O direito do trabalho, em todo o mundo, não nasceu por acaso. Ele surgiu diante de uma necessidade humanitária de se regulamentar as relações de trabalho entre empregados e empregadores, visando à proteção daqueles. Tal ocorreu no auge da Revolução Industrial, quando os trabalhadores estavam expostos às mais indignas e desumanas condições de trabalho, sem direito a jornadas compatíveis, salário mínimo e outros direitos fundamentais. Naquela época, eram comuns jornadas diárias de mais de quinze horas, inclusive para mulheres e crianças.
Os trabalhadores, então, passaram a se reunir, dando nascimento a organizações sindicais e ao próprio direito coletivo, exigindo do Estado proteções mínimas com relação às condições de trabalho.
No Brasil, também não foi diferente, sendo que as primeiras leis trataram exatamente da fixação de jornadas mínimas diárias para menores. A partir daí, inúmeras outras leis foram criadas, chegando-se ao arcabouço hoje existente, consubstanciado na CLT, em leis esparsas e em instrumentos coletivos de trabalho, estes ampliados e prestigiados pela Constituição Federal de 1988, que, além disso, no art. 7º estabeleceu, como direitos fundamentais do cidadão, inúmeras garantias sociais.
Estas conquistas foram conseguidas com sacrifício e muitas lutas dos trabalhadores organizados, cabendo lembrar a grande contribuição que deram os primeiros imigrantes estrangeiros que para o Brasil vieram, trazendo importantes experiências, principalmente aqueles do Continente Europeu.
Hoje, no entanto, a tônica maior volta-se para a chamada modernização do direito do trabalho, cuja importante causa é o processo de globalização mundial da economia, que, quer queiramos ou não, está sendo vivida pelo Brasil, com aspectos positivos e negativos. É importante ressaltar que, para esse processo não se prepararam os empregadores, os trabalhadores e o Estado. Daí, a principal alegação de que os produtos brasileiros têm pouca competitividade no mercado internacional, inclusive porque, como alegam alguns, a mão-de-obra brasileira fica mais cara pelos altos encargos sociais incidentes, além de ser pouco qualificada e encarecer o preço final do produto, pela baixa produtividade.
Quanto à chamada modernização do direito do trabalho, uns sustentam a necessária e urgente flexibilização, com total varrição do direito do trabalho legislado, deixando-se a sua regulamentação para a negociação coletiva entre empregados e empregadores. Outros, no entanto, preconizam uma modernização deste importante ramo do direito, mas com a manutenção, pelo Estado, de garantias mínimas fundamentais, além do implemento de uma legislação de sustento no tocante à organização dos sindicatos que, fortalecidos, deverão assumir efetivamente a negociação de demais garantias trabalhistas.
A verdade é que o direito do trabalho no Brasil já está bastante flexibilizado, sendo certo que o maior exemplo foi a quebra da estabilidade no emprego, pela lei do FGTS e, mais recentemente, pela denúncia da Convenção 158, da OIT, pelo governo brasileiro, ao permitir que o empregador possa demitir os seus empregados a qualquer momento e sem nenhuma justificativa social, mesmo nas demissões coletivas.
Também de importância e como marco da flexibilização do direito do trabalho brasileiro, foi a Lei 6.019/74, que instituiu o chamado contrato de trabalho temporário, para atender necessidades de substituição de pessoal regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de serviços das empresas, através de trabalhadores qualificados.
Nessa época, o saudoso Cesarino Júnior já tinha grandes preocupações quanto às conseqüências para o direito do trabalho e para os próprios trabalhadores, pela má aplicação dessa Lei. Não foi à-toa a preocupação do grande mestre e cultor do direito obreiro, porquanto abusos começaram a existir, dando lugar ao fenômeno da chamada terceirização de mão-de-obra. Suas abalizadas palavras foram assim pronunciadas: Se não tomarmos cautela, uma lei dessa natureza pode eliminar toda a legislação social brasileira, porque, daqui para diante, se esta lei contiver saídas, aberturas, nenhuma empresa vai contratar mais empregados para não ter os ônus que a Legislação do Trabalho impõe ao empregador; vai utilizar este tipo de contrato que, do ponto de vista jurídico, merece um exame ( Diário do Congresso Nacional de 05.12.1993, f. 5.870, conforme Alice Monteiro de Barros, in Terceirização – Responsabilidade, na obra “Processo do Trabalho”, Estudos em homenagem ao professor José Augusto Rodrigues Pinto, LTr, São Paulo, 1977).
Quanto a esta, o C.TST, visando coibir tais abusos, baixou, em 1986, o Enunciado 256, reconhecendo a ilegalidade da contratação de trabalhadores por empresa interposta (intermediação de mão-de-obra), salvo nos casos de trabalho temporário e de vigilância, estritamente nos termos das Leis 6.019/74 e 7.102/83. Não respeitados os parâmetros destas Leis, a jurisprudência mansa e pacífica dos Tribunais Trabalhistas firmou-se no sentido de reconhecer o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços, isto para proteger os trabalhadores, uma vez que as chamadas empresas fornecedoras de mão-de-obra, na maioria dos casos, não tinham e não têm patrimônio suficiente para arcar com os encargos trabalhistas. Ademais, na terceirização, os benefícios e salários dos trabalhadores são menores, pois um dos principais objetivos nessa forma de contratação, é a diminuição dos custos da mão-de-obra.
O certo é que esse enunciado recebeu muitas e pesadas críticas, sendo revisado pelo de número 331/93, que, embora tenha representado maior flexibilidade na intermediação de mão-de-obra, reconhecendo a sua legalidade nas hipóteses mencionadas no superado Enunciado 256, bem como nos serviços de conservação e limpeza e naqueles especializados, ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta, não admitiu a terceirização da chamada atividade-fim do tomador dos serviços, mandando, se for o caso, reconhecer o vínculo diretamente com este. Estabeleceu, ainda, como proteção ao trabalhador, a responsabilidade subsidiária do beneficiário dos serviços, cuja fundamentação decorre da assunção dos riscos da atividade empresarial (art. 2º, da CLT) e da culpa in eligendo e in vigilando (Súm. 341/STF).
A preocupação do C.TST, admitindo a intermediação de mão-de-obra somente nos casos mencionados e na atividade-meio e, ainda, responsabilizando subsidiariamente o tomador dos serviços, no caso de inadimplência do fornecedor e reconhecendo o vínculo empregatício diretamente com o tomador, no caso de fraude ou ilegalidade da contratação, é de grande importância e está coerente com a disposição do art. 2°, da CLT, que carreia ao empregador a assunção dos riscos da atividade econômica.
Na verdade, isto é o mínimo que se poderia garantir àquele que coloca a sua força de trabalho à disposição de outrem, porquanto, como é sabido e consabido, essas empresas intermediadoras de mão-de-obra, de modo geral, estão instaladas numa pequena sala, e não têm patrimônio suficiente para arcar com os direitos trabalhistas dos seus ex-empregados e, como a tomadora foi a beneficiária direta do trabalho e porque escolheu mal, deve arcar com as conseqüências advindas dos seus atos. Além do mais, como se depreende da prática diária, o que normalmente vem acontecendo é que as empresas demitem setores inteiros de trabalhadores, transferindo-os para as empresas prestadoras de serviços, embora aqueles continuem fazendo as mesmas tarefas, nas mesmas condições, porém, com redução de salários e de outros benefícios.
É certo que muitos empresários que se iludiram no início, com o uso da terceirização, para diminuir custos e melhorar a qualidade de seus produtos e serviços, por não atingir esses objetivos – principalmente a qualidade almejada – estão restringindo esse tipo de contratação, e, quando a usam, agem com cautela, porque sabem dos riscos, principalmente trabalhistas, que podem encarecer sobremaneira o que em princípio parecia barato.
E, na trilha da chamada modernização do direito do trabalho, o Congresso Nacional, num dos momentos mais infelizes de sua atuação, acrescentou ao artigo 442, da CLT, o parágrafo único, vazado nos seguintes termos: qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.
Essa alteração ocorreu em dezembro de 1994 e em menos de dois anos já causou nefastas conseqüências ao direito do trabalho e aos cidadãos trabalhadores, que em muitos casos estão sendo arregimentados e enganados por arremedos de cooperativas fraudulentas, cujos idealizadores têm como principal objetivo a obtenção de benefícios e vantagens próprias e pessoais, em desrespeito às mais elementares garantias trabalhistas e aos mais fundamentais valores do direito do trabalho.
No dia-a-dia da nossa atuação ministerial, temos visto as pessoas mais simples da sociedade sendo enganadas por essas cooperativas que, em conluio com empregadores inescrupulosos, exploram a mão-de-obra, por preços ínfimos, sem qualquer responsabilidade trabalhista e assunção dos riscos inerentes à atividade empresarial, conforme estabelece o artigo 2º, da CLT.
Os argumentos daqueles que idealizam as cooperativas de trabalho como formas de reduzir custos trabalhistas e criar empregos são falsos, cruéis e em muitos casos criminosos, pois o que se está apurando na prática são explorações vergonhosas que caracterizam formas de trabalho escravo, intermediado por criminosas cooperativas de trabalho. Como comprovação do alegado, relembremos o fato que deixou o Brasil todo estarrecido, quando a imprensa escrita e falada noticiou e mostrou a existência de trabalho degradante, em condições subumanas, intermediado por cooperativas de trabalho. E isto no Estado de São Paulo, o mais rico e desenvolvido da Federação. Aquelas matérias mostraram apenas uma pequena parte do resultado de blitze feitas pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho, com apoio da Polícia Federal, quando se constatou a existência de trabalhadores aliciados de outros Estados, trabalhando e vivendo em condições deprimentes e desumanas, praticamente por pratos de comida de péssima qualidade. Entre esses trabalhadores, como mostraram as maiores redes de televisão do país, estavam crianças de apenas 10 anos de idade, às quais é negado o sagrado direito à infância e à escola.
Se, no mais rico Estado da Federação, são encontradas essas formas brutais de exploração do trabalho humano, o que se pode esperar dos outros Estados federados? Logicamente, condições piores, como, aliás, a imprensa vem denunciando com freqüência.
É claro que exploração do trabalho humano no Brasil existe, desde a escravidão. No entanto, nos últimos tempos e em nome da modernização e flexibilização do direito laboral, essa situação tem-se agravado, levando a uma perigosa “precarização” das condições de trabalho, contribuindo para isso, no momento, as fraudulentas cooperativas de mão-de-obra, utilizadas e prestigiadas por empresários que não têm a mínima consciência dos direitos de cidadania.
É esta a modernização que se espera do direito do trabalho? É para isto que servem as cooperativas de trabalho? É este o verdadeiro, legítimo e real cooperativismo que se quer implantar no Brasil? Essas cooperativas estão realmente propiciando a criação de emprego? O malsinado parágrafo único do art. 442, da CLT teve o condão de revogar todo um arcabouço trabalhista, especialmente os artigos 2º e 3º, da CLT? É possível se intermediar mão-de-obra por meio de cooperativas em qualquer atividade empresarial, inclusive na atividade-fim? Reconhecidos os requisitos da relação de emprego, esta se formará com a cooperativa ou com o tomador dos serviços? Os crimes contra a organização do trabalho, previstos no Código Penal, não mais existem no Brasil? Por fim, quem arcará com as responsabilidades trabalhistas, previdenciárias, civis, fiscais e criminais, decorrentes de práticas modernas “escravocratas” do trabalho humano? É o que, a seguir, tentaremos responder.
Não se nega que o mundo está mudando numa velocidade ciclópica e o Direito, evidentemente, precisa acompanhar esta mudança, pois este existe para servir aos fatos e não para que os fatos o sirvam. O direito do trabalho, que é um dos ramos mais dinâmicos do Direito, também não está imune à evolução natural das coisas. No mundo inteiro, esse direito vem sofrendo alterações para se adaptar à realidade. No Brasil, não podemos mais ignorar a necessidade de se alterar o modelo trabalhista, criado a partir dos anos 30, sob uma filosofia autoritária e sobretudo individualista. Mas isto não significa que estamos a defender, da noite para o dia, uma total desregulamentação do nosso direito trabalhista, de forma imprudente e irresponsável .
O direito do trabalho no Brasil já é um dos mais flexibilizados do mundo, bastando exemplificar com a total liberdade que tem o empregador para demitir quando quiser, sem qualquer justificação, quando sabemos que aqueles países que são utilizados como modelo de flexibilização, têm, pelo menos, uma garantia mínima e razoável, que obriga as empresas a justificarem demissões coletivas, sob pena de terem de reintegrar os trabalhadores demitidos imotivadamente. O Brasil, ao contrário, sem sequer ter experimentado os efeitos da Convenção 158 da OIT, já a denunciou.
Na verdade, para se falar em modernização do direito do trabalho no Brasil, é necessário que, em primeiro lugar, se reformule o sistema sindical, implementando-se total liberdade e autonomia sindicais, para que os sindicatos fortes e legítimos assumam o papel negocial, como ocorre nos países de primeiro mundo, discutindo em igualdade de condições os interesses dos representados, flexibilizando direitos e condições de trabalho, além daquelas garantias mínimas que terão que ser asseguradas pelo Estado.
Quanto à chamada modernização do direito do trabalho, é necessário registrar que os países que vêm adotando-a, como, por exemplo, no continente europeu, o Estado continua intervindo para assegurar direitos mínimos fundamentais do cidadão. Ademais, lá existe um sindicalismo forte, reconhecido e prestigiado pelo próprio Estado e, há muito tempo, os trabalhadores vêm comendo o filé “mignon”, e, quando se fala em flexibilização, não significa que agora passarão a roer os ossos. Não. Na verdade, o que ocorre é uma flexibilidade de alguns direitos secundários, porém, de forma negociada responsavelmente pelos trabalhadores e empregadores, com o acompanhamento pelo Estado no tocante àqueles itens que possam atingir a sociedade como um todo, pois o direito do trabalho, como o mais social de todos, está revestido, na maioria das suas regras, de preceitos de ordem pública que ultrapassam os meros interesses individuais de trabalhadores e empregadores e, principalmente, destes.
No Brasil, entretanto, vivemos uma situação totalmente adversa, com um sindicalismo, em grande parte, ainda muito incipiente e incapaz de bancar importantes conquistas trabalhistas, além do que está previsto em lei. Aqui, quando um sindicalista começa a se destacar na defesa dos interesses de sua categoria, em muitos casos, é demitido e raramente retorna ao trabalho porque, embora detentor de estabilidade provisória no emprego, o Judiciário demora mais de cinco anos, em média, para solucionar a pendência, quando o mandato sindical já terminou. De outro lado, aqui, os trabalhadores talvez nem comeram o colchão duro e agora, por conta da flexibilização e por último, da globalização, se quer acabar com mínimas garantias, com o argumento de que tal é necessário para se diminuir o custo da mão-de-obra e criar empregos, esquecendo-se de que em lugar nenhum do mundo se resolveu o problema do desemprego acabando-se com a legislação trabalhista. A geração de novos empregos num país como o nosso, onde a mão-de-obra ativa cresce em ritmo acelerado, depende é de desenvolvimento econômico, o que não se consegue com um crescimento do PIB de apenas 2,9%, como no ano de 1996. Emprego se cria é com política governamental destinada e priorizada por todos com este objetivo, principalmente com incentivos diferenciados às pequenas e micro-empresas, geradoras do maior número de ocupações.
Como salientado pelo professor Amauri Mascaro Nascimento, no dia 1º de outubro de 1997, no Seminário Internacional Sobre Relações de Trabalho, em São Paulo, promovido pelo Ministério do Trabalho, após reconhecer que o mundo do trabalho está se transformando e que a globalização econômica exige altos níveis de qualidade, eficiência e competitividade, não podemos esquecer de que o Brasil tem uma dívida social para com o seu povo trabalhador: proteção contra demissões coletivas e regulamentação do art. 7º, da Constituição Federal. Acrescentou o insigne mestre que o direito do trabalho é parte de um todo e precisa de apoio e que nem devemos preconizar uma flexibilização com dogmas, nem proteção com rigidez e que ao Estado cabe criar e assegurar postos de trabalho, salário mínimo adequado e proteção ao meio ambiente do trabalho, entre outros direitos fundamentais.
Com efeito e embora por outras razões, em final de 1994 foi acrescentado o § único do artigo 442, da CLT, que significou a mais radical alteração, pelas suas conseqüências, no ordenamento jurídico trabalhista pátrio. Esse parágrafo único autorizou a criação de cooperativas de trabalho, sem vínculo empregatício, cuja idéia foi logo encampada por muitos, como sendo a solução ideal para o desemprego. Mas, lamentavelmente, não foi isto o que aconteceu e nem poderia, porque cooperativa de trabalho não se presta a intermediar mão-de-obra subordinada, a qual continua sendo regulamentada pelos artigos 2° e 3º, da CLT, com a proteção maior do artigo 9º do mesmo estatuto, que considera nulo todo e qualquer ato destinado a fraudar ou desvirtuar direitos trabalhistas. Assim, não importa a aparência do ato. O que interessa é a forma real como praticado, ou seja, a primazia da realidade, de maneira que mesmo sendo contratado para trabalhar por meio de cooperativa, o trabalhador será considerado empregado, estando presentes os requisitos da relação de emprego, previstos no artigo 3º, do estatuto consolidado, que são: pessoalidade, trabalho não eventual, subordinação e pagamento de salário.
A propósito, leia-se a presente ementa, oriunda do acórdão nº 776/89, do C. TST, relator min. Marco Aurélio, publicado no DJ de 03.08.90, pág. 7297:
REPRESENTAÇÃO COMERCIAL AUTÔNOMA X VÍNCULO EMPREGATÍCIO – VIOLÊNCIA À LEI. Vulnera o artigo 9º da CLT, bem como o de número 442 do mesmo diploma legal, provimento judicial no sentido de rechaçar a possibilidade de discutir-se o mascaramento de relação jurídica empregatícia, mediante celebração formal de contrato de representação comercial autônoma. Em relação ao aspecto formal sobrepaira o dia-a-dia do relacionamento jurídico entre empregado e empregador, sendo nulos os atos que visem desvirtuar, impedir e fraudar as normas imperativas de proteção ao trabalho.
É certo que o verdadeiro cooperativismo deve ser incentivado para melhorar a situação de vida dos seus associados, destacando-se, por exemplo, as cooperativas de produção, que em alguns casos estão servindo para reerguer empresas que estavam indo à falência, e, num gesto elogiável, os seus proprietários as transferiram para os empregados, que, além de se manterem em atividade, agora, sim, cuidando do seu próprio negócio, passam a criar novos empregos e ter melhores rendimentos. Este tipo de cooperativismo e outros semelhantes devem verdadeiramente ser incentivados pelo governo e toda a sociedade, enquanto que arremedos de cooperativas destinadas a intermediar trabalho subordinado, com o objetivo de auferir vantagens para pessoas que não os associados, numa verdadeira afronta aos mais elementares princípios e garantias trabalhistas, devem ser combatidas com todas as forças autorizadas pelo ordenamento jurídico pátrio, inclusive com punição criminal exemplar dos responsáveis.
Essas cooperativas fraudulentas, que em hipótese alguma estão propiciando a criação de empregos (e, gostaríamos de ser convencidos do contrário), servem simplesmente para substituir antigos empregos, nas classes sociais mais simples e desorganizadas do povo, como por exemplo, trabalhadores do campo, da construção civil, garis, etc, por formas degradantes de trabalho, com conseqüências nefastas imediatas não só para os trabalhadores, mas para toda a sociedade, desmoralizando, assim, o verdadeiro e necessário cooperativismo.
Não obstante, ainda existe muita gente bem intencionada que não acordou, porque “anestesiada” por uma alteração legislativa infeliz e inoportuna, surgida a partir de um equívoco da esquerda brasileira, de onde, tudo que vem, parece ter a legitimidade da bondade e da correção! A alteração, segundo se sabe, teve origem no Movimento dos Sem Terra – MST – que, com objetivos ideais, criou cooperativas de produção e alguns dos “associados” que não eram donos de terra, ao se desligarem das mesmas, ajuizavam reclamações trabalhistas, obtendo, em certos casos, o reconhecimento de relação de emprego. Como isto inviabilizava o movimento, solicitou-se a alguns membros do Congresso Nacional a apresentação de projeto de lei, que teve fácil tramitação e aprovação e se transformou no mencionado § único.
É preciso reconhecer o grande equívoco que foi a inclusão, na CLT, do multicitado dispositivo e os danos sociais que ele vem causando e partir para a sua revogação, pura e simplesmente, como já fez a Câmara Federal, numa atitude elogiável. Espera-se que o Senado da República também tenha a mesma sensibilidade e rapidez, para se estancar a onda desenfreada dos aproveitadores e mal intencionados que querem tirar proveito de tudo, mesmo à custa da ignorância das parcelas mais sofridas e simples da população. Depois, se se quiser modernizar a legislação sobre cooperativismo – o que é realmente necessário, porque a Lei 5.764/71 não mais se compatibiliza com a Constituição Federal – que se faça. Aliás, já existe projeto nesse sentido, de autoria do Senador Eduardo Suplicy, tramitando no Senado. É só agilizar a sua votação para se implantar um cooperativismo verdadeiro, que sirva à sociedade, na busca de melhores condições de vida para o seu povo.
Mas enquanto não for revogado aquele dispositivo e para os que sustentam a possibilidade de intermediar qualquer atividade empresarial (meio e fim) por meio de cooperativa, é oportuno ressaltar e relembrar que os artigos 2º, 3º e 9º, da CLT, ainda subsistem no nosso sistema jurídico trabalhista e continuam a proteger o trabalho caracteristicamente subordinado, cujo parâmetro para intermediação de mão-de-obra subordinada encontramos na jurisprudência uniforme dos tribunais trabalhistas, consubstanciada no Enunciado 331, do C. TST, verbis:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – LEGALIDADE – REVISÃO DO ENUNCIADO Nº 256.
I- A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei 6.019/74).
II- A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, da Constituição da República).
III- Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102/83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e subordinação direta.
IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial (Res. 23/93).
Assim, reconhecidos os requisitos da relação de emprego, previstos nos artigos 2º e 3º, da CLT, o vínculo forma-se diretamente com o tomador dos serviços, beneficiado diretamente com a força de trabalho e responsável pelos riscos da atividade empresarial, conforme disposto no artigo 2º, consolidado, que define quem seja empregador.
Por oportuno e no que diz respeito aos trabalhadores rurais, os mais afetados até agora pelas cooperativas fraudulentas de trabalho, mesmo que por absurdo se entenda revogados os dispositivos celetistas mencionados, tratamento diferente tem essa classe humilde de cidadãos brasileiros, nos termos da Lei 5.889/73, cujos artigos 1º, 2º, 3º, 4º e 17º afastam a aplicação subsidiária da CLT naquilo em que incompatível com o Estatuto do Trabalhador Rural. Assim, o artigo 3º do aludido estatuto considera empregador rural não somente aquele que explora atividade agro-econômica diretamente, mas também quem indiretamente e através de prepostos realiza essas atividades. E o artigo 4º fez questão de considerar o intermediário como empregador, objetivando inibir a intermediação, como, com propriedade, salientou a Juíza Iara Alves Cordeiro Pacheco, da 15ª Região, em artigo intitulado “Cooperativas de Trabalho X Intermediação de Mão-de-obra”, publicado na Revista LTr 60-08/1102.Também, como salientado e enfatizado pelo colega Dr. Ricardo Tadeu M. Fonseca, em diversas Ações Civis Públicas, de cujo entendimento compartilhamos, em pronunciamentos e trabalho publicado :
“A verdade é que a CLT aplica-se ao rural apenas em caráter subsidiário, quando a Lei nº 5.889/73 for lacunosa ou quando a norma consolidada for compatível com aquelas peculiaridades físicas do trabalho no campo. Assim, o art. 4º da Lei 5.889/73 possui figura de empregador por equiparação exclusiva da área rural, definida como aquela entidade que fornece mão-de-obra por conta de terceiro, tal como a cooperativa e, ainda que inocorresse a fraude, os trabalhadores eventuais fornecidos pela cooperativa possuiriam direitos trabalhistas por força do que dispõe o art. 17 da Lei em comento. Logo, no momento que a CLT afasta direitos do trabalhador eventual urbano, é inaplicável ao camponês por disposição expressa.”
E, para afastar qualquer dúvida, é necessário salientar que a equiparação do trabalhador rural ao urbano, estabelecida pela Constituição Federal, é apenas relativa, pois o caput do art. 7º diz que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social… razão porque está implícito o respeito à legislação especial, quanto às peculiaridades inerentes a essa categoria de trabalhadores do campo.
No caso do trabalho caracteristicamente subordinado, na atividade contínua da empresa, evidentemente não se pode negar o vínculo empregatício, precipuamente porque ausentes os requisitos da validação da cooperativa e presentes os requisitos legais da relação empregatícia, sobretudo a total dependência econômica, subordinação e direção dos trabalhos pelo tomador (artigos 2º e 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho).
Diferentemente ocorre, por exemplo, com uma cooperativa de médicos, engenheiros, advogados, taxistas e outras categorias semelhantes, quando e onde os profissionais, inerentemente, têm autonomia na direção do trabalho, fixando horários de trabalho e o modo de execução das suas tarefas, paralelamente a outras atividades particulares que desenvolvem.
Em percuciente análise do § único do art. 442, da CLT, abordando aspectos constitucionais, legais e fraudulentos, o E.TRT/15ª Região – Campinas, em pioneira decisão unânime, da lavra do seu presidente, o I. Juiz José Pedro Camargo Rodrigues de Souza, em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho/15ª Região (Proc. 29.085/96.3), assim se manifestou:
A Constituição Federal em vigor, ao tratar dos “Princípios Fundamentais”, deixou assentado que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, incisos III e IV). A proteção da dignidade do cidadão trabalhador e os valores sociais do trabalho não podem ser dissociados da relação de emprego….
Constata-se, portanto, que o parágrafo único do art. 442 da CLT colide diretamente com os princípios constitucionais que protegem valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a relação de emprego e a busca do pleno emprego, porquanto admite a contratação de mão-de-obra sem a proteção trabalhista. A prevalecer a letra fria do parágrafo único do art. 442 da CLT, estaria se tornando regra geral aquilo que deveria ser exceção: todas as contratações poderiam ser feitas por intermédio de cooperativas de trabalho, sem vínculo empregatício e sem maiores ônus para as empresas beneficiárias do trabalho, com o sucumbimento da seguridade social, afrontando todos os princípios constitucionais de proteção ao trabalho….
De outra parte, ainda que assim não fosse, deve ser confirmada a conclusão esposada na r. sentença de que o mencionado dispositivo não se destina ao trabalhador rural. De fato, a Lei nº 5.889/73 é específica para a atividade rural, afastando a incidência de normas celetistas; estas últimas somente terão aplicação se não colidirem com a Lei 5.889/73 (art. 1º). A CLT é, pois, subsidiária da Lei específica dos rurícolas e, não ao contrário, ex vi do art. 17 dessa lei… A lei nova, portanto, 8.949/94, de pretendido caráter geral, não revoga a legislação especial do rurícola, em face do disposto no art. 2º, parágrafos 1º e 2º da LICC.
Analisando dissídios individuais sobre o tema em discussão, inúmeras decisões regionais já foram proferidas, cuja ementa a seguir transcrita ilustra nosso entendimento e nossa preocupação:
EMENTA: RELAÇÃO DE EMPREGO – COOPERATIVA
A formação de sociedades cooperativas tem apresentado resultados positivos em diversas áreas de prestação de serviços, como no caso de médicos, consultores, arquitetos, ou seja, trabalhadores que gozam de autonomia em razão da natureza de sua atividade. Elas devem ser criadas espontaneamente em torno de um objetivo comum, mas mantendo-se sempre a independência do cooperado na execução dos serviços. Fica descaracterizada a situação de cooperado se a hipótese versa sobre trabalhador rural que presta serviços, pessoalmente, a empregador na colheita do café mediante salário e sujeito à liderança do turmeiro, participando integrativamente desse processo produtivo empresarial, embora formalmente compusesse o quadro de uma cooperativa. (TRT/3ª Reg., RO-3079/97, Redatora Juíza Alice Monteiro de Barros, 14.10.97).
Desse modo, considerado ilegal e/ou fraudulento o trabalho por meio de cooperativa, as responsabilidades decorrentes do trabalho considerado subordinado são, por certo, do tomador dos serviços, que é o beneficiário direto do produto do trabalho executado. Aqui, não é o caso de responsabilidade subsidiária, como alude o Enunciado 331/TST, no tocante às empresas prestadoras de serviços. A responsabilidade subsidiária tem lugar apenas no caso de inadimplência do prestador, mas se a terceirização for considerada legal. Sendo ilegal ou fraudulenta, a responsabilidade é do tomador, com quem será reconhecido o vínculo empregatício, como vem sendo o entedimento jurisprudencial. Como mostra a realidade, as cooperativas de trabalho, na maioria, são apenas “empresas de faixada”, destinadas a intermediar mão-de-obra por preço vil, para beneficiar o tomador e os “testas-de-ferro”, não tendo essas cooperativas nenhuma condição para arcar com os ônus trabalhistas, previdenciários, civis e demais encargos decorrentes. Eis a razão pela qual a maioria das empresas não tem interesse em se utilizar de trabalho de cooperativa, que, além do risco oferecido, deixam muito a desejar no item qualidade, ao contrário do que ocorre com algumas empresas prestadoras de serviços que especializam e preparam seus empregados naquilo que fazem. Aliás, é necessário lembrar que as cooperativas fraudulentas praticam competição desleal com as empresas que agem corretamente, pois não se submetem aos encargos que recaem sobre estas.
Por fim, a responsabilidade criminal é pessoal, cujos crimes mais comuns são aqueles referentes à sonegação fiscal, contra a organização do trabalho, artigos 203 (frustração de direitos trabalhistas, mediante fraude) e 207 (aliciamento de trabalhadores), ambos do Código Penal Brasileiro, que, efetivamente, precisam sair do papel para se reprimir os culpados. Nesse sentido, ultimamente tem havido atuação conjunta do MTb, MPT, outros ramos do Ministério Público, Receita Federal, INSS e demais órgãos públicos envolvidos, buscando coibir os abusos, punir os verdadeiros culpados e defender os interesses indisponíveis da sociedade e do erário público.
Procurador Regional do Trabalho
Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP
Professor de Direito e Processo do Trabalho
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho
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