Resumo: O objetivo deste estudo é destacar as mudanças de filosofia entre o Código Civil brasileiro de 1916 e o Código de 2002 e analisar como isso influenciou na concepção de responsabilidade civil, onde, da preocupação em julgar a conduta do agente, passou-se a se preocupar com os resultados do dano.
Sumário. 1. Introdução 2. Como o pensamento social-político influenciou a legislação civil brasileira 3. A evolução de concepções na Teoria da Responsabilidade Civil 4. Conclusão 5. Referências
1. Introdução
Iniciaremos nosso estudo realçando as mudanças de filosofia entre o Código Civil brasileiro de 1916, escrito sob uma concepção patrimonial-liberalista advinda da revolução Francesa (séc. XVIII), e o Código Civil de 2002, concebido após duas grandes revoluções mundiais e sob uma perspectiva que valoriza a socialidade e a solidariedade, uma vez que a Constituição do Brasil de 1988, considerada cidadã por colocar a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a solidariedade em seus fundamentos e objetivos, é a coordenadora do sistema nacional positivado.
Far-se-á um retrospecto histórico para se entender a principiologia dos dois institutos civis e destacarem-se os pensamentos dos mentores dos mesmos.
2. Como o pensamento socialpolítico influenciou a legislação civil brasileira
A Revolução Francesa, com a consequente revolução cultural, social, filosófica e política trouxe a supervalorização do homem (individualismo, liberalismo) e a delimitação dos limites intervencionistas do Estado.
O liberalismo daquela época apregoava a autossuficiência. O ser humano era visto como um fim em si mesmo, sujeito ou titular de direito (conotação patrimonialista). As noções de igualdade pressupunham isonomia meramente formal ou abstrata.
Com o desenvolvimento industrial e tecnológico e a massificação das relações comerciais, surge a necessidade de se adotar uma filosofia menos individualista e mais funcional, na qual a proteção da pessoa, considerada individualmente, só teria sentido se dentro de limites razoáveis, sem que o mais forte oprimisse o mais fraco.
Não só as exigências socioculturais, mas as próprias linhas axiológicas da Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 1988, estabeleceram a necessidade da reformulação do Código Civil brasileiro, promulgado em 1916, e que, seguindo a tradição do Código de Napoleão, prestigiou o individualismo voluntarista, o liberalismo político-econômico reinante no Estado liberal do século XIX.
Para os iluministas, a plenitude da pessoa ocorria com o ser proprietário. Ser livre significava poder deter, gozar e dispor de sua propriedade sem qualquer interferência do estado (visão do Estado liberal).
O direito de propriedade era absoluto, e assim como a atividade negocial, nem se imaginava sua função social. Isto se explica pelo fato de que, antes da Revolução francesa, o homem comum era oprimido pela Monarquia e pela Igreja e, portanto, ao se libertar, lembrou-se apenas da igualdade e da liberdade, esquecendo-se da fraternidade. Assim, o direito de propriedade passou a ser o bem maior e fundamental à realização da pessoa humana.
No período de 1822 a 1889, embora liberta de Portugal, a Coroa brasileira representava uma continuidade dinástica que datava da ascensão dos Bragança ao trono de Portugal.
Embora grandes mudanças sociais e políticas sucedessem no mundo, o Brasil, até meados do séc. XIX, vivia numa estrutura agrária, escravista e patriarcal, herdada do Brasil-colônia.
O processo de industrialização desencadeado no final da Monarquia, tendo como idealizador e incentivador o Barão de Mauá, trouxe ao Brasil vários engenheiros e técnicos ingleses e com eles o positivismo evolucionista de Herbert Spencer.
Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, colocou-se um ponto final no reinado de D.Pedro II. Para Cláudio Cicco(2007,p.262):
“A nova ordem de coisas implantada em 15 de novembro tinha uma motivação inteiramente diversa: a evolução, o progresso, sob a liderança de uma elite, na concepção de Augusto Comte, o estamento militar, como foi interpretada por Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o artífice intelectual do golpe de 1889”
Assim, embora a proclamação da República tivesse fundamento no Positivismo, alguns intelectuais continuaram spencerianos e, com as conotações autoritárias do início do governo republicano, passou a imperar a filosofia liberal por excelência no Brasil, incluindo Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil de 1916.
Segundo Cicco (2007, p.281), Clóvis Beviláqua sofreu decisiva influência das correntes mais notáveis de sua época, dentre as quais deve-se salientar a Escola das Pandectas, sobretudo em sua expressão alemã: Windscheid, Jhering, de certo modo Savigny
Em 1916, no Brasil predominava uma sociedade rural e agrária, com a maior parte da população vivendo no campo. No final do séc. XX, com o êxodo rural diante do desenvolvimento industrial e tecnológico, ocorre o inverso, há predominância da sociedade urbana, que inclusive está sintonizada através dos meios de comunicação.
Foi encarregado de presidir a Comissão que elaboraria o anteprojeto de um novo Código Civil, Miguel Reale, autor da teoria tridimensional do Direito que estabelece:
“Direito não é só norma (como pregava Kelsen), nem só valor (como se pensava no Direito Natural). “É uma integração normativa de fatos segundo valores”. Assim os três elementos foram relacionados entre si numa “dinâmica integrante e convergente”.(Reale, 1994, p.194)
Portanto, Reale não nega a importância do normativo nem do social, nem do axiológico, desde que vistos de modo integrado e dialético.
Em 1972 foi publicado um Anteprojeto do CC/2002 e manifestaram-se sobre o tema as principais corporações jurídicas do País, tribunais, universidades, entidades representativas de diversas categorias profissionais. Houve publicações de livros, artigos em jornais e revistas especializadas, resultantes de conferências e simpósios. Tudo isto foi objeto de análise e estudo pela comissão e várias alterações e acréscimos foram feitos, buscando atender às aspirações e necessidades da sociedade brasileira.
O projeto do Código Civil de 2002 foi encaminhado em 16/01/1975 por Miguel Reale, Supervisor da Comissão Elaboradora e revisora do Código Civil e na exposição de motivos, o grande jurista explica a necessidade da atualização do Código Civil vigente.
Resumindo os motivos (Nery, 2006), tem-se:
– As profundas alterações havidas no plano dos fatos e das idéias, tanto em razão do progresso tecnológico como em virtude da nova dimensão adquirida pelos valores da solidariedade social.
– Os sérios prejuízos causados ao país por um sistema legal não mais adequado a uma sociedade que já superou a fase de estrutura prevalecentemente agrária para assumir as formas e os processos próprios do desenvolvimento científico e industrial.
– O mundo foi sacudido pela tormenta de duas guerras universais e pelo impacto dos conflitos ideológicos, e os brasileiros optaram pela Democracia Social, repudiando todas as formas de coletivismo ou estatalismo absorventes e totalitários, o que nos impõe o dever de assegurar, nesse sentido, a linha do nosso desenvolvimento.
– Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código de 1916, reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios exclusivismos, numa ordem global de comum participação, deve ser julgada urgente a renovação do código vigente, como uma das mais nobres e corajosas metas do governo.
A mensagem 160, pela qual o Ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhou aos membros do Congresso Nacional o projeto de lei que instituía o Código Civil que foi promulgado em 2002, o mesmo escreve:
“É de longa data, Senhor presidente, que vem sendo reclamada a atualização do Código Civil de 1916, elaborado numa época em que o Brasil mal amanhecia para o surto de desenvolvimento que hoje o caracteriza, e quando ainda prevalecia, na tela do Direito, princípios individualistas que não mais se harmonizam com as aspirações do mundo contemporâneo, não apenas no domínio das atividades empresariais, mas também no que se refere à organização da família, ao uso da propriedade ou ao direito das sucessões”.(Nery, 2006,p.138)
Em 1990, foi promulgada a Lei n. 8.078, Código de Defesa do Consumidor, que incorporou ao ordenamento civil de 1916 normas que expressavam o desenvolvimento do mundo dos negócios e o estado da ciência, introduzindo, na relação obrigacional, a idéia de justiça social contratual, da equivalência das prestações e da boa-fé.
Preocuparam-se os legisladores em estabelecer a igualdade da relação obrigacional de consumo, e para tanto se fazia necessária a intervenção do Estado para estabelecer este equilíbrio, tratando desigualmente aqueles sujeitos da sociedade considerados vulneráveis ou mais fracos (crianças, idosos, deficientes, trabalhadores, consumidores, por exemplo).
Tem-se que a função social do contrato, o intervencionismo, o dirigismo contratual são traços marcantes do Código Civil brasileiro de 2002.
Como bem escreve SAUPHANOR sobre o Código Civil de 2002:
“…há uma mudança de paradigma no fato de direito privado atual concentrar-se não mais no ato (de comércio ou de consumo/destruição), e sim na atividade, não mais naquele que declara (liberdade contratual), mas nas redes, sistemas e grupos de contratos. Há uma nova visão finalística e total (holística) da relação contratual complexa atual” (Marques, 2006, p.45).
Escreve Giselda Hironaka:
“O novo Código Civil merece aplauso por, entre outros aspectos, ter:
a) o acolhimento de importante expressão jurisprudencial que se formou ao longo dos 96 anos, valorizando especialmente a socialização das relações privadas pela expressa menção ao princípio da função social da propriedade e da função social do contrato;
b) a inclusão do princípio da boa-fé nas negociações, bem como do princípio da onerosidade excessiva, a justificar a resolução dos negócios” (Revista Jurídica, n.10, p.16).
Assim, eticidade e socialidade são os princípios que predominam no Código Civil vigente.
Analisar-se-á a seguir como se alterou a concepção da responsabilidade civil com as mudanças de filosofia nos códigos civis brasileiros.
3. A evolução de concepções na Teoria da Responsabilidade Civil
Toda atividade que acarreta prejuízo traz um desequilíbrio patrimonial e até moral. O interesse em restabelecer o equilíbrio violado, de reparar o dano, é a fonte geradora da responsabilidade civil.
Nos primórdios da civilização humana, dominava a vingança coletiva, com a reação conjunta do grupo contra o ofensor a um de seus membros. Posteriormente evoluiu para vingança privada, em que o homem fazia justiça pelas próprias mãos. Pela Lei de Talião reparava-se o mal pelo mal, sintetizada na frase “olho por olho, dente por dente”.
Para coibir abusos, o poder público intervinha para declarar quando e como a vítima poderia executar a retaliação. Na Lei das XII Tábuas, na tábua VII, estabelece-se “se alguém fere a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se existiu acordo”. A responsabilidade era objetiva, não dependia da culpa do lesante.
Sucede a este período o da composição. A vítima passa a perceber as vantagens da substituição da vindicta pela composição econômica. O autor da ofensa pagava certa quantia em dinheiro ─ poena ─ a critério da autoridade pública, se o delito fora perpetrado contra a res pública, e da vítima, se efetivado contra interesses particulares.
Com o desenvolvimento da civilização romana, as figuras delituais se tornaram insuficientes para conter todas as espécies de reparações e surgem então os quasi delictum
Deve-se ressaltar que nesta fase ainda imperava a intenção de vingança, ou seja, a maior intenção não era satisfazer vítima ou sua família, mas atingir aquele que causou o dano.
A Lex Aquilia de damno veio sedimentar a idéia de reparação pecuniária do dano, impondo que o patrimônio do causador do dano é que suportaria o ônus da reparação. Inicia-se nesta época a ideia da culpa como fundamento da responsabilidade civil, e o ofensor se isentaria de qualquer responsabilidade se não tivesse agido com culpa. Estabelecem-se as bases da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, como é conhecida.
O Estado assume a função de punir, obrigando a vítima a aceitar a composição, renunciando à vingança.
Nesta época ainda não há diferença entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, sendo que isto só vem a ocorrer na Idade Média, com a estruturação da ideia de dolo e de culpa stricto sensu.
Para os irmãos Mazedaud “o dano que não causava prejuízo não dava lugar a indenização e, no último estágio do direito romano, a evolução que abrangia a maior parte dos prejuízos materiais, mas também os prejuízos morais” (Pereira,1992,p.4).
Assim, o conceito de responsabilidade civil foi sendo desenvolvido por toda Idade Média e introduzido no direito moderno, principalmente por Domat e Pothier, e sua introdução nos códigos modernos deve-se muito ao Código de Napoleão (art. 1382, 1384 a 1386).
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2007, p.8), o direito francês aperfeiçoou as ideias do direito romano e estabeleceu nitidamente os princípios da responsabilidade civil, tais como o direito à reparação sempre que houvesse culpa, ainda que leve, separando a responsabilidade civil da responsabilidade penal; a existência de culpa contratual que não se liga nem a crime nem a delito, mas se origina de negligência ou da imprudência.
A noção de culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa contratual estão nos arts 1382 e 1383 do Código Civil francês. Diz o art.1382:“ Tout fait quelconque de l’homne, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par faute duqel il est arrivé, à lê réparer”., que estabelece que o fundamento da reparação do dano é a culpa (doutrina subjetiva.).
Com o desenvolvimento industrial e tecnológico caracterizado pela substituição do homem pela máquina, pela produção em larga escala, aumentando os riscos à saúde e lesões às pessoas, sentiu-se necessidade de uma reformulação da teoria da responsabilidade civil dentro do processo de humanização e publicização do Direito.
O fundamento da responsabilidade civil evoluiu. Além de exigir-se a reparação com base na culpa (responsabilidade subjetiva), passou-se a considerar também o risco da atividade (responsabilidade objetiva), ampliando-se a indenização para os casos de danos, mesmo que não houvesse culpa.
Para Maria Helena Diniz
“Este representa uma objetivação da responsabilidade, sob a idéia de que todo risco deve ser garantido, visando a proteção jurídica à pessoa humana, em particular aos trabalhadores e às vítimas de acidentes, contra a insegurança material, e todo dano deve ter um responsável.”(Diniz,2007,p.12)
Na responsabilidade objetiva, basta provar o dano e o nexo de causalidade do mesmo com o exercício da atividade, para que o prejuízo seja ressarcido. Baseia-se no princípio do “ubi emolumentum, ibi ius ou ibi onus), isto é, a pessoa que se aproveita dos riscos ocasionados deverá arcar com suas consequências (Hironaka,2002).
Heineccius e Binding são os precursores da Teoria do Risco. Os franceses Saleilles e Josserand são os idealizadores desta teoria, com suas técnicas de hermenêutica de dispositivos do Código Civil francês.
No direito brasileiro pré-codificado, há três fases distintas quanto à responsabilidade civil:
– Na primeira, as ordenações do Reino mandavam por força da lei da Boa Razão (agosto de 1769) aplicar o direito romano subsidiariamente nos casos omissos.
– A segunda fase, o Código Criminal de 1830, que tratava do instituto de “satisfação”, que fornece elementos seguros para apreciar casos de responsabilidade civil.
– A terceira fase inicia-se com Teixeira de Freitas, que se opunha ao fato da responsabilidade civil estar ligada à criminal.
Atendendo-se às determinações da Constituição do Império, o Código Criminal de 1830 transformou-se em um Código civil e criminal onde se previa a reparação natural, quando possível, ou a indenização; previsão de juros reparatórios, a solidariedade, etc. Inicialmente a condenação civil dependia da condenação criminal, porém, aos poucos, a jurisprudência foi atribuindo independência às duas.
Em 3 de dezembro de 1841, o art. 799 da Consolidação das leis Civis revogou o art. 31 e o §5° do art. 269 do Código de Processo e estabeleceu que a satisfação do dano causado pelo delito passou para a legislação civil. O art. 800 e segs estabelecem disposições orientadoras da reparação do dano ex delicto especificando diversos aspectos da reparação e liquidação do dano. A responsabilidade civil considerada independente da criminal é fundamentada no conceito de culpa (art.1013); desenvolve-se a doutrina da responsabilidade indireta ( art. 1015); alude-se à responsabilidade em caso de desmoronamento de edifícios e construções (art. 1019). Desenvolve-se o princípio da responsabilidade dos funcionários públicos (art.1021), mas exime a União de responder pelos danos provenientes de erros ou abusos de funcionários públicos, ou pelos prejuízos sofridos por particulares em tempo de guerra civil (art. 1021). Concede ação regressiva à União e aos Estados, contra as autoridades e as partes interessadas que forem convencidas de culpa ou dolo (art. 10222, §4 °).
Dessas idéias, e com base no Código de Napoleão, o Código Civil Brasileiro de 1916, em seu art. 159, consagrou a teoria da culpa, estabelecendo que “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
Assim, como consequência jurídica do ato ilícito, por imposição legal, surge a obrigação de indenizar, prevista no art. 1516 do Código Civil de 1916.
Embora se adotasse a Teoria Subjetiva, exigindo-se a prova do dolo ou da culpa do causador do dano para obrigá-lo a repará-lo, nos artigos 1527 a 1529 previam-se casos em que se presumia a culpa do lesante.
O art. 1521 previa a responsabilidade objetiva de determinadas pessoas (pais, tutores, curadores, patrões, etc) por atos danosos praticados por outras pessoas (filhos, tutelados, curatelados, empregados…) que estivessem sob sua vigilância.
Nesta discussão entre Teoria Objetiva e Teoria Subjetiva, na década de 50, surge a Teoria da Garantia, que substitui o princípio da responsabilidade civil pelo causador do dano pelo de “socialização dos riscos”, ou seja, a vítima tem direito a uma garantia real, independente da apuração de culpa, por meio de um sistema securitário. Surge então o seguro obrigatório, feito pelas empresas, contra acidentes de trabalho e os seguros obrigatórios dos veículos automotores. São defensores desta teoria B.Starck, Genevieve Viney e Philippe Lê Tourneau, na França, e Wilson Melo da Silva, Sílvio Rodrigues, no Brasil.
No Brasil, os aplicadores do Direito passaram a substituir, cada vez mais, a Teoria da Culpa pela Teoria do Risco, na qual a responsabilidade é prevista sob o aspecto objetivo; o causador do dano indeniza, não porque agiu culposamente, mas simplesmente por estar exercendo uma atividade que pode ocasionar danos, e, por estar lucrando com esta atividade, deverá arcar com suas consequências.
O Código Civil brasileiro, em vigência desde 2003, dentro de seus princípios sociais e valorizando a boa-fé, continua a fundamentar a responsabilidade civil na culpa do agente (arts. 186, 187 e caput ”do art.927), porém o parágrafo único do art. 927 expande esta responsabilidade ao estabelecer “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
A expansão da responsabilidade civil ocorreu também em seu campo de incidência, aumentando o número de pessoas responsáveis pelos danos, de beneficiários da indenização e de situações fáticas que ensejam tal responsabilidade. Nos arts. 932, I a III, 933, 734, 750 e 1299 do Código Civil atual, há a responsabilidade objetiva de certa pessoa, por fatos de terceiro que por ela responda (os pais pelos filhos menores, tutores e curadores pelos seus tutelados e curatelados, os empregadores por atos de seus empregados no exercício de suas funções, etc), estende-se ainda a responsabilidade por fatos de animais e coisas sob a guarda do imputado (arts 936 e .937).
Há ainda legislações especiais tais como Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei de Acidentes de Trabalho, Código de Defesa do Consumidor e outros diplomas, em que está nítida a adoção da responsabilidade objetiva.
Conforme disse Ripert (Barros Monteiro,2007), a tendência atual do direito manifesta-se no sentido de substituir a ideia da responsabilidade pela ideia da reparação, a ideia da culpa pela ideia do risco, a responsabilidade subjetiva pela responsabilidade objetiva.
4. Conclusão
Embora o homem deva continuar sendo o centro da nossa atenção, não deve mais prevalecer o individualismo ─ quase egoístico ─ que impregnava o Código Civil de 1916. A individualidade tem valor na direta proporção de sua eficácia construtiva e da conveniência ao todo, sendo que, havendo divergências entre o interesse individual e o coletivo, este último deve sempre prevalecer.
As transformações ocorridas em nossa sociedade impuseram uma mudança nas formas de se interpretar e aplicar a lei, uma vez que o individualismo e o patrimonialismo predominantes no séc. XIX não podem mais prevalecer. Os fundamentos e princípios da Republica Federativa do Brasil, estabelecidos na Constituição Federativa de 1988, de construir uma sociedade mais digna e justa exigiram a socialização, a publicização do Direito privado.
Estabelecidos os princípios da eticidade e socialidade, não pode mais ser considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins eticossociais da comunidade na qual esta pessoa está inserida.
Não há, assim, direitos individuais absolutos, e impera a máxima jurídica de que ”o direito de um acaba onde começa o do outro”.
Dentro desta compreensão eticossocial do Direito, não se concebe mais a teoria da responsabilidade civil com base no elemento subjetivo da culpa, mas objetivamente, arcando, quem exerce a atividade, os riscos da mesma.
A reparação dos danos tornou-se uma questão de justiça, harmonização de interesses, ordem e segurança social. Quem cria riscos deve responder pelos eventuais danos que alguém possa sofrer. Da preocupação em julgar a conduta do agente passou-se à preocupação em julgar o dano em si mesmo, independentemente de sua ilicitude, preocupando-se exclusivamente com seus resultados, como uma questão da mais lídima justiça.
professora titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade José do Rosário Vellano-Unifenas, mestre em Direito das Relações Econômico;Empresariais pela Unifran-SP e doutorando em Ciências Jurídicas pela UMSA-Ar.
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