I- Introdução
Hoje o modismo tem acompanhado as relações judiciais. Com a bandeira da celeridade muitos operadores do direito utilizam-se de novidades legais para “resolver” problemas antigos que nem sempre são adequados a legislação moderna.
Um desses artifícios legais é a chamada penhora de contas bancárias que vem sendo utilizada de forma banal e exaustiva pelos juízes na ânsia de efetivar a execução de qualquer maneira alijando de suas decisões os possíveis e concretos prejuízos que uma atitude dessa natureza pode ocasionar ao jurisdicionado.
A gravidade da referida ânsia de efetivar a execução rapidamente e, a qualquer custo, nos levou a escrever este artigo pois às vésperas do natal uma das empresas em que nosso escritório presta serviços foi alvejada pelo juízo cível da capital com uma determinação judicial para que suas contas fossem bloqueadas em ação de execução movida por um de seus fornecedores e, tínhamos poucos dias para reverter a situação.
O detalhe é que essa empresa é nada menos que um Hospital e, se viesse a ter suas contas bloqueadas às vésperas do natal, fatalmente muitos pacientes iriam morrer em virtude da impossibilidade do Hospital de pagar médicos, comprar remédios, dentre outros. Mesmo assim o juízo a quo resolveu efetivar a execução custe o que custar doa a quem doer.
Ora veremos, em dois argumentos abaixo elencados que o julgamento e a opção pela penhora de contas bancárias deve ser sopesado de forma mais serena e abalizada pelo julgador que não deve se encantar tão somente pela rápida solução do litígio buscando o brilho da celeridade e sim julgar com serenidade, experiência e bom-senso evitando que o processo judicial seja um proliferador de conflitos conseqüência esta diametralmente oposta a qual foi criado o processo que é o de pacificar os litígios.
II- 1º Argumento: A Execução pelo modo menos gravoso para o devedor
O primeiro argumento encontra respaldo no próprio Estatuto Processual Civil que no seu art. 620 dispõe sobre o princípio da menor onerosidade sendo cristalino ao especificar em seu texto que:
“Art. 620. Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que o faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.
Assim, nesse caso, o juiz deverá, necessariamente, utilizar o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de exigibilidade, que é conhecido pelos processualistas com o nome de “princípio da menor onerosidade”, objetivando evitar que a presente Execução sacrifique o patrimônio do Hospital de forma tão gravosa, buscando a execução equilibrada.
O E. Superior Tribunal de Justiça, em recente Acórdão, em que figura como relatora a Ministra Eliana Calmon, entendeu que a penhora sobre o saldo de conta corrente somente pode ser decretada como medida extraordinária e através de decisão fundamentada, cuja Ementa segue transcrita:
““Execução fiscal. Penhora em saldos de conta corrente. Excepcionalidade. 1 – A penhora em saldo bancário do devedor equivale à penhora sobre o estabelecimento comercial. 2- Somente em situações excepcionais e devidamente fundamentada, é que se admite a especial forma de constrição. 3- Recurso Especial provido “.
A Ministra relatora, no corpo do v. acórdão enfatiza:
“Permitir-se à penhora dos saldos bancários de uma empresa é o mesmo que decretar a sua asfixia, porque tal determinação não respeita os reais limites que deve ter todo credor: atendimento prioritário aos fornecedores para possibilitar a continuidade de aquisição da matéria-prima, pagamento aos empregados, prioridade absoluta pelo caráter alimentar dos salários”.
Portanto, caso seja efetivada a ordem judicial de bloqueio de contas do Hospital o mesmo ficará impedido der honrar com os seus compromissos levando a ocasionar irreparável lesão que atingirá diretamente os pacientes nele internados desrespeitando de forma cristalina o artigo 620 do CPC.
III- 2º Argumento: Colisão de Princípios Constitucionais
O segundo argumento, bem mais profundo, leva em consideração a prevalência de princípios constitucionais. Vejamos porque:
Sabemos que a ação autônoma de execução é decorrente de dois princípios do Estado Democrático de Direito, plasmados no texto Constitucional: a Livre Iniciativa, que se afirma entre outras formas pela liberdade contratual e o monopólio Estatal da coerção, que determina que apenas e tão somente o Poder Público, dentro de seus limites e finalidades constitucionais, pode exercer os atos de força legítimos à efetiva garantia de direitos. Importante frisar que o Monopólio da Coerção é um espaço concedido pela coletividade ao Estado, já que o fim último deste é promover o bem estar e a satisfação daquela. Assim a coerção estatal nasce limitada pelas garantias constitucionais. Neste sentido posicionou-se o Supremo Tribunal Federal
“A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência.” (Min. CELSO DE MELLO DJ DATA-04/05/2004 P – 00012)
Em sua realização, os diversos princípios constitucionais que orientam as regras jurídicas devem estar, no mais possível, harmônicos entre si e compatíveis com a meta central bem-estar do homem. Assim, deve ser apreciada restritivamente (e com técnica de ponderação) a regra jurídica que contiver no rol de suas possíveis conseqüências factuais a possibilidade de dano a direito impregnado constitucionalmente de fundamentalidade, por mais clara e objetiva que ela (a regra jurídica) possa parecer.
Constituição Federal, Art. 197: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.” A este respeito posicionou-se o Supremo Tribunal Federal:
“Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde, em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.” (RE 267.612, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/08/00)
O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional (Min. CELSO DE MELLO RE 271286 AgR / RS – RIO GRANDE DO SUL)
A presente execução acima referida não cuida apenas de uma lide entre interesses privados contrapostos, adaptáveis ao modelo jurídico da obrigação “Caio versus Tício”. Aqui temos uma ação executiva cujo andamento ordinário fatalmente ocasionará sérias lesões reflexas a terceiros, não apenas interessados, mas, essencialmente, dependentes da pacífica continuidade das atividades do Hospital. Trata-se aqui, também, de Direito à Saúde, direito social fundamental e condição de indispensável observação para o fim de garantir a dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal ampara este direito de maneira ampla e mesmo quando a considera atividade livre à iniciativa privada, impõe condicionamentos compatíveis com a relevância pública do tema.
O reconhecimento do direito à Saúde no rol dos direitos sociais no art. 6º. Caput da Constituição implica o reconhecimento da condição de fundamental a este direito por decorrer diretamente da dignidade da pessoa humana Art. 1º., III.
No caso em tela, a regra de determina a realização da execução forçada, expressa nas disposições pertinentes do Código de Processo Civil e na cultura Jurisprudencial correlata, pode atingir de pleno o funcionamento do Hospital, pois, entre os meios compatíveis com a execução forçada figura o possível bloqueio das contas bancárias do executado, fato que demonstramos determinante para a provável interrupção das atividades regulares da entidade hospitalar.
No caso acima vislumbrado dar-se-ia hipótese de “colisão entre princípios” pois a interrupção das atividades hospitalares de qualquer unidade integrada ao Sistema Único de Saúde abala a já deficitária capacidade de atendimento universal do Sistema.
É famosa na doutrina e muitíssimo respeitada na Jurisprudência pátria a Teoria dos Direitos Fundamentais[1] do Alemão Robert Alexy. Em seus escritos o jurista busca encontrar uma determinação racional para o fundamento das decisões da Corte Constitucional Alemã baseadas no primado da intangibilidade da dignidade da pessoa humana, propondo leis de colisão e ponderação com o escopo de harmonizar a aplicação dos princípios jurídicos, bem como das regras que devem por eles se orientar.
Para Alexy, haveria uma colisão de princípios quando nos atos e fatos jurídicos o cumprimento de um mitigar o de outro, também relevante, ao ponto de o grau de não satisfação ou de afetação do princípio preterido, não se mostrar compatível o grau de afirmação e satisfação do princípio preferido.[2]
Portanto, verifica-se a necessidade de um julgamento alicerçado em princípios constitucionais de maior grandeza que no caso é cristalizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana daqueles que necessitam de atendimento médico e tem o Direito a recebê-lo para reestabelecer suas condições físicas e/ou psicológicas em detrimento de qualquer outro princípio de menor importância para a coletividade.
IV- Conclusão
Com os dois argumentos acima expostos interpusemos competente agravo de instrumento contra a decisão do juiz a quo que determinou o bloqueio das contas bancárias do Hospital às vésperas do Natal perante o Tribunal de Justiça do Estado que, através de um de seus Desembargadores recebeu o recurso em seu efeito suspensivo para determinar a imediata suspensão da decisão.
Com isso pincelamos a seguinte lição: a de que determinados avanços processuais devem ser melhor aproveitados pelos operadores do direito sob pena dos mesmos atravancarem ainda mais o processo como no caso em epígrafe, pois são movidos, como já dito, a obstinação de celeridade sem se preocupar com a conseqüências que a utilização destes permissivos legais podem causar as partes.
Por fim queremos salientar que, apesar dos grandes esforços que tem sido feitos no sentido de obedecer os princípios da instrumentalidade e da celeridade, devemos ter cautela em utilizá-los uma vez que, não são instrumentos milagrosos que resolvem todos os problemas processuais.
Gostaria ainda de deixar claro que, neste processo, devida a péssima utilização do instituto da penhora de contas bancárias visando a celeridade que ele sugere o litígio se acirrou e promete longos anos de discussão, ou seja o feitiço virou contra o feiticeiro.
Por isso, muito cuidado principalmente para aqueles mais inexperientes no que diz respeito ao julgamento e patrocínio desse tipo de causa para que não haja desnecessários acidentes de percurso que só trazem prejuízos aos litigantes e ao processo judicial como um todo.
Advogado em Belém; sócio do escritório Paiva & Borges Advogados Associados; Sócio-fundador do Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática – IBDI; Presidente da Comissão de Estudos de Informática Jurídica da OAB-PA; Conferencista
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