Resumo: O presente artigo volta-se para demonstrar a preocupação com a dignidade da pessoa humana; na perspectiva do direito social à saúde. Esse direito social, de dimensão constitucional, tem sido objeto de tutela jurisdicional com o fim de buscar sua efetivação. Demonstraremos qual será a medida adotada caso o ente e o agente público não efetivem o cumprimento do pronunciamento judicial, inclusive no que se refere a responsabilização, seja processual, civil, criminal ou, em último caso, voltado para a intervenção federal ou estadual. A essência do presente artigo volta-se para indicar a técnica a qual melhor se consolida, com a finalidade de garantir a efetividade do pronunciamento judicial, afastando a adoção de medidas de pouca ou nenhuma eficácia. Mas também volta atenção à necessidade de adoção feita pelo juiz de medidas com o fim de afastar o contempt of court, e garantir ao cidadão o acesso a um pronunciamento justo, efetivo e em tempo razoável.
Palavras chave: Dignidade da pessoa humana. Saúde. Efetivação.
Abstract: This article intends to demonstrate a concern with the analysis of fundamental rights; therefore, it will be considering aspects that range from social rights, to health issues. The social right perspective, of constitutional dimension, it has been matter of judicial protection to seek its effectiveness. Next, it will be demonstrated which measure will be adopted in case the party and the public agent fail to comply the judicial decision, including regarding to responsibilities, whether they are civilian, criminal or even related to the necessity of Federal or State intervention. The essence of this article prioritizes to indicate the best technical, in what it refers to guaranteeing the enforcement of the judicial decision, and in order to avoid the adoption of measures that do not contain the effectiveness needed. But also, prioritizes the necessity that the Judge chooses measures as an attempt to avoid the “contempt of court”, and guarantee the access to the citizens to a fair pronouncement, effective and in a reasonable time.
Keywords: Dignity of human person. Health. Effectiveness.
Sumário: Introdução. 1. A dignidade da pessoa humana como valor fundante da república. 2. O Poder Judiciário e a especial proteção dos valores fundamentais da República. 3. A efetivação dos pronunciamentos do juiz. 3.1 A adoção de medidas inadequadas para efetivar o pronunciamento judicial. 3.1.1 A fixação de astreintes. 3.1.2 A prisão civil. 3.1.3 O afastamento do agente público. 4. Consequências em caso de descumprimento do pronunciamento judicial. Considerações.
INTRODUÇÃO
A efetivação do direito à saúde passa, necessariamente, por questionamentos sobre a viabilidade de intervenção do Poder Judiciário e, mais ainda, em relação às medidas a serem adotadas, em caso de o descumprimento do pronunciamento judicial.
Nesse aspecto entendemos, conforme será demonstrado, que o Poder Judiciário deve garantir especial proteção aos valores fundamentais da República, sem que o seu agir configure uma indevida intromissão em outro poder.
1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO VALOR FUNDANTE DA REPÚBLICA.
O Papa Paulo VI, na carta apostólica Octogésima Adveniens, de 14.5.1971, assevera:
“A pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Todo o homem tem direito ao trabalho, à possibilidade de desenvolver as próprias qualidades e a sua personalidade no exercício da profissão abraçada, a uma remuneração equitativa que lhe permita, a ele e à sua família, ‘cultivar uma vida digna no aspecto material, social, cultural e espiritual’, à assistência em caso de necessidade, quer esta seja proveniente de doença ou da idade”.[1]
O ideário social e político da Igreja Católica tem como fundamento o humanismo cristão e coloca a pessoa humana como núcleo central da vida e do poder social.
Esse ideário remonta, entre outros aspectos históricos, a fórmula de Abraham Lincoln (1809-1865) quando no famoso discurso de Gettysburg, em 19.11.1863, invocou os princípios da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e afirmou que os poderes dos Estados não podem se sobrepor ao ‘governo do povo, pelo povo e para o povo’:
“Cumpre-nos, antes, a nós, os vivos, dedicarmo-nos hoje à obra inacabada até este ponto tão notavelmente adiantada pelos que aqui combateram. Antes, cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem a uma maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra”.
No Brasil, a importância da dignidade da pessoa humana somente se fez presente a partir[2] da Constituição Federal de 1967[3]. Ela relacionava-se com a ordem econômica como condição para realizar a justiça social, com base nos princípios, entre outros, da valorização do trabalho conforme a condição da dignidade humana[4].
Sobre a dignidade da pessoa humana Daniel Sarmento aduz:
“O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico (…) pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na ideia de respeito irrestrito ao ser humano – razão última do Direito e do Estado”.[5]
A Constituição Federal de 1988 revolucionou esse paradigma e colocou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, aliado ao fato de que se inspirou na fórmula de Abraham Lincoln ao afirmar que ‘todo o poder emana do povo’, e aquele que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.[6]
De acordo com J. J. Gomes Canotilho[7]:
“Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve ao homem, não é o homem que serve aos aparelhos político-organizatórios. A compreensão da dignidade da pessoa humana associada à ideia de homo noumenon justificará a conformação constitucional da República Portuguesa na qual é proibida a pena de morte (artigo 24º) e a prisão perpétua (artigo 30º/1). A pessoa ao serviço da qual está a República também pode cooperar na República, na medida em que a pessoa é alguém que possa assumir a condição de cidadão, ou seja, um membro normal e plenamente cooperante ao longo da sua vida.
Por último, a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico. O expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República significará, assim, o contrário de ‘verdades’ ou ‘fixismos’ políticos, religiosos ou filosóficos. O republicanismo clássico exprimia esta ideia através dos princípios da não identificação e da neutralidade, pois a República só poderia conceber-se como ordem livre na medida em que não se identificasse com qualquer ‘tese’, ‘dogma’, ‘religião’ ou ‘verdade’ de compreensão do mundo e da vida. O republicanismo não pressupõe qualquer doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente” (J. Rawls).
Entendemos que diante da importância e magnitude da dignidade da pessoa humana como valor fundamental, sujeito e fim das instituições sociais da República, ele deveria estar no inciso I do artigo 1º da Constituição Federal. Na verdade, bastava que a República se fundamentasse na dignidade da pessoa humana, pois sem a sua especialíssima proteção, não há como falar em soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, ou mesmo do pluralismo político.
A exemplo, citamos a Lei Fundamental da Alemanha quando estabelece em seu artigo 1:
“Artigo 1 [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação jurídica dos direitos fundamentais]
(1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.
(2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.
(3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam nos poderes legislativo, executivo e judiciário.”
De qualquer forma, entendemos que a instituição de um Estado Democrático, destinado a ‘assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’[8], impõe em seu núcleo a dignidade da pessoa humana como valor fundante da República.
Peter Häberle[9], ao tratar da importância da dignidade da pessoa humana na constituição, afirma:
“(…) uma Constituição que, de início, menciona a dignidade humana como um dos seus princípios supremos, deve-se preocupar com essa dignidade, seja como um objetivo pedagógico – desde as escolas até regulamentação de atividade de radiodifusão – ainda que o objetivo pedagógico não esteja explicitamente mencionado no texto constitucional. A Constituição assume esse compromisso a si própria ao prever textualmente a dignidade humana.”
A esse valor fundante se liga outro, o da cidadania, não como mera concepção de direitos políticos frente ao Estado, pois vai além e trata o cidadão como ponto central e fundamental da República.
De acordo com Dirley da Cunha Júnior[10]:
“Efetivamente, o Estado Democrático de Direito é princípio fundamental que reúne os princípios do Estado de Direito e do Estado Democrático, não como simples reunião formal de seus respectivos elementos, tendo em vista que revela um conceito novo que os supera, mas como providência de transformação do status quo e garantia de uma sociedade pluralista, livre, justa e solidária, em que todo o poder emane do povo e seja exercido em benefício do povo, com o reconhecimento e a afirmação dos direitos humanos fundamentais que possam realizar, na sua plenitude, a dignidade da pessoa humana.”
Ao tratar do tema, Inocêncio Mártires Coelho[11] assevera:
“Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenhe em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.”
É possível afirmar que a existência da pessoa humana com dignidade demanda, necessariamente e de forma inevitável, assegurar o pleno exercício dos direitos fundamentais.
De acordo com Immanuel Kant[12]:
“O homem, e de uma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim.”
A Corte Constitucional da Alemanha assevera que a dignidade da pessoa humana é considerada de valor superlativo, não podendo ser contrapesada com outros valores ou bens constitucionalmente protegidos, não se aplicando ao critério da proporcionalidade.
Gilmar Ferreira Mendes[13] leciona:
“Em palavras do próprio Alexy, o princípio da dignidade da pessoa comporta graus de realização, e o fato de que, sob determinadas condições, com um alto grau de certeza, preceda a todos os outros princípios, isso não lhe confere caráter absoluto, significando apenas que quase não existem razões jurídico-constitucionais que não se deixe de comover para uma relação de preferência em favor da dignidade da pessoa sob determinadas condições (…) a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão-somente consigo mesma”.
Daniel Sarmento[14] discorda de Alexy e aduz:
“Quando este afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ceder, em face da ponderação com outros princípios em casos concretos. (…) reiteramos nosso entendimento de que nenhuma ponderação de bens pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem”.
A pessoa humana é, conforme afirmado alhures, o princípio, o sujeito e o fim das instituições sociais. O ordenamento jurídico de um país não confere a dignidade à pessoa humana, pois ela é inerente ao próprio ser humano, sendo certo que sua dupla função consiste em: (i) conduta omissa, com o fim de não violar a dignidade humana; (ii) conduta ativa, de forma a proteger a dignidade humana.
A intenção deste discurso caminha no sentido de afirmar que a dignidade da pessoa humana consiste no valor fundante da República Federativa do Brasil, formando em relação a ele um núcleo, que deve ser respeitado e protegido pelo Estado.
Nesse núcleo, temos o direito à vida. A proteção a dignidade da pessoa humana demanda, inevitavelmente, a proteção do direito à vida. É certo que, dentre os valores constitucionais protegidos no artigo 5º o primeiro deles, e não poderia ser diferente, é a da inviolabilidade do direito à vida[15].
O artigo 4, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê especial proteção do direito à vida:
“1. Toda pessoa tem o direito de que respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”
Ao tratar do direito à vida Francisco Fernandez Segado assevera que é ‘o primeiro direito, o mais fundamental de todos o prius de todos os demais’[16]. Esse direito apresenta três possibilidades: (i) direito de defesa do indivíduo frente ao Estado ou ao particular, sendo proibida a prática de qualquer ato que o viole; (ii) obrigação de o Estado garantir com a máxima efetividade sua proteção; (iii) proteção aos elementos imateriais da pessoa, seu pleno exercício espiritual.
Por sua vez, não é demais ressaltar que o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, estabelece que as normas definidoras de direitos fundamentais têm a aplicação imediata, a exemplo da Lei Fundamental da Alemanha:
“(3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário”.
Dirley da Cunha Júnior[17] leciona:
“Firmamos nossa posição em favor da direta e imediata aplicação de todas as normas definidoras de direitos fundamentais, independentemente de qualquer interpositio legislatoris, que é até desnecessária. Isso significa que a norma-princípio do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, tem por finalidade irrecusável propiciar a aplicação imediata de todos os direitos fundamentais, sem necessidade de qualquer intermediação concreta, assegurando, em última instância, a plena justiciabilidade destes direitos, no sentido de sua imediata exigibilidade em juízo, quando omitida qualquer providência voltada à sua efetivação.”
Em relação à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais F. Müller assevera que ‘eles carecem de critérios materiais de aferição os quais podem ser tornados plausíveis a partir do seu próprio teor normativo, sem viver à mercê das leis ordinárias.’[18]
Em síntese, o direito à vida é a essência e a base material da dignidade da pessoa humana. E como consectário lógico do direito à vida se liga o direito de manter-se vivo, com atuação do Estado na proteção, entre outros, do direito social à saúde.
Dentre os direitos sociais estabelecidos no artigo 6º da Constituição Federal[19] trataremos de forma específica do direito à saúde. Como afirmado alhures, o direito à vida e o direito de manter-se vivo mantém relação incondicional com o direito à saúde.
Nesse tema, socorremo-nos à teoria dos quatro status de Georg Jellinek, quais sejam: i) status subjectionis – passivo; ii) status activus civitates – ativo; iii) status libertatis – negativo; iv) status civitates – positivo.
O Supremo Tribunal Federal aplicou a teoria dos quatro status de Jellinek ao julgar o Recurso Extraordinário n. 598.099 Mato Grosso do Sul que tratava do direito à nomeação a cargo público de pessoa aprovada dentro do número de vagas previstas no edital:
“Nesses termos, a acessibilidade aos cargos públicos constitui um direito fundamental expressivo da cidadania, como bem observou a Ministra Cármen Lúcia na referida obra.
Esse direito representa, dessa forma, uma das faces mais importantes do status activus dos cidadãos, conforme a conhecida ‘teoria dos status’ de Jellinek”. (trecho do voto do relator, Ministro Gilmar Mendes)
A Suprema Corte reconheceu, nesse caso, que o edital do concurso com número específico de vagas e o ato da Administração Pública o qual declara os aprovados, cria um dever de nomeação e, portanto, direito à nomeação. Em síntese, trata-se, conforme afirmado pelo relator, da aplicação do status activus do cidadão, o direito de exigir prestações positivas do Estado.
No caso do direito social à saúde a situação jurídica torna-se ainda mais evidente, uma vez que a Constituição Federal estabelece em seu artigo 196:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal, e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Considerando que a saúde é um direito social, inerente a todos e dever do Estado, é certo que a própria Constituição Federal obrigou a formulação e execução de políticas sociais e econômicas que visem ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O Estado deve agir positivamente com o fim de: (i) promover ações e serviços de saúde; (ii) proteger a saúde, com redução do risco de doenças e de outros agravos; (iii) adotar ações de recuperação da saúde. O cidadão, por sua vez, com fundamento em seu status activus tem o direito de exigir do Estado a prática dessas ações[20].
O Ministro Celso de Mello, ao relatar o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286-8 Rio Grande do Sul, afirmou:
“Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem como destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, ‘Comentários à Constituição de 1988’, vol VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob a pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”.
E continua, ao afirmar que ‘o direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida’, em posição a qual nos filiamos. O direito à saúde enseja a efetiva aplicação do artigo 196 da Constituição Federal, sob pena de grave omissão inconstitucional.
A intenção deste discurso tem a finalidade de demonstrar que a dignidade da pessoa humana, como valor fundante da República, tem em seu núcleo material a especial proteção da vida. A proteção à vida, na perspectiva do direito à saúde, garante ao cidadão a possibilidade de exigir do Estado ações efetivas não só para evitar o risco de doenças ou outros agravos, mas também, com o fim especial de proteção, com a prática de atos que visem ao tratamento e recuperação em caso de doença.
2. O PODER JUDICIÁRIO E A ESPECIAL PROTEÇÃO DOS VALORES FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA.
O Ministro Celso de Mello ao julgar a ADPF n. 45/DF asseverou, ainda que a título de obiter dictum, que:
“Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. (…)
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”
Essa é a doutrina de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen[21]:
“Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de políticas públicas implementadas e discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração. (…)
As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.”
Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello, ao relatar o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 727.864 Paraná, asseverou:
“Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter vinculante, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.”
É certo que o Poder Judiciário deve implementar políticas públicas com assento constitucional e essenciais para a eficácia de direitos fundamentais; quando os órgãos administrativos competentes forem omissos, sem que ocorra violação ao postulado da separação dos poderes[22].
Dirley da Cunha Júnior[23] assevera:
“Ademais, deve e pode o Ministério Público, através de ação civil pública, provocar a autuação do Judiciário no controle da omissão total ou parcialmente inconstitucional do poder público na implementação das ações e serviços de saúde, caso verifique, por exemplo, que o município não está concretizando o seu dever constitucional de assegurar o direito em questão, em face da inexistência ou deficiente prestação dos serviços públicos de saúde para a comunidade local, forçando que os munícipes se desloquem para outros municípios ou outros Estados à procura de atendimento médico-hospitalar”.
Com efeito, o Estado constitucional deve ser um Estado com qualidades[24]. Nesse Estado é garantido o pleno acesso ao sistema judiciário com o fim de que o cidadão assegure e dê efetividade aos seus direitos.
De acordo com J. J. Gomes Canotilho[25]:
“O Estado constitucional é ‘mais’ do que Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para ‘travar’ o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político. “
Os direitos fundamentais servem como blindagem contra os ataques do poder e a República se relaciona, necessariamente, com a concepção de função pública e cargos públicos vinculados a prossecução dos interesses públicos e do bem comum[26].
J. J. Gomes Canotilho[27] aduz que o princípio da garantia da via judiciária consagra dimensões materiais, funcionais e organizatórias. Segundo o autor, é possível afirmar que: (i) a imposição da via judiciária é dirigida ao legislador, no sentido de dar operatividade a prática à defesa de direitos; (ii) a defesa de direitos através dos tribunais representa uma decisão fundamental organizatória, pois o controle judicial constitui contrapeso ao exercício dos poderes executivo e legislativo; (iii) reforça o princípio da efetividade dos direitos fundamentais, proibindo a sua inexequibilidade ou eficácia por falta de meios judiciais; (iv) abre imediatamente a via para um tribunal; (v) o cidadão, em princípio, tem assegurada uma posição jurídica subjetiva cuja violação lhe permite exigir a proteção jurídica; (vi) a proteção jurídica se dá na constitucionalidade da jurisprudência; (vii) deve ser avaliado o princípio da responsabilidade do Estado e o princípio da compensação de prejuízos.
Sobre o tema, Cláudia Maria da Costa Gonçalves[28] leciona:
“Analisar a possibilidade de se reivindicar direitos fundamentais sociais, diretamente a partir da dicção ou da normatividade constitucional, é matéria que desafia uma série de obstáculos. Dentre eles, ressaltam-se: o Judiciário não é o gestor do orçamento geral das entidades federadas e, por conseguinte, em um só processo não se pode discutir e ter a visão global dos quadros de receitas e despesas públicas; por outro lado, o Judiciário, considerando-se o regime constitucional democrático – pluralista, não pode, em igual medida, ser o idealizador solitário das políticas sociais. A isso cabe agregar, em suma, que a função judicante não tem competência para, de maneira ampla, definir o conjunto das políticas públicas. […] Mas que fique registrado. Se o Judiciário não pode formular e executar políticas sociais, pode, contudo, controlá-las sob o prisma constitucional, especialmente no que tange ao núcleo dos direitos fundamentais. É dizer-se: alguns direitos fundamentais sociais podem ser reivindicados em juízo, sem que isso afronte qualquer estrutura de competência constitucional ou cerceie os pilares da democracia pluralista.”
Nesse sentido, Antoine Garapon[29] assevera:
“O juiz passa a ser o último guardião de promessas tanto para o sujeito como para a comunidade política. Por não conservarem a memória viva dos valores que os formam, eles confiaram à justiça a guarda dos seus juramentos.”
Do exposto, o que se pretende afirmar é a possibilidade de: (i) livre acesso do cidadão à via judiciária; (ii) possibilidade de pleitear, no Poder Judiciário, a efetivação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, com aplicação do status activus.
É imprescindível, portanto, assegurar em um primeiro momento o livre acesso do cidadão ao Poder Judiciário, em respeito ao inciso XXXV[30] do artigo 5º da Constituição Federal. O Novo Código de Processo Civil em seu artigo 3º prevê que ‘não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito’. Esse dispositivo deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, pois reconhece que não se exclui de apreciação jurisdicional lesão ou ameaça ao direito. Apreciação jurisdicional é o acesso à ordem jurídica justa, garantia fundamental do indivíduo frente ao Estado. Em um segundo momento, torna-se necessário garantir a possibilidade de o cidadão pleitear, no Poder Judiciário, a efetivação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.
Entendemos que na perspectiva do princípio da proteção judicial efetiva; (rechtliches Gehör) o cidadão tem o direito de acesso à Justiça, com inafastabilidade da jurisdição, como também na possibilidade de pleitear judicialmente a efetivação do direito social à saúde. O Poder Judiciário pode acionar a Administração Pública para satisfazer os direitos fundamentais do cidadão, com efetivo implemento, no que interessa ao presente caso, do direito à saúde.
Com efeito, o Poder Judiciário não pode compactuar com o estado de coisas inconstitucional, negando ao cidadão o acesso aos serviços de saúde, ainda mais quando esse acesso vise a proteger a vida, com reflexo na dignidade humana. Admitir o contrário é tornar o cidadão objeto do processo estatal, negando ao mesmo sua humanidade, com sua efetiva ‘coisificação’.
Por sua vez, entendemos que a jurisdição deve ser analisada sob a perspectiva da efetivação de direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.
Giuseppe Chiovenda[31] define a jurisdição como:
“A função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”.
A jurisdição, segundo Chiovenda, é uma atividade de substituição, seja qual for a substituição da atividade das partes pela a do juiz, em afirmar existente ou não a vontade concreta da lei.
Chiovenda assevera que ‘não pode haver sujeição à jurisdição, senão onde pode haver sujeição à lei’[32]. Ao comentar essa afirmação Marinoni, Arenhart e Mitidiero, sustentam que ‘essa passagem da doutrina chiovendiana é bastante expressiva; no sentido de que o verdadeiro poder estatal estava na lei e de que a jurisdição somente se manifestava, a partir da revelação da vontade do legislador’[33].
Em síntese, para Chiovenda jurisdição é o poder de dizer o direito no caso concreto, o que não significa dizer que o juiz cria a norma individual. Isso porque, Chiovenda separava as funções do legislador e do juiz. A este último, cabia à aplicação das normas gerais e abstratas elaboradas pelo legislativo.
A teoria de que o juiz cria a norma individual se deve, em grande parte, a Hans Kelsen, pois para ele a aplicação da norma geral cria a norma individual, seja qual for a sentença. De acordo com Kelsen, o direito não é apenas as normas gerais, uma vez que norma individual, a sentença, também é direito[34].
Francesco Carnelutti[35] trata a jurisdição como a justa composição da lide, entendida como o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um e pela resistência do outro interessado.
Conforme ensinam Marinoni, Arenhart e Mitidiero[36]:
“A fórmula da ‘composição da lide’ também pode ser analisada a partir da ideia, que está presente no sistema de Carnelutti, de que a lei é, por si só, insuficiente para compor a lide, sendo necessária para tanto a atividade do juiz. A sentença, nessa linha, integra o ordenamento jurídico, tendo a missão de fazer concreta a norma abstrata, isto é, a lei. A sentença, ao tornar a lei particular para as partes, comporia a lide.”
Esses autores criticam as teorias de Chiovenda e Carnelutti uma vez que:
“Variam apenas porque em uma o juiz declara a norma geral sem produzir uma norma individual e na outra o juiz cria uma norma individual com base na norma geral declarada na sua fundamentação (da sentença). De modo que as duas teorias estão igualmente subordinadas ao princípio da supremacia da lei.” [37]
Ao final, afirmam, em posição com a qual concordamos:
“Nenhuma dessas teorias responde aos valores do Estado constitucional. Não só porque ambas são escravas do princípio da supremacia da lei, mas também porque as duas negam lugar a ‘compreensão’ do caso concreto no raciocínio decisório, isto é, no raciocínio que leva à prestação da tutela jurisdicional.”[38]
Na sociedade atual, a jurisdição deve concretizar os direitos humanos e, nos dizeres, de José Bolzan de Morais, sua efetivação se dá ‘a partir do prisma da jurisdição, atribuindo-lhe expressão fundamental, quando estejamos frente aos direitos de terceira dimensão’[39]. O fato é que não mais se admite a simples submissão, efetivada pelo juiz, da norma geral e abstrata ao caso concreto, é preciso mais. É preciso que o juiz avalie se essa norma geral e abstrata é compatível com a Constituição, e com os direitos fundamentais[40], dando a estes últimos sua máxima efetividade[41].
Sobre o tema, Francisco José de Oliveira Neto[42] assevera:
“Disso, resultam evidentes as mudanças na atividade jurisdicional, parcela fundamental do exercício da atividade estatal e do poder a ela inerente e que podem ser assim sintetizadas: 1) Mudam os fundamentos da atividade jurisdicional, já que não há mais condições para uma atuação judicial dentro do modelo proposto pelo liberalismo em que o juiz era a boca que pronunciava as palavras da lei e tinha sua atividade limitada pelo dogma retratado pela expressão dura lex sed lex. Agora, sua atividade deverá estar focada nos critérios de justiça plasmados na Constituição, o que dá espaço para o surgimento de um novo tipo de juiz, cuja função principal agora é garantir direitos fundamentais. Se antes era um mediador de conflitos, agora é instrumento a serviço da garantia de direitos fundamentais; 2) Muda a forma de atuação, já que, se antes o juiz era neutro, distante, mediador e só exercia sua atividade quando chamado pelas partes, no Estado Constitucional de Direito essa figura desaparece, já que o sistema impõe uma tomada de posição, um abandono da neutralidade e a tomada de partido na busca da concretização constitucional, o que acarretará manifestações mais contundentes em relação a determinados assuntos e, por fim, 3) Mudam os espaços da atuação judicial, já que com a redefinição dos espaços do político e do jurídico ou, em outras palavras, das questões consideradas exclusivamente políticas e das questões consideradas exclusivamente jurídicas, o que se assiste são manifestações mais identificadas como políticas do que efetivamente como jurídicas.”
Em síntese:
“A jurisdição no Estado Constitucional, embora não seja descritiva de uma norma jurídica, não é criativa de normas jurídicas – a jurisdição implica atividade de reconstrução interpretativa mediante um processo estruturalmente guiado pela argumentação jurídica. É uma atividade que conta necessariamente com a colaboração da Constituição e da legislação para ser legítima, não criando ex novo normas jurídicas”.[43]
Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior[44] leciona:
“Na Justiça concebida pela moderna visão democrática do Estado de Direito, deve-se desempenhar a jurisdição, que não é apenas poder estatal, mas função (poder-dever) dos órgãos jurisdicionais a ser exercida perante todos, com o compromisso de propiciar, na medida do possível, ao litigante vítima de lesão ou ameaça, tudo aquilo e exatamente aquilo que seu direito lhe assegure”.
Entendemos, portanto, que a jurisdição tem papel fundamental na implementação de políticas públicas e na efetivação do direito a saúde, sem que isso configure indevida intromissão de um poder no outro. O juiz deve atuar não somente como ‘guardião das promessas’, mas também, como o responsável pela sua efetivação, em especial pela relevantíssima função desempenhada pela jurisdição.
3. A EFETIVAÇÃO DOS PRONUNCIAMENTOS DO JUIZ.
Como consequência do acesso a via judiciária e da possibilidade de pleitear o direito social à saúde o juiz deve, caso procedente o pedido, dar efetividade ao pronunciamento judicial[45], seja ele por decisão ou por sentença. Essa efetividade deve ser analisada em duas perspectivas: (i) tutela de urgência; (ii) sentença que reconhece a procedência da prestação de fazer.
O Código de Processo Civil disciplina a tutela provisória, a qual pode fundamentar-se em urgência ou evidência[46]. A tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental[47].
De acordo com Marinoni, Arenhart e Mitidiero[48]:
“A técnica processual tanto pode levar à prestação da tutela satisfativa como à prestação da tutela cautelar. É nesse sentido que o legislador refere que a tutela provisória de urgência pode ser satisfativa (antecipada) ou cautelar (art. 294, parágrafo único)”.
A tutela provisória tem por finalidade a distribuição isonômica do tempo no processo, com preservação do princípio da igualdade, conforme prevê o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal e artigo 7º do Código de Processo Civil[49].
De acordo com o artigo 300 do Código de Processo Civil a tutela de urgência de natureza antecipada será deferida, quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
A tutela provisória de urgência de natureza antecipada demanda, portanto, a conjugação de elementos que evidenciem a probabilidade do direito, acrescido do perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, nos termos do artigo 300 do Código de Processo Civil. Seu deferimento pode se dar liminarmente, sem oitiva da parte adversa, ou após justificação prévia[50].
No que se refere à probabilidade do direito, ensinam Marinoni, Arenhart e Mitidiero[51]:
“A probabilidade do direito que autoriza o emprego da técnica antecipatória para a tutela dos direitos é a probabilidade lógica – que é aquela que surge da confrontação das alegações e das provas com os elementos disponíveis nos autos, sendo provável a hipótese que encontra maior grau de confirmação e menor grau de refutação nesses elementos. O juiz tem que se convencer de que o direito é provável para conceder tutela provisória.”
Em nossa opinião, é necessário que o juiz efetive a cognição horizontal dos fatos apresentados pela parte autora; e avalie sua compatibilidade com as provas e argumentação jurídica, formando um juízo de probabilidade. A probabilidade do direito se funda, portanto, na conjugação dos fatos, provas e argumentação jurídica.
O perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo consiste no periculum in mora, qual seja o perigo da demora, conforme doutrina de Marinoni, Arenhart e Mitidiero[52]:
“Há perigo na demora porque, se a tutela tardar, o ilícito pode ocorrer e, continuar ocorrendo, ocorrer novamente ou pode o dano ser irreparável, de difícil reparação ou não encontrar adequado ressarcimento. Daí que ‘perigo de dano’ e ‘risco ao resultado útil do processo’ devem ser lidos como ‘perigo na demora’ para caracterização da urgência – essa leitura permitirá uma adequada compreensão da técnica processual à luz da tutela dos direitos”.
A tutela provisória de urgência de natureza antecipada não será deferida, se houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, nos termos do § 3º do artigo 300.
Nesse caso, estamos diante de um paradoxo. De um lado, o direito provável de um autor que tem razão e do outro o perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão ao réu, que não tem razão. É necessário que o juiz pondere, de acordo com o caso concreto, e com ênfase nos valores constitucionais, qual direito deve prevalecer.
Com a finalidade de deferir a tutela provisória de urgência o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea – medida de contracautela – para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada, se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la, é o que se extrai do § 1º do artigo 300.
Considerando que estamos tratando da efetivação de direito social, no caso a saúde e com o fim de preservar a vida com reflexo direto na dignidade da pessoa humana, torna-se evidente que ele não deve ser ponderado com outro elemento. É certo, conforme afirmado, que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer e, em regra, a contracautela torna-se dispensável.
Ao tratar do perigo de dano reverso Humberto Theodoro Júnior[53] assevera:
“A propósito do tema, fala-se que esse tipo de solução é inaceitável, porquanto o periculum in mora não pode ser visto como via de mão única, endereçada apenas a favorecer uma das partes. Para que a tutela jurisdicional seja justa e equitativa a avaliação do periculum tem de comportar-se como via dupla, em que se balanceiem igualmente os interesses de ambas as partes contrapostas. Afinal, é dever do juiz dispensar o tratamento mais igualitário possível aos litigantes (NCPC, art. 139, I) e de ser sempre imparcial na condução do processo (arts. 144 e 145). É, de tal sorte, inaceitável que o magistrado escolha a seu bel prazer a quem impor a sujeição ao risco de dano derivado da duração do processo. Sua função é a de eliminá-lo, na medida do possível, e nunca de transferi-lo de uma pessoa para outra.”
Em relação a esse aspecto, entendemos que o perigo de dano milita em favor daquele o qual postula a efetivação do direito à saúde. A não submissão da parte ao acesso a medicamento ou tratamento poderá ocasionar, direta e imediatamente, danos de difícil, incerta ou impossível reparação, com comprometimento da vida. O dano reverso, ligado à despesa financeira com o medicamento ou tratamento, será possível de responsabilização pelo prejuízo, inclusive com liquidação nos autos em que tiver sido concedida, conforme disciplina o artigo 302, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
No caso, entendemos que a tutela provisória de urgência melhor se adapta ao fim de efetivar o direito à saúde, pois basta que a parte apresente elementos que evidenciem a probabilidade de seu direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, conforme prevê o mencionado artigo 300.
A efetivação dessa tutela deve observar o previsto no artigo 297, parágrafo único, do Código de Processo Civil:
“Art. 297. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.
Parágrafo único. A efetivação da tutela provisória observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber.”
O pronunciamento judicial tem como característica o seu caráter injuncional, de forma que sua efetivação, conforme lição de Humberto Theodoro Júnior, ‘não se faz por meio do sistema comum condenatório, mas através de ordem (comando) judicial a ser imediatamente atacada, sob pena de configurar uma intolerável violação à dignidade da Justiça’[54].
Por sua vez, a sentença que reconhece a procedência da prestação de fazer o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, nos termos do artigo 497 do Código de Processo Civil:
“Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.”
Nesse aspecto, o artigo 536 estabelece:
“Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.”
Em síntese, seja na efetivação da tutela provisória de urgência ou no cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade da obrigação de fazer, o juiz poderá, inclusive de ofício, dar efetividade ao pronunciamento judicial, mediante a adoção de medidas necessárias à sua satisfação, uma vez que conforme ressaltado por Marinoni, Arenhart e Mitidiero no Brasil vige a ‘atipicidade da técnica processual executiva’[55].
Trata-se, como se vê, da tutela prestada pela adoção de mecanismos processuais adequados ao caso concreto, ou seja, pelo resultado prático equivalente, delineado nos artigos 497 e 536 da legislação processual civil. Essas medidas não violam a regra da congruência entre o pedido e a sentença, conforme disciplina dos artigos 490 e 492, pois é permitida a prestação diversa daquele objeto da demanda, com o fim de proteger o bem da vida perseguido em juízo.
O objetivo da tutela com a adoção de mecanismos processuais adequados, também denominada como resultado prático equivalente, é propiciar que a parte possa ‘obter o mesmo resultado perseguido com a obrigação originária’[56]. O juiz tendo como norte os ‘fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência’[57] deve propiciar a obtenção do resultado equivalente àquele que seria alcançado, caso a parte adversa tivesse cumprido espontaneamente a obrigação.
Sobre o tema:
“Não é por acaso que primeiro o legislador fala em adequação técnica executiva para a tutela do direito: se apenas técnicas adequadas podem servir para tutela dos direitos, então é imprescindível a consideração da situação concreta de urgência ou de evidência para que possa promover uma efetiva tutela do direito mediante a técnica antecipatória. Em um sistema atípico de técnica executiva, os postulados da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito devem estruturar argumentativamente o emprego da técnica executiva a fim de que o poder judicial de escolha da técnica posa ser intersubjetivamente controlável (arts. 8º e 297, CPC)”.[58]
Em relação a esse tema, o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial n. 1.069.810/RS, sob o rito do recurso repetitivo, asseverou:
“Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação.”
O relator, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, considerou, com fundamento no Recurso Especial n. 840.912/RS relatado pelo então Ministro Teori Zavascki, que ‘o direito fundamental à saúde prevalece sobre os interesses financeiros da Fazenda Pública, a significar que, no confronto de ambos, prestigia-se o primeiro em prejuízo do segundo.’
Em relação a esse aspecto, entendemos que três pontos merecem atenção: (i) desnecessidade de ponderação entre o direito à saúde e os interesses financeiros da Fazenda Pública; (ii) efetivação da decisão mediante a adoção do bloqueio de verba pública; (iii) não incidência do regime de precatório.
De início, concordamos com a posição fixada no mencionado recurso especial em relação à efetivação da decisão ou sentença via bloqueio de recursos públicos, com o fim de prestar diretamente o acesso ao medicamento ou ao tratamento objeto do pronunciamento judicial.
Discordamos, entretanto, sobre a necessidade de ponderar o direito à saúde e aos interesses financeiros da Fazenda Pública. Conforme mencionado logo no início deste artigo, consideramos que a dignidade da pessoa humana é valor fundante da República, sendo certo que a ele se liga o direito à vida. Esse direito demanda, necessariamente, o de manter-se vivo, em especial pelo acesso ao sistema público de saúde, com os meios e recursos a ele inerentes.
A dignidade da pessoa humana não pode ser ponderada com outro valor de menor envergadura, qual seja, os interesses financeiros da Fazenda Pública e, nas palavras de Daniel Sarmento[59]:
“Nenhuma ponderação de bens pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem.”
A pessoa humana é o princípio, o sujeito e o fim das instituições sociais, sendo certo que a ela não se opõe a interesses financeiros do Estado. Admitir essa ponderação é retirar da pessoa sua humanidade, tratando-a como mero objeto do Estado, o que é inadmissível.
Consideramos que a efetivação da decisão demanda a adoção do bloqueio de verba pública, pois nos parece a única medida com força suficiente para promover a dignidade da pessoa humana. Essa medida é proporcional e razoável ao fim buscado, aliado ao fato de que atende a legalidade, resguarda a publicidade e garante eficiência na tutela do direito.
De outro norte, é necessário afastar a ideia da incidência do regime de precatório, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal. Como consequência, também se afasta a aplicação do artigo 534 do Código de Processo Civil, pois esse dispositivo somente é aplicável quando se tratar do dever de pagar quantia certa.
No caso, trata-se de prestação de fazer, ou seja, fornecer medicamento ou tratamento e, como consequência, resta impossível a aplicação do mencionado artigo 534 ou mesmo da regra geral de precatório, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal.
Estamos diante da efetivação, via Poder Judiciário, da obrigação político constitucional de assegurar a dignidade da pessoa humana, com a preservação da vida em decorrência do direito social à saúde. O pronunciamento do juiz não encontra óbice no regime geral de precatório ou mesmo de prévio cumprimento de sentença, eis que sua efetivação deve se dar de forma direta, via a adoção de medidas as quais busquem o resultado prático equivalente, ainda que, para isso se faça necessário o bloqueio de verba pública.
Sobre o tema, Humberto Theodoro Júnior[60] afirma:
“Cabe destacar que as regras especiais de execução imprópria, via requisitório, tem o objetivo de evitar a expropriação de bens do patrimônio público. Por isso, só se referem à execução por quantia certa, como expressamente dispõem os art. 534 e 910. Outras hipóteses de execução forçada não importam, ordinariamente, na expropriação de bens patrimoniais do devedor inadimplente”.
Nesse sentido, Marinoni, Arenhart e Mitidiero[61]:
“A execução contra a Fazenda Pública de que tratam os arts. 100, CF, 534 e 535, CPC, consiste na execução de crédito contra a Fazenda Pública. Vale dizer: eventual decisão contra a Fazenda Pública que imponha um fazer ou não fazer ou tenha como resultado a transferência de determinada coisa para o patrimônio do demandante não é cumprida mediante os arts. 100, CF, 534 e 535, CPC, obedecendo antes aos arts., 536 a 538, CPC (…) A execução contra a Fazenda Pública dos arts. 100, CF, 534 e 535, CPC, é a execução que visa à obtenção de pagamento de quantia em dinheiro. Fora daí os arts. 100, CF, 534 e 535, CPC, não incidem”.
José Miguel Garcia Medina[62] também leciona sobre essa possibilidade:
“Coloca-se a questão, no entanto, de se saber se podem ser empregadas medidas executivas de sub-rogação quanto ao descumprimento de obrigação de fazer. Segundo pensamos, é possível a aplicação de medidas sub-rogatórias contra a Administração Pública a fim de que se dê ensejo ao cumprimento da uma decisão judicial.”
Essa é a doutrina de Daniel Amorim Assumpção Neves[63]:
“Registre-se que as demais formas de execução – fazer/não fazer e entrega de coisa – não exigem procedimento diferenciado quando a Fazenda Pública ocupa o polo passivo, devendo-se seguir as regras gerais previstas pelo Código de Processo Civil”.
Em síntese, seja na efetivação da tutela provisória de urgência ou no cumprimento de sentença é um truísmo afirmar a: (i) não incidência do previsto no artigo 534 do Código de Processo Civil; (ii) necessidade de adoção do bloqueio de recursos públicos com o fim de efetivar o direito a saúde, caso a prestação não se cumpra espontaneamente.
3.1 A adoção de medidas inadequadas para efetivar o pronunciamento judicial.
3.1.1 A fixação de astreintes.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a fixação de astreintes para o descumprimento de decisão judicial, em especial nas hipóteses de fornecimento de medicamentos ou tratamento médico:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO À SAÚDE. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA POR DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. POSSIBILIDADE. ASTREINTES FIXADAS EM R$ 5.000,00. REVISÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O entendimento adotado pela Corte de origem não destoa da jurisprudência do STJ, segundo a qual é cabível a cominação de multa contra a Fazenda Pública por descumprimento de obrigação de fazer. No caso em tela, a apreciação dos critérios previstos no art. 461 do CPC para a fixação de seu valor demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que encontra óbice na Súmula 7 desta Corte. Excepcionam-se apenas as hipóteses de valor irrisório ou exorbitante. 2. Na hipótese, o montante de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), não se mostra excessivo, a ensejar a sua revisão por esta Corte Superior, especialmente por se tratar de hipótese de fornecimento de medicamentos e tratamento de saúde. 3. Agravo Regimental desprovido.” (AgRg no AREsp 542200/PE Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 2014/0163358-9 – Ministro Napoleão Nunes Maia Filho – Primeira Turma – j. 12.5.2015)
Entendemos, entretanto, que a fixação de astreintes, conforme artigo 536, § 1º, do Código de Processo Civil, tem pouca ou nenhuma efetividade, de forma que a decisão ou sentença deve se efetivar por meio do bloqueio de recursos públicos.
A fixação de astreinte não irá proporcionar a resolução eficaz do problema, aliado ao fato de que irá atingir o escasso recurso público com sua posterior transferência para o particular, nos termos do § 2º do artigo 537. A parte, de qualquer forma, irá continuar sem acesso ao medicamento ou tratamento.
É certo, conforme afirmado alhures, que o bloqueio de recursos públicos possui força suficiente para garantir a efetividade do pronunciamento judicial, dando resolução ao problema, com menor impacto financeiro a Fazenda Pública.
3.1.2 A prisão civil.
Ao tratar da prisão civil, Marinoni, Arenhart e Mitidiero[64] entendem pelo seu cabimento no caso de descumprimento de decisão judicial:
“A prisão civil, ordenada pelo próprio órgão jurisdicional da causa, somente tem cabimento no caso em que outra modalidade de efetivação das decisões não se mostrar adequada e o cumprimento da ordem não existir a disponibilização de patrimônio. Assim, deve o juiz demonstrar na sua decisão que, para o caso concreto, não existe nenhuma outra técnica processual capaz de dar efetividade à tutela jurisdicional, além de demonstrar que o uso da prisão não importará na restrição da liberdade de quem não observou a ordem apenas por não possuir patrimônio (…) Dentro dessas coordenadas, a prisão civil estará garantindo a efetividade do direito à tutela jurisdicional sem violar o direito daquele que, por não possuir patrimônio, não pode ser obrigado a cumprir a ordem judicial, nem muito menos punido por não tê-la observado”.
E afirmam que ‘a prisão civil pode ser utilizada para impor um não fazer ou mesmo para impor um fazer infungível, que não implique em disposição de dinheiro e seja imprescindível à efetiva proteção de um direito’.[65]
Nesse ponto, discordamos com esse raciocínio, uma vez que o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal é claro ao somente admitir a prisão civil no caso de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia[66]:
‘LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”
Nesse sentido, José Miguel Garcia Medina[67] aduz:
“Quando a Constituição Federal veda a prisão civil por dívidas (art. 5º, LXVII), abarca não apenas a possibilidade de prisão como meio de ‘satisfação’ da dívida, mas, também, o emprego da prisão como meio coercitivo para a realização de tal prestação, pois também neste caso a prisão civil estaria ocorrendo por causa da dívida.”
Também tem sido adotado, como forma de burlar o regime delineado para a prisão civil, a determinação da prisão em flagrante pelo suposto crime de desobediência.
Nesse caso, não se desconhece o fato de que o descumprimento da ordem judicial pode ensejar a responsabilização pelo crime de desobediência, conforme § 3º do artigo 536 do Código de Processo Civil. Esse crime, entretanto, tem como preceito secundário pena de detenção de quinze dias a seis meses, e multa, nos termos do artigo 330 do Código Penal e por ser de menor potencial ofensivo não se sujeita, em regra, a prisão em flagrante.
Concluímos pela absoluta ilegalidade da ordem de ‘prisão civil’, salvo no caso da hipótese constitucionalmente prevista.
3.1.3 O afastamento do agente público.
Tem sido recorrente a ordem de afastamento, em regra de Secretário de Estado de Saúde ou do seu equivalente no âmbito federal ou municipal, em decorrência do descumprimento de ordem judicial, posição com a qual discordamos.
Essa medida tem pouca ou nenhuma eficácia, além do que enseja indevida intromissão na escolha política do chefe do Poder Executivo. Trata-se de medida com único fundamento de constranger o governo, sem respaldo na legislação processual civil, configurando ato manifestamente ilegal.
É evidente que não se nega a possibilidade de responsabilização civil, criminal e administrativa pelo descumprimento da decisão, tema que será abordado no próximo tópico, porém a determinação para afastamento do agente público não é proporcional e razoável para o fim de garantir a efetividade do pronunciamento judicial.
Isso porque, mesmo que o afastamento se efetive, em nada alterará o quadro de descumprimento do pronunciamento judicial, sem resultado prático para o processo, configurando-se como medida desproporcional, sem razoabilidade ou amparo legal. Em síntese, o pronunciamento judicial continuará sem o devido cumprimento.
4. CONSEQUÊNCIAS EM CASO DE DESCUMPRIMENTO DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL.
Conforme demonstrado, o descumprimento do pronunciamento judicial que determina o fornecimento de medicamento ou de tratamento enseja o bloqueio de verba pública. É necessário, entretanto, que haja a punição ao ente público e seu agente em caso de descumprimento da ordem judicial.
De início lembramos que o artigo 6º do Código de Processo Civil, determina que ‘todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.’ Essa cooperação intersubjetiva consiste em organizar o processo como uma comunidade de trabalho, visando à obtenção de proveito mútuo[68] das partes para com o órgão jurisdicional e deste para com as partes.
Vislumbramos cinco possibilidades de punição em decorrência do descumprimento do pronunciamento judicial, quais sejam:
– medidas contra o ente público: (i) multa por litigância de má-fé, nos termos do § 2º do artigo 77; (ii) multa por litigância de má-fé e indenização da parte pelo eventual prejuízo, conforme artigo 81;
– medidas contra o agente público: (i) responsabilização pelo crime de desobediência; (ii) configuração de ato de improbidade administrativa;
– medida de caráter político: (i) intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal ou dos Estados nos municípios.
É obrigação da parte ou de todo aquele que de alguma forma coopera no processo cumprir com exatidão os pronunciamentos judiciais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços a sua efetivação, nos termos do inciso IV do artigo 77 do código. A violação desse dispositivo pode se dar em duas vertentes: (i) quando a parte não cumpre com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final; (ii) quando a parte cria embaraços à efetivação das decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final.
Caso a parte, ante sua conduta omissiva, não cumpra com exatidão a ordem judicial, de natureza provisória ou final, nos termos do inciso IV do artigo 77 do Código de Processo Civil, resta configurado ato atentatório a dignidade da Justiça e enseja, entre outras medidas, a aplicação de multa de até 20% do valor da causa, graduada de acordo com a gravidade da conduta, nos termos do § 2º.
Caso a parte, com conduta comissiva, crie embaraços a efetivação da ordem judicial ela se encontra sujeita a disciplina do inciso IV do artigo 80, com incidência da multa de 1% a 10% do valor atualizado da causa, aliado a indenização da parte adversa pelo eventual prejuízo, conforme artigo 81.
A par dessas medidas contra o ente, o agente público deve ser intimado pessoalmente para dar cumprimento ao pronunciamento judicial e caso não o faça deve sofrer a devida representação no Ministério Público pela ocorrência, em tese, do crime de desobediência. Estamos diante, portanto, da responsabilidade pessoal do agente pelo descumprimento da ordem judicial.
O agente público responsável pelo descumprimento também deve ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa, conforme tipicidade do inciso II do artigo 11 da Lei n. 8.429/92:
“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (…)
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;”
Com efeito, o agente público é obrigado, nos termos do artigo 4º da Lei n. 8.429/92, a ‘velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos’. É inadmissível que o agente público descumpra o pronunciamento judicial ao qual está vinculado pelos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, sujeitando o ente público as sanções de litigância de má-fé, multa e indenização, aliado ao fato de que sua conduta pode ensejar dano de difícil, incerta ou impossível reparação em desfavor do cidadão.
O agente público deve, diante de um pronunciamento judicial, tomar todas as providências para sua imediata efetivação, evitando qualquer conduta que possa causar prejuízo no ente ao qual está vinculado ou mesmo ao cidadão. Eventual conduta omissiva ou comissiva com o fim de não dar efetividade ao pronunciamento judicial; deve ensejar a devida apuração pelo ato de improbidade administrativa.
Em relação a intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal a mesma se torna possível para prover a execução de ordem ou decisão judicial, conforme autoriza o inciso VI do artigo 34 da Constituição Federal, sendo que os Estados podem intervir nos municípios com o fim de prover ordem ou decisão judicial, nos termos do inciso IV do artigo 35:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: (…)
IV – o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.”
A intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal com o fim de prover ordem ou decisão judicial, demanda requisição do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça ou Tribunal Superior Eleitoral, conforme a matéria tratada.
O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de lavra do Ministro Og Fernandes, determinou a intervenção em caso de descumprimento de ordem judicial:
“Vislumbra-se caso específico de intervenção federal por atentado à independência do Judiciário, pois os outros Poderes constituídos têm o dever de tomar atitude para "prover a execução de […] ordem ou decisão judicial", quando a efetividade do pronunciamento judicial depender de atos executórios a cargo de algum deles. A inércia imotivada ou por critérios de conveniência ou oportunidade equivale à anulação, ainda que parcial, da função típica do Judiciário de "dizer o direito", importando em um indesejável e crescente enfraquecimento de um dos Poderes da República. Transformam-se a coercibilidade e o comando inerentes aos provimentos judiciais em simples aconselhamento destituído de eficácia. Em um plano maior, verifica-se lesão a um dos princípios federativos: a independência e harmonia dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 2º da CF/88). É a negação do próprio Estado de Direito”. (IF 110/PR Intervenção Federal 2011/0155511-6 – Corte Especial – j. 3.6.2015)
As medidas de punição, em qualquer de suas modalidades, visam: (i) preservar a dignidade da Justiça, evitando o desprezo – contempt of court – para com o Poder Judiciário; (ii) assegurar o imediato cumprimento do pronunciamento judicial que, sem dúvida, é esperado pelo cidadão que aciona o sistema de Justiça; (iii) a punição do ente e do agente público responsável pelo descumprimento do pronunciamento judicial.
CONSIDERAÇÕES.
Ao longo do presente artigo, tratamos da influência do humanismo cristão na preservação da dignidade humana e da importância de dimensionar a pessoa como núcleo fundante da República. Em outras palavras, a pessoa humana não deve ser ‘coisificada’ e tratada como objeto do Estado.
Entendemos que o juiz deve, na efetivação dos pronunciamentos judiciais, voltar sua atenção para a adoção de medida eficaz a fim de fazer valer o seu poder estatal, dando máxima efetividade a jurisdição com o fim de assegurar os valores constitucionalmente protegidos.
É evidente que se espera, diante do Estado de democracia constitucional, o imediato cumprimento do pronunciamento judicial, porém em caso de anomalia do sistema o juiz deve adotar medidas com força suficiente para resguardar a jurisdição, e o direito reconhecido em favor do cidadão.
O juiz, entretanto, não deve adotar medidas de pouca ou nenhuma eficácia ou que venham aprofundar o problema ocasionando, em alguns casos, uma crise institucional. A exemplo dessas medidas anômalas citamos a fixação de astreintes, a prisão civil e o afastamento do agente público.
A atuação jurisdicional deve ser voltada para a adoção de medidas que promovam a dignidade da pessoa humana e observem a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência, a exemplo do bloqueio judicial de recursos públicos.
Também consideramos que o contempt of court, ou seja, o desprezo para com o Poder Judiciário não pode permanecer incólume, sendo imprescindível que o juiz determine a adoção de medidas com o fim de punir o ente e o agente público, além daquela de caráter político, a exemplo da intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal ou dos Estados nos municípios.
A adoção dessas medidas de punição tem a finalidade de reduzir drasticamente o número de casos de desrespeito ao pronunciamento judicial, o que tem se tornado recorrente na República. É evidente que nenhum agente público pretende responder criminalmente pelo crime de desobediência ou mesmo sofrer as graves consequências de uma condenação por improbidade administrativa ou, ainda, ter contra o seu ente federado a medida gravosa de uma intervenção.
Juiz de Direito no Tribunal de Justiça de Mato Grosso desde 29.9.2004. Designado como cooperador para a Primeira Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá-MT. MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando em Direito pela Escola Paulista de Direito
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