Resumo: O presente trabalho busca sopesar em que medida a reserva do possível se afigura um obstáculo, no âmbito do direito constitucional brasileiro, à realização de direitos sociais que garantem, em última ratio, a própria dignidade da pessoa humana. Como ponto de partida será traçado um panorama geral, no qual, após uma distinção conceitual, os direitos sociais serão contextualizados como direitos humanos e direitos fundamentais. Nesse momento, serão tecidos comentários sobre os obstáculos à efetivação dos direitos sociais: o caráter programático dos preceitos normativos instituidores de direitos sociais; a origem da teoria da “reserva do possível” e sua incorporação pelo direito brasileiro; as consequências de se subjugar a implementação dos direitos sociais somente a existência de recursos financeiros. Ainda, após abordagem acerca das garantias do mínimo existencial e da proibição do retrocesso social, e uma passagem pela evolução do posicionamento do STF sobre os direitos sociais, esta articulação se encerrará com as considerações finais.[1]
Palavras-chave: direitos fundamentais – direitos sociais – PEC da felicidade políticas públicas – implementação – tratados internacionais – justiciabilidade – internacionalização – internalização – reserva do possível – dignidade da pessoa humana – retrocesso social – separação de poderes – ponderação de interesses – proporcionalidade – razoabilidade.
INTRODUÇÃO
Um dos assuntos mais discutidos no Brasil, principalmente com a crise na saúde e educação, é a dificuldade em se efetivar os direitos sociais, dado seu aspecto essencialmente prestacional e, por isso, sua dependência da execução de políticas públicas aptas a garantir a efetiva proteção à população mais carente. Essa dificuldade é, pois, o pano de fundo deste artigo, cujo objetivo é discutir até que ponto a reserva do possível realmente pode ser vista, no âmbito do direito constitucional brasileiro, como óbice à concretização dos direitos sociais os quais garantem, em última ratio, a própria dignidade da pessoa humana.
Ressalte-se, aqui, a inexistência de qualquer pretensão em se esgotar definitivamente o tema. Mas o que são direitos sociais?
1. Panorama geral dos direitos sociais
1.1. Distinção conceitual entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais” e a contextualização dos direitos sociais
De início, importante diferenciarmos conceitualmente direitos humanos de direitos fundamentais. [2] Conquanto as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” sejam, via de regra, utilizadas como sinônimas, que o termo “direitos fundamentais” aplica-se aos direitos do ser humano reconhecidos e positivados pelo direito constitucional de determinado Estado, enquanto a expressão “direitos humanos” refere-se aos documentos de direito internacional, àquelas circunstâncias jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, objetivam amplitude universal, para todos os povos e a qualquer época, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). [3] Esclarecida essa diferença terminológica, vejamos a definição legal e doutrinária dos direitos sociais.
O conceito legal, posto pelo legislador constituinte de 1988 no artigo 6° [4], aponta como direitos sociais básicos a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
Quanto ao conceito doutrinário, muitas são os autores de peso que se debruçam sobre o tema, de modo que três foram escolhidos por se encaixarem perfeitamente ao objetivo deste trabalho.
Silva (2007, p. 183), ao conceituar os direitos sociais, diz que eles “disciplinam situações subjetivas pessoais ou grupais de caráter concreto”.
Para Lenza (2014, p. 1.182), os direitos sociais são prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e pretendem concretizar a isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da CF/88).
Morais (2003), por sua vez, define-os como direitos fundamentais do homem, de observância obrigatória em um Estado de Direito, cuja finalidade é proporcionar igualdade social através da melhoria das condições de vida dos hipossuficientes. Passemos, agora, à contextualização dos direitos sociais.
1.2. Direitos sociais como direitos humanos
1.2.1. A internacionalização dos direitos sociais
As monstruosas aberrações perpetradas por Hitler e companhia na Segunda Grande Guerra levaram a sociedade internacional a perceber que parte das violações aos direitos humanos poderia ter sido evitada com um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos. [5]
Em razão disso, o mundo despertou no pós-guerra, para a necessidade de se garantir, efetivamente, os direitos humanos, reconstruindo-os sob nova perspectiva, qual seja, redirecionando sua proteção não só aos direitos civis e políticos, mas também aos direitos sociais, econômicos e culturais.
Neste contexto, sobreveio a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, principiando esse movimento de internacionalização dos direitos humanos, para incluir, entre eles, os direitos sociais, econômicos e culturais.
“Art. XXV – Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos e perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 17)
Todavia, apesar da importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos para aludido movimento, dado o seu status de “soft law” (sem vinculação jurídica), necessário se fazia sua judicialização, tornando juridicamente exigíveis os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.
Ora, essa judicialização passou a ser possível com a adesão pelos Estados-partes aos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, e posterior internalização desses direitos.
1.3. Direitos sociais como direitos fundamentais
1.3.1. Internalização dos direitos sociais na Constituição pátria
Influenciado pelas declarações de direitos do pós-guerra, pelas Constituições Mexicana de 1917, Alemã de 1919 (a de “Weimar”), e Portuguesa de 1976, o Brasil ampliou significativamente a proteção aos direitos e garantias fundamentais desde a Constituição de 1988, ratificando os mais importantes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos como, por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1992, e o Protocolo de San Salvador em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, em 1996.
Segundo Piovesan e Vieira (2006), o Texto Constitucional de 1988 trouxe “a mais vasta produção normativa de direitos humanos de toda a história legislativa Brasileira”, sendo que “a maior parte das normas de proteção aos direitos humanos foi elaborada” após a Magna Carta de 1988, “em decorrência e sob a sua inspiração”. Daí, afirmarem que em 1988, surgiu novo marco jurídico normativo brasileiro no campo da proteção dos direitos humanos, em especial dos direitos sociais e econômicos.
Nossa Constituição Cidadã adotou nova topografia constitucional, assegurando nos primeiros capítulos proteção aos direitos e garantias fundamentais, elevando-os à cláusula pétrea (nos termos do artigo 60, §4º), e mais, incluiu amplo rol de direitos sociais num capítulo específico sobre o tema (Capítulo II), pela primeira vez, dentro do título dos direitos e garantias fundamentias (Título II), lhes conferindo aplicabilidade imediata.[6]
1.3.1.1. A influência do superprincípio da dignidade da pessoa humana no estudo dos direitos sociais
Explica Piovesan (2000) que a “dignidade da pessoa humana” é o princípio matriz do ordenamento jurídico brasileiro, norteando-lhe o sentido e a interpretação das normas constitucionais, além de, juntamente com os Direitos e Garantias Fundamentais, servir como referência às exigências de justiça e valores éticos (grifo nosso).
Ademais, assume significado como direito individual e como princípio, acrescenta Comparato (1989), compondo, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos (grifo nosso)
Adotada pelo texto constitucional com duplo sentido, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1, IV) e finalidade da ordem econômica (art. 170, caput), a dignidade humana confere unidade aos direitos fundamentais (individuais, sociais e econômicos), e à organização econômica. (grifo nosso)
Tal significa, de um lado, que o Brasil se define como “entidade política constitcionalmente organizada, (…) enquanto a dignidade da pessoa humana seja assegurada ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político”. De outro, significa que a atividade econômica “deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar (GRAU, 2002, p. 194).
Por fim, a elevação da dignidade humana ao patamar de “super-príncípio“, diz Piovesan (2004), coloca o individuo no centro do ordenamento juridico pátrio, conferindo-lhe o direito de exigir do Estado condições jurídico-materiais aptas a garantir amparo e proteção social, como educação, saúde, alimentação, entre outros, o que se extrai das muitas normas constitucionais sobre direitos sociais.
1.3.1.2. Dispositivos constitucionais destinados à efetivação dos direitos sociais
A Constituição de 1988 prevê amplo rol de direitos sociais, a começar pelo Título II (Dos direitos e garantias fundamentais), que traz o artigo 6º (direitos sociais básicos), artigo 7º (direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, de cunho individual), artigo 8º (direitos dos trabalhadores de cunho coletivo), artigo 9º (direito de greve), artigo 10 (participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos), e artigo 11 (eleição de representante nas empresas com mais de duzentos empregados).
Aqui, apropriado um parênteses para mencionarmos a “PEC da Felicidade" (PEC nº 513/2010-CD e PEC nº 19/2010-5F), como bem registra Lenza (2014), apresentada, conjuntamente, tanto na Câmara (Deputada Manuela D’Ávila), quanto no Senado (Senador Cristovam Buarque), com objetivo de aperfeiçoamento do artigo 6°, que passará a ter a seguinte redação:
"Art. 6.o São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
E adverte o mesmo autor:
“As PECs em comentário visam proteger não a felicidade em seu aspecto subjetivo, o que significaria a busca de sentimentos muito particulares, mas, notadamente, o aspecto objetivo da felicidade que, segundo as propostas, pode ser normatizado no sentido de que a concretização dos direitos sociais leva a um estado geral (coletivo) de felicidade.
De acordo com as justificativas, "há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade, ou seja, justamente os direitos sociais – uma sociedade mais feliz é uma sociedade mais bem desenvolvida, em que todos tenham acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, (…)".
Findo o parênteses, e voltando ao tópico, no Título VII (Da Ordem Social), inúmeros dispositivos prevêem programas, diretrizes e metas a serem objetivados pelo Estado e pela sociedade como, por exemplo, os artigos 194 (seguridade social), 196 (saúde), 201 (previdência social), 205 (educação), dentre outros.
Não bastasse isso, preocupado em emprestar a máxima carga de efetividade aos direitos sociais, para que a vontade da Constituição prevalecesse sobre a vontade dos “Poderes”, o legislador constituinte estatuiu os artigos 5º, § 1º, 34, inciso VII, alínea “e”, 60, § 4º, inciso IV, e 109, inciso V-A, § 5º, ora comentados.
1.3.1.1.1. O artigo 5º, § 1º
Ao estabelecer a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, o artigo 5°, § 1º, da Carta de 1988, realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais”. (PIOVESAN, 2013)
Note-se, aqui, que o campo de incidência do § 1º do artigo 5º abarca todos os direitos e garantias fundamentais do Título II, e mesmo fora dele, como entende Ferreira Filho (1988), Piovesan (1995), Grau (2002), Sarlet (2011), Marmelstein (2008) e quase a totalidade da doutrina.
2.2.1.1.2. O artigo 34, inc. VII, “e”
Tal dispositivo constitucional inovou ao trazer a “possibilidade de intervenção federal nos Estados em que não houver a observância da aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde” (PIOVESAN; VIEIRA, 2006)(grifo nosso).
1.3.1.1.3. O artigo 60, § 4°, inciso IV
A par dos posicionamentos doutrinários contrários, não mais se duvida da inclusão dos direitos sociais nas cláusulas pétreas (limites materiais ao poder de reforma constitucional), eis que pacificada a questão com a ADIN nº. 1946/DF, de relatoria do Ministro Sidney Sanches, na qual o Supremo Tribunal, mediante “interpretação conforme”, invalidou interpretação de dispositivo de emenda constitucional (artigo 14 da Emenda Constitucional n. 20/98), supressivo de direito social prestacional, evidenciando que tais espécies de direitos também afiguram-se cláusulas pétreas (objeto de proteção superconstitucional).
1.3.1.1.4. O artigo 109, incisoV-A, e § 5º
Antes da Reforma do Judiciário, a União não era competente para apurar, processar e julgar a grande maioria dos crimes contra direitos humanos; o que era um contrassenso, alerta a ANPR (1999), dada sua qualidade de ente federado, com personalidade jurídica na esfera internacional, que tem o poder de contrair obrigações jurídicas internacionais em matéria de direitos humanos, mediante ratificação de tratados.
Daí, “adequando o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional de direitos humanos”, afirma Lenza (2014), a EC nº 45 estatuiu a federalização dos crimes contra direitos humanos, incluindo o inciso V-A e § 5º, no artigo 109, para possibilitar o deslocamento da competência do juízo estadual para o federal, quando preenchidos determinados requisitos.
2. OS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
2.1. O CARÁTER PROGRAMÁTICO DOS PRECEITOS NORMATIVOS INSTITUIDORES DE DIREITOS SOCIAIS
Grande parte da doutrina classifica as normas definidoras dos direitos sociais, observa Sarlet (2011), como normas de caráter programático que, conforme Miranda apud Barroso (2002, p. 115), são “aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelos quais se hão de orientar os Poderes Públicos”. Por isso, “a legislação, a execução e a própria Justiça ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função”(grifo nosso).
Além disso, se por um lado ao Estado é imposto o dever de observância às premissas das normas programáticas, de outro, não raras vezes esse mesmo Estado utiliza-se do fato do conteúdo de muitas normas programáticas sobre direitos prestacionais não possuírem condições mínimas de implementação, como álibi à imagem de um Estado atento normativamente aos problemas sociais, construindo assim “uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas”, diz NEVES apud KRELL (2002)(grifo nosso).
2.2. A TEORIA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”
2.2.1. O NASCIMENTO DA EXPRESSÃO “RESERVA DO POSSÍVEL
Segundo Sarlet (2008, p. 29), a construção da teoria da “reserva do possível” teve origem na Corte Constitucional Alemã, notadamente a partir dos anos 70, ocasião em que se decidiu o caso conhecido como “Numerus Clausus”, e discutiu-se a limitação do número de vagas nas universidades públicas.
Na hipótese, explica Mânica (2007, p. 169), em contrapartida à limitação de vagas nos cursos superiores imposta à época, estudantes buscavam o ingresso nas universidades de medicina, em Hamburgo e Munique, com base no artigo 12 da Lei Fundamental alemã, pela qual “todos os alemães tem direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.
Com efeito, a Corte Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva (número de vagas nas universidades) condicionava-se ao limite do possível, razão pela qual o cidadão apenas poderia exigir do Estado o que fosse razoável; ou seja, a Corte Alemã fundamentou sua decisão na razoabilidade da pretensão.
E como aclara Sarlet (2011, p. 287), para o Tribunal Alemão:
“(…) a prestação reclamada deve corresponder ao que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável”.
Depreende-se, pois, desse julgado que a “reserva do possível” não se relaciona exclusivamente à existência de recursos materiais bastantes à implementação dos direitos sociais, mas também à razoabilidade da pretensão proposta. Seja como for, no Brasil, aludida teoria sofreu profunda alteração.
2.2.2. A incorporação da teoria pelo direito brasileiro
2.2.2.1. A aplicação distorcida e divulgada, em boa parte, pela Administração Pública, e os limites fáticos e jurídicos como obstáculo à implementação dos direitos sociais
No Brasil, a “reserva do possível” sofreu profunda distorção, ao restringir-se a idéia original da teoria ao “limite do financeiramente possível”, eleito como condição para efetivação dos direitos sociais.
A esse respeito, ao críticar a incorporação da teoria pelo direito brasileiro, Vidal (2009) afirma que sua aplicação deveria ser excepcional, destacando que “as condições jurídico-positivas nas quais a teoria nasceu não se reproduzem no Brasil”.
Doutra feita, avalia Krell apud Sarlet (2008) que o distanciamento do sentido original da teoria, tornou a implementação dos direitos sociais praticamente nula, sedimentando a reserva do possível como verdadeiro limite fático à efetivação de tais direitos.E ao lado dessa baliza fática, afirma Sarlet (2011), há, ainda, um limite jurídico, consubstanciado no problema da possibilidade jurídica de disposição, pois o Estado deve ter capacidade jurídica para dispor (autorização orçamentária para determinado gasto), sem o qual de nada adiantariam os recursos existentes.
Assim, com a adoção da tese do “financeiramente possível”, os limites fático e jurídico opostos pelo Estado têm sido obstáculo à efetivação de direito fundamental de cunho prestacional. E como arremata Sarmento (2008), aludida teoria transformou-se em matéria de defesa para o Estado que, ao invés de alegá-la genericamente como óbice à concessão judicial de prestações sociais, detém o ônus de provar esta alegação.
2.2.2.2. As consequências de se subjugar a implementação dos direitos sociais apenas à existência de recursos econômicos estatais
O relatório de 2014 do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), coloca o Brasil na 79.ª posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no ranking mundial de 187 países. A maior parte de nossa população é, pois, carente de direitos prestacionais de cunho social mínimos como saúde, educação e moradia.
A par desta situação, mensura Krell (2002) que arrefecer a realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de recursos econômicos estatais, aniquila sua eficácia, relativiza sua universalidade, condenando-os a serem direitos de somenos importância (KRELL, 2002).
3. A GARANTIA DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”
A partir do momento em que se constata que as necessidades são ilimitadas e os recursos disponíveis limitados, torna-se necessário estabelecer uma ordem de prioridades a serem observadas, bem como atentar-se para os fins estabelecidos pela Constituição Federal (PLACIDINA e FACHIN, 2013).
Nessa passo, o conceito de “mínimo existencial” ganha destaque, como garantia indispensável a ser implementada para o resguardo dos hipossuficientes.
A preocupação com o “mínimo de existência” diz a respeito, portanto, à exigência de garantias materiais para satisfazer as necessidades básicas à sobrevivência do indivíduo e de sua família.
Nesse passo, o mínimo existencial possui estreita ligação com a dignidade da pessoa humana, objetivo central de proteção por nosso ordenamento constitucional, de modo que garantir o mínimo existencial, significa assegurar o valor maior do Texto de 1988 cuja aplicabilidade, lembre-se, deve ser imediata (artigo 5°, § 1°), vedado o retrocesso social.
4. O PRINCÍPIO QUE VEDA O RETROCESSO SOCIAL
A origem do princípio da vedação de retrocesso social, esclarece Netto (2010), encontra-se na obra de Konrad Hesse que, em 1978, desenvolveu a teoria da irreversibilidade e, segundo a qual, o Estado estaria vinculado à cláusula do Estado Social relativa “à interpretação da legislação existente, à determinação de tratamento diferenciado de certas situações em prol da igualdade e à limitação ao Poder Legislativo.”
O que Canotilho denomina (2004, p. 468) de “proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária”, pode ser definido como uma barreira impeditiva da revogação das normas garantidoras dos direitos sociais, partindo-se da diretriz segundo a qual, depois de atingido determinado nível de proteção, qualquer recuo a um patamar inferior ocasionaria ultraje ao princípio constitucional de amparo a tais direitos. E prestigiando Barroso (2006, p. 379):
Ainda, segundo Barroso (2006, p. 379), o princípio da vedação ao retrocesso social é consequência dos princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático e Social de Direito, da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais, além do postulado da proteção da confiança e da própria noção do mínimo essencial.
No Brasil, bem observa Garcia (2010), tem-se aplicado com mais frequência o princípio da vedação ao retrocesso, desde o ano 2000, conquanto ainda alguns o vejam como novidade e, por óbvio, não se trate de princípio absoluto.
5. A EVOLUÇÃO DO POSICIONAMENTO DO STF QUANTO AOS DIREITOS SOCIAIS E A RESERVA DO POSSÍVEL
Acerca das principais discussões no Brasil sobre a implementação dos direitos sociais, poucos foram os casos impactantes enfrentados pelo Supremo até agora. Como nos explica Piovesan (2009):
“O regime militar foi caracterizado pela supressão de direitos constitucionais, pela hipertrofia do Poder Executivo em relação aos demais Poderes e pelo centralismo federativo na União, em detrimento da autonomia dos Estados.(…) Após o longo período de vinte e um anos de autoritarismo militar, que perdurou de 1964 a 1985 no país, deflagra-se o processo de democratização no Brasil. (…) Nós tivemos a transição política em um ritual lento e gradual em direção à democracia. Vários países, quando fizeram o mesmo ritual de passagem, fortalecem suas instituições, criaram novos textos e também novas cortes constitucionais. Nós não. Adotamos um pacto jurídico que é a Constituição, mas não alteramos, na ocasião, o órgão guardião da Constituição. Ele foi herdado do passado, com as suas potencialidades e heranças de épocas sombrias, ditatoriais. Teve uma composição marcadamente civilista, com a liderança do ministro Moreira Alves que, no entanto, nunca viu o tema com o coração aberto, com um sentimento constitucional. Mudamos tudo com a Constituição, mas a entregamos a um guardião antigo(…).”
E uma mudança neste cenário promete despontar, como realça a mesma autora:
“Reputo a três fatores. Um é a extensão da legitimação para o uso de institutos como a Ação Direta de Inconstitucionalidade. O rol dos legitimados para entrar com essas ações foi ampliado. Outro fator foi a maior agilidade e transparência do Supremo. A TV Justiça, por exemplo, tornou o tribunal mais palpável, o que encoraja a sociedade a provocar mais a corte. O terceiro fator são as audiências públicas e a figura do amicus curiae.” (PIOVESAN, 2009)
Todavia, a implementaçao dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, em especial as garantias de cunho social, ainda encontra resistências.
“(…), no tocante à proteção dos direitos civis – as liberdades públicas no sentido clássico – há farta jurisprudência das Cortes brasileiras, em especial quando do julgamento das garantias do habeas corpus e do mandado de segurança. Essas garantias têm marcada inspiração liberal, na medida em que objetivam a contenção do abuso e do arbítrio do Poder Público, objetivando um não-fazer. (…)Nesses casos, o Poder Judiciário se vale da chamada "interpretação de bloqueio", com o fim último de assegurar o respeito ao valor da liberdade, limitando o poder do Estado, de acordo com o princípio da legalidade. (…)Já com relação às garantias de cunho eminentemente social – mandado de injunção e ação civil pública – que demandam tarefas positivas do Estado, objetivando um fazer, o Poder Judiciário tem apresentado em geral uma atuação tímida, de forma a obstar tais prestações positivas. Ao apreciar tais garantias, as Cortes Brasileiras recorrem à "interpretação de bloqueio", que, como visto, é consonante com as garantias de cunho liberal, mas não social. Para a implementação de direitos sociais, necessária seria a adoção de uma "interpretação de legitimação de aspirações sociais à luz da Constituição", na terminologia de Tércio Sampaio Ferraz Jr. O procedimento interpretativo de legitimação de aspirações sociais à luz da Constituição reflete a pretensão de realização dos comandos constitucionais, na qualidade de instrumento de legitimação das tarefas postas ao Estado. (…)A implementação dos direitos sociais exige do Judiciário uma nova lógica, que afaste o argumento de que a "separação dos poderes" não permite um controle jurisdicional da atividade governamental. Essa argumentação traz o perigo de inviabilizar políticas públicas, resguardando o manto da discricionariedade administrativa. (…) Há portanto que se realçar a imperatividade jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais, com base na doutrina da indivisibilidade dos direitos humanos consagrada pela Declaração Universal em 1948 e endossada em Viena, em 1993. Há que se propagar a idéia de que os direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e, por isso, devem ser reivindicados e compreendidos como direitos e não como caridade ou generosidade.” (PIOVESAN, 2009)
Assim, os direitos sociais não têm sido devidamente reconhecidos pelo STF, que os concede, não por si sós, mas sim por coligarem-se a algum direito civil ou político, pex., reconhece-se o direito à saúde pois concatenado ao direito à vida.
Para atender ao objetivo deste artigo, contudo, pertinente pontuar o posicionamento da Suprema Corte brasileira ao enfrentar a alegação estatal de que determinados direitos prestacionais não poderiam ser fornecidos em virtude das limitações decorrentes da reserva do possível.
A respeito, citando o ARE 639.337 AgRg/SP, alerta Falsarella (2012, p. 10) que, via de regra, o posicionamento do STF é pelo "afastamento desse argumento, que não poderia justificar o descumprimento pelo Estado de seus deveres na área dos direitos sociais, especialmente nos casos em que o direito pleiteado integra o mínimo existencial". E continua:
"Verifica-se que para o STF a reserva do possível é vista como uma questão que envolve a “insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária” e que não pode ser invocada “com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição”. Ademais, a reserva do possível, também na visão do STF, não pode servir de argumento para a não implementação dos direitos que integram o mínimo existencial.
Todavia, no julgamento de pedidos de intervenção federal, em casos que envolviam a alegação da reserva do possível para justificar o não pagamento de precatórios, o STF entendeu plausível o argumento, conforme se verifica, por exemplo, no pedido de intervenção IF n° 470/SP. Nessa ação os votos de alguns dos ministros fazem menção a esse argumento, acolhendo-o. O Ministro Gilmar Mendes, relator, referiu-se expressamente à “reserva do financeiramente possível” para concluir pelo não cabimento da intervenção federal. Desse modo, nota-se que o STF, aceitando a possibilidade de se invocar a reserva do possível, relaciona a cláusula à disponibilidade financeira. Igualmente, em decisão que reconheceu a existência de repercussão geral em recurso extraordinário, o STF se refere à “cláusula da reserva financeira do possível”. No caso se cogitava da reserva do possível em face de pedido de indenização por dano moral, decorrente da excessiva população carcerária. Na decisão da ADPF n° 45, não obstante tenha sido julgado prejudicado o pedido pela perda do objeto, o STF (…) manifestou-se também sobre a necessidade de razoabilidade da pretensão, a par de existência de recursos para atendê-la.”(FALSARELLA, 2012, p. 10)(grifo nosso)
Na verdade, até bem pouco tempo, denotava-se na maioria dos julgados do Supremo Tribunal Federal, à exceção do julgamento da ADPF nº 45, seu desconhecimento acerca de todas as dimensões da questão pertinente aos direitos sociais e à reserva do possível, levando à crença de que a “reserva do possível” se restringia à escassez de recursos financeiros.
Entretanto, parece que agora o STF está prestes a protagonizar uma mudança “de peso”, apta a justificar sua “função típica” de Guardião da Constituição, garantidor do princípio-matriz da dignidade humana.
Isto porque, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ao decidir o Recurso Extraordinário nº 429.903/RJ, em 25/06/2014, entendeu pela possibilidade da Administração Pública ser obrigada, pelo Poder Judiciário, a manter de estoque mínimo de medicamento, sem que isto impleque ofensa ao princípio da separação de poderes, bem como fez considerações acerca da reserva do possível, pontuando a necessidade de se observar a ponderação de interesses à luz do princípio da razoabilidade.Veja-se:
Os atos da Administração Pública que importem em gastos estão sujeitos à reserva do possível, consoante a previsão legal orçamentária. Por outro lado, a interrupção do tratamento de saúde (…) importa em violação da própria dignidade da pessoa humana. Princípios em conflito cuja solução é dada à luz da ponderação de interesses, permeada pelo princípio da razoabilidade, (…)."
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os críticos à implementação de direitos prestacionais pelo Poder Judiciário como Barroso (2007) e Bigolim (2004) justificam seu posicionamento com o caráter programático das normas de direitos sociais, a ser concretizado através de políticas sociais e econômicas, perpetradas pelo Executivo, “Poder” com a melhor visão dos recursos e necessidades aptas a otimizar os gastos públicos; a prerrogativa concedida pela Magna Carta aos eleitos pelo voto popular (Poder Executivo e Legislativo) de gerir os recursos públicos, não possuindo o Judiciário legitimidade para tanto; a desorganização da Administração Pública; a violação da separação dos poderes, que tal intervenção ocasionaria; além de privilegiar tão somente os que têm acesso à Justiça em detrimento dos demais. Ousamos dissentir desse entendimento.
Realmente o Judiciário não detém como função institucional a atribuição de implementar políticas públicas, própria do Legislativo e Executivo. Todavia, nada impede uma intervenção judicial, de caráter excepcional, em caso de inobservância da vedação ao retrocesso social, ou descumprimento de obrigações constitucionais pelos demais Poderes, principalmente quando resultar na ineficácia de direito social básico (necessário à garantia do mínimo existencial, sem o qual aniquiladas estariam as possibilidades de sobrevivência).
Isto é assim, pois o controle judicial é o suporte do Estado de Direito, garantidor do princípio-matriz da dignidade humana (artigo 1º, inciso III).
Portanto, conclui-se do exposto neste artigo que a tese da reserva do possível não pode servir de critério absoluto ao descumprimento da implementação dos direitos sociais (cláusula pétrea, de caráter irrenunciável e aplicação imediata), nem como obstáculo a eventuais manifestações do Estado-juiz que, quando chamado a apreciar lesão ou ameaça de lesão (artigo 5°, inciso XXXV), deve exercer sua função típica de guardião da Constituição. Tal não afronta o princípio da independência dos poderes; mas sim, o concretiza no seu aspecto harmônico (artigo 2.º), pelo qual a ingerência de um Poder sobre o outro afasta os abusos deflagrados por cada um deles, através do conhecido sistema de controle do “checks and balances”.
Assistente Jurídica no Tribunal de Justiça desde 1999, Especialista em Direito Constitucional formada pela PUC-SP, Assistente jurídica atuante em Câmara Especializada de Tributos Municipais do Tribunal de Justiça de São Paulo
Receber uma multa de trânsito pode ser uma experiência frustrante, especialmente quando o motorista acredita…
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