Introdução.
Celeridade processual como política judiciária
Não é de hoje que a sociedade urge por uma prestação jurisdicional mais efetiva e mais rápida. Tanto é assim que a celeridade processual foi alçada a preceito constitucional (art. 5º, LXXVIII).
Tal desafio, aliás, não é exclusivo do Brasil, mas de todos os países democráticos, pois a demora na solução dos litígios, além de prejudicar as partes envolvidas e criar animosidades sociais, gera prejuízos aos cofres públicos, tendo em vista que a prestação jurisdicional é atribuição do Estado.
Conforme Canotilho, a proteção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma proteção eficaz e temporalmente adequada. Portanto, as matérias levadas à revisão pelos tribunais deveriam ser apenas de direito, a fim de resguardar o tempo útil de tramitação das demandas. Para o autor, “a justiça tardia equivale a uma denegação da justiça[1]”.
No plano formal, existem remédios mais eficientes para combater o mal da inefetividade processual, como imperativa deformatização do processo de que falou a Profª Ada Pellegrini Grinover[2], o que demanda “um processo mais rápido, simples e econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência certos tipos de controvérsias, de menor complexidade”.
No plano material, conforme Luis Carlos Alcoforado[3],
“[…] impõe-se a radicalização na transformação de postura de todos os operadores do Direito, notadamente no que concerne à reeducação dos valores compromissados com a ética, introduzindo-se nova cultura apta a demonstrar que, se cada um cumprir bem o seu papel, os conflitos de interesses serão resolvidos célere e equidosamente, tanto no plano judicial quanto ao extrajudicial.”
Como reflexo inerente dos conflitos sociais e econômicos, o número de ações judiciais vem aumentando vertiginosamente nos últimos anos, ao passo que os ritos processuais não têm evoluído com a mesma rapidez, sendo insuficiente, também, o efetivo humano disponível para a solução das demandas, cada vez mais complexas.
Conforme Cármen Lúcia Antunes Rocha[4], atual Ministra do Supremo Tribunal Federal, são duas as preocupações básicas da comunidade jurídica:
“[…] a imperiosidade de se assegurar, concreta e universalmente, o acesso de todos à justiça, nos termos determinados na Constituição da República, e a necessidade de se dotar o Estado de uma organização material e formal, voltada à prestação jurisdicional rápida, eficiente e eficaz.”
É notório que, mesmo tendo mais que dobrado o número de Juízes e de Varas na última década, os tribunais continuam congestionados de processos, a demonstrar que o êxito em obter uma prestação jurisdicional mais célere depende, sobretudo, de uma política judiciária mais eficiente.
No exercício da atividade jurisdicional que lhes é inerente, Juízes e Tribunais são instados a deliberar acerca da aplicabilidade de determinadas regras jurídicas sobre situações fáticas controvertidas, podendo ocorrer, por óbvio, decisões díspares sobre a mesma questão ou mesmo interpretação equivocada acerca do alcance da norma jurídica sobre o fato posto a julgamento. Disto é que decorrem os chamados dissídios jurisprudenciais.
As Súmulas[5] dos Tribunais, aliás, foram criadas num intuito de dar maior uniformidade e agilidade aos julgados sobre matérias presentes em reiterados julgamentos.
Na lição de Alfredo Buzaid[6]:
“O problema da uniformização da jurisprudência não se confunde (…) com o da evolução do direito interpretado pelos tribunais. Este é um ‘prius’; aquele, um ‘posterius”. Que o direito, em conseqüência de modificações políticas, sociais e econômicas, possa sofrer entendimento diverso, é princípio pacífico na doutrina. O direito pode ser imortal, mas não é imutável. Destarte, enquanto forem as mesmas as condições em que surgiu o direito, a tendência é a sua certeza, assegurada pela estabilidade de sua interpretação constante pelos tribunais.”
No mesmo sentido, intervém com clareza Marco Antonio Botto Muscari[7]:
“Aos menos avisados o dissenso pretoriano pode parecer uma demonstração da riqueza da atividade judicante, frente às diversas situações que a vida produz, permitindo inúmeros enfoques para a análise de um dado problema. Exame mais detido, porém, leva-nos à conclusão de que o ordenamento de um país deve ser uniforme. Alterando-se as condições culturais, econômicas, políticas e sociais de uma nação, é natural e até desejável o cambiamento da interpretação de certa norma, mesmo que permaneça intocado o seu teor literal. Entretanto, se num mesmo instante juízes diversos entendem que determinada regra é e não é aplicável a casos substancialmente iguais, conclui-se sem dificuldade que houve a consagração de injustiça neste ou naquele feito. Visando evitar situações como esta é que se instituem mecanismos tendentes à uniformização da jurisprudência.”
É certo, também, afirmar que as teses jurídicas são mutáveis, acompanhando as transformações sociais, o que motiva, via reflexa, as mudanças na interpretação das normas do direito, ainda que permaneça invariável a redação da lei. É assim que evolui a jurisprudência[8].
Não se pode, contudo, em nome de uma maior rapidez na solução das demandas, proibir o cidadão de recorrer das decisões, pois o devido processo legal e o duplo grau de jurisdição também são assegurados pela Constituição Federal (art. 5º, XXXV, LIV, LV).
Todavia, considerando que tais preceitos devem ser interpretados em seu conjunto, de forma coerente e coesa, é preciso criar mecanismos que limitem as hipóteses de recurso junto aos Tribunais Superiores, restringindo-os às questões excepcionais e relevantes, que extrapolem os meros interesses individuais.
Neste processo evolutivo do direito e da efetividade de sua prestação, a uniformização da jurisprudência ganha especial destaque.
Evolução histórica da força vinculativa da jurisprudência
Atualmente, existem dois grandes sistemas jurídicos: o sistema romano-germânico, que adota a lei como fonte principal do direito; e a “common Law”, de que se valem os sistemas inglês e norte-americano, cuja fonte principal do direito é a jurisprudência proveniente da evolução histórica dos costumes. De qualquer forma, em qualquer dos sistemas jurídicos, é de se ter em conta a lição de Miguel Reale, no sentido de que todo modelo jurídico é composto de fatos, valores e normas. Aliás, é justamente na valoração da norma diante do fato concreto que se deve limitar o poder discricionário do Juiz.
No sistema judiciário alemão, que influenciou fortemente a estruturação do Judiciário brasileiro, a Justiça é dividida em estadual e federal, sendo que a primeira equivale à Justiça de primeiro grau e a segunda é constituída de Tribunais incumbidos de conhecer os recursos de decisões dos Tribunais estaduais e uniformizar a jurisprudência.
“Das decisões dos Juízes de 1º grau cabe apelação para o Tribunal de 2º grau (instância de matéria fática e de direito). As decisões dos Tribunais de apelação são recorríveis para os Tribunais de revisão, que apreciam exclusivamente a matéria de direito[9].”
Além da Corte Constitucional, estrutura-se o Poder Judiciário Alemão em ramos autônomos: Justiça ordinária (processos penais, de direito civil e comercial); Justiça do Trabalho; Justiça Administrativa (demandas de direito público); Justiça Fiscal; Justiça Social (causas relativas a seguro-social, seguro-desemprego, amparo às vítimas de guerra e direito previdenciário) e Tribunal Federal de Patentes. Cada um desses ramos possui, também, um Tribunal Superior de revisão, que aprecia, tão-somente, matéria de direito.
“A jurisdição constitucional é exercida, na Alemanha, pela Corte Constitucional, o que também ocorre na Áustria, na Itália e na Espanha (…). A Corte Constitucional alemã tem sua competência inscrita na Lei Fundamental e na Lei do Tribunal Constitucional Federal. Ela é uma Corte autônoma e independente relativamente a todos os demais órgãos constitucionais[10], em igualdade com o Parlamento, o Conselho Federal e o Governo. Compete-lhe julgar os litígios entre os Estados e a Federação, em matéria de repartição de competência, as causas entre os órgãos da Federação e outras partes envolvidas, como as questões entre partidos políticos, a respeito de sua situação jurídico-constitucional; compete-lhe o controle da norma em abstrato. (…) Em qualquer Corte, se surgir a discussão em torno de matéria constitucional, o processo é sobrestado e a matéria é submetida ao julgamento da Corte Constitucional; o denominado processo do recurso constitucional compete, também, à Corte Constitucional[11].”
Assim, pelo sistema de controle de constitucionalidade alemão, uma vez decidida determinada matéria pela Corte Constitucional, tal decisão vincula todos os outros Tribunais, o que contribui para agilidade do sistema judiciário germânico.
Conforme Gilmar Ferreira Mendes, in Jurisdição Constitucional – O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha – – Editora Saraiva – 1996, p. 188/189: Em nenhum sistema de controle de normas, seja ele incidental ou concentrado, logra-se identificar formas de decisão tão variadas como as desenvolvidas pela Corte Constitucional.
Esclarece, ainda, o Ministro Gilmar Mendes[12]:
“A Lei do ‘Bundesverfassungsgericht’ disciplina as decisões para cada tipo de processo. A decisão, todavia, não é determinada pelo tipo de processo, mas pelo objetivo visado. Nos processos de controle de norma propriamente ditos, tem a decisão a mesma natureza, independentemente de se tratar de uma decisão no processo de controle abstrato, concreto ou de processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). As decisões proferidas em processo de controle de normas são publicadas no Diário Oficial e tem força de lei (Gesetzeskraft). (…) Além da declaração de nulidade, prevista no § 78 da Lei do ‘Bundesverfassungsgericht’, e da interpretação conforme a Constituição, utilizada já no começo da judicatura, desenvolveu o Tribunal outras variantes de decisão. Às vezes, reconhece o Tribunal que a situação é ainda constitucional ou não é ainda inconstitucional e vincula essa decisão com o ‘apelo do legislador’ para que, dentro de um determinado prazo, proceda à correção dessa situação. Em outros casos, limita-se o Tribunal a reconhecer a inconstitucionalidade sem pronunciar a nulidade (Unvereinbarkeitserklärung).”
Já o direito inglês e o norte-americano, afastando-se das raízes continentais romano-germânicas, conforme salienta Cacique de New York[13] (Juiz do TRT da 11ª Região), criou um sistema jurídico próprio denominado de ‘common law’, cujo principal sustentáculo é o ‘stare decisis’, ou seja, observação de precedentes utilizados na solução de determinado conflito. ‘Stare decisis et non quieta movere’ – apoiar as decisões e não perturbar os pontos pacíficos.
O modelo americano – restrito ao caso concreto – não se afigura compatível, em princípio, com essas novas técnicas de decisão. Todavia, em tempos mais recentes , pode-se identificar, nos Estados Unidos, a tendência da jurisprudência dos tribunais inferiores no sentido de não se limitar a proferir a cassação das providências editadas pelo Executivo ou pelo Legislativo, mas também impor-lhes obrigações positivas, Caso as autoridades legislativas ou administrativas não cumpram o estabelecido no julgado, os tribunais podem assumir a responsabilidade pela execução do julgado.
Assim, pelo sistema inglês e norte-americano, é do precedente jurisprudencial, fruto evolutivo da história do país e da valoração do julgador, que se extrai a regra aplicável aos casos concretos. Tais precedentes, no entanto, não são vinculativos, oscilando conforme a situação fática posta a julgamento e o livre convencimento do Juiz, pois a doutrina do ‘stare decisis’ não exige obediência cega às decisões passadas, permitindo a adequação das decisões ao caso concreto.
Para Gilmar Mendes, no entanto, em obra já citada:
“O modelo americano – restrito ao caso concreto – não se afigura compatível, em princípio, com essas novas técnicas de decisão. Todavia, em tempos mais recentes, pode-se identificar, nos Estados Unidos, a tendência da jurisprudência dos tribunais inferiores no sentido de não se limitar a proferir a cassação das providências editadas pelo Executivo ou pelo Legislativo, mas também impor-lhes obrigações positivas, Caso as autoridades legislativas ou administrativas não cumpram o estabelecido no julgado, os tribunais podem assumir a responsabilidade pela execução do julgado.”
A idéia de Justiça Constitucional, na lição de Canotilho, ganhou força com a atribuição, aos tribunais, do controle da regularidade do procedimento de formação dos órgãos constitucionais eleitos por sufrágio universal, com status de verdadeira política judiciária.
No Brasil, nosso sistema judicial segue os moldes da Lei Fundamental de Bohn, funcionando o Supremo Tribunal Federal mais como uma Corte Constitucional do que de Direito Comum[14]. Ao STF competiria julgar, em recurso extraordinário, as causas decididas em única e última instância pelos Tribunais Superiores, na forma do artigo 102, III, e parágrafos, da Constituição Federal.
Aliás, a história do STF se confunde com a própria evolução da constitucionalidade no Brasil, exercendo tal Órgão, no que tange aos preceitos normativos decorrentes da ação legislativa, tanto o controle difuso como o controle concentrado sobre a constitucionalidade das leis, o primeiro, através de julgamentos de casos concretos, o segundo através das ADIns. Exerce, ainda, o controle da inconstitucionalidade por omissão[15], através do mandado de injunção ou por ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Com efeito, qualquer que seja a forma de inconstitucionalidade, ela estará sujeita a controle pelo Poder Judiciário, através de mecanismos que a própria Constituição estabelece. Especificamente, no que tange ao controle concentrado, merece menção a “Ação Declaratória de Constitucionalidade” (ADC) e da Ação de Declaração de Inconstitucionalidade (ADIN), as quais, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, além da competência originária do Supremo Tribunal Federal, podem ser propostas, também, pelo Presidente da República; Mesa do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados; Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional e por confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Impende ressaltar, no entanto, que as decisões decorrentes do controle concentrado têm eficácia erga omnes e efeito vinculante, quanto aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (art. 102, § 2º, da Constituição Federal).
Conforme Canotilho[16]:
“A instituição da fiscalização da constitucionalidade das leis e demais atos normativos do Estado constitui, nos modernos Estados constitucionais democráticos, um dos mais relevantes instrumentos de controle do cumprimento e observância das normas constitucionais.”
Em tese, somente deveriam subir ao STF, as questões realmente relevantes. Contudo, o que se verifica, na prática, é um ‘inchaço’ da máquina judiciária com questões comezinhas de pouca repercussão para a sociedade.
Numa tentativa de desafogar a Suprema Corte de demandas de menor importância, a Emenda Constitucional 45/2004, como parte da Reforma do Judiciário, reintroduziu no nosso ordenamento jurídico, como pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário, a “repercussão geral das questões constitucionais[17]”, ou seja, a relevância da matéria passa a ser essencial ao conhecimento do recurso[18]. Tal prática é similar à “súmula de jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal[19]”, que foi introduzida no Brasil em 1963 e entrou em vigor em 1964, como resultado de proposta de iniciativa do então Ministro Victor Nunes Leal.
A exigência, quanto à repercussão geral das questões constitucionais, passou a vigorar, de fato, a partir de maio de 2007, com a Emenda Regimental nº 21 do STF. Antes da adoção desta medida, dados estatísticos apontavam a tramitação de cerca de 100 mil processos ao ano pelo Supremo Tribunal Federal.
A repercussão geral, ao reduzir o número de recursos junto ao STF, está em sintonia com o direito fundamental a um processo com duração razoável, conforme salienta o professor Luiz Guilherme Marinoni[20].
Tal medida, ainda que seja precoce apurar seus efeitos, já tem repercutido favoravelmente no número de julgados submetidos ao STF, pois, conforme o Presidente daquela Corte, Ministro Gilmar Mendes, a média de distribuição de recursos extraordinários, no período de julho de 2007 a março de 2008, é menor que a média distribuída no mesmo período em anos anteriores.
Destaco, por oportuno, que há diversos antecedentes históricos de decisões vinculantes no nosso ordenamento jurídico.
Com efeito, a criação de uma uniformização jurisprudencial não era novidade da década de 60, pois, anteriormente, vigia no Brasil, com base em antecedentes portugueses, o instituto dos “assentos[21]”, que impunham uma única hermenêutica aos órgãos jurisdicionais e tinham natureza eminentemente normativa.
Somente em 1828 é que a Constituição Imperial veio a instituir o Supremo Tribunal de Justiça (Órgão máximo do Poder Judicial à época), que não se propunha apenas a uniformizar a jurisprudência, mas também tinha forte influência na elaboração das leis, na medida em que enviava ao governo, anualmente, uma relação de causas objeto de revisão, apontando vícios, lacunas, incoerências e ineficiência na legislação vigente, a fim de possibilitar ao Corpo Legislativo a propositura de novas soluções.
A República extinguiu o debate e a prática dos “assentos”, o que, apesar de dar maior liberdade aos Magistrados para julgar os casos concretos, também potencializou o inchamento da máquina judiciária.
No Estado Novo (1937/1945), à época da edição da CLT, foi consagrado o Prejulgado, com força vinculante no âmbito de cada Tribunal.
A súmula de jurisprudência predominante do Supremo Tribunal somente foi introduzida na década de 60[22], numa tentativa de criar uma maior estabilidade jurídica e facilitar o trabalho dos advogados e do próprio Tribunal. Tal Súmula, no entanto, servia apenas como orientação predominante, mas não tinha, à época, força vinculativa obrigatória e definitiva para os demais Órgãos do Poder Judiciário.
O Supremo Tribunal Federal foi o primeiro órgão do Poder Judiciário a editar súmulas de sua jurisprudência predominante, influenciado pelo Direito Americano, seguido pelo Tribunal Federal de Recursos e pelo Tribunal Superior do Trabalho. Particularmente, quanto a este último, as Súmulas foram introduzidas em 1969, com a alteração do seu Regimento Interno.
Com a Constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional nº 01, de 1969, o Regimento Interno do STF foi alterado, passando a ser admissível recurso extraordinário nas hipóteses das alíneas “a” e “d” do inciso III do artigo 119 da Constituição da República, acrescentando em todos os feitos a relevância da questão federal, incluída pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977. Já naquela época, conforme destaca José Alberto Couto Maciel[23],
“o Supremo Tribunal Federal, em seu Regimento Interno, considerava relevantes as questões vistas por seus aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais, o que atualmente repete em seu Regimento, considerando da mesma forma a repercussão geral, apenas alterando, excluindo os aspectos morais e incluindo os jurídicos.
Portanto, o STF admitia, até então, recurso extraordinário por violação à lei federal ou à Constituição da República, bem como em questões consideradas relevantes.
Em 1975, o Brasil adotou, também, a chamada “argüição de relevância”, que se assemelhava, na opinião de Bruno Dantas, ao princípio do “certiori” americano e à repercussão geral. Todavia, a restrição decorrente das decisões sobre questões constitucionais em recurso extraordinário se dava única e exclusivamente no plano do direito federal infraconstitucional.
Com a Constituição de 1988, as violações de lei federal passaram a integrar a competência do Superior Tribunal de Justiça, ficando o Supremo Tribunal Federal como verdadeira Corte Constitucional. Tal alteração de competência, no entanto, não reduziu o movimento processual da Suprema Corte, pois ainda não havia um limitador recursal da relevância da matéria, o que somente foi instituído pela Emenda Constitucional 45/2004.
A Emenda Constitucional 45/2004, como já referido, além da reintroduzir no nosso ordenamento jurídico, como pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário, a “repercussão geral das questões constitucionais”, também conferiu efeito vinculante às Súmulas editadas pelo STF sob temas de relevância constitucional.
Conforme Rodrigo Barioni[24]:
“Trata-se de opção política do constituinte derivado no sentido de limitar a atividade jurisdicional da Suprema Corte, reservando-a aos casos de repercussão geral. Assim, a interpretação constitucional realizada no recurso extraordinário forma (ou poderá formar) precedente que refletirá em outros casos idênticos. A repercussão geral significa o transbordamento dos limites subjetivos do caso concreto levado a julgamento, de modo que a decisão do STF encontre eco em outras demandas similares, para as quais é imprescindível formar-se jurisprudência. A tentativa de implementar esse mecanismo de restrição dos recursos dirigidos ao STF, juntamente com o advento da chamada ‘súmula vinculante’, visa a melhorar a qualidade dos julgamentos, muito prejudicada pela gigantesca massa de causas submetidas à decisão. Com a gradual redução do número de recursos levados a julgamento pela Corte Suprema, tem-se a esperança de tornar mais célere, eficaz e segura a prestação jurisdicional.”
É oportuno ressaltar, inclusive, que o Tribunal Superior do Trabalho, assim como o STF, já dispõe de mecanismo similar à “repercussão geral”: a chamada “transcendência”, criada pela Medida Provisória 2.226/01, através da qual somente julgará recursos com relevância social, política, econômica ou jurídica que ultrapassem o mero interesse individual da parte. Além disso, a partir da edição da Resolução nº 129, de 05.04.2005, os então Enunciados do TST passaram a se denominar Súmulas.
Medidas inibitórias de recursos, aliás, já são aplicadas há muito tempo em países como a Alemanha e Estados Unidos.
A criação das Súmulas vinculantes
A Súmula vinculante foi proposta pela primeira vez em 1963, mas não teve solo fértil para vingar à época, em função do momento sócio-político-econômico que permeava o país. Sua criação, a par de duras críticas por parte de muitos juristas, somente se deu a partir da edição da Emenda Constitucional 45/2004, tendo como um de seus defensores o Ministro Vantuil Abdala.
Consta do artigo 103-A da Constituição Federal[25], regulamentado pela Lei 11.417/2006:
“O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”
Em tese, através da súmula vinculante os Juízes deveriam se submeter ao entendimento jurisprudencial adotado pelo Supremo Tribunal Federal[26], acerca de determinada matéria ou sobre temas que já tenham jurisprudência[27] consolidada nos Tribunais Superiores.
Tradicionalmente, a jurisprudência não criaria direito, mas apenas esclareceria o conteúdo latente da lei, através de entendimento pacificado no âmbito dos tribunais.
Na prática, no entanto, a Súmula vinculante terá efeito de genuína norma constitucional, alçando o Supremo Tribunal Federal a uma espécie de poder constituinte de segundo grau, posto que sua competência é, justamente, em matéria constitucional.
Além disso, com a Súmula vinculante, a par da celeridade processual, as demandas se tornariam mais uniformes e imparciais, gerando maior segurança jurídica aos jurisdicionados, desafogando os Tribunais, reduzindo o número de recursos protelatórios e agilizando as decisões.
Na Alemanha, aliás, a Súmula vinculante tem se mostrado um eficiente instrumento de celeridade e imparcialidade nos feitos e sua adoção nunca foi questionada pelos Magistrados como empecilho à sua liberdade de julgar, como alegam os opositores à súmula vinculante no Brasil.
A Súmula Vinculante nº 4 do SFT e a vedação da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade
O Presidente da República sancionou, em 19.12.2006, a Lei 11.417, através da qual autorizou a utilização da súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, tendo por objeto a validade, interpretação e eficácia das normas constitucionais aplicadas ao caso concreto, a fim de evitar a multiplicação de processos sobre questões idênticas e diversidade de decisões entre os Tribunais. Na oportunidade, também no intuito de tornar mais célere a prestação jurisdicional, o Presidente da República sancionou a Lei 11.419, que trata da informatização do processo judicial, bem como a Lei 11.418, que visa a subida de recursos para o STF em questões de repercussão geral. A estas medidas soma-se a Lei 11.276/2006, que trata da súmula impeditiva de recursos pelas instâncias inferiores.
O Supremo Tribunal Federal já editou várias Súmulas vinculantes[28], dentre as quais, destaco a Súmula nº 4[29], por sua relevância para o Direito do Trabalho.
Consta da referida Súmula: “Salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.” (grifo).
Esta Súmula, a princípio, parece sintetizar a evolução da jurisprudência também no que tange à base de cálculo do adicional de insalubridade, em conformidade com o disposto no artigo 7º, inciso IV, da Constituição.[30]
O próprio Tribunal Superior do Trabalho, quando restaurou a Súmula 17[31], através da Resolução Administrativa nº 121, de 08.10.2003[32], dava sinais do elastecimento da jurisprudência em prol da adoção de outra base salarial para o adicional de insalubridade que não o salário mínimo.
Aliás, decisões mais recentes da SDI-I do TST já conferiam interpretação mais extensiva da Súmula 17, no sentido de que o piso salarial ou o salário convencional também serviriam como base de cálculo do adicional de insalubridade e não somente o salário profissional, cuja fonte é a lei[33].
A evolução da jurisprudência acerca do tema ganhou força com as decisões mais recentes do STF que, entendendo que o salário mínimo não pode servir de indexador para nenhum efeito, sob pena de afronta ao artigo 7º, IV, da Constituição Federal, determinou, na ausência de salário profissional ou normativo, a adoção do salário contratual como base de cálculo do adicional de insalubridade[34].
Neste sentido, inclusive, são os precedentes que deram origem à Súmula 04 do STF, que, via reflexa, reconheceu a inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade[35].
Oportuna, no aspecto, a lição de Alfredo Buzaid, quando refere que a jurisprudência é o direito vivo, proclamando “a norma jurídica concreta que atuou quando surgiu o conflito de interesses”.
Além disso, a ordem jurídica não pode nem deve retroceder[36].
O TST, no entanto, não reconheceu, a princípio, a efetividade da Súmula vinculante nº 04 do STF, em toda sua amplitude, continuando, num primeiro momento, a coexistir tal verbete com a Súmula 228, cuja redação era incompatível com a da Súmula Vinculante da Corte Maior.
A posição adotada a priori pelo TST, frente a esta nova realidade jurídica, é sintetizada pelo Ministro Ives Gandra Martins[37], nos seguintes termos:
“A Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, mas vedou a substituição desse parâmetro por meio de decisão judicial. Até que novo critério seja adotado, por lei ou por negociação ou sentença coletiva, ele continuará a ser aplicado quando a categoria não tiver piso salarial. Este fundamento foi adotado pela Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho em duas decisões recentes sobre a matéria. O entendimento da Sétima Turma é de que o STF, ao analisar a questão constitucional sobre a base de cálculo do adicional de insalubridade e editar a Súmula Vinculante nº 4, adotou técnica decisória, conhecida no direito constitucional alemão como ‘declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade’: a norma, embora declarada inconstitucional, continua a reger as relações obrigacionais, em face da impossibilidade de o Poder Judiciário se sobrepor ao Legislativo para definir critério diverso para a regulação da matéria. A Súmula Vinculante nº 4 estabelece que, ‘salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial. Para o relator, se não fosse a ressalva final, poder-se-ia cogitar a substituição do critério do artigo 192 da CLT, relativo ao adicional de insalubridade, pelo previsto no artigo 193, parágrafo 1º, da CLT para o adicional de periculosidade – o salário-base do trabalhador, uma vez que insalubridade e periculosidade são ambas fatores de risco para o trabalhador. Mas a parte final da Súmula não permite criar novo critério.”
A interpretação conferida, inicialmente, à Súmula vinculante do STF pelo Tribunal Superior do Trabalho se justificava face à problemática causada pela parte final da redação da referida Súmula, que veda a substituição da base de cálculo do adicional de insalubridade por decisão judicial.
Conforme o Ministro Ivens Gandra Martins, citando obra do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal “adotou técnica decisória, conhecida no direito constitucional alemão como ‘declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade’.”
Cabe, portanto, antes de mais nada, esclarecer como se dá esta forma de declaração de inconstitucionalidade, a fim de melhor compreender a aplicação da referida Súmula Vinculante ao fato jurídico concreto.
Declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. Aplicação na Alemanha e no Brasil. Notas de direito comparado.
Conforme destaca o Ministro Gilmar Mendes do STF, na obra Jurisdição Constitucional:
“Ao lado da declaração de nulidade, prevista no § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht, desenvolveu o Tribunal outra variante de decisão, a declaração de incompatibilidade ou declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade[38]. (…) A expressão literal da lei, todavia, não se mostra unívoca. Enquanto no § 78, 1º período da Lei Bundesverfassungsgericht, assenta-se que a lei incompatível com a Constituição deve ser declarada nula, os §§ 31, (2), e 79, (1), da Lei Bundesverfassungsgericht distinguem entre a lei inconstitucional e a lei nula.”
O Tribunal Constitucional alemão utiliza técnica consistente em declarar a incompatibilidade (Unvereinbarerklärung) de lei inconstitucional quando a declaração de inconstitucionalidade não vem acompanhada da respectiva declaração de nulidade da lei (o que em nosso sistema diz com a eficácia que acompanha a declaração de inconstitucionalidade).
“Em virtude de sua flexibilidade, a “interpretação conforme à Constituição” assume particular relevância na prática do Bundesverfassungsgericht. A sua utilização é justificada com fundamento na unidade do ordenamento jurídico (Einheit der Rechtsordnung) e no princípio da conservação da norma, que recomenda o respeito à vontade do legislador. A sua qualificação dogmática não é pacífica. Significativa parcela da doutrina defende a sua caracterização como simples caso de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, uma vez que, normalmente, acarreta exclusão de algumas das possíveis interpretações da norma, reduzindo o seu âmbito de aplicação[39].”
Todavia, as disposições constantes da Lei Bundesverfassungsgericht não explicitam quando o Tribunal deverá abster-se de declarar a nulidade. É que tal técnica foi criada sem previsão em lei e talvez por isso ainda gere controvérsia na doutrina alemã.
A princípio, a Corte Constitucional não adotava a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade na parte dispositiva, limitando-se a esclarecer as razões da renúncia à declaração de nulidade nos fundamentos da decisão.
Vige no sistema alemão, além da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, o “apelo ao legislador” (Appellentscheidung[40]), através da qual, apesar de rejeitar a argüição de inconstitucionalidade, o Tribunal anuncia uma possível conversão desta situação, ainda constitucional (noch verfassungsmemäss) num estado de inconstitucionalidade.
De qualquer forma, conforme salientado pelo Ministro do STF, Gilmar Mendes, na obra in Jurisdição Constitucional – O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha, a par da controvérsia acerca da aplicação da declaração da inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, ela representa um juízo de desvalor da norma questionada que obriga o legislador a empreender as medidas necessárias para a supressão da inconstitucionalidade apontada pelo Tribunal. Envolve, especialmente, casos em que a inconstitucionalidade de lei, que violaria o princípio da igualdade, favoreceria determinado grupo em detrimento de outro. Assim, reconhecida a inconstitucionalidade, o Tribunal se absteria de declarar a nulidade, deixando à liberdade de conformação do legislador a tarefa de editar a lei[41], em determinado prazo[42], a fim de atender aos ditames constitucionais[43].
Todavia, para evitar que, no período em que o legislador se ocupa da criação da nova lei, ocorra situação de maior distanciamento da Constituição (vazio legislativo) do que aquela oriunda da aplicação provisória da mesma lei, pelo recurso à “Unvereinbarerklärung”, prevalece provisoriamente a eficácia da lei considerada inconstitucional.
Na prática, a omissão legislativa também assume importância para sustentar a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, a exemplo de leis que carecem de regulamentação. Note-se, neste caso, que a pronúncia da nulidade é inviável justamente porque não há como declarar a nulidade de lacuna de lei nem de ato normativo inexistente.
Com a declaração de inconstitucionalidade, sem a pronúncia de nulidade, caberia, então, ao legislador promover os esforços necessários para restabelecer a ordem constitucional, quer sanando eventual omissão na lei, quer suprimindo disposição legal incompatível com a Constituição.
Conforme o sistema alemão, no entanto, se admite que a declaração de inconstitucionalidade, ainda que sem pronúncia de nulidade, projete seus efeitos para o passado, em conformidade com a Lei Bundesverfassungsgericht, limitando os efeitos retroativos à data da declaração da inconstitucionalidade. Assim, os efeitos negativos ou danosos da lei imputada de inconstitucional não poderiam ser suprimidos em relação ao passado, mas perderiam sua eficácia em relação ao futuro. Desta forma, o legislador, ao adequar o texto de lei à Constituição não estaria obrigado a conferir efeitos retroativos à nova ordem legal. “A retroatividade somente é de exigir-se em relação àquelas situações ainda suscetíveis de serem impugnadas e que, portanto, não estão cobertas pelas cláusulas gerais de preclusão ou pela coisa julgada”[44]. Todavia, a declaração de inconstitucionalidade, mesmo sem pronúncia de nulidade, teria o efeito de vedar aos tribunais, à administração e demais órgãos, a aplicação da norma considerada inconstitucional, a contar da decisão proferida pela Corte Constitucional, de acordo com os fundamentos nela constantes.
No Brasil, a “Constituição de 1988 abriu a possibilidade para o desenvolvimento sistemático da declaração de inconstitucionalidade, na medida em que atribuiu particular significado ao controle de constitucionalidade da chamada omissão do legislador[45]”, através de mandado de injunção[46], embora tal prática não fosse novidade no nosso sistema jurídico, a exemplo da Constituição de 1946, que possibilitava ao Tribunal se manifestar, preliminarmente, no processo de intervenção federal, na hipótese de ofensa aos chamados princípios sensíveis.
A decisão judicial, na hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem imputação de nulidade, faz coisa julgada e vincula as partes envolvidas (com efeito “erga omnes”), sem afetar a existência do ato impugnado.
Todavia, a ausência de declaração de nulidade, no controle de omissão, não implica na aplicação reiterada da norma parcialmente inconstitucional, salvo na hipótese em que a aplicação excepcional da lei inconstitucional é oriunda de exigência do próprio ordenamento constitucional, quando a suspensão da norma imperfeita gera prejuízo maior, acarretando a perda do próprio direito subjetivo que a Constituição pretende tutelar.
Interpretação da Súmula Vinculante nº 04 do STF
A omissão inconstitucional, portanto, na linha da doutrina alemã, pressupõe um dever constitucional de legislar, e nesta brecha é que entendo que se insere a parte final da Súmula Vinculante nº 4 do STF, a qual serve como mola propulsora para a necessária reforma do artigo 192 da CLT pelo legislador ordinário, na medida em que impossibilita ao judiciário fixar a base de cálculo do adicional de insalubridade através de decisões judiciais.
De fato, a redação da Súmula nº 4 do STF não prima pela melhor técnica, suscitando dúvidas de interpretação, sobretudo, quanto à restrição lançada ao final, no que tange à vedação da substituição da indexação da base de cálculo de vantagem pelo salário mínimo por decisão judicial.
Ao que parece, o STF, ao editar a Súmula com esta redação, visava resguardar, também, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, a fim de evitar a anulação de inúmeras demandas que, antes da edição da Súmula, já haviam adotado o salário mínimo como base de cálculo. Assim, apesar de preservar a segurança jurídica quanto aos atos já consumados, a Súmula vincula as futuras decisões a empregarem outra base de cálculo para as parcelas salariais de um modo geral, inclusive para o adicional de insalubridade, que não o salário mínimo, mesmo nos casos em que o trabalhador não está recepcionado por salário profissional ou convencional.
Na lição de Canotilho[47]:
“A eficácia ‘ex nunc’ é própria do sistema concentrado. Como sustentou Kelsen, enquanto o Tribunal Constitucional não tiver declarado inconstitucional uma lei, este ato é válido e vinculante para os juízes e demais aplicadores do direito. A declaração com efeitos erga omnes (típico dos atos legislativos) valeria apenas pro futuro. Já no caso do judicial review o feito típico é o da nulidade e não da simples anulabilidade: a lei desaplicada por inconstitucional é nula porque desde a sua entrada em vigor é contrária à constituição, motivo pelo qual a eficácia invalidante se deveria tornar extensiva a todos os atos praticados à sombra da lei constitucional – daí o seu efeito ex tunc’.”
Este, na verdade, é o grande dilema no que tange aos efeitos das súmulas vinculantes em questões constitucionais, se os mesmos seriam “ex nunc” ou “ex tunc”.
A solução adotada pelo STF, ao estabelecer restrição na redação da parte final da Súmula Vinculante nº 4, é de conferir efeitos “ex nunc” ao verbete, em conformidade com o disposto no artigo 103-A da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional 45, de 2004.
Com efeito, a norma constitucional inserta no artigo 103-A visa, em tese, impedir a aplicação retroativa da jurisprudência, em prol da defesa do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada e da própria segurança jurídica das relações.
Todavia, não é de todo inviável a aplicação retroativa de Súmulas de jurisprudência, sobretudo em questões constitucionais.
Neste sentido, merece destaque a seguinte decisão:
“Súmula do TST. Aplicação retroativa. Significado das formulações sumulares (…). O conteúdo das formulações sumulares limita-se a contemplar e a consagrar, no âmbito dos tribunais, a sua orientação jurisprudencial predominante, caracterizada pela reiteração de decisões em igual sentido. O enunciado sumular assume valor meramente paradigmático, pois exprime o sentido da jurisprudência prevalente em determinado tribunal. A súmula nada mais é do que a cristalização da própria jurisprudência. As súmulas dos tribunais não se submetem às regras de vigência impostas às leis. Nada impede que os magistrados e tribunais dirimam controvérsia com fundamento em orientação sumular fixada após a instauração do litígio[48]. (grifei).”
É preciso ter em conta que, ao editar uma Súmula, o Tribunal traduz a uniformização de reiterada jurisprudência anterior à sua criação, sinalizando que a posição jurisprudencial sumulada não é nova, mas mera pacificação de velhas decisões. Assim, sua adoção retroativa, nesta ótica, seria apenas a confirmação de posicionamentos anteriormente adotados no âmbito dos Tribunais, o que, no entanto, ainda gera muita polêmica entre os doutrinadores. Tecnicamente, seria mais adequado dizer que os efeitos “ex nunc” tanto das Súmulas de jurisprudência predominante como das Súmulas Vinculantes, seria de sua prevalência, como orientação aos aplicadores do direito, a fim de evitar decisões dissociadas de seu conteúdo, a partir da edição da respectiva jurisprudência sumulada, não alcançando decisões abrangidas pela coisa julgada ou situações já consolidadas sob a égide de interpretação jurisprudencial anterior, bem como para sobrestar a subida de recursos aos Tribunais Superiores. Não há óbice, no entanto, salvo na hipótese de violação de ato jurídico perfeito e de direito adquirido, que a nova Súmula produza seus efeitos em processos já em curso quando de sua edição.
De qualquer forma, toda mudança jurisprudencial deve ser aplicada com cautela, extraindo-se da Súmula todo seu conteúdo interpretativo em conformidade com ordenamento jurídico, evitando criar prejuízo a situações já consolidadas ou abrangidas pela coisa julgada, para preservação da segurança jurídica e da paz social.
Particularmente, no caso do artigo 7º, IV, da Constituição Federal, embora já vigesse desde outubro de 1988, sua interpretação somente restou pacificada com a edição da Súmula 4 do STF, o que equivale a dizer, sobretudo considerando a redação de sua parte final, que a Suprema Corte conferiu vigência efetiva ao dispositivo constitucional somente a partir da edição da Súmula (efeito ‘ex nunc’), confirmando o quanto já referido de que o Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, passa a atuar como uma espécie de poder constituinte de segundo grau. Diferentemente, são as decisões provenientes da declaração de inconstitucionalidade de lei, que alcançam também os atos pretéritos nela alicerçados.
Não me cabe perquirir, no presente artigo, acerca da validade da compulsoriedade da súmula vinculante, pois, além de ser favorável a sua edição (como muitos doutrinadores), por questão de política judiciária, trata-se de situação já consolidada no nosso ordenamento jurídico. No entanto, ainda que não seja esta a minha posição, registro a crítica que fica a este novo poder, conforme sintetizado pelo jurista Fábio Konder Comparato, quando questiona a legitimidade do Judiciário para impor Súmulas com força de lei:
“Em regime democrático, a criação do Direito ou a imposição de políticas constituem poderes pertencentes, unicamente, ao povo (democracia direta), ou aos órgãos que o povo investir nessa função como seus representantes (democracia indireta). Os Juízes e Tribunais não são órgãos componentes da representação popular, pelo menos em nosso sistema constitucional, nem parece que devam sê-lo no direito constituendo.”
Tal posição doutrinária, ainda que válida, não traduz, no entanto, o anseio maior da sociedade, quanto à prestação jurisdicional mais rápida e efetiva, a qual se busca com a edição das súmulas vinculantes. Soma-se a isto a necessidade de uma pacificação social, cujo objetivo também pode ser alcançado através de uma uniformização dos julgados.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, ao editar uma súmula vinculante, pacificando determinada matéria de amplitude constitucional, pode estar, nesta tarefa interpretativa, reduzindo, ampliando ou reconhecendo direito aos jurisdicionados. Neste sentido, já afirmava Kelsen, “a decisão judicial de um caso concreto (…) de modo nenhum é apenas aplicação do Direito, senão simultaneamente também criação do Direito, a continuação do processo de produção do Direito que acontece no processo legislativo[49]”.
Ora, na dicção de Luís Roberto Barroso[50], se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.
O questionamento que fica, na linha do raciocínio do autor supracitado, é o seguinte: Se o Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, ao interpretar determinado preceito, instituir, mesmo que indiretamente, direitos aos cidadãos, tal Súmula, com força de norma constitucional, não seria, então, imutável?
Esta questão, no entanto, será objeto de futuros debates, não se prestando o presente artigo para lançar todas as respostas, mas sim para suscitar dúvidas, pois as reflexões é que impulsionam as transformações no âmbito do direito.
Oportuna, no aspecto, a transcrição de excerto de texto redigido pelos Desembargadores do Trabalho do TRT da 4ª Região – Luiz Alberto de Vargas e Ricardo Carvalho Fraga[51]:
“a despeito da clareza da súmula do Supremo Tribunal Federal, o TST, a pretexto de assegurar a disciplina judiciária, tem passado ao largo da mesma, exigindo das instâncias inferiores uma submissão a orientações sumulares, que ele mesmo tem dificuldade em praticar em suas decisões. Em dois relevantes temas, o TST não passou a acompanhar integralmente as decisões do STF. Um deles é o relativo à base de cálculo do adicional de insalubridade, havendo, apenas recentemente, alguma diminuição da distância entre os entendimentos das duas Cortes, com a “restauração” Enunciado 17 do TST, ao final de 2.003”.[52]
Questiono, no entanto, se Súmula Vinculante nº 4 do STF, na sua parte final, não estaria criando solo fértil para a interposição de novos recursos extraordinários, ao invés de obter a preconizada celeridade processual apregoada no Texto Constitucional.
Acerca do tema, mostra-se relevante a transcrição de Paulo Cezar Jacoby dos Santos[53]:
“Quando o indivíduo confia no sistema jurídico vigente, tal confiança merece proteção do Estado, o qual poderá fazer os ajustes necessários – reformar tal sistema -, mas sempre garantido aos cidadãos segurança jurídica. Esta nada mais é do que a confiança depositada por aqueles no Estado, que detêm o poder conferido pelo povo de regulamentar suas relações. Tal regulamentação, entretanto, (…) não pode extrapolar os princípios vigentes.”
O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, do qual tenho a honra de integrar a Administração, como Vice-Presidente, atento a este movimento da jurisprudência, bem como às decisões iterativas do STF (inclusive antes da edição da Súmula vinculante nº 4), vinha dando seguimento a inúmeros recursos de revista, por violação do artigo 7º, IV, da Constituição Federal, nos casos em que o acórdão regional fixava como base de cálculo do adicional de insalubridade, o salário mínimo, a exemplo das decisões proferidas nos autos dos processos RO 00136-2005-372-04-00-9, RO 00484-2006-003-04-00-8, RO 00496-2006-014-04-00-6, dentre outros.
Todavia, durante a vigência da redação original da Súmula 228 do TST no mundo jurídico, com fixação do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, também obtiveram seguimento os recursos de revista no caso inverso, em decorrência da violação da referida Súmula, quando, em face da ausência de salário profissional ou normativo ou por outro fundamento, o Regional fixou, como base de cálculo do adicional de insalubridade, o salário contratual ou outra base de cálculo, a exemplo dos seguintes precedentes: ROPS 00168-2007-601-04-00-3, RO 00140-2006-733-04-00-8, dentre tantos.
A subida dos recursos, em ambos os casos, tinha por escopo fomentar a discussão do tema no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, a fim de uniformizar o entendimento daquela Corte com o já assentado pelo STF acerca da matéria, evitando a dicotomia na interpretação do artigo 7º, IV, da Constituição Federal, verificada nos julgados.
Outro problema que, de plano, se detecta, é que o artigo 192 da CLT, que regulamenta o adicional de insalubridade contemplado na Constituição no artigo 7º, XXIII, ao fixar o salário mínimo, como base de cálculo do referido adicional, está em confronto tanto com a Súmula Vinculante nº 4 do STF, bem como com a disposição constante do artigo 7º, IV, do Texto Maior.
Na verdade, o artigo 192, no que tange à base de cálculo do adicional de insalubridade, já foi declarado inconstitucional pela 1ª Turma do STF, face à vedação da adoção do salário mínimo como parâmetro de cálculo da vantagem. Contudo, tal norma somente deixará de existir no mundo jurídico, formalmente, quando for suspensa por Resolução do Senado Federal (art. 52, X, da Constituição da República) ou quando revogada por ato normativo do Congresso Nacional (lei ordinária).
A problemática que, de plano, se detecta, face aos termos da Súmula Vinculante nº 4 do STF e da inconstitucionalidade do artigo 192 da CLT, é a de que o adicional de insalubridade ficaria carecedor de regulamentação legal, da mesma maneira que hoje ocorre com o adicional de penosidade, haja vista que, sem a definição de sua base legal ficaria difícil a implementação do pagamento da parcela.
A evolução histórica e social impõe a necessidade de melhor adequação das leis, sobretudo, da CLT, não para retirar direitos dos trabalhadores, mas para resguardá-los de forma mais efetiva contra futuras interpretações nocivas por parte dos aplicadores do direito.
Uma das soluções possíveis para a controvérsia, até que o legislador se ocupe da formulação da nova lei, aparando as arestas em que detectada a incompatibilidade constitucional com a norma ordinária (vazio legislativo), seguindo a linha da doutrina alemã, seria a aplicação provisória da mesma lei, adotando, por analogia, a “Unvereinbarerklärung”, reconhecendo, provisoriamente, em prol da segurança jurídica, a eficácia da lei considerada inconstitucional, ou, então, alternativamente, estabelecer novo parâmetro como base de cálculo, via jurisprudência, a fim de suprimir tal lacuna.
Com efeito, destaca Paulo Cezar Jacoby dos Santos, in Flexibilização das Normas Trabalhistas e sua Constitucionalidade[54], para evitar retrocesso social, que “o legislador sempre terá de se interrogar: direitos que já estão garantidos não podem ser retirados do trabalhador sem a devida compensação”.
Destaco, que o princípio da segurança jurídica, conforme Almiro Couto e Silva,
“[…] é o princípio norteador da lealdade e lisura, pelo qual as partes envolvidas devem proceder corretamente com o que se comprometeram e com a palavra empenhada que, em última análise, chama-se ‘boa-fé’, que dá conteúdo ao referido princípio. O Estado deve assegurar estabilidade nas relações jurídicas, conduta essa que dará respeitabilidade ao Estado democrático de direito.”
Portanto, até que o legislador se posicione definitivamente acerca da base de cálculo do adicional de insalubridade, resta ao Julgador, na lacuna da lei, se questionar “Quais Súmulas[55]”?
Na busca de tal resposta, é oportuna a lição do Juiz Cacique de New York do TRT da 11ª Região[56]:
“O exame de qualquer tema jurídico ficará sempre incompleto sem que se adicionem as condições sociológicas e históricas que lhe são contemporâneas. No tocante à jurisdição, ou seja, a atividade própria de dizer o direito, essa preocupação deve ser redobrada, porque jurisdição é manifestação do poder, necessitando, portanto, de indagação mais profunda, além do invólucro retórico em que as forças políticas encobrem determinado instituto.”
É preciso ter em conta que, mesmo não sendo unânime a aceitação das súmulas vinculantes por parte dos doutrinadores, elas estão contempladas na Constituição da República não podendo ser desconsideradas, sendo legítima sua imposição aos demais órgãos judicantes, em prol, sobretudo, de uma maior celeridade do Judiciário quanto aos temas de competência do Supremo Tribunal Federal, haja vista que a uniformidade de interpretação do direito pátrio é objetivo perseguido pela própria Constituição.
Além disso, tais Súmulas admitem a possibilidade de alteração, o que é apropriado, na medida em que o termo segurança e ordem pública também são subjetivos, variando de acordo com o contexto no qual são inseridos e interpretados e conforme a dinâmica histórica do momento.
Aliás, como bem destacado por Marco Antonio Botto Muscari[57],
“ao emitir a súmula vinculante, o Poder Judiciário não inaugura a ordem jurídica, criando direitos e obrigações; simplesmente giza o alcance da norma que o legislador, antes, editou. A obrigatoriedade a que estarão submetidos os demais órgãos do Judiciário e da Administração significa que não lhes será lícito, após a emissão da súmula, deixar de acolher a interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal.”
Especificamente, no que tange à base de cálculo do adicional de insalubridade, o STF, ao editar a Súmula Vinculante nº 4, nada mais fez que confirmar o quanto já constava da Constituição, no artigo 7º, IV, quanto à vedação da utilização do salário mínimo como indexador para qualquer efeito.
Na verdade, a Súmula 228 do TST, em sua redação original, retratava posição equivocada, pois não poderia, ‘a priori’, fixar, de antemão, o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, pois, além de inconstitucional, tal entendimento jurisprudencial criava uma limitação ao direito do trabalhador, o qual ficava, em tese, obstado de pleitear, na hipótese de não estar contemplado por salário profissional ou convencional, o pagamento do referido adicional com base no seu salário contratual.
De fato, a Súmula 228 do TST foi criada de forma dissociada dos princípios que regem o Direito do trabalho, distorção que, agora, com a edição da Súmula 4 do STF, tende a ser suplantada de nosso ordenamento jurídico.
O Tribunal Superior do Trabalho, no entanto, não se esquivou ao debate nem se omitiu de apresentar sua solução, ainda que provisória[58], à questão da base de cálculo do adicional de insalubridade.
Com efeito, antes do que se esperava, o TST, em sessão do Tribunal Pleno do dia 26 de junho de 2008, reformulou sua Súmula 228, fixando como base de cálculo do adicional de insalubridade o salário básico, a partir da publicação do comando emergente da Súmula Vinculante nº 4 do STF.
Na mesma sessão, a Corte Trabalhista cancelou a Súmula 17 e a Orientação Jurisprudencial nº 02 da SDI-1 e alterou a Orientação Jurisprudencial 47 da SDI-1 para adequá-las à nova redação da Súmula 228 do TST, cujo teor ainda será objeto de oportuna publicação pelos Órgãos Oficiais.
A Súmula 228 do TST passou, então, a vigorar com a seguinte redação:
“Adicional de insalubridade. Base de cálculo.(Res. 14/1985, DJ 19.09.1985. Nova redação – Res. 121/2003, DJ 19.11.2003. Redação alterada – Res. 148/2008, DJe do TST 04/07/2008). A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n.º 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo.”
O TST, ao optar pelo salário básico, como base de cálculo do adicional de insalubridade, adotou, por analogia, os critérios estabelecidos na Súmula 191[59], que trata do adicional de periculosidade.
Ao alterar a redação de sua Súmula 228, o Tribunal Superior do Trabalho, inovando ao disposto no artigo 103-A da Constituição Federal, que confere efeitos meramente “ex nunc” às Súmulas, remetia seus efeitos à data da edição da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal, ou seja, embora tenha alterado sua Súmula em 04 de julho de 2008 (data de sua publicação no Diário de Justiça), retroagia seus efeitos a 9 de maio de 2008. Contudo, apesar da Súmula dar margem a sua aplicação retroativa, o Ministro do TST Vantuil Abdala esclareceu que tal entendimento deveria ser aplicado restritivamente às relações trabalhistas posteriores à edição da Súmula Vinculante nº 4 do STF, a fim de evitar a criação de um passivo trabalhista.
Por outro lado, considerando que a Súmula Vinculante nº 4 do STF apenas confirmou o quanto já constava contemplado na Constituição da República, no que tange ao óbice da utilização do salário mínimo como indexador para qualquer fim, não seria próprio afirmar que, desde a edição da Constituição de 1988, não era lícito adotar o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade; a justificar, nesta hipótese, a retroatividade das novas Súmulas acerca da matéria?
Esta, contudo, é uma reflexão que deixo para os meus leitores, face à polêmica que envolve o tema.
De qualquer forma, a Súmula reformulada pelo TST, em que pese tenha criado a possibilidade de adoção de outras bases de cálculo para o adicional de insalubridade, que não somente o salário básico, com caráter mais protetivo que aquele conferido em sua redação anterior, teve curta aplicação.
Com efeito, sua vigência foi suspensa através de duas liminares deferidas pelo Ministro Gilmar Mendes, Presidente do STF, ao fundamento de que “a nova redação estabelecida para a Súmula 228/TST revela aplicação indevida da Súmula Vinculante 4, porquanto permite a substituição do salário mínimo pelo salário básico no cálculo do adicional de insalubridade sem base normativa”.
Conforme o Ministro Gilmar Mendes, seguindo a linha do direito alemão, “a vinculação do adicional de insalubridade ao salário mínimo ofende a parte final do inciso IV do artigo 7º da Constituição, garantida a sua utilização até a edição de lei que discipline a base de cálculo e o critério de atualização – e, aí (…) fica vedada a substituição.”
Assim, com a suspensão da Súmula 228 do TST e ante a interpretação restritiva da Súmula 4 pelo STF, o trabalhador (salvo aqueles que possuem base de cálculo para o adicional de insalubridade fixada em cláusula coletiva) ficou ao desamparo legal, tendo em conta que o artigo 192 da CLT também é inconstitucional, ainda que o STF, face à lacuna legal, tenha postergado, na prática, a aplicação da norma inconstitucional até a fixação de outra base legal para o adicional de insalubridade.
Portanto, tais entendimentos jurisprudenciais, ao contrário de restabelecerem a segurança jurídica e de fomentarem a tão desejada celeridade processual, criaram, na prática, uma lacuna legislativa, dificultando ao trabalhador o acesso ao adicional de insalubridade, assegurado dentre os direitos sociais pela Constituição Federal (art. 7º, XXIII).
Em face do exposto, é que os juízes trabalhistas, através da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, estão articulando junto ao governo federal a edição de uma Medida Provisória para alterar a redação do artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho.
Conforme a proposta da ANAMATRA, o artigo 192 da CLT ficaria com a seguinte redação:
“O trabalho em condições insalubres assegura ao trabalhador a percepção do adicional de insalubridade correspondente a 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) ou 10% (dez por cento) incidentes sobre seu salário básico, segundo a insalubridade se classifique, respectivamente, nos graus máximo, médio ou mínimo, sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa.”
Mas, afinal, qual a base de cálculo mais adequada para o adicional de insalubridade?
Conforme a CLT, no seu artigo 192, com a redação da Lei 6.514/77, a base de cálculo do adicional de insalubridade[60] seria o “salário mínimo da região”, determinação esta, que não encontra amparo na Súmula Vinculante nº 4 do STF nem no artigo 7º, IV, da Constituição Federal.
E, então, qual o parâmetro a adotar?
A Súmula 17 do TST, atualmente cancelada, abria a possibilidade de se adotar, como base de cálculo, o salário profissional[61] e o salário convencional (piso salarial[62] ou salário normativo)[63]. Tal parâmetro, contudo, não abrangia a totalidade dos trabalhadores, pois nem todos possuíam salário profissional ou normativo.
Sebastião Geraldo de Oliveira afirma que a intenção do constituinte, ao editar o artigo 7º, IV, da Constituição Federal, desde o início, era evitar a utilização do salário mínimo como fator de indexação em sentido estrito e não em sentido absoluto como restou assentado no âmbito do STF.
Conforme a lição da Canotilho, ao interpretar os princípios e regras constitucionais, deve-se ter em conta duas premissas básicas: o princípio da máxima efetividade ou da eficiência e o princípio da força normativa da Constituição. Pelo primeiro princípio, da norma constitucional deve ser extraído o sentido que melhor eficácia lhe conceda; pelo segundo princípio, deve-se, ao interpretar a norma, obter sua maior eficácia, aplicabilidade e permanência.
Arnaldo Süssekind[64] esclarece que:
“Em seus diversos títulos, a Constituição brasileira consagrou diretrizes e princípios que justificam a utilização do salário como instrumento da justiça distributiva. A dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho se inserem entre os próprios fundamentos do Estado (art. 1º), que deve procurar ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’, ‘erradicar a pobreza’ e ‘reduzir as desigualdades sociais’ (art. 3º).”
Neste contexto, verifica-se que as Súmulas 17 e 228 do TST, com suas redações originais, não se coadunavam com os princípios que regem o direito do trabalho (princípio ‘in dúbio pro operario’; princípio da norma mais favorável e princípio da condição mais benéfica), estando em desacordo, inclusive, com os princípios constitucionais que informam os direitos sociais, que abrangem, também, o adicional de insalubridade. Portanto, é justificável, também sob este aspecto, o cancelamento de tais verbetes.
Além disso, consta da Constituição Federal, no artigo 7º, XXIII[65], a previsão de adicional de remuneração para as atividades insalubres, o que inviabilizaria, em tese, a fixação de outra base de cálculo para referido adicional através de legislação ordinária ou entendimento jurisprudencial, salvo se objeto de negociação coletiva ou oriunda de regra mais favorável.
Nesta linha, Francisco Ferreiro Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante, na obra Manual de Direito do Trabalho, defendem que o adicional de insalubridade deveria incidir sobre a remuneração[66], no que são acompanhados por Sebastião Geraldo de Oliveira, afirmando que não se pode ignorar o vocábulo ‘remuneração’ constante da Carta Política, cuja acepção tem contornos bem definidos na doutrina jurídico-trabalhista, valendo ressaltar que a presunção, sobretudo no Direito Constitucional, é de que o legislador tenha preferido a linguagem técnica.
Na verdade, a Constituição Federal, ao adotar a palavra remuneração, nada mais fez do que corrigir a diferença de tratamento entre os adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade, a fim de salvaguardar, de forma mais justa, a integridade física do trabalhador.
Na linha defendida pela Juíza Valéria Heinicke do Nascimento, em artigo “O Adicional de Insalubridade e a Súmula Vinculante nº 4 do STF”, publicado no Jornal “O Sul”, de 08.06.2008 e tal como proposto pela ANAMATRA, a base de cálculo do adicional de insalubridade deveria ser o salário-base pago ao trabalhador, por analogia da previsão constante do artigo 193, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho[67], ou seja, o adicional deveria ser calculado sobre o salário em sentido estrito, sem “acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”.
Neste sentido, também, vale a aplicação analógica da Súmula 191 do TST, que trata do adicional de periculosidade, como parâmetro para a base de cálculo do adicional de insalubridade.
Note-se, porém, que o legislador constituinte, ao mencionar a palavra remuneração no artigo 7º, XXIII, da CF, se referia à natureza salarial dos adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade e não ao fato de que deveriam ser calculados sobre a remuneração do trabalhador, hipótese diversa.
Isto porque o artigo 457, § 1º, da CLT, restringe-se a indicar os elementos que compõem o chamado complexo salarial[68], isto é, confere natureza salarial às parcelas nele referidas, distinguindo-as, porém, do salário-base. As gratificações e as percentagens correspondem ao que se denomina sobre-salário[69]; somam-se ao salário-base[70], mas neste não se diluem, nem perdem suas características próprias[71].
Portanto, o adicional de insalubridade integra o complexo salarial, assim como as horas extras, gratificações ajustadas, adicional noturno e tantas outras parcelas de natureza salarial, mas sua base de cálculo, por óbvio, não pode ser o complexo salarial do qual faz parte, sob pena de restar caracterizado o chamado “bis in idem”. Assim, sua base de cálculo deveria ser o valor ajustado a título de salário básico no contrato de trabalho do empregado (proposta da ANAMATRA) ou melhor, para evitar a criação de passivo trabalhista e o rombo financeiro nas empresas, em razão da alteração da base legal do referido adicional, sugiro a adoção do valor do menor salário pago dentro da empresa (mínimo pago pelo empregador), com os reajustes legais e normativos que se seguirem. Apenas acrescentaria a possibilidade de adoção do salário profissional, fixado por lei, e do piso salarial (fruto de negociação coletiva ou inserto no regulamento empresário) ou salário normativo como base de cálculo do referido adicional, na linha da extinta Súmula 17, sempre que mais vantajosos ao empregado.
Tal entendimento, aliás, não é novidade no âmbito do TST, conforme se denota do teor da redação do seguinte aresto:
“ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SALÁRIO CONVENCIONAL OU PISO NORMATIVO. SÚMULA 17 DO TST. 1. A despeito da terminologia específica, salário mínimo, salário profissional, salário normativo e salário convencional ou piso normativo correspondem todos ao menor valor que deve ser pago ao trabalhador, de acordo com a situação que vivencie e com a norma jurídica que se lhe aplique (lei, sentença normativa, convenção ou acordo coletivo de trabalho). Assim é que, ao buscar-se a base de incidência do adicional de insalubridade, dever-se-á, antes, pesquisar a categoria de contraprestação mínima sobre a qual repercutirá, de modo a fazer-se efetivo o regramento inscrito no art. 192 da CLT e no art. 7º, inciso XXIII, da Constituição Federal. Esta é a vocação da Súmula 17 do TST. 2. A condenação ao cálculo do adicional de insalubridade sobre o salário convencional está adequada à jurisprudência iterativa do Tribunal Superior do Trabalho, não prosperando o recurso de revista (CLT, art. 896, § 4º). Recurso de revista não conhecido.” (3ª Turma do TST – Relator Ministro Alberto Bresciani, 21 de junho de 2006). (grifei)
Neste sentido, inclusive, adaptando-me à evolução jurisprudencial do TST, manifestei-me em alguns julgados deste TRT:
“…O adicional de insalubridade, por ter natureza salarial, deve ser calculado com base no valor mínimo percebido pelo empregado, o que não significa, necessariamente, a quantia correspondente ao salário mínimo propriamente dito. Conforme reiteradamente decidido por esta Justiça Especializada, a Constituição Federal, no artigo 7º, inciso IV, ao proibir a vinculação do salário mínimo “para qualquer fim”, não impede seu uso como indexador ou padrão monetário básico de outros tipos de obrigação. Assim, revendo posicionamento anterior, entendo que o montante correspondente ao valor mínimo devido ao trabalhador serve como suporte ao princípio da equivalência mínima a ser observada entre o trabalho prestado e a contraprestação respectiva. Nesse contexto, a base de cálculo do adicional de insalubridade é o menor salário percebido pelo empregado, o qual, no caso dos autos, é o piso/salário normativo previsto nos instrumentos coletivos adunados aos autos, a exemplo da cláusula 02 da fl. 278, carmim. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o salário profissional, bem como aquele previsto nos planos de cargos e salário, será a base de cálculo do adicional de insalubridade, quando existentes. (…).” (00923-2004-381-04-00-0 RO – 8ª Turma – TRT 4ª Região – publicado em 31.07.2006).
Note-se que a adoção do menor salário pago na esfera da empresa, como parâmetro de pagamento do adicional de insalubridade, não geraria prejuízo ao trabalhador, posto que é vedado o pagamento de salário inferior ao mínimo legal e, em contrapartida, não haveria maiores prejuízos ao empregador, em função da alteração da base de cálculo do referido adicional.
Não se pode olvidar que, embora o pagamento do adicional de insalubridade seja essencial para indenizar o trabalhador da nocividade advinda de suas condições de trabalho, as empresas já suportam encargos tributários e sociais elevados, sendo que a adoção de base de cálculo superior a atual para o referido adicional culminaria pela elevação do nível de desemprego bem como na sonegação dos direitos trabalhistas que a Constituição Federal visa garantir.
Contudo, até que a questão tenha uma solução definitiva, com a edição de legislação infraconstitucional compatível com os ditames da Magna Carta, a matéria seguirá sendo decidida nos termos do julgado a seguir transcrito:
Conclusão.
A uniformização da jurisprudência e a segurança jurídica
A uniformização da jurisprudência (que implica atribuição de eficácia vinculante à interpretação que se pretende seja adotada, segundo José Ignácio Botelho de Mesquita[72]) é de interesse público.
Com efeito, num mundo em constante ebulição social e instabilidade institucional, o reconhecimento, a eficácia e a efetividade do direito à segurança jurídica devem ser prioridade, a fim de resguardar os princípios e direitos fundamentais.
Conforme bem destacado por Paulo Cezar Jacoby dos Santos[73]:
“Em três acórdãos da lavra do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, pioneiros na Suprema Corte brasileira, percebe-se que o princípio da segurança jurídica, depois de um longo tempo ter ficado latente no ordenamento jurídico pátrio, volta hoje com intensidade de ser proclamado pela mais alta Corte da Justiça do país. Em ambos o referido Ministro invoca que ‘(…) em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material’.” (Mandados de Segurança PET 2900/RS, MS 24628/MG e MS 22357/DF).
Na verdade, são dois os valores do Direito: a Justiça e a Segurança Jurídica, pois, enquanto a jurisdição atua na promoção da justiça no caso concreto, a segurança jurídica confere estabilidade coletiva.
É certo que a lei é fonte de segurança jurídica, mas não menos importância tem sua interpretação pelo aplicador do direito, o qual, nesta tarefa, deve tentar afastar possíveis desvirtuamentos legislativos, através da melhor hermenêutica na subsunção da norma ao caso concreto, pois só assim se alcança a verdadeira justiça.
Aliás, conforme destaca o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes[74], citando Häberle:
“Colocado no tempo, o processo de interpretação constitucional é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está submetido à reserva de consistência (Vorbehalt der Berwährung), devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou, ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais.”
A súmula vinculante em matéria constitucional é vantajosa para a segurança das relações, pois se expurga do mundo jurídico a convivência de decisões adversas, uniformizando-se, com isonomia, a jurisprudência, a qual servirá de alicerce para os julgamentos futuros.
Conforme lição de Tourinho Filho, não se pode conceber que uma questão decidida pelo Supremo tribunal Federal, a Corte mais alta do País, o Tribunal que dá a última palavra, receba decisão diferente, em causas idênticas, nos tribunais e Juízes inferiores, obrigando o vencido a interpor recursos, percorrendo um caminho difícil, penoso, demorado para, depois de anos e anos, chegar ao Supremo, a fim de obter a reforma daquela decisão.
Neste contexto, a adoção das Súmulas vinculantes, com a previsibilidade das decisões judiciais, além de contribuir para a diminuição dos conflitos judiciais e melhorar a efetividade da prestação jurisdicional, reduziria e muito o tempo de tramitação das ações.
Resta saber, contudo, se os demais Tribunais, no ato de adaptar a aplicação das Súmulas Vinculantes do STF ao âmbito de suas respectivas competências, não correm o risco, também, de criar distorções na sua interpretação, perpetuando o problema já sintomático no nosso ordenamento jurídico quanto ao conflito de Súmulas na sua incidência ao caso concreto.
Conforme a lição de Marco Antonio Botto Muscari[75]:
“[…] de que servem o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, se as teses jurídicas que fixam (de forma definitiva, segundo as competências estabelecidas na Constituição) não sensibilizam os juízes e tribunais localizados na base da pirâmide judiciária?”
De qualquer sorte, em que pese a relevância da adoção dos precedentes de uniformização da jurisprudência dos Tribunais, como dinamizador da prestação jurisdicional mais célere, resta claro, como ocorreu em relação à base de cálculo do adicional de insalubridade, que certas questões somente podem ser eficientemente dirimidas através da edição de lei compatível com os preceitos constitucionais tutelados.
Assim, só nos resta esperar que cada Poder do Estado exerça com magnitude e responsabilidade o seu papel perante a sociedade, quer julgando, criando leis ou executando medidas que assegurem a paz social e a segurança das relações jurídicas.
Desembargador Vice-Presidente do TRT da 4ª Região, Formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (1966-70), Pós-graduação pela Fac. de Direito da Universidade de Buenos Aires (1995-96), Ex-professor do Departamento de Direito da UFSM.
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