam na agenda internacional, eis que desde pequenas elas são desvalorizadas por diversas culturas e pelos mais variados motivos, continuando até a vida adulta, não tendo conseguido ainda, em diversos países, fazerem valer, os princípios da liberdade e da autonomia.”[17]
Cada povo, conforme o costume prevalente ao longo da sua história, constrói relações de desigualdade entre si, de acordo com os valores e com a posição que cada indivíduo ocupa no contexto. Touraine[18] afirma que as mulheres, nos últimos anos e de maneira geral, conquistaram um papel mais central, em comparação ao padrão que lhes era atribuído anteriormente.
Mas os conceitos estereotipados dos papéis masculinos e femininos que favorecem a violência contra a mulher, e também outros tipos de violência, ainda estão impregnados no modo de viver das pessoas. Os instrumentos jurídicos, de âmbito nacional e internacional, todavia, não correspondem a estes aspectos culturais traduzidos no comportamento discriminatório que, por sua vez, perpetuam a desigualdade do gênero e dificultam a eficácia das políticas públicas direcionadas à redução das desigualdades e da exclusão social. A superação dos preconceitos e dos estereótipos que propagam a desigualdade de gênero carece, portanto, da assimilação, pelos indivíduos nas relações interpessoais, de um novo padrão cultural, pautado pelos princípios democráticos e pelos direitos humanos.
2. VELHOS PODERES: A QUESTÃO CULTURAL.
As relações de poder, legitimadas pela autoridade, e a posição de sujeição e de submissão da mulher podem, em determinadas sociedades, ser compreendidas como algo aceitável e correspondente às regras de convívio. Mas, para Guareschi[19], o fato de as criações simbólicas de determinado grupo terem se solidificado, institucionalizado e, até certo ponto, se cristalizado no comportamento humano, não impede que os papéis, as relações e as instituições sejam questionados e repensados em virtude de suas implicações e reflexos na condução da vida.
Antes de discorrer sobre a consciência social, o autor por último mencionado aborda a temática da ética e da moral. Para ele[20], a moral são “os usos e costumes que foram se instituindo em determinadas sociedades e grupos através dos tempos”, na medida em que a ética, por sua vez, é a “reflexão crítica sobre esta moral”. Desta forma, a ética pode “mostrar que determinados usos e costumes que se instituíram e que são tidos como corretos e justos, na verdade são ruins e prejudicam as pessoas”.
A (in)acessibilidade aos direitos, com mais freqüência às mulheres do que aos homens, sinaliza que a formação do papel sexual, tanto masculino quanto feminino, está repleta de caracteres que consolidam a desigualdade. Todavia, firmados os direitos que preconizam a igualdade, e, considerada a prevalência do tratamento discriminatório e a existência de atos índices de violência contra a mulher, apresenta-se a necessidade de, com base no padrão ético exposto pelos direitos humanos, consolidar novos costumes nas relações entre pessoas e instituições.
“A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da praxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica. (…)
É que a realidade opressora, ao construir-se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências. Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela.[21]
E é através da capacidade de transformação que se pretende alcançar a inversão da lógica da violência, com a assimilação, nas relações humanas e institucionais, de práticas não violentas de tratamento e de resolução de conflitos, com o reconhecimento de todos os indivíduos como legítimos na convivência, independentemente das particularidades étnicas, sociais, econômicas, culturais e de gênero. A cultura da paz, para Boulding[22] é nutrida pela perspectiva de “como as coisas poderiam ser em um mundo onde cuidar e dividir faz parte do hábito das pessoas”. A capacidade de imaginar algo diferente e melhor do que é a realidade significa uma crítica a respeito da possibilidade de mudar a realidade social.
Para Guimarães[23], após a Primeira Guerra Mundial intensificaram-se os movimentos destinados a debater a importância de desenvolver, entre as jovens gerações, o respeito à pessoa humana e os sentimentos de solidariedade e fraternidade. Pedagogos e educadores se dedicaram a tarefa de organizar métodos destinados ao cultivo de uma prática social não-violenta, que garantisse a convivência pacífica. Para os pensadores dos novos movimentos, os referenciais da educação tradicional esculpiam no coração das crianças os referencias da competição, da apropriação, da hierarquia e do controle sendo que, desta forma, favoreciam a violência e a guerra.
“Vivemos hoje em um momento da história da humanidade no qual, de uma maneira ou de outra, muitas nações declararam a democracia como sua forma preferida de governo, a atual prática da democracia como uma coexistência neomatrística responsável, no respeito mútuo e no respeito à natureza que implica a sua realização, permanece em muitas das nações como um mero desejo literário, ou só é realizada de modo parcial. Isso se deve à sua negação direta ou indireta, por meio de uma longa história política de conversações recorrentes de apropriação, hierarquia, dominação, guerra e controle”.[24]
A cultura da paz corresponde a um movimento que teve início com a instituição da Pesquisa da Paz, em 1948, e se propagou com a divulgação do periódico The Peace Journal, em 1964, com o intuito de superar o conceito tradicional atribuído à paz e relacionado, de forma equivocada na concepção dos redatores do jornal, como um estado de inação humana. A paz, ao contrário, suscitaria grandes esforços, ações e movimentos por parte da humanidade, talvez maiores do que a forma violenta de resolução de conflitos, que representa a sua antítese. [25] A Unesco desenvolve projetos e dissemina movimentos com a finalidade de aumentar a compreensão dos indivíduos a respeito do seu potencial de interferência na construção de uma sociedade pacífica, com a “convicção de que as mentes humanas constituem o lugar privilegiado de erguer as defesas da paz”.
Ao abordar o tema da violência, Arendt[26] enfatiza que a estabilidade da prática violenta se atribui à ausência de ferramentas eficazes de resolução de conflitos. A autora refere que as concepções históricas e culturais são transmitidas, de geração para geração, como exemplos a serem seguidos inquestionavelmente. Considerando que a violência é identificada com recorrência nos fatos históricos narrados e estudados pelas novas gerações, ela é assimilada, como algo inerente à vida em sociedade. Para a autora, “a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas s mudanças mais provável é para um mundo mais violento”. [27] A educação para a paz, todavia, pretende inverter essa lógica e construir a cultura da prática social não-violenta, com a disseminação de uma nova percepção sobre as ações humanas.
Touraine[28], ao observar as transformações da modernidade, defende que a extrema polarização, que predominou nas últimas décadas, suscita a ocorrência de conflitos e a disputa de interesses. Para a superação desse modelo, o autor aposta em uma reaproximação entre os pólos, com o intuito de ultrapassar, no que se refere à desigualdade de gênero, o paradigma da dominação/submissão.
“As mulheres de hoje pensam cada vez menos em termos históricos, sobretudo após a vitória do feminismo. A superação da antiga polarização as leva, não a rejeitar, mas a reinterpretar o seu confinamento no âmbito privado. Sem dúvida, elas trabalham, e, salvo casos particulares, como o recurso à licença-maternidade, conservam e querem conservar a superioridade que lhes é conferida pelo poder de dar a luz. Continuam dizendo: “Filhos se eu quiser, e quando eu quiser”. Os filhos são para elas uma fonte de poder, e é muito raro que o pai tenha uma relação tão forte com eles. De uma forma mais geral ainda, as mulheres, rejeitando embora as antigas definições de seu gênero, atribuem a seu corpo e a sua sexualidade uma importância maior do que os homens.
No entanto, a oposição entre o antigo modelo e o novo, o da polarização e o da recomposição, não pode explicar inteiramente as orientações das mulheres, já que estas pensam mais em termos de superação que de inversão ou de compensação das desigualdades.” [29]
Verificada a contradição entre os preceitos consagrados juridicamente e os elementos culturais que dificultam o acesso das mulheres aos direitos, é eminente a tarefa, individual e coletiva, de se apreender uma prática cotidiana que seja coerente com as disposições contidas nos instrumentos normativos – que, logicamente, representam a vontade dos indivíduos. A educação para a paz se apresenta como uma alternativa para a construção de uma homogeneidade fundada no princípio da igualdade e que seja capaz de eliminar os traços culturais que transmitem, de geração para geração, os resquícios de um modelo de sociedade patriarcal e seu discurso discriminatório.
3. UMA ALTERNATIVA: A EDUCAÇÃO PARA A PAZ.
A observação das idéias pedagógicas permite a compreensão de que, passado o monopólio da influência religiosa na educação, que predominou até o século XVII, e com a ascensão dos pensadores iluministas do século XVIII, que centralizou a infância no tópico da educação, as questões políticas e sociais passaram a ter relevância no contexto da transmissão de conhecimentos e da formação do indivíduo. Para Rousseau[30], “o homem natural é desprovido de todas as características do homem social. E nada nesse estado de natureza indica que dele se deva sair: é um estado de felicidade e de equilíbrio que se basta a si mesmo, imutável e sem história”.
Com o fenômeno da universalização da educação, a partir do século XIX, os Estados passaram a oferecer o ensino através da instituição das escolas públicas. No início do século XX, influenciado pela tendência cientificista, Durkheim[31] inverteu sustentou que as qualidades morais para vida em sociedade seriam suscitadas por uma ação externa, transmitida, e não pela hereditariedade, momento em que se aborda o caráter socializador da educação. Para o autor, a sociedade não pode, ainda que caiba à família a direção da educação da criança, se desinteressar pela tarefa de educar e de solidificar uma comunhão de idéias e sentimentos, sem os quais qualquer sociedade é impossível.
“A educação, bem longe de ter o indivíduo e os seus interesses como único e principal objetivo é, antes de mais, o meio pelo qual a sociedade renova continuamente as condições de sua própria existência. A sociedade só pode viver se entre seus membros existir suficiente homogeneidade. A educação perpetua e reforça tal homogeneidade começando por fixar no espírito da criança as semelhanças essenciais que a vida coletiva requer.”[32]
Conforme os fundamentos do constitucionalismo contemporâneo, a finalidade da educação institucionalizada passou a ser delimitada pelos instrumentos normativos definidos nas respectivas jurisdições. Contaminada pelo princípio da igualdade, a educação deixou de ser um privilégio das classes mais abastadas e se tornou um direito universal, o que provocou, a partir do século XX, além do aumento da demanda, a necessidade de disponibilização, pelos entes governamentais, de uma estrutura física e pedagógica capaz de receber e de atender aos anseios dos estudantes e as diversidades que passaram a se misturar em sala de aula.
Para Freire[33] o indivíduo livre, como ser inacabado e disposto a ser educado, não se domestica, submete ou resigna a conceitos que predominaram na vida em sociedade num processo de imitação destituída de análise e autocrítica, a ele compete a tarefa de criar e de transformar o seu espaço conforme os interesses eleitos por ele mesmo.
A insatisfação das pessoas com os resultados das grandes guerras mundiais, bem como, o crescente inconformismo com a desigualdade e com a exclusão social, suscitou a fortificação de movimentos pedagógicos destinados à superação de um padrão de educação desconectado com a realidade e destituído de sensibilidade. Questionava-se a capacidade violenta e destrutiva dos indivíduos que, mesmo recebendo formação cientifica e erudita nas escolas, corroboravam a prática da violência e da guerra.
A globalização nos moldes verificados a partir de 1980, além de representar a internacionalização da economia, também interferiu no campo educacional e cultural, o que, na concepção de Gadotti[34], intensificou o acirramento das contradições inter e intrapovos e nações. E é imersa nesta perspectiva da diversidade multicultural, que a escola precisa encontrar a sua identidade para o novo tempo, assimilando a realidade complexa e instável, sem precedentes históricos correspondentes, com a potencialidade de concretização dos direitos humanos e para a superação dos altos índices de pobreza e de exclusão social.
“Daí, mais uma vez, a necessidade da invenção da unidade na diversidade. Por isso é que o fato mesmo da busca da unidade na diferença, a luta por ela, como processo, significa já o começo da criação da multiculturalidade. É preciso reenfatizar que a multiculturalidade como fenômeno que a implica a convivência num mesmo espaço de diferentes culturas não é algo natural e espontâneo. É uma criação histórica que implica decisão, vontade política, mobilização, organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns. Que demanda, portanto, uma certa prática educativa coerente com esses objetivos. Que demanda uma nova ética fundada no respeito às diferenças”.[35]
No Brasil, com a instituição de um regime de governo ditatorial, a partir de 1937, a autonomia dos municípios e dos estados sobre a gestão da educação foi eliminada em correspondência com a centralização do poder. E, apesar dos propósitos da Constituição Democrática, de 1946, que previa, além da organização dos sistemas articulados de educação, a liberdade das ciências, das letras e das artes, o golpe militar de 1964 instituiu novas diretrizes e inaugurou um período de concentração de poderes e diminuição das garantias individuais. Cotrim[36] afirma que houve descaso com a educação no Brasil durante o período de ditadura militar, sem o fornecimento de vagas suficientes e de condições para continuidade dos estudos, e, com o rebaixamento da qualidade da educação e o “esvaziamento do ensino crítico, voltado para cidadania”.
A promulgação da Constituição da República de 1988 e a influência dos pactos de direito internacional consolidaram o caráter universal da educação e fomentaram a estruturação dos sistemas de ensino nas três esferas governamentais. Todavia, os dados coletados por intermédio do censo escolar[37] e das avaliações periódicas demonstram que o processo de adaptação da escola pública ao novo modelo de educação é mais lento do que o idealizado e não alcança as metas de desenvolvimento previstas pelos institutos especializados.
A educação no Brasil integra o rol dos direitos sociais e as diretrizes que organizam o sistema de ensino preveem a ação cooperada da união, dos estados e dos municípios para oferecer, financiar, planejar e normatizar a educação. Dentro desse contexto, a Lei de Diretrizes e Bases, sem afastar a necessidade de oferecer aos indivíduos uma formação básica comum, confere maior flexibilidade aos municípios e aos estados membros ao preceituar a elaboração de planos municipais e estaduais de educação, resguardando as características regionais de cada sistema de ensino e respeitando a hierarquia das normas e a competência de cada ente governamental para atuar em sua jurisdição.
“Por sua vez, a busca pela solidariedade se desenvolve em espaços públicos e de natureza democrática, podendo-se reconhecer daí uma comunidade efetivamente moral. Moral não no sentido de dever-ser, como justo ou injusto, mas sim voltando-se para o sentido de justiça que emerge do agir do indivíduo que abandona suas perspectivas egocêntricas, à medida que percebe a necessidade de cumprir tarefas com o outro. Significa, com isso, reconhecer no estranho a sua diversidade e importância para se viver de maneira cooperativa e comunicativa. Desse modo, se conclama e se identifica a relevância da responsabilização solidária como ícone de inclusão no espaço público local.”[38]
Para Putnam[39], a capacidade de agir coletivamente precisa ser adquirida durante o processo de formação educacional, seja na família ou na escola. A participação efetiva da vida social, todavia, não pode ser imposta por um elemento exterior, que faça com que as pessoas importem-se umas com as outras, com os bens públicos e com os interesses difusos. A educação providenciada na escola não tem o poder de incutir sentimentos íntimos na alma dos indivíduos, pois a participação comunitária ativa depende das sensações individuais de cada pessoa, que podem ser expressas na comunidade de forma positiva ou negativa, conforme a disponibilidade e a consciência de cada um. O autor, todavia, sugere como estratégia para qualificação da participação social, a educação cívica na escola, não em um sentido restrito à transmissão de conteúdos, mas com o envolvimento dos alunos em ações coletivas e serviços comunitários em atividades extracurriculares.
Morin[40], alude a existência de um desafio cívico que consiste na fortificação da solidariedade, já que a cultura sistematizada dos saberes separados oportunizou o enfraquecimento da percepção global e do senso de responsabilidade. Não é suficiente, para a concretização da vida digna em sociedade, que cada indivíduo responsabilize-se exclusivamente pela tarefa que lhe é destinada em virtude de sua especialização, uma vez que essa forma de pensar é incapaz de perceber o contexto e a complexidade dos problemas.
“Indivíduo e Sociedade existem mutuamente. A democracia favorece a relação rica e complexa indivíduo/sociedade, em que os indivíduos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente.
A democracia fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados e, desse modo, reduz a servidão (que determina o poder que não sofre a retroação daqueles que submete); nesse sentido, a democracia é mais do que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem democracia que produz cidadãos.
Diferentemente das sociedades democráticas que funcionam graças às liberdades individuais e à responsabilização dos indivíduos, as sociedades autoritárias ou totalitárias colonizam os indivíduos, que não são mais do que sujeitos; na democracia, o indivíduo é cidadão, pessoa jurídica e responsável; por um lado exprime seus desejos e interesses, por outro, é responsável e solidário com sua cidade.”[41]
Dentre as assertivas destinadas à melhoria das condições de vida mulher, a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”[42], prescreve que os Estados membros estão comprometidos a “modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres” com o intuito de incluir, no processo educacional, programas adequados para combater preconceitos e costumes baseados na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher.
“Ao mesmo tempo, não podemos deixar de assinalar as disposições dos convênios, das declarações, das recomendações, dos pactos, internacionais firmados pela maioria dos estados, fundamentados por iniciativa da Unesco e das Nações Unidas, nos quais se exortam a Educação para a Paz, a compreensão internacional das liberdades fundamentais e os direitos humanos. Dessa perspectiva, além das razões pedagógicas, sociais, políticas e ecológicas que a sustentam e demandam, educar para a paz converte-se, portanto, em um imperativo legal”.[43]
Para Morin[44], o êxito das futuras gerações dependerá de suas habilidades para agir diante das adversidades que surgem em meio à complexidade e à instabilidade do mundo globalizado. A vivência conforme os preceitos democráticos reclama o diálogo entre os interesses antagônicos e o exercício, pelas pessoas, do espírito cívico e da aceitação das regras. A educação para a experiência democrática consiste no aprimoramento, pelos indivíduos, da capacidade de compreensão a respeito de sua capacidade de interferência no meio em que vive, com a conscientização política e comunitária, que ultrapassa o desinteresse pelas questões sociais e o refúgio na vida privada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A eliminação dos conceitos estereotipados que enaltecem a desigualdade de gênero e favorecem a discriminação depende da prática social não-violenta, a ser aprendida e ensinada pelas novas gerações com o intuito de concretizar os direitos humanos e a vivência democrática. A educação para a paz se apresenta como uma alternativa para inclusão, nos sistemas de ensino devidamente articulados pelos entes governamentais e pela Constituição da República, de métodos de ensino e de práticas pedagógicas que são pautadas por valores coerentes com o respeito às diferenças e com a solidariedade.
Não se entende, todavia, que as gerações que receberam educação institucionalizada com enfoque em áreas do conhecimento e na formação profissional e erudita, não tenham a capacidade de superar os paradigmas da prática social consubstanciada em conceitos como os de competição, hierarquia, força e dominação, que favorecem, por exemplo, a violação de direitos da mulher. É necessário que as pessoas, gradativamente, passem a conceber a prática violenta como uma prática que não é essencial à vida em sociedade. O primeiro passo para essa conscientização, é a identificação da amplitude que a prática violenta possui no cotidiano das pessoas, para, após, ser promovida a substituição com a assimilação de ações pautadas pelo diálogo, pela aceitação e pelo reconhecimento das diferenças como inerentes à condição humana e não como elemento de discriminação ou requisito para de (in)acessibilidade aos direitos.
Tampouco se conclui que a educação das novas gerações deva abandonar a formação tradicionalmente transmitida em sala aula. Essas práticas, o contrário, precisam ser aprimoradas com a consideração da realidade vivenciada por cada grupo inserido no seu ambiente de convívio, acrescido da conscientização a respeito de formas de resolução não-violenta de conflitos e pelo respeito às diferenças e à integridade, afastando-se a prática violenta das relações e dos acontecimentos diários, através de currículos elaborados e da adoção de uma política de conduta diária empregada na instituição pela equipe diretiva, pelos pais, funcionários, professores e alunos. Além da positivação e do reconhecimento através de políticas públicas concebidas pelos entes governamentais, os direitos das mulheres, fundamentalmente, da transformação que a educação é capaz de promover na formação de indivíduos, com a assimilação dos preceitos éticos definidos como padrão se conduta a ser respeitado nas interrelações.
Mestre em Direito, área de concentração: Políticas Públicas de Inclusão Social e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito, Políticas Públicas e Cidadania, coordenado pela Professora Pós-Dra. Marli M. da Costa, Professora da UNISC. Pesquisadora e integrante do Projeto: Justiça restaurativa na praxe das polícias militares: uma inter-relação necessária na prestação de serviços ao atendimento de ocorrências graves no município de Santa Cruz do Sul
Advogada, aluna especial do Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito, Políticas Públicas e Cidadania, coordenado pela Professora Pós-Dra. Marli M. da Costa
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