A exploração de pessoas através do trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas

Resumo: O trabalho que aqui se apresenta buscou analisar a situação real da exploração de pessoas através do trabalho escravo em navios, destacando-se as normas de proteção existentes para os trabalhadores marítimos. Objetiva-se avaliar, através de revisão bibliográfica e análise de dispositivos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o atual cenário mundial quanto aos trabalhadores do mar em situação de escravatura em atividades marítimas embarcadas, se há mecanismos de proteção destes trabalhadores e como se posicionam e atuam a ONU e a OIT sobre o tema. Diversos trabalhadores que buscam uma vida melhor ou têm como única opção o trabalho embarcado em navios se sujeitam a longas viagens, muitas vezes sem condições propícias para um bom desenvolvimento laboral e acabam sendo vítimas do trabalho escravo, não raramente, sendo tratados sem dignidade e salubridade em suas atividades. Tal problemática situação, após sua análise, mostra que, mesmo com a existência e garantia dos Direitos Humanos e de normas protetivas da OIT específicas ao trabalhador marítimo, estas são pouco eficazes, demonstrando ser necessária maior atenção e debates ao redor do globo sobre este problema mundial, em busca de que, tais medidas, sejam mais difundidas e fiscalizadas. ²

Palavras-chave: Exploração de pessoas. Trabalho escravo. Direitos Humanos. Atividades marítimas. Trabalhadores embarcados.

Abstract: The work presented here sought to analyze the real situation of the exploitation of people through slave labor in ships, highlighting the existing norms of protection for maritime workers. The objective of this study is to evaluate, through a literature review and analysis of the United Nations (UN) and International Labor Organization (ILO) provisions, the current world scenario regarding seafarers in situations of slavery in maritime activities. There are mechanisms to protect these workers and how the UN and the ILO stand and act on the subject. Several workers who seek a better life or have the sole option of work embarked on ships are subject to long journeys, often without conditions conducive to a good job development and end up being victims of slave labor, not infrequently, being treated without dignity and wholesomeness In their activities. This problematic situation, after its analysis, shows that, even with the existence and guarantee of human rights and ILO protective standards specific to the maritime worker, these are not very effective, demonstrating that greater attention and debate around the globe is needed on this issue In order to ensure that such measures are more widespread and monitored.

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Keywords: Exploration of people. Slavery. Human rights. Maritime activities. Workers on board.

Sumário: Introdução. 1. As normas internacionais de direitos humanos e as organizações governamentais internacionais: a proteção das pessoas e a realidade da ausência destes direitos. 1.1 Compreendendo a ONU, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a proteção das pessoas. 1.2 A Organização Internacional do Trabalho e a exploração de pessoas através do trabalho escravo. 2. Trabalho marítimo: histórico convencional. 2.1 A vida no mar: das embarcações à realidade do ambiente de trabalho dos embarcados. 2.2 Trabalho marítimo e a realidade concreta em dados internacionais. 3. Trabalho marítimo pelo viés internacional e a realidade brasileira. 3.1 A Organização Internacional do Trabalho e as convenções internacionais sobre trabalho marítimo. 3.2 A realidade brasileira no trabalho marítimo e a legislação nacional. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

Propor a análise da exploração de pessoas é caminhar pela seara na qual a dignidade, liberdade, igualdade e legalidade são princípios ignorados. Estes, se conjuntamente analisados com a questão do trabalho, tratarão do alto grau de exploração da miséria e do trabalho injusto. Não há como discordar que o trabalho sem liberdade, escravo, forçado, em condições degradantes, é intolerável se imposto a qualquer indivíduo, seja em que esfera trabalhista for.

Veem-se trabalhadores nesta posição de vulnerabilidade em diversos segmentos trabalhistas, não sendo diferente no trabalho marítimo. Vários trabalhadores que exercem atividades marítimas e que trabalham – e acabam vivendo – embarcados se sujeitam a longas viagens e, muitas vezes, não possuem condições propícias para um digno desenvolvimento laboral, acabando, assim, por viver em situações degradantes, vítimas do trabalho escravo, sobrevivendo em condições subumanas. Além disso, afastam-se dos seus, vivem em alto-mar em função de seu trabalho boa parte do ano e, ainda assim, diversas vezes, são tratados sem o mínimo de dignidade para a execução de suas atividades e para o gozo de seu descanso.

Analisar o atual cenário mundial quanto à exploração de pessoas e como esta situação se apresenta no trabalho marítimo, especificamente em navios com atividades marítimas de trabalhadores embarcados, faz com que seja necessário passar por várias searas para que seja compreendida a grande problemática que se apresenta. Ademais, torna-se pertinente observar os Direitos Humanos hoje existentes e como estes e o Direito do Trabalho, através da Organização Internacional do Trabalho e suas convenções, portam-se diante do trabalho escravo que se apresenta em navios nacionais e internacionais, com o intuito de solucionar seus aparentes e pertinentes conflitos, ressaltando o posicionamento da ONU e da OIT, na tentativa de combater e assegurar direitos básicos e fundamentais aos trabalhadores marítimos e analisar se tais medidas são eficazes.

Existem sim medidas internacionais e nacionais de proteção ao trabalhador marítimo, mas estas são pouco efetivas. Apesar de haver inúmeras convenções da Organização Internacional do Trabalho – hoje grande parte delas compiladas na Convenção sobre Trabalho Marítimo (OIT, 2006) –, tendo um número expressivo destas convenções ratificadas pelo Brasil, e de haver decisões do judiciário brasileiro favoráveis aos trabalhadores do mar, há, ainda, diversas ocorrências de trabalho escravo em navios, tanto internacionais quanto naqueles que carregam a bandeira brasileira. Mesmo com um vasto aparato de regulamentações e normas protetivas, é simples notar que somente elas não bastam.

Havendo raros casos divulgados pela grande mídia ao longo dos anos, é necessário trazer este estudo sobre o tema. O trabalho escravo já é fortemente conhecido, mas, infelizmente, este tipo de serviço ocorrendo em navios de diversos segmentos e em todo o mundo não é tão difundido, mesmo sendo tão ocorrente, tornando-se difícil a localização de conteúdo sobre a problemática.

Com a análise geral da situação-problema apresentada, juntamente com o aporte bibliográfico pautado sobre o assunto e as normativas da OIT – que tratam sobre o trabalho marítimo – e da ONU – quanto à exploração de pessoas e sobre o trabalho escravo – e com a amplitude do seu conceito, abrangendo o trabalho forçado e as condições subumanas –, visa-se um estudo mais detalhado sobre as mazelas decorrentes da exploração de pessoas para o trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas e das situações precárias em que tais trabalhadores se encontram. Além disso, pretende-se a observância da não aplicação do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, bem como a verificação de como o Direito do Trabalho e os Direitos Humanos se portam para tentar solucionar tais conflitos e assegurar tais direitos e se estas medidas possuem um grau de eficácia aceitável.

Tais ponderações são apresentadas neste trabalho de forma que seja possível a melhor análise, primeiramente, para compreender a Organização das Nações Unidas – ONU e a Organização Internacional do Trabalho – OIT e suas normativas que tratam dos Direitos Humanos e dos Direitos Trabalhistas e quais são os entendimentos e as definições acerca da exploração de pessoas para fins de trabalho escravo; depois, para também analisar a vida dos trabalhadores do mar, desde as embarcações à realidade do ambiente de trabalho dos embarcados, assim como a realidade concreta com base em dados internacionais do trabalho marítimo; e, por fim, para ponderar a perspectiva da Organização Internacional do Trabalho – OIT – e as convenções internacionais sobre o trabalho marítimo e, também, a realidade brasileira, sua legislação nacional e seus projetos de lei sobre o tema.

1 AS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E AS ORGANIZAÇÕES GOVERNAMENTAIS INTERNACIONAIS: A PROTEÇÃO DAS PESSOAS E A REALIDADE DA AUSÊNCIA DESTES DIREITOS.

Os Direitos Humanos são a base de reflexão para um convívio harmonioso entre os indivíduos. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu site no Brasil, “Os direitos humanos são direitos inerentes a cada pessoa simplesmente por ela ser um humano” (ONU, 1948). Neste sentido, a Declaração através de sua página na internet complementa dizendo que “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição” (ONU, 1948), e que: “Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa; Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal e com o devido processo legal; Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros; Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa” (Grifo nosso) (ONU, 1948).

Tidos como direitos essenciais, garantidos a todos os seres humanos, tais direitos possuem o propósito de estabelecer a igualdade, podendo ser: civis ou políticos, como o direito à vida, à igualdade perante a lei e à liberdade de expressão; econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, a cuidados médicos, à educação e ao lazer; e coletivos, como o direito ao desenvolvimento. Estes, além de muitos e fundamentais outros, são direitos de toda a humanidade e devem ser cumpridos sem distinção.

Ainda de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu site no Brasil, em sua expressão formal, os Direitos Humanos se apresentam pelas normas internacionais de Direitos Humanos, as quais estabelecem as obrigações e abstenções de atos dos governos, com a finalidade de proteger e difundir tais Direitos e as liberdades de indivíduos ou de grupos. Estas normas de Direitos Humanos, que se apresentam em forma de tratados, costumes, declarações, diretrizes e princípios, são criadas pelos Estados através de negociações de instrumentos de Direitos Humanos – nas organizações internacionais, como as Nações Unidas, o Conselho da Europa, a União Africana e a dos Estados Americanos, e também em conferências e encontros internacionais – e do aprimoramento do costume internacional sobre o tema.

A partir de 1945, pós Segunda Guerra Mundial, depois de terem sido vistas grandes atrocidades contra o ser humano e constatada a necessidade de instrumentos que regulassem e assegurassem direitos a este, tratados internacionais dos Direitos Humanos – compreendidos também como pactos, cartas, convenções, protocolos e acordos –, assim como a Organização das Nações Unidas surgiram, trazendo uma forma legal a estes direitos. Tais ferramentas humanistas se tornaram indispensáveis a partir do momento que um sentimento de necessidade de manter a paz entre os países passou a existir na comunidade internacional após o caos que havia sido instaurado no globo com a Segunda Guerra.

A criação da Organização das Nações Unidas, também no ano de 1945, deu-se a partir da necessidade de existir uma organização que cumprisse o papel de mediar conflitos ao redor do mundo e assegurar direitos, bem como que tentasse promover a paz. Desde então, um de seus maiores objetivos tem sido encorajar e promover o respeito aos Direitos Humanos para todos mundialmente. Esta criação acabou por viabilizar entre os povos do globo a adoção e o desenvolvimento de instrumentos internacionais de Direitos Humanos, assim como embasou constituições e outras leis que protegem formalmente tais direitos, como a Declaração dos Direitos Humanos.

À nível brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura, em seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, nos artigos 5º e 7º, diversos direitos individuais, com base nos Direitos Humanos, e sociais, com base nos Direitos Humanos e nos direitos trabalhistas, que também devem ser considerados e destacados.

O que se sabe é que nem as organizações, nem os tratados, nem todas as ferramentas e normas internacionais existentes hoje que tentam assegurar os Direitos Humanos para todos teriam como finalidade, se não houvesse ainda, nos dias atuais, pessoas que necessitassem da guarida destes instrumentos, que precisassem de organizações que amparassem estas e que lhes defendessem – ou ao menos tentassem protegê-las.

Apesar da existência de todo esse aparato, ainda ocorre, em grandes proporções, circunstâncias contrárias ao que determina a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os tratados da ONU ou até mesmo as constituições da maioria massiva dos países, que asseguram direitos básicos a todo ser humano, como dignidade, saúde, liberdade e o próprio trabalho digno. Como exemplo desta situação, ocorre ainda a exploração de pessoas para trabalhos forçados em regime de escravidão em proporções expressivas, trabalhadores em condições subumanas em diversos ramos laborais e por todo o mundo, mesmo com as diversas convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho.

Sendo um trabalho conjunto entre a maioria dos países do globo – principalmente dos signatários da ONU – em prol dos Direitos Humanos e da necessidade fundamental de assegurar dignidade para qualquer indivíduo, intrigante é que ainda tais situações desumanas citadas continuem ocorrendo. A ausência de material dos Direitos Humanos em sociedade, na convivência entre iguais é gritante, ao ponto de que, ao invés de haver resguardo, há a aniquilação de um dos direitos mais basilares: a dignidade da pessoa humana.

1.1 Compreendendo a ONU, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a proteção das pessoas.

A Organização das Nações Unidas, mais conhecida por sua sigla ONU, tem como um de seus principais pilares a proteção das pessoas, tendo também o encargo de, entre tantos outros, resguardar e difundir os Direitos Humanos ao redor do mundo.

De acordo com a Organização das Nações Unidas em seu site no Brasil, ela é uma organização internacional formada por 193 países que se reuniram de maneira voluntária em prol da paz mundial, de seu desenvolvimento e da segurança para promover o progresso social e as relações amistosas entre as nações. Além disso, tem como finalidade promover melhores padrões de vida e Direitos Humanos após o acontecimento da Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945, com o intuito de nunca mais permitir que ocorressem atrocidades como as que foram vistas na guerra.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas (1945) – tratado que estabeleceu a fundação da ONU – disponível no site brasileiro da Organização, demonstra uma síntese do que ela se constitui: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista disso, nossos respectivos governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas”. (BRASIL, 1945).

A partir desta Carta, a qual demonstra a preocupação das nações com o futuro mundial baseados nos conflitos que haviam acabado de ocorrer no mundo com a Segunda Guerra Mundial, a ONU se estabeleceu na Conferência sobre Organização Internacional ocorrida em São Francisco do dia 25 de abril a 26 de junho de 1945. Ainda de acordo com a Organização das Nações Unidas em seu site no Brasil, neste último dia, foi assinada a presente Carta com a elaboração e concordância, no princípio, de apenas 50 (cinquenta) países. Contudo, as Nações Unidas, oficialmente, só passaram a existir no dia 24 de outubro de 1945, após a ratificação da Carta pelos Estados Unidos, pela França, pelo Reino Unido, pela China e pela antiga União Soviética além da maioria dos outros países assinantes. Por isto, tem-se como dia oficial de criação da ONU o dia 24 de outubro, sendo comemorado no mundo todo como o Dia das Nações Unidas.

Ainda na Carta das Nações Unidas (1945), em seu artigo 1°, disponível também no site supracitado, são elencados os propósitos da Organização, quais sejam: “1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns”. (Grifo nosso) (BRASIL, 1945).

Como um de seus propósitos, o item 4 (quatro) expõe a importância da ONU, devendo esta ser considerada o núcleo onde possam ser aprimoradas e adaptadas todas as ações dos países signatários em prol dos propósitos elencados na Carta das Nações Unidas e comum a todas as nações.

Tido como o principal instrumento de Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é o documento mais lembrado e também conhecido quando existe uma situação de cerceamento de direitos que excedem os limites territoriais. Segundo o próprio site brasileiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, este é “um documento marco na história dos direitos humanos”. Anteriormente à promulgação desta Declaração, houveram outros vários tratados, convenções, resoluções e protocolos internacionais que tinham o propósito de definir e coibir violações aos Direitos Humanos, como no ano de 1926, quando surgiu a Convenção Sobre a Escravatura.

Este documento internacional foi preparado e adotado pela ONU no ano de 1948 e trouxe uma conceituação internacional de “Direitos Humanos”, baseado em princípios fundamentais e direitos internacionais a partir de uma moral universal permeada pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial.

No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), já é possível observar o porquê da sua grande importância para o mundo: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum, Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, […] Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmam, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, […] A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição”.(Grifo nosso) (ONU, 1948).

Diante de todas estas considerações em prol de uma vida mais pacífica, digna e de liberdade, baseando-se pela quantidade de vezes que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi traduzida – em mais de 360 idiomas, sendo o documento mais traduzido do mundo e por ter servido de inspiração para a criação de várias constituições de Estados contemporâneos, é impossível negar a importância global que tem para a defesa dos direitos dos seres humanos. Ainda segundo o site brasileiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esta é “uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos” (ONU, 1948).

Destacam-se também entre os principais instrumentos internacionais de Direitos Humanos em prol da proteção das pessoas os nove principais tratados da ONU: o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; a Convenção sobre os Direitos da Criança; a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias; a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados; e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Estes são todos ligados a circunstâncias e problemáticas reais e específicas de defesa aos Direitos Humanos, dando atenção a todas as particularidades existentes em cada tema.

A ratificação de tratados por um país – que é a expressão formal do consentimento de comprometimento de um Estado com um tratado –, no caso, sobre os Direitos Humanos, possui a finalidade de fazer com que os Estados forneçam proteção às pessoas a partir do que é disposto em tratados e convenções, pois estes têm a obrigação de proteger todos os Direitos Humanos, através de sistemas legislativos nacionais e internacionais. A ratificação possui as funções de normatizar entendimentos internacionais e de exercitar o controle aos países ratificados em decorrência de seu descumprimento. Em casos concretos, em que ocorra o descumprimento de acordos internacionais ratificados quanto aos Direitos Humanos, o Estado é levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para julgamento.

Vale ressaltar que cada um destes nove tratados anteriormente citados possui um comitê de peritos que avalia a atuação e o cumprimento das obrigações assumidas por cada Estado ratificado em cada tratado. Além dos comitês de peritos, segundo o site brasileiro da ONU, a Assembleia Geral das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, todos órgãos da ONU, podem também se pronunciar quanto a violações de Direitos Humanos. Internamente, o Estado, que deve zelar por suas obrigações humanitárias a partir do que versa cada tratado de que é signatário, deve contar com o papel fundamental de seus serviços públicos, além da polícia e dos tribunais, assim como das instituições nacionais de Direitos Humanos (Organizações Não Governamentais (ONGS), organizações profissionais, grupos religiosos, instituições acadêmicas, etc.).

A Organização das Nações Unidas ainda dispõe do seu Conselho de Direitos Humanos, em inglês United Nations Human Rights Council – UNHRC, criado mais recentemente em 15 de março de 2006 e formado por 47 nações, é sucessor da antiga Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos (United Nations Commission on Human Rights – UNCHR) e também é parte do grupo de apoio à Assembleia Geral das Nações Unidas. Seu primordial objetivo é aconselhar a Assembleia Geral quando ocorrem situações de violações dos Direitos Humanos.

Apesar de todas as normativas existentes quanto à proteção das pessoas, grandes violações a estes direitos são notáveis por todo o mundo, mostrando que políticas de execução destas normativas devem ser mais bem aplicadas e fiscalizadas. A proteção das pessoas, fundamento principal da existência dos Direitos Humanos, deve ser resguardada e assegurada, fazendo-se cumprir todos os propósitos dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como das diretrizes defendidas pela ONU sobre essa grande e profunda problemática. Deve sempre ser lembrado e difundido aos quatro cantos do globo a igualdade entre todos, independentemente de qualquer desigualdade causada pela sociedade capitalista, todos são iguais perante a lei e devem ter livre acesso a uma vida digna.

1.2 A Organização Internacional do Trabalho e a exploração de pessoas através do trabalho escravo

A exploração de pessoas no trabalho é, infelizmente, muito comum e uma das grandes violações aos Direitos Humanos, afetando diversos trabalhadores ao redor do mundo. Não são raros os casos em que pessoa tem que trabalhar recebendo muito pouco, em condições degradantes, muitas vezes sendo mão de obra escrava, sem nenhum direito trabalhista garantido e, assim, são vítimas da exploração.

O capitalismo e a má distribuição de riquezas, que acabam gerando a pobreza, as desigualdades sociais e também a falta de acesso à educação ajudam a fazer com que esta realidade seja tão presente e com que tantas famílias se submetam a jornadas de trabalho extensas e a trabalhar por valores muitas vezes ínfimos. A falta de opções para se conseguir o sustento a partir de um trabalho digno faz com que muitas pessoas se sujeitem a labores sem garantia alguma de seus mínimos direitos, assim como, não raras às vezes, também são atraídas e ludibriadas com promessas de trabalhos incríveis que, quando se chega na realidade, vê-se que estas foram meras ofertas enganosas.

Potenciais vítimas desta situação de exploração são as pessoas menos protegidas, humildes, de baixa instrução, que vivem à margem da sociedade. Estas são enganadas e acabam sendo maltratadas, usadas e exploradas principalmente em posições operárias, podendo ser até vítimas do tráfico de pessoas para a exploração laboral, o que é muito ocorrente. São também atraídas por estarem em busca de uma vida melhor, tentando fugir de sua realidade social, com a esperança de alavancar seu padrão de vida ou, até mesmo, em vista da necessidade, para que consigam sobreviver.

Sendo uma das principais razões para que tais situações de exploração de trabalhadores aconteçam, a exploração do trabalho pelo capital se concretiza nas diferentes formas precárias das relações laborais. Desde o surgimento do capitalismo, o objetivo maior é o lucro do capital, acumular cada vez mais e o mais depressa possível, gastando o mínimo com a mão de obra para este objetivo: maximizar os lucros e minimizar os custos das empresas.

Em seu artigo “O mundo do trabalho na era da globalização”, a advogada trabalhista Ana Paula Freitas de Albuquerque diz que, “Essa, portanto, é a realidade do mundo do trabalho, hoje: intensificação da exploração do trabalhador, desemprego, precarização das relações de trabalho, flexibilização das relações de trabalho, desregulamentação dos direitos trabalhistas, entre tantos outros aspectos nefastos dessa dura realidade que assola a classe operária e que acaba por provocar a exclusão social de uma crescente massa de trabalhadores.  Considerando-se a lógica capitalista perversa de maximização da acumulação, a tendência, na tentativa de aumento da produtividade, de forma a obter maior produção ao menor custo, parece ser a elevação da taxa de desemprego e a acentuação da precarização das condições de trabalho, levando ao limite a exploração da classe trabalhadora”. (Grifo nosso) (ALBUQUERQUE, 2007).

A ordem capitalista acentuou ainda mais as desigualdades sociais a partir da ideia da necessidade de sempre maior lucro do capital e da consequente exploração do trabalho para isto, seguindo a lógica de diminuir salários para aumentar os ganhos.

 Ana Paula Freitas de Albuquerque (2007) conclui dizendo que, “No contexto da ordem capitalista contemporânea, o não-trabalho traz como consequência a pobreza, a desigualdade e a exclusão socioeconômica. O trabalho, destarte, é fator de acesso à dignidade da pessoa humana e, portanto, de emancipação social, negadas diante da exclusão de milhões de pessoas dos postos de trabalho formais e de condições dignas de trabalho. O acesso ao trabalho (em condições dignas), nessa perspectiva, é condicionante dos demais direitos, visto que é capaz de assegurar ao trabalhador a manutenção do vínculo social, principalmente, pelo acesso à rede de proteção social. E o trabalho formal se coloca como uma das principais formas de emancipação social. Assim, nesse contexto de fragmentação, polarização, degradação e exclusão social decorrentes da crescente exploração do trabalho pelo capital é necessário buscar alternativas ao trabalho humano como forma de inclusão social e efetivação da dignidade da pessoa humana“. (Grifo nosso) (ALBUQUERQUE, 2007).

A ideia de que o trabalho, a emancipação social e a dignidade andam juntos se desconstrói quando, para que isto aconteça, na sociedade real, é necessário que, em muitas vezes, abra-se mão de seus direitos mais básicos em troca de um salário enxuto e insuficiente por longas jornadas de trabalho. Esta acaba sendo a alternativa para muitos se não quiserem o desemprego e todas as mazelas decorrentes dele como realidade.

Este problema global de exploração de pessoas para o trabalho possui relação estreita com o desrespeito aos Direitos Humanos. A violação a estes direitos é causa, ao mesmo tempo em que é consequência, desta exploração, pois, quando é negado ao indivíduo o acesso à educação, além de outras garantias fundamentais para a manutenção de sua dignidade humana, o mesmo acaba por se tornar vítima em potencial, podendo ser facilmente seduzido, ser suscetível também ao tráfico e, assim, ter outros direitos fundamentais também cerceados.

Desde o momento em que o indivíduo é apresentado a esta situação de exploração é retirada sua dignidade e liberdade, continuando, assim, quando já na execução de seu trabalho, onde é exposto a condições degradantes, não existindo direitos trabalhistas e muito menos restando qualquer resquício de sua dignidade já anteriormente aniquilada. Basicamente, a situação de exploração para o trabalho, na grande maioria dos casos, iguala-se a um estado de escravatura.

O trabalho escravo hoje é mais amplamente debatido no Brasil como “trabalho análogo à condição de escravo” por ser tratado assim pelo nosso Código Penal Brasileiro desde que o trabalho escravo foi formalmente abolido no Brasil em 13 de maio de 1888, permanecendo apenas, segundo entendimentos do legislativo brasileiro, situações semelhantes ao trabalho escravo, não ele propriamente dito. Tal situação é tipificada penalmente, prevista no artigo 149 do Código Penal: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. §1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”. (Grifo nosso) (BRASIL, 1940).

Em matéria apresentada no site Repórter Brasil (2016), baseado no artigo acima citado (segundo a legislação brasileira), são explicados os quatro elementos caracterizantes do trabalho escravo: “Condições degradantes de trabalho. Quando a violação de direitos fundamentais fere a dignidade do trabalhador e coloca em risco sua saúde e sua vida. Costuma ser um conjunto de elementos irregulares, como alojamentos precários, péssima alimentação, falta de assistência médica, saneamento básico e água potável. Jornada exaustiva. Quando o trabalhador é submetido a esforço excessivo, sobrecarga ou jornadas extremamente longas e intensas que acarretam danos à sua saúde, segurança ou mesmo risco de morte. Trabalho forçado. Quando a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas, tendo sua liberdade violada. Servidão por dívida. Quando o trabalhador fica preso ao serviço por causa de um débito ilegal [em geral, referente a gastos com transporte, alimentação, aluguel e equipamentos de trabalho, cobrados de forma abusiva e descontados diretamente de seu salário”. (Grifo nosso) (REPÓRTER BRASIL, 2016).

A partir do entendimento destes quatro elementos considerados tipos de trabalho escravo – condição análoga à de escravo no Brasil – e segundo a publicação “Trabalho Escravo no Brasil do século XXI”, do Escritório da OIT no Brasil, coordenada por Leonardo Sakamoto, o qual diz que: “O sistema que garante a manutenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo é ancorado em duas vertentes: de um lado, a impunidade de crimes contra direitos humanos fundamentais aproveitando-se da vulnerabilidade de milhares de brasileiros que, para garantir sua sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas em busca de um trabalho decente. De outro, a ganância de empregadores, que exploram essa mão-de-obra, com a intermediação de “gatos” e capangas” (SAKAMOTO, 2007, preâmbulo).

Intenta-se entender por que tal situação ainda é ocorrente nos dias de hoje apesar de ser prevista em nosso código penal, do Brasil ser citado pela Organização Internacional do Trabalho como modelo de combate ao trabalho escravo, além desta Organização possuir inúmeras previsões de proteção ao trabalhador com alcance global. 

A Organização Internacional do Trabalho – OIT, fundada em 1919, foi criada como parte do Tratado de Versalhes, que colocou fim à Primeira Guerra Mundial. De acordo com a OIT em seu site no Brasil, a Organização é tida como o único dos órgãos do Sistema das Nações Unidas que conta com uma estrutura tripartite, isto é, composta de enviados de governos e de organizações de trabalhadores e de empregadores. Ademais, é responsável pela criação e aplicação das normas internacionais do trabalho, as chamadas convenções – tratados internacionais que, no momento em que são ratificadas por um país, começam a fazer parte de seu ordenamento jurídico, e as recomendações – instrumentos que definem a orientação das políticas e ações nacionais.

A OIT objetiva seus esforços no que denomina de “trabalho decente”, que é o centro dos quatro objetivos estratégicos da OIT, quais sejam: “O respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) eliminação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social”. (OIT, 1919).

Apesar de definir no que se basearia o entendimento de trabalho decente para o mundo, nota-se que esta ideia não é amplamente atendida quando se vê a necessidade de discutir sobre um problema que, comparado ao aparato de normas existente sobre o tema, é muito expressivo. 

Segundo a própria Organização Internacional do Trabalho no Brasil, “a escravidão é o resultado do trabalho degradante que envolve cerceamento da liberdade” (OIT, 1919). Sendo a soma destes dois fatores, o trabalho escravo trata de homens, mulheres e crianças que tem sua liberdade cerceada, sendo comum que a escravização aconteça pelo isolamento geográfico, pela servidão por dívida e pela ameaça às suas vidas.

Em âmbito internacional, a OIT denomina o trabalho escravo como trabalho forçado ou obrigatório, como se observa em sua Convenção n. 29 – Trabalho Forçado ou Obrigatório, artigo 2º (OIT, 1930), onde é definido que, trabalho forçado é: “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. Nesta diretriz, há também a Convenção n.105 – Sobre a Abolição do Trabalho Forçado (OIT, 1957), adotada para abolir ou suprimir o trabalho forçado ou obrigatório.

A publicação ”O Custo da Coerção – Relatório Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos Humanos e Princípios Fundamentais do Trabalho”, da Organização Internacional do Trabalho (2009), complementa a ideia de definição sobre o trabalho forçado, dizendo que, “O trabalho forçado não pode ser simplesmente conotado com baixos salários ou com más condições de trabalho. Nem inclui situações de pura necessidade econômica, como quando um trabalhador sente dificuldade em abandonar um emprego, devido à ausência real ou suspeitada de alternativas. O trabalho forçado representa uma grave violação dos direitos humanos, e uma restrição à liberdade humana, conforme definido pelas Convenções da OIT acerca do assunto, e noutros instrumentos afins relacionados com a escravatura, práticas análogas à escravatura, servidão por dívidas ou servidão feudal”. (OIT, 2009, p.5).

Neste sentido, nota-se a semelhança de definições e entendimentos, sendo apenas uma questão de nomenclaturas distintas. O que deve ser sempre observado é a configuração de restrição da liberdade do indivíduo, assim como este deve ser exposto a uma sanção iminente, a medidas coercitivas, sendo através de violência física ou psicológica ou até por meio de retenção de salário para que seja caracterizada a efetiva situação de escravidão.

Em busca de uma abordagem mais ampla, adotar-se-á a nomenclatura trabalho escravo, que fará referência a todas as suas formas (trabalho degradante, condições subumanas, servidão, etc.) e sinônimos (para o Brasil: condição análoga à de escravo e para a OIT: trabalho forçado), acreditando-se, assim, fazer-se jus a tudo que esta expressão representa.

A situação de exploração de pessoas através do trabalho escravo vai contra tudo que é pregado pela ONU e pela OIT quanto aos Direitos Humanos e ao trabalho decente. É configurado no artigo 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). Neste sentido, é uma afronta a tudo que foi construído após o mundo ver e sentir o que é estar em constante perigo e sem proteção alguma das Organizações Governamentais Internacionais, como foi durante as Grandes Guerras, podendo ser considerada uma situação que leva a um verdadeiro retrocesso no curso da humanidade.

Este estado de exploração é fortemente presente quando tratamos sobre o trabalho marítimo. Condições extremas de trabalho degradante nas embarcações não são raras, nas quais se é configurado o trabalho escravo pela presença, além do trabalho degradante, da restrição de liberdade, em vista da condição destes trabalhadores que estão limitados ao espaço das embarcações, estes chamados pela OIT de gente do mar.

2 TRABALHO MARÍTIMO: HISTÓRICO CONVENCIONAL

O trabalho marítimo é tido como todo trabalho realizado a bordo, tanto para a execução de serviços condizentes com a navegação quanto para a manutenção das embarcações.

 A título de definições, que se considera ser importante para um maior entendimento sobre a questão, a Lei nº 9.537/97 – Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA), traz inúmeras delas em seu artigo 2º, sendo aqui citadas as mais importantes para o tema: “I – Amador – todo aquele com habilitação certificada pela autoridade marítima para operar embarcações de esporte e recreio, em caráter não-profissional; II – Aquaviário – todo aquele com habilitação certificada pela autoridade marítima para operar embarcações de em caráter profissional; III – Armador – pessoa física ou jurídica que, em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais, pondo-a ou não a navegar por sua conta; IV – Comandante (também denominado Mestre, Arrais ou Patrão) – tripulante responsável pela operação e manutenção de embarcação, em condições de segurança, extensivas à carga, aos tripulantes e às demais pessoas a bordo; V – Embarcação – qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas; […] VIII – Instalação de apoio – instalação ou equipamento, localizado nas águas, de apoio à execução das atividades nas plataformas ou terminais de movimentação de cargas; […] XI – Navegação em mar aberto – a realizada em águas marítimas consideradas desabrigadas; XIII – Passageiro – todo aquele que, não fazendo parte da tripulação nem sendo profissional não-tripulante prestando serviço profissional a bordo, é transportado pela embarcação; […] XVI – Profissional não-tripulante – todo aquele que, sem exercer atribuições diretamente ligadas à operação da embarcação, presta serviços eventuais a bordo; VXII – Proprietário – pessoa física ou jurídica, em nome de quem a propriedade da embarcação é inscrita na autoridade marítima e, quando legalmente exigido, no Tribunal Marítimo; XIX – Tripulação de Segurança – quantidade mínima de tripulantes necessária a operar, com segurança, a embarcação; XX – Tripulante – aquaviário ou amador que exerce funções, embarcado, na operação da embarcação; XXI – Vistoria – ação técnico-administrativa, eventual ou periódica, pela qual é verificado o cumprimento de requisitos estabelecidos em normas nacionais e internacionais, referentes à prevenção da poluição ambiental e às condições de segurança e habitabilidade de embarcações e plataformas.” (Grifo nosso) (BRASIL, 1997).

Em âmbito internacional, a Convenção sobre Trabalho Marítimo (CTM, 2006) traz em seu artigo II a definição – semelhante à dada pela lei acima citada – do que seria o armador, “Significa o proprietário do navio ou outra organização ou pessoa, como o gerente, agente ou afretador a casco nu, que houver assumido a responsabilidade pela operação do navio em lugar do proprietário e que, ao assumir tal responsabilidade, se comprometeu a arcar com os deveres e responsabilidades cabíveis a armadores em virtude da presente Convenção, independentemente do fato de outra organização ou pessoa cumprir certos deveres ou responsabilidades em nome do armador”. (OIT, 2006).

Assim como também dá a sua significação de navio que “significa embarcação outra que não navegue exclusivamente em águas interiores ou em águas dentro de ou adjacentes a águas abrigadas ou áreas onde se aplicam os regulamentos portuários”. (OIT, 2006).

De acordo com o Texto Consolidado do anexo à Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar, 1974, e do Protocolo relativo a 1988, tem-se os tipos de embarcações existentes e consideradas pela comunidade internacional: “(f) Navio de passageiro é um navio que transporta mais de doze passageiros; (g) Navio de carga é todo navio que não seja de passageiros; (h) Navio-tanque é um navio de carga construído ou adaptado para o transporte a granel de cargas líquidas de natureza inflamável; (i) Navio de pesca é um navio utilizado para a captura de peixes, baleias, focas, morsas ou outros recursos vivos do mar; (j) Navio nuclear é um navio provido de uma instalação de energia nuclear;” (OMI, 1974).

O trabalho marítimo é muito amplo, possui inúmeras áreas de atuação que se evidenciam pela diversidade de funções e embarcações existentes. É um nicho de trabalho que está em constante risco, no qual o próprio ambiente em que se encontra é restrito aos limites da embarcação, em que os turnos de trabalho possuem alternância em um período de 24 horas, além de ficarem grandes períodos de tempo distantes de seus familiares em razão da condição de trabalho em alto mar. Como se não bastasse, há uma numerosa quantidade de navios mercantes nacionais, de cruzeiros nacionais e internacionais, assim como navios estrangeiros com bandeiras de conveniência que não respeitam as condições mínimas de trabalho, que expõem seus tripulantes a situações degradantes e que, em casos extremos, acabam por configurar trabalho escravo.

2.1 A vida no mar: das embarcações à realidade do ambiente de trabalho dos embarcados

O trabalho marítimo embarcado possui peculiaridades, começando por sua condição de trabalho que é em alto-mar. É confinado nas limitações da embarcação, situação esta que acaba por restringir a convivência social do trabalhador com os seus e incita o seu isolamento e, muitas vezes, possui uma jornada de trabalho desgastante e excessiva, devendo estar sempre alerta a qualquer necessidade que se fizer.

Enilson Pires, diretor de previdência do Sindmar e antigo oficial de náutica, relata, através da reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante”, escrita por Daniele Mendes, na Revista ANAMATRA, diz que, “Discernir sobre a questão do confinamento e convívio social do marítimo não é tarefa fácil de fazer-se compreender, pois, a profissão que escolhemos exige do profissional dedicação exclusiva […] isso se difere totalmente do profissional terrestre, que após a sua jornada retorna para o seio de seus familiares e entes queridos, seja no Natal, Ano Novo, aniversário, carnaval, feriado, Páscoa, bailes de formatura […].” (MENDES, 2007, p. 18).

     O longo período de trabalho dos trabalhadores do mar é um dos grandes problemas da profissão, estas longas jornadas laborais são até acordadas ou ajustadas em convenções coletivas de trabalho.

Ainda na mesma reportagem da Revista ANAMATRA, a autora afirma,  “O presidente do Sindicato, Severino Almeida, que também preside a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos (Conttmaf), explica que a atividade dos marítimos se desenvolve de forma ininterrupta, em meio a tormentas, caturros (termo do setor para o balanço de proa a popa produzido pela agitação do mar) e balanços da embarcação. “Seguidas vezes, esse trabalho demanda estado de alerta, privando a tripulação de repouso ou sono”, diz ele. […] “Trabalhar a bordo de navio traz profundo desgaste à psique. Entendemos que é perfeitamente justificável a aposentadoria em menos tempo”, sentencia”. (MENDES, 2007, p.17).

Deve-se observar que, por estarem limitados no espaço da embarcação, o período de descanso e de lazer do trabalhador marítimo, muitas vezes já curto pelas longas jornadas e estes devendo ficar à disposição do comandante 24 horas por dia em caso de situações atípicas, só pode ser realizado ali mesmo, em seu local de trabalho: a embarcação, situação que promove o isolamento. Nesse contexto, continuam imersos no ambiente de trabalho, não havendo possibilidade de se distanciar, mesmo que por poucas horas, não podendo aproveitar o tempo livre com seus familiares, sendo esta uma pertinente e dura diferenciação quanto a qualquer outra profissão em terra.

Ainda segundo Daniele Mendes em sua reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante” (2007), “Os longos períodos a bordo da embarcação contribuem para o aparecimento de uma série de doenças psicológicas. Solidão, sentimento de inadequação na sociedade, estranhamento por parte da própria família na volta ao lar, falta de reconhecimento pelo trabalho são alguns motivos que levam as tripulações a estados de fadiga e depressão. […] De acordo com publicação feita pela responsável pelo estudo, a tecnologista da Fundacentro/RS Maria Mucillo, as principais queixas e reivindicações dos marítimos embarcados recaem sobre a jornada de trabalho prolongada e sobre o cartão de embarque. A pesquisa também apontou como fato agravante à saúde da tripulação a convivência com riscos para a própria vida e para a integridade física de seus companheiros de tripulação. Esse convívio exige permanente e intenso equilíbrio emocional acrescido da elevada carga de responsabilidade pelos vultuosos valores que são transportados, pressões que podem afetar diretamente a saúde mental desses trabalhadores.” (MENDES, 2007, p.19).

Resguardadas as exceções, diversas empresas marítimas não são comprometidas com seus trabalhadores e nem com as leis trabalhistas. Não dão atenção à saúde psicológica dos embarcados, a maioria dos navios não possui (ou a empresa, por sua vontade, não propicia) tecnologia suficiente para que haja computadores ou telefones para contato com os que estão em terra, há a insuficiência do cumprimento de normas mínimas de segurança, de equipamentos de proteção, de alimentos e até de remédios, questões estas que fazem parte do dia a dia de muitos trabalhadores embarcados, colocando-os em uma situação de condições degradantes de trabalho/trabalho escravo. Especificamente, existem diversos navios internacionais que não oferecem as mínimas condições de vida e de trabalho a bordo: que são os conhecidos navios substandard (de baixo padrão).

De acordo com Daniele Mendes, em sua reportagem para a Revista ANAMATRA, sobre a Maninha Mercante (2007, p.15), estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram que o maior problema com relação às condições de trabalho a bordo de navios está nas denominadas bandeiras de conveniência. Este sistema se caracteriza por armadores que se utilizam de bandeiras de outros países que não o seu, buscando baratear custos, não observando a certificação e qualificação da mão-de-obra e que fogem à ação dos sindicatos e burlam a legislação do Estado de bandeira e das diversas convenções internacionais.

Estes navios substandard são apátridas que usam a bandeira – as chamadas bandeiras de conveniência – de outros países, assumindo, assim, uma nacionalidade falsa. Utilizam-se desta manobra com a finalidade de burlar o que estabelece a ONU em sua Convenção “ONU sobre Direito Marítimo” quanto à obrigação dos Estados com suas embarcações. Estipula-se que o Estado deve “exercitar eficazmente sua jurisdição e controle dos assuntos administrativos, técnicos e sociais sobre os navios de suas respectivas bandeiras” (ONU, 1982). Navios que acabam adotando as bandeiras de conveniência já o fazem por não cumprir as normas mínimas sociais, nem os direitos dos marítimos, muito menos os Direitos Humanos.

Ainda segundo a reportagem citada anteriormente, escrita por Daniele Mendes (2007), da Revista ANAMATRA, “De acordo com o coordenador regional de Bandeira de Conveniência da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF), Luiz Fernando de Lima, “há casos em que o tripulante é abandonado e fica à mercê do destino e da própria sorte até que a ITF e seus afiliados encontrem uma solução para o problema, já que o armador se eximiu da responsabilidade e o próprio Estado da bandeira se omitiu em prestar a devida assistência”. O percentual de embarcações com registros de conveniência no mundo é bem considerável. Segundo levantamentos da Conferência de Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas (Unctad), em 2004 este número correspondia a 46,6% da frota mercante mundial, estimada em 50 mil embarcações de porte bruto igual ou superior a 500 TPB (Tonelada de Porte Bruto). Ou seja, os registros de conveniência contabilizavam 23,3 mil embarcações naquele ano”. (Grifo nosso) (MENDES, 2007, p.15).

As condições de higiene e segurança a bordo destes navios são precárias e põem em risco a saúde e vida dos tripulantes, não sendo consideradas importantes, assim como as normas de proteção ambiental, saneamento, segurança.

Alarmante também são os crimes de trabalho escravo denunciados pela Organização das Vítimas de Cruzeiro no Brasil (OVC-Brasil, 2010), uma associação sem fins lucrativos que disponibilizou em seu blog trechos de uma carta aberta enviada às autoridades federais e à sociedade civil no ano de 2014, “Assédio moral e sexual, racismo, homofobia, xenofobia, péssimas condições de alojamento e assistência médica, fraudes trabalhistas, trabalho até a exaustão e outros crimes repugnantes revelam condições severas, aviltantes e humilhantes à dignidade humana de milhares de jovens brasileiros e não brasileiros, principalmente asiáticos, que são o grande contingente de trabalhadores dentro do navio. O grande agravante é que os monstruosos tratamentos das chefias do navio são realizados em regime de confinamento, ou seja, esses jovens, entre um porto e outro, não tem para onde correr e nem quem recorrer, ficando portanto, numa condição de total vulnerabilidade. Desaparecimentos “inexplicáveis”, como o caso de Laís Santiago do navio Costa Magica, agressões físicas por parte da segurança do navio contra tripulantes brasileiros, cárcere privado como ocorreu em navio da Pullmantur, intenso consumo de álcool e tráfico e droga, que é generalizado, são outros ingredientes do submundo ao qual estamos denunciando. Condições degradantes que, inexoravelmente, acabam afetando também os passageiros”. (OVC, 2010).

A partir de uma denúncia da Organização de Vítimas de Cruzeiros do Brasil juntamente com outros trabalhadores marítimos brasileiros é que a Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego coordenou uma força-tarefa de fiscalização em navios de cruzeiro em maio de 2014 no porto de Salvador (BA), momento este em que foram resgatados 11 trabalhadores em condições análogas às de escravo no navio MSC Magnífica. Conforme a reportagem “Ação resgata 11 trabalhadores em navio de cruzeiro”, noticiada no portal JusBrasil pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em 2014, “De acordo com o informado pela fiscalização do TEM, 11 tripulantes brasileiros resgatados estavam a cerca de 200 dias trabalhando sem nenhum dia inteiro de folga. Segundo o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Portuário e Aquaviário, Raul Vital Brasil, durante a ação constatamos que os trabalhadores realizavam jornadas de 11 a 16 horas, com períodos de descanso interrompidos por reuniões, treinamentos e outras atividades. Esse trabalho ininterrupto ocorreu durante todo o período embarcado, inclusive e principalmente em fins de semana e feriados como Natal, Ano Novo e Carnaval, quando o trabalho se intensifica. O sistema exaustivo de jornada e descanso era agravado pelo fato desses empregados trabalharem sob forte pressão psicológica por parte dos “capôs”, como são chamados os chefes” (BRASIL, 2014).

Esta mesma reportagem ainda faz menção a uma vítima fatal das condições degradantes em que trabalhadores marítimos são reprimidos: “Vítima Fatal 2012. As condições desumanas de trabalho a que são submetidos os tripulantes brasileiros geraram uma vítima fatal em 2012, no navio de cruzeiro Armonia, também da MSC. Nesse acidente de trabalho faleceu a jovem tripulante brasileira Fabiana Pasquarelli. A investigação realizada por auditores-fiscais do trabalho concluiu que vários fatores contribuíram para o óbito, dentre eles: a diminuição de sua imunidade, por fadiga, após ter trabalhado sem nenhum dia de folga por 193 dias seguidos, com uma jornada diária superior a 11 horas; surto de gripe a bordo no mesmo período de sua internação, deixando vários tripulantes com insuficiência respiratória aguda; medicamentos inadequados fornecidos à tripulante; reação alérgica aos medicamentos; demora no atendimento hospitalar; segundo relatos de outros tripulantes, a vítima havia trabalhado sob chuva durante vários dias no período que antecedeu a internação” (Grifo nosso) (BRASIL, 2014).

Estas poucas situações citadas de trabalho escravo, fazem-nos pensar no número expressivo do problema, nos casos que não são expostos, em navios que estão nestas condições em meio aos nossos oceanos e que nunca serão descobertos se não forem denunciados por aqueles que vivem ou sabem deste crime.

2.2 Trabalho Marítimo e a realidade concreta em dados internacionais

Segundo a publicação ”O Custo da Coerção – Relatório Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos Humanos e Princípios Fundamentais do Trabalho”, da Organização Internacional do Trabalho (2009), “É cada vez mais evidente que os Trabalhadores Marítimos estão particularmente expostos ao risco de trabalho forçado e de tráfico. Em dezembro de 2007, uma publicação acadêmica na Itália dedicada ao “trabalho forçado no oceano”, concentrou-se na situação dos grupos vulneráveis, que escapavam de longe a uma sistemática observação. As circunstâncias de isolamento e de cativeiro deste grupo de trabalhadores, ao lado das dificuldades frequentes na identificação de responsabilidades legais perante as tripulações, podem torná-los particularmente vulneráveis. Existem relatos de casos em que a fraude e o não pagamento de salários eram práticas deliberadas. Em um desses casos, relatado pela CIS e pela Federação Internacional dos Trabalhadores de Transportes (ITF), um Filipino esteve vários meses sem receber seu salário antes de contatar o sindicato”. (OIT, 2009, p. 30).

Ainda de acordo com a publicação acima citada, “Foram realizados amplos relatórios sobre as práticas de trabalho forçado, envolvendo o cativeiro físico na indústria da pesca em países asiáticos, com maior incidência na Tailândia. A CIS forneceu informações detalhadas em nome do seu afiliado, o Sindicato dos Trabalhadores Marítimos da Birmânia (SUB), em que muitos dos seus membros relataram práticas de trabalho forçado em traineiras Tailandesas. Um Projeto Interagências das Nações Unidas sobre o Tráfico Humano na Sub-Região do Grande Mekong (UNIAP) retratou uma prática similar como sendo de tráfico humano. Testemunhos apontaram para práticas fraudulentas, tanto na Birmânia/Myanmar como entre a comunidade de migrantes birmaneses na Tailândia, e de um recrutamento seguido por limitações de liberdade de movimentos, através de cativeiro físico, em instalações vigiadas. Eram tiradas fotos para passaportes, e preparados falsos documentos de identificação, apresentando os trabalhadores Birmaneses como cidadãos tailandeses. Dado o aparecimento de nomes diferentes no registro, essa prática mais tarde permitiria aos proprietários dos navios negar que essas pessoas tivessem sido contratadas”. (OIT, 2009, p. 30).

De acordo com o Relatório da OIT, que é base para a publicação já citada anteriormente, “Um estudo realizado em 2007 pelo Centro de Solidariedade estabelecido nos Estados Unidos, sugere que os cidadãos Tailandeses de áreas rurais também podem ser traficados para trabalho forçado na indústria pesqueira. O relatório, que citava fontes governamentais, mencionava que podem estar presos nestas traineiras mais de 10.000 trabalhadores. Em um caso extremo documentado pelo ITF, 39 trabalhadores marítimos birmaneses morreram de fome depois de terem sido abandonados sem comida e água durante mais de dois meses. Existem relatórios de coerção semelhantes em navios de pesca nos mares europeus. O ITF menciona o caso de trabalhadores marítimos indonésios, em que cada um pagou uma taxa de US$500 a uma agência de recrutamento para trabalhar em um navio espanhol e posteriormente receberam menos de um terço do salário inicialmente acordado”. (OIT, 2009, p. 31)

Casos como estes citados pelo relatório da OIT demonstram a necessidade de planos de ação e maior preparo através de estudos mais detalhados quanto ao mecanismo de recrutamento dos trabalhadores marítimos, às restrições aos seus direitos de abandonar os navios e às penalidades que possam ocorrer caso o quiserem fazer por diversos motivos, incluindo por terem sido sujeitados a práticas laborais abusivas ou fraudulentas.

De acordo com a Estimativa Mundial sobre Trabalho Forçado da OIT (2012), aproximadamente 21 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado: 11,4 milhões de mulheres e meninas e 9,5 milhões de homens e meninos. Os menores de 18 anos representam 26% (5,5 milhões) de todas as vítimas de trabalho forçado. Cerca de 18,7 milhões de vítimas são exploradas pela economia privada, por indivíduos ou empresas e mais de 2,2 milhões pelo Estado, por grupos rebeldes ou exércitos nacionais.

Particularmente quanto aos navios de cruzeiro, a Estimativa Mundial sobre Trabalho Forçado da OIT (2012), ainda em trechos de uma carta aberta enviada às autoridades federais e à sociedade civil no ano de 2014, expõe que “Conforme os documentos “Relatório de Ação Fiscal – Embarcações Estrangeiras de Turismo” e “Relatório de Ação Fiscal MSC Crociere S.a” elaborados por diversos departamentos de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), […], houve operações de fiscalização entre março e abril deste ano (2014) em navios das armadoras que operam no Brasil: MSC, Costa, Pullmantur, Ibero e Royal. Além dos auditores-fiscais do TEM, participaram das operações procuradores do MPT, Anvisa, Marinha, MPF, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência e a Polícia Federal. Os relatórios dessas operações (incluindo a ação de resgate no MSC Magnífica) somam quase 1.500 páginas com relatos detalhados dos grandes absurdos do submundo existente dentro desses navios. […] revelam todo o tipo de irregularidades trabalhistas, fraude contratual, descumprimento das convenções internacionais marítimas e tratamentos que violam os direitos humanos mais básicos, colocando em grande risco a saúde física e mental dos tripulantes, podendo levar até a morte destes, como foi o caso da tripulante Fabiana Pasquarelli em 2012 no MSC Armonia. Não é à toa que todos os navios fiscalizados receberam dezenas de autos de infração por diversas irregularidades trabalhistas. Ao todo, foram mais de 40 autos lavrados” (Grifo nosso) (OIT, 2014).

O que se sabe é que esta situação de exploração de pessoas através do trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas é muito expressiva, mas pouco difundida tanto no Brasil como ao redor do mundo, como se nota pelos poucos dados existentes sobre o tema. Tal situação é compreendida por ocorrer em alto-mar, longe de qualquer fiscalização, podendo apenas ser denunciada por aqueles que vivem ou são sabedores deste tipo de trabalho, em que a fiscalização pelos órgãos competentes somente ocorrerá verdadeiramente após tais denúncias ou pelas raras fiscalizações de rotina destes já nos portos, entre eles: Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Divisão de Fiscalização do Trabalho Portuário e Aquaviário (DFTPA), Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), entre outros.

3 TRABALHO MARÍTIMO PELO VIÉS INTERNACIONAL E A REALIDADE BRASILEIRA

Após serem relatados apenas alguns dos inúmeros casos – além dos que são desconhecidos – de situações degradantes/de trabalho escravo em embarcações, no serviço do trabalho marítimo, pertinente é saber se há alguma proteção a estes trabalhadores.

Normalmente, o contrato de trabalho dos trabalhadores marítimos é regulado pelas leis do país da bandeira que consta na embarcação. Porém, caso a embarcação esteja em águas brasileiras, determina a Súmula n.º 207 do Tribunal Superior do Trabalho que o contrato fica sujeitado ao que determina a Consolidação das Leis do Trabalho.“SUM-207 CONFLITOS DE LEIS TRABALHISTAS NO ESPAÇO. PRINCÍPIO DA “LEX LOCI EXECUTIONIS” (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação” (BRASIL, 2003).

A Organização Internacional do Trabalho, que é responsável pela regulamentação de normas sobre o trabalho à nível mundial, possui inúmeras convenções especificamente sobre o trabalho marítimo, sendo a grande maioria delas com foco na proteção do trabalhador. O Brasil ratificou um bom número das convenções que foram criadas sobre o tema e, vendo a atenção dada ao trabalho marítimo pela OIT, criou também um considerável número de leis para a proteção da gente do mar.

Inviável neste trabalho é dar a devida atenção a todas as normas existentes sobre trabalho marítimo, tanto nacionais quanto internacionais, sendo citadas as que de alguma forma melhor exemplificaram os assuntos aqui abordados e aquelas tidas como mais importantes.

O que se constata é que os problemas graves de trabalho existentes em grande parte das embarcações não acontecem por falta de regulamentos protetivos. Pode-se dizer que estas, então, são pouco fiscalizadas e eficazes.

3.1 A Organização Internacional do Trabalho e as convenções internacionais sobre trabalho marítimo

Os trabalhadores marítimos ou “gente do mar” (OIT, CTM, 2006) – “significa qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha a bordo de um navio ao qual esta Convenção se aplica”, denominação mais comumente utilizada pela OIT desde a sua fundação, obtiveram especial atenção da Organização, sendo apreciados como uma das primeiras convenções elaboradas por ela no ano de 1920: a Convenção n. 7, que tratava sobre a idade mínima aceitável para o trabalho marítimo. Esta acabou sendo substituída pela Convenção n. 58, em 1936, e, posteriormente, pela Convenção n. 138, no ano de 1973, que hoje é presente na Convenção sobre Trabalho Marítimo da OIT (CTM, 2006).

Frente a inúmeras Convenções e Recomendações Internacionais existentes sobre Trabalho Marítimo, no ano de 2006, a Conferência Geral da OIT criou e adotou a Convenção sobre Trabalho Marítimo que atualizou e reuniu, em um só texto, outras 68 convenções e recomendações sobre o trabalho da gente do mar, sendo um compilado de todas as normas antes existentes sobre o tema que busca uma maior aceitação, implementação e controle, estando comprometido com os princípios do trabalho decente. Segundo a Convenção, “Considerando que, dada a natureza global da indústria de navegação, a gente do mar precisa de proteção especial” (OIT, 2006).

Na presente Convenção sobre Trabalho Marítimo, são especialmente citados em seu artigo IV os Direitos no Emprego e Direitos Sociais da Gente do Mar, sendo eles: 1. “Toda gente do mar tem direito a um local de trabalho seguro e protegido no qual se cumpram as normas de segurança. 2. Toda gente do mar tem direito a condições justas de emprego. 3. Toda gente do mar tem direito a condições decentes de trabalho e de vida a bordo. 4. Toda gente do mar tem direito a proteção da saúde, assistência médica, medidas de bem-estar e outras formas de proteção social. 5. Todo Membro assegurará, nos limites de sua jurisdição, que os direitos de emprego e direitos sociais da gente do mar, a que se referem os parágrafos precedentes deste Artigo serão plenamente implementados conforme requer esta Convenção. Salvo disposição em contrário nesta Convenção, essa implementação poderá ser assegurada por meio de leis ou regulamentos nacionais, acordos e convenções coletivas, pela prática ou outras medidas aplicáveis”. (OIT, 2006).

Comenta o diretor geral do Conselho de Administração da OIT, Juan Somavia, no site da Organização Internacional do Trabalho de Portugal, que “Adoptámos uma Convenção que abrange continentes e oceanos, fornecendo uma carta de trabalho para o mundo dos 1,2 milhões ou mais de trabalhadores marítimos, e que ao mesmo tempo aborda as novas realidades em mudança e necessidades de um sector relacionado com 90% do comércio mundial. E mais importante, estabelecemos uma base sócio económica para a competitividade global no sector marítimo. Esta iniciativa pode também servir como um novo impulso e uma base para iniciativas igualmente inovadoras e equilibradas para uma globalização justa noutros sectores no mundo do trabalho. […] A Convenção permitiu estabelecer uma “Carta dos Direitos” para o setor marítimo” (OIT, 2006).

Possuindo caráter de norma internacional, a Convenção sobre o Trabalho Marítimo conta com a cooperação da Organização Marítima Internacional, assim como da Organização Mundial da Saúde, para que, juntamente com a Organização Internacional do Trabalho, ela possa, quem sabe, ser mais bem aproveitada, aplicada e fiscalizada.

De acordo com a reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante”, escrita por Daniele Mendes, da Revista ANAMATRA, para Eduardo Parmeggiani, procurador regional do trabalho da 4ª Região (PRT/4ª Região), ‘O Estado que ratificar a Convenção Consolidada sobre o Trabalho Marítimo poderá exigir seu cumprimento por qualquer embarcação que ingresse em suas águas territoriais, tenha o país da bandeira da embarcação ratificado, ou não, a nova Convenção Internacional’ afirma. (MENDES, 2007, p. 20).

Inúmeras são as Convenções e Recomendações Internacionais que estão compiladas hoje na Convenção sobre Trabalho Marítimo (CTM, 2006), dentre elas, cita-se algumas revisadas pela Convenção juntamente com seu ano de promulgação:

– Convenção (n°. 7) sobre Idade Mínima (Trabalho Marítimo), 1920;

– Convenção (n°. 54) sobre Férias Remuneradas (Trabalho Marítimo), 1936;

– Convenção (n°. 55) sobre Obrigações do Armador (Doença e Acidente de Gente do Mar), 1936;

– Convenção (n°. 56) sobre Seguro Doença (Trabalho Marítimo), 1936;

– Convenção (n°. 57) sobre Horas de Trabalho e Tripulação (Trabalho Marítimo), 1936;

– Convenção (n°. 68) sobre Alimentação e Serviço de Mesa (Tripulação de Navios), 1946;

– Convenção (n°. 69) sobre Certificado de Aptidão de Cozinheiros de Navio, 1946;

– Convenção (n°. 70) sobre Seguridade Social (Gente do Mar), 1946;

– Convenção (n°. 72) sobre Férias Remuneradas (Gente do Mar), 1946; 

– Convenção (n°. 73) sobre Exame Médico (Gente do Mar), 1946;

– Convenção (n°. 76) sobre Salário, Horas de Trabalho e Tripulação, 1946;

– Convenção (n°. 91) sobre Férias Remuneradas (Gente do Mar) (Revista), 1949;

– Convenção (n°. 92) sobre Alojamento da Tripulação a Bordo (Revista), 1949;

– Convenção (n°. 109) sobre Salário, Horas de Trabalho e Tripulação (Revista) 1958;

– Convenção (n°. 134) sobre Prevenção de Acidentes do Trabalho (Marítimos), 1970;

– Convenção (n°. 145) sobre Continuidade de Emprego da Gente do Mar, 1976;

– Convenção (n°. 147) sobre Normas Mínimas na Marinha Mercante, 1976;

– Convenção (n°. 163) sobre o Bem-Estar dos Trabalhadores Marítimos no Mar e no Porto, 1987;

– Convenção (n°. 164) sobre a Proteção da Saúde e a Assistência Médica aos Trabalhadores Marítimos, 1987;

– Convenção (n°. 180) sobre a Duração dos Trabalhos a Bordo e Tripulação, 1996.

Estas Convenções tratam sobre relevantes temas dentro do trabalho marítimo, que são devidamente ponderados – como os Requisitos Mínimos para trabalhar a bordo de navio, Condições de Emprego, Alojamento, instalações de lazer, alimentação e serviço de mesa a bordo, Proteção da Saúde, Atendimento médico, Bem-Estar e Proteção Social e Cumprimento e Controle da Aplicação – e, hoje, são encontrados em um único documento.

Além destas já citadas, importante também é a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar ou SOLAS (acrónimo da denominação inglesa da Convenção: "Safety of Life At Sea"), de 1974/1988, que estabelece normas quanto à segurança quando se trata da construção, do equipamento e da operação de navios. Salienta-se seu Capítulo III – Dispositivos e meios de Salvamento, que dispõe sobre a utilização de botes salva-vidas, botes de resgate e coletes salva-vidas em cada embarcação e o Capítulo V – Segurança na Navegação que, entre vários temas, aborda a prestação de serviços de busca e salvamento em alto mar.

Sabe-se da importância da profissão dos trabalhadores marítimos para o comércio e turismo globais, nos quais as condições de trabalho da mão-de-obra são especiais justamente por ocorrerem em alto-mar, devendo, assim, receber particular vigilância sobre eles. Observa-se a atenção que a comunidade internacional tem com o trabalho marítimo, a qual, desde o início do século passado, passou a regular a profissão da gente do mar.

3.2 A realidade brasileira no trabalho marítimo e a legislação nacional

Diante de inúmeras convenções sobre trabalho criadas pela Organização Internacional do Trabalho, é pertinente ressaltar quais foram ratificadas pelo Brasil quanto à proteção do trabalho marítimo. Vide tabela abaixo com o nome da convenção, a data da sua criação pela OIT e a data de ratificação pelo Brasil, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, disponíveis em seu site no Brasil:

É importante frisar que, apesar da importância global da Convenção sobre Trabalho Marítimo (2006) da OIT ratificada por inúmeros países, o Brasil, infelizmente, ainda não a ratificou.  

Quanto às normas e aos regulamentos nacionais sobre o trabalho marítimo com foco na proteção do trabalhador, pode-se citar algumas de tantas que existem: primeiramente, a Lei nº 9.537/97 – Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA), que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas brasileiras, a qual, em seu artigo 3º, diz que: “Cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução desta Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio”. (BRASIL, 1997).

Já a Norma Regulamentadora n. 30 do Ministério do Trabalho (2002), que regula as condições de segurança e saúde dos trabalhadores aquaviários, trata com mais atenção sobre os trabalhadores marítimos. Segundo o ponto 30.4 “Grupo de Segurança e Saúde no Trabalho a Bordo das Embarcações – GSSTB” desta norma: “30.4.1. É obrigatória a constituição de GSSTB a bordo das embarcações de bandeira nacional com, no mínimo 100 de arqueação bruta (AB). 30.4.1-A. As embarcações de bandeira estrangeira que forem operar por mais de 90 dias em águas jurisdicionais brasileiras e com trabalhadores brasileiros a bordo aplica-se o disposto no item 30.4.1“. (BRASIL, 2002).

No ponto 30.4.6, são apresentadas as finalidades do GSSTB, sendo as seguintes: “a) manter procedimentos que visem à preservação da segurança e saúde no trabalho e do meio ambiente, procurando atuar de forma preventiva; b) agregar esforços de toda a tripulação para que a embarcação possa ser considerada local seguro de trabalho; c) contribuir para a melhoria das condições de trabalho e de bem-estar a bordo; d) recomendar modificações e receber sugestões técnicas que visem a garantia de segurança dos trabalhos realizados a bordo; e) investigar, analisar e discutir as causas de acidentes do trabalho a bordo, divulgando o seu resultado; f) adotar providências para que as empresas mantenham à disposição do GSSTB informações, normas e recomendações atualizadas em matéria de prevenção de acidentes, doenças relacionadas ao trabalho, enfermidades infecto-contagiosas e outras de caráter médico-social; g) zelar para que todos a bordo recebam e usem equipamentos de proteção individual e coletiva para controle das condições de risco”. (BRASIL, 2002).

Em anos seguintes, em dezembro de 2005, a Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil (DPC) instaurou a Portaria n.º 98/DPC. Segundo a reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante”, escrita por Daniele Mendes, da Revista ANAMATRA, “Esse instrumento altera as Normas da Autoridade Marítima para Tráfego e Permanência de Embarcações em Águas Jurisdicionais Brasileiras (Normam-08/DPC) para inibir a ação de falsas cooperativas no meio marítimo, que realizam as intermediações de mão-de-obra para o trabalho embarcado, contrariando a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (Lesta). De acordo com a coordenadora nacional de Inspeção do Trabalho Portuário e Aquaviário do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), Vera Albuquerque, o documento prevê alterações em relação à documentação profissional dos tripulantes. Com a Portaria, os dirigentes das companhias passaram a registrar os contratos de trabalho em vigência firmados com a tripulação na Carteira de Trabalho e a divulgar a lista das pessoas embarcadas, além de apresentar cópias das CTPS de cada tripulante. De acordo com o artigo nº 2 da Portaria, por ocasião de fiscalização realizada nas embarcações, se for constatado que o armador não cumpriu tais procedimentos, as Capitanias dos Portos, Delegacias e Agências (CP/DL/AG) deverão comunicar a ocorrência oficialmente aos órgãos locais do Ministério do Trabalho e Emprego para as providências cabíveis”. (MENDES, 2007, p. 21-22).

Ainda é importante ressaltar que, nos tribunais brasileiros, lides quanto aos trabalhadores marítimos são muito comuns, principalmente, quanto às jornadas de trabalho. Entre tantas, cita-se uma com o intuito de demonstrar a posição de nosso tribunal quanto à questão. “Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMPREGADO MARÍTIMO – COMPENSAÇÃO DE JORNADA – TRABALHO INTERMITENTE NA EMBARCAÇÃO – PREVISÃO DE PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS EM NÚMERO FIXO 1. A Consolidação das Leis do Trabalho, atenta às peculiaridades inerentes ao trabalho em embarcações, prevê disciplina própria para os empregados marítimos, pois a tripulação está sujeita a rotinas específicas de trabalho, vinculadas às necessidades e às contingências do labor a bordo de embarcações marítimas. 2. A CLT autoriza o serviço da tripulação – de forma intermitente ou contínua – durante 8 (oito) horas diárias, a qualquer hora do dia ou da noite (artigo 248). Além disso, estabelece, como regra, que a jornada excedente de oito horas será considerada labor extraordinário, facultando-se ao empregador a compensação por período equivalente ou o seu pagamento (artigos 249 e 250). 3. As normas de tutela da categoria inseridas na CLT revelam-se vantajosas aos trabalhadores por ela abrangidos, auferindo benesses mais consentâneas com as peculiaridades do trabalho marítimo, devendo, assim, ser interpretadas em conjunto. 4. É lícita a previsão em norma coletiva de pagamento de número fixo de horas extras para empregados marítimos. Precedente do TST. Agravo de Instrumento a que se nega provimento”. (TST, Proc.: AIRR – 229140-50.2008.5.09.0322, Rel. Min.: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DEJT 09/04/2010). 

Faz-se considerável ressaltar a Súmula n.º 96 do Tribunal Superior do Trabalho sobre o Marítimo, com o propósito de demonstrar a atenção do tribunal brasileiro com o tema: “Súmula n° 96 – MARÍTIMO – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003: A permanência do tripulante a bordo do navio, no período de repouso, além da jornada, não importa presunção de que esteja à disposição do empregador ou em regime de prorrogação de horário, circunstâncias que devem resultar provadas, dada a natureza do serviço. Histórico: Redação original – RA 45/1980, DJ 16.05.1980. A permanência do tripulante a bordo do navio, no período de repouso, além da jornada, não importa em presunção de que esteja à disposição do empregador ou em regime de prorrogação de horário, circunstâncias que devem resultar provadas, dada a natureza do serviço”. (BRASIL, 2003).

Mesmo não tendo o caráter de norma jurídica, é importante mencionar a Organização das Vítimas de Cruzeiro do Brasil (OVC, 2010) – uma associação sem fins lucrativos, que estabelece em seu Estatuto Social a finalidade do surgimento da Organização, que é a de proteção dos trabalhadores de navios de cruzeiros: “tem por finalidade congregar pessoas, físicas e jurídicas, com o propósito de atuar de forma concreta e efetiva, […] para a erradicação do trabalho aviltante à dignidade da pessoa humana e/ou análogo à condição de escravo, bem como do tráfico de pessoas que tenham por objetivo arregimentar trabalhadores para serviços sob tais condições em navios de cruzeiros, nacionais e/ou internacionais, bem como de defender os direitos humanos de seus associados vitimados por essa espécie de práticas em território nacional e estrangeiros” (OVC, 2010).

Em última análise, é fundamental ressalvar a nossa Constituição Federal brasileira de 1988 que, apesar de não tratar especificamente sobre trabalho marítimo, assegura os direitos fundamentais a todo o ser humano em seu artigo 5º, como a dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, segurança, saúde, educação, alimentação, lazer, entre tantos e fundamentais outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A exploração de pessoas, aqui especificamente para o trabalho, é uma afronta aos Direitos Humanos, a sua Declaração e ao Direito Trabalhista, além de tudo que a Organização das Nações Unidas e a Organização Internacional do Trabalho pregam desde as catastróficas Guerras Mundiais.

Contrária às normativas da ONU e da OIT, a exploração de pessoas para o trabalho muito se condiz com a exploração do trabalho pelo capital, na qual importante é a maximização dos lucros e a minimização dos gastos, inclusive com a mão-de-obra, sendo muito mais econômico burlar a legislação trabalhista, não garantir os mínimos direitos e deixar de lado a dignidade humana dos trabalhadores. A partir desta perspectiva começa a ocorrência das jornadas exaustivas, das condições degradantes de trabalho, da servidão por dívidas e a configuração do trabalho escravo.

As formas de trabalho escravo, ocorrentes no trabalho marítimo, fazem-nos pensar na grandiosidade do problema, em casos que não são divulgados em navios que estão nestas condições em meio aos nossos oceanos e que nunca serão descobertos se não forem denunciados por aqueles que vivem ou sabem deste crime.

O trabalho marítimo por si só já é peculiar por ser condicionado a se realizar em alto-mar, promovendo o isolamento de seus trabalhadores e limitando-os ao espaço da embarcação, restringindo seu convívio social, condicionando os marítimos a permanecerem em estado de alerta durante todo o tempo – para o caso de situações atípicas – e, grande parte das vezes, são solicitados a terem jornadas de trabalho exaustivas.

Nota-se que são escassos os relatórios e estudos sobre o tema das mazelas do trabalho marítimo, justamente por ser uma situação pouco denunciada e que acontece longe dos olhos das autoridades: em alto-mar, no espaço físico das embarcações. Isto faz com que seja primordial, para que possam ser feitos novos levantamentos de dados com objetivo posterior de criação de mais normas – e que sejam eficazes – que regulamentem e protejam os trabalhadores marítimos, a denúncia de todos os problemas de trabalho ocorridos no mar.

Na tentativa de abolir a ocorrência da escravidão, em todas as suas formas, deveria ser combatida a demanda por trabalhadores nesta situação, assim como protegidos todos aqueles que são vítimas em potencial deste problema: as pessoas pobres, que vivem à margem da sociedade ou que buscam condições de vida melhores. Necessário também é tentar resolver essa problemática em seu âmago: dar uma verdadeira oportunidade e qualidade de educação para todos, sem distinção, com o objetivo de diminuir a desigualdade social e, consequentemente, capacitar a todos os trabalhadores para que concorram justamente, sem que seja preciso que recorram a situações extremas de trabalho para custear sua sobrevivência e de sua família ou para que tenham a capacidade de discernimento ideal para que não sejam ludibriados por propostas, no início, tentadoras e que depois propiciarão apenas um trabalho degradante e que cercearão sua liberdade. Talvez esta seja uma idealização longe da nossa realidade.

Mesmo que grande parte dos países tenha adotado medidas contra o trabalho escravo em suas legislações e penalizado a ocorrência deste tipo de trabalho, na maioria delas, a sanção não é severa o bastante, limitando-se a multas ou a prisões com curto período de tempo.

Especificamente no Brasil, necessário é que seja ratificada a Convenção sobre Trabalho Marítimo de 2006 da OIT, visto que é uma Convenção abrangente da maioria das já existentes, recente e revisada, além de ter sido elaborada pelo órgão mundial responsável pelas convenções e recomendações sobre o trabalho. Instigante é que o país ainda não a tenha feito.

Como foi visto, há medidas protetivas aos trabalhadores marítimos, tanto internacionais quanto no Brasil, porém é comprovada sua ineficácia, quando ainda a ocorrência de trabalhos escravos em alto-mar é muito comum. A fiscalização nas embarcações e as brandas sanções não são suficientes para que o problema seja extinto.

Necessário é que seja eliminado o problema da exploração de pessoas através do trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas com uma aplicação e fiscalização eficazes do cumprimento das normas estabelecidas para a proteção destes profissionais, em que grande parte fica à mercê de companhias armadoras irresponsáveis e negligentes com os direitos assegurados a estes por normas legais.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Paola Weege Bubolz

Acadêmica de Direito da Universidade federal do Rio Grande – FURG


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Equipe Âmbito Jurídico

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