A função social da propriedade enquanto norma programática

Resumo: O presente artigo, elaborado tomando por base pesquisa bibliográfica atinente ao direito de propriedade, almeja por traçar uma explanação acerca do lacônico instituto da função social da propriedade, pouco explorado no âmbito acadêmico, relacionando-o com o direito à propriedade, apontando sua origem histórica, seu relacionamento com a ideologia socialista, concluindo pela sua existência, no âmbito constitucional brasileiro, como norma programática, sem aplicabilidade direta, ante a necessidade de elaboração de norma que lhe garanta operabilidade.

Palavras-chave: Direitos Reais. Propriedade. Função Social da Propriedade

Abstract: This article, made based on bibliographic research regarded to property rights, aims to delineate an explanation about the laconic institute of the property’s social function, not much explored in the academy, relating it to the right of property, pointing its historical origin, and its relationship with the socialist ideology, concluding that its existence, in Brazilian constitutional scope, is as a programmatic rule, without direct applicability, due to its need of the elaboration of another norm that ensures its operability.

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Keywords: Property Law. Property. Property’s Social Function

Sumário: Introdução. 1. O elemento sociedade. 2. O elemento propriedade. 2.1. Conceito de propriedade. 2.2. Evolução da ideia de propriedade. 3. O elemento “função” e a raiz socialista da “função social da propriedade”. 4. Da identificação ideológica da função social da propriedade. 5. Da identificação do instituto da função social da propriedade com as normas programáticas, de aplicabilidade diferida. Conclusão. Referências.

Introdução

A propriedade é objeto jurídico de fundamental relevo social. De fato, estudiosos afirmam, com propriedade, que desde o início da vida em sociedade persiste entre os homens a noção, ainda que de início simplória, de “o que é meu, é meu; o que é teu, é teu”.

Não por acaso arqueólogos descobrem fósseis humanos com alguns utensílios do morto próximos a ele. Da mesma forma, os antigos faraós egípcios eram sepultados com todos seus bens: para aquela anciã cultura, suas propriedades eram transcendentais, acompanhando seus proprietários inclusive no mundo além-túmulo.

Portanto, vê-se que não é nova a percepção de propriedade.

Deveras, tão grande é a carga social entrelaçada com tal fato social que, desde o surgimento de ordenamentos jurídicos mais desenvolvidos, especial atenção se deu à propriedade. Os antigos romanos, por exemplo, possuem vasta gama de brocardos relacionados a tal instituto.

Percebe-se, assim, que propriedade, sociedade e direito caminham lado a lado.

Ciente dessa perspectiva, o constituinte brasileiro, em diversas normas magnas, dispõe sobre a propriedade, e o legislador pátrio dedicou um título inteiro do Código Civil para disciplinar tal tema. E, entre elas, destaca-se a positivação da “função social da propriedade”.

É tal tema que se pretende analisar com o presente artigo.

O desenvolvimento de um estudo sobre a função social da propriedade requer um esmiuçamento, um tratamento exclusivo a cada um dos elementos que compõem a idéia de “função social da propriedade”.

Tais elementos são: a propriedade, núcleo atômico do objeto em estudo, sem o qual o mesmo não existiria; a sociedade, incidente determinante sobre aquele objeto jurídico; e o termo “função”, que lhe transmite sua roupagem cognoscitiva.

Em seguida, far-se-á uma análise do instituto da “função social da propriedade”, construindo-se, desse modo, uma crítica a este instrumento previsto no texto constitucional.

1. O elemento “sociedade”

Sociedade, conforme o Dicionário Aurélio, é a “reunião de homens, que vivem em corpos organizados; corpo social”. Seu adjetivo correspondente é o termo “social”.

O homem é animal social por natureza. Não à toa Aristóteles referia-se aos seres humanos como “animais políticos”.

A Bíblia Sagrada, ainda em Gênesis, relata os primeiros homens sempre vivendo em conjunto, deixando o exílio apenas aqueles segregados, tal como ocorreu a Caim, após matar seu irmão Abel (Gn 4, 8-16).

De igual modo, à ciência parece que o homem sempre viveu em sociedade. Esse é a lição de Geoffrey Blainey (2008; 8-9):

“De modo geral, na impiedosa competição por sobreviver e multiplicar-se, os humanos tiveram sucesso. Nas regiões da África que habitavam, eram em número bem menos que as espécies de grandes animais, alguns deles agressivos; ainda assim, os humanos prosperaram. Talvez as populações tenham se tornado muito numerosas para os recursos disponíveis na região ou tenha havido um longo período de seca, e isso os tenha levado para o norte.[…]

Moviam-se em pequenos grupos: eram exploradores e colonizadores. Em cada região desconhecida, tinham de adaptar-se a novos alimentos e precaver-se contra animais selvagens, cobras e insetos venenosos. Os que abriam caminho conseguiam uma certa vantagem, pois os seres humanos, adversários implacáveis dos invasores de território, não estavam lá para atrapalhar seu caminho.”

No mesmo sentido lecionam Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota (2006; 33):

“Os homens da Pré-história se organizavam de maneira diversa da maioria das sociedades atuais. Esses povos ou tribos não conheceram o controle do Estado, isto é, não existia, no interior dessas sociedades, a autoridade da hierarquia, a relação de poder e a dominação dos homens.”

Portanto, percebe-se que desde que surgiu o homem, este vive em um meio social – família, clã, polis… –, não sendo concebível que possam existir homens sem um vínculo similar, sendo este o motivo por que Aristóteles considerava o homem um animal político, conforme previamente asseverado.

2. O elemento “propriedade”

2.1. Conceito de Propriedade

É consenso no âmbito acadêmico que o domínio de conceitos basilares auxiliam no trato com o conteúdo a ser desenvolvido, fomentando o aprendizado e facilitando o desenrolar do assunto em análise.

Cientes de tal fato, mister se faz iniciar o presente artigo com a apresentação de um conceito de propriedade, núcleo das análises a serem desenvolvidas nesse estudo.

O termo propriedade, apesar de ser idéia de fácil assimilação, é difícil de ser posto em palavras. Nos termos de Caio Mário da Silva Pereira (2005), “a propriedade mais se sente do que se define.” De fato, a noção do que seria propriedade permeia nosso cotidiano, sendo impossível viver em sociedade sem se saber o que tal termo implica, o que facilita a assimilação de sua idéia, mas dificultando a conceituação.

Cabe ressaltar que o Código Civil de 2002, bem como seu predecessor de 1916, silenciaram-se no que seria o conceito de propriedade, apresentando-lhe apenas algumas características e, por mais estranho que aparente ser, deveres relacionados à propriedade.

Tal omissão do legislador faz surgir uma difícil tarefa àqueles que buscaram conceituar o termo propriedade. Maria Helena Diniz (2010; 113) leciona nesse sentido:

“Árdua é a tarefa de conceituar a propriedade, pois, como observa Vituci, é impossível enumerar a infinita fama dos poderes do proprietário, já que alguns deles podem faltar sem que por isso se desnature o direito de propriedade.”

Ante o exposto, socorremo-nos da doutrina para apresentar um conceito de propriedade. Deocleciano Torrieri Guimarães (2007) define propriedade como sendo “o mais amplo dos direitos reais, de uso e disposição sobre um bem, oponível erga omnes. A coisa que é objeto desse direito. O mesmo que domínio” do que se expõe que, de tão vasto que é seu âmbito de existência, a propriedade é apenas definível com a utilização de termos vagos.

Cientes da dificuldade que é a elaboração de uma definição para a idéia jurídica de propriedade, apresentamos o conceito de que se vale o ínclito civilista Sílvio Rodrigues (2003; 77):

“Para melhor caracterizá-lo, recorro à célebre definição de Lafayette, segundo a qual o domínio é o “direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na sua substância, acidentes e acessórios”.

Dessa definição encontramos duas idéias elementares da noção de domínio: a idéia de vínculo legal e a de submissão da coisa corpórea à vontade do proprietário.”

De posse de uma definição, partiremos a uma análise histórica da propriedade, tanto do aspecto social quanto do jurídico, ante a indissociabilidade de ambos.

2.2. Evolução da Idéia de Propriedade

A idéia de propriedade perdura desde o início da história humana. Atrevemo-nos a ampliar o brocardo latino ubi ius, ibi societas, adicionando-lhe um et ubi societas, ibi dominium, sem haver como incorrer em erro.

Esse entendimento é corroborado pela lição de John Locke (2006; 23), para quem o estado de natureza, sucedido pela vida em sociedade com a chancela de um Estado enquanto organização civil, seria um

[…] “estado de total liberdade para ordenar-lhes o agir e regular-lhes as posses e as pessoas de acordo com sua conveniência, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.”

Ainda para Locke (2006; 37-50), o homem adquiriria propriedades através do emprego de trabalho para consegui-la, já que seria esta seria a forma elementar de propriedade dos seres humanos, que ninguém poderia usurpar. De igual modo, por ser meio básico de aquisição de propriedade, àquilo a que o trabalho se agregasse não poderia ser retirado da esfera de propriedade do trabalhador.

Ou seja, se não são a propriedade e a sociedade contemporâneas, aquela antecede esta.

Como já mencionado, é frequente acharem os arqueólogos fósseis de homens com vasos, instrumentos de caça, colares e outros bens que lhe pertenceram em vida, demonstrando haver apreço pelos bens desde os primórdios civilizatórios.

Do mesmo modo, os antigos egípcios eram sepultados com todos seus bens, para deles disporem na vida após a morte.

Porém, num evidente avanço, a civilização greco-romana, em quem tanto nos inspiramos, não sepultava seus mortos com seus bens. Estes ficariam com os descendentes daqueles, no que seria um esboço do atual direito das sucessões.

Ainda, ressalte-se que, pelos romanos era dada tamanha importância à propriedade que existia a possibilidade de punições corporais aqueles que desrespeitassem bens alheios.

Dando prosseguimento histórico, ao tratar da Idade Média, em virtude de seu quilate, transcrevemos lição de Maria Helena Diniz (2010; 106):

“Na Idade Média, a propriedade sobre as terras teve papel preponderante, prevalecendo o brocardo nulle terre sans seigneur. Inicialmente, os feudos foram dados como usufruto condicional a certos beneficiários que se comprometiam a prestar serviços, inclusive, militares. Com o tempo a propriedade sobre tais feudos passou a ser perpétua e transmissível apenas pela linha masculina. Havia distinção entre os fundos nobres e os do povo, que, por sua vez, deveria contribuir onerosamente em favor daqueles, sendo que os mais humildes eram despojados de suas terras.

Ensaiou-se em nossa organização jurídica o sistema feudal, no começo de nossa colonização, com a transitória implantação das capitanias hereditárias, que exerceu influência em nossos costumes, embora não tenha subsistido na ordem jurídica, que se amoldou ao regime romano.”

Tal concepção medieval mudou com o advento das Revoluções Americana, em 1787, e Francesa, em 1789, quando se garantiu aos cidadãos direito a seus próprios bens, sendo tal direito uma “barreira intransponível ao Estado”, conforme preceituava John Locke.

Contudo, o ideário sobre a propriedade como um direito natural do homem não agradou a todos. Sobre a ausência de consenso sobre tal pensamento, Lucas Hayne Dantas Barreto (2011) escreveu:

“Tal concepção sofreu sérias reações, dentre as quais se destacam: Proudhon, que, considera a propriedade individual "um roubo"; Marx, ao pregar a destruição da propriedade privada; e Comte, que vem aplainar a base da funcionalidade da propriedade, ainda que privada.”

Foi este pensamento discordante que, imiscuído ao conceito de propriedade individual, gerou o Estado de Bem-Estar Social que, numa mistura entre os modelos socialista e capitalista, delegava ao Estado o dever de promover o bem comum em necessidades supérfluas e redundantes, por vezes impraticáveis.

E, neste diapasão, Léon Duguit defendia a tese de que a propriedade, a fim de atender aos anseios da sociedade, deveria ser transformada em uma instituição jurídica, o que se coadunaria com sua teoria de denegação dos direitos subjetivos, tornando-a numa incrementadora da riqueza e bens comuns.

O tempo mostrou, contudo, que tal concepção de obrigações estatais era equivocado, pois o Estado mostra-se ineficiente e inoperante, e, na vã tentativa de se conseguir cumprir com os deveres estatais, os cidadãos sairiam enormemente prejudicados.

Todavia, foi nesse contexto retrógrado que a Constituição Federal foi elaborada. Sobre o tema, Rafael de Vasconcelos Xavier Ferreira (2011) assim escreveu:

“Em verdade, olhando retrospectivamente, é possível dizer que a Constituição nasceu em um momento inoportuno; foi redigida antes do annus mirabilis de 1989 e de todas as transformações dele decorrentes no Leste Europeu. Estávamos, ainda, influenciados em excesso por idéias ineficazes, que já haviam se provado errôneas no passado, mas nas quais insistíamos com uma teimosia tenaz.

O resultado não poderia ser outro. Tão logo promulgada, a Constituição já precisava de emendas. Uma após outra, reformas pontuais foram, ao longo de toda a década de 1990, corrigindo algumas das sandices patrocinadas pelo bom-mocismo demagógico de nossos constituintes. A fatura da farra de “direitos sociais” chegou tão logo foi posto em vigência o texto; e o declínio do estatismo em todo o mundo mostrava que, na verdade, o país havia feito, em 88, a opção pelo atraso.”

É justamente no Título II, da Constituição Federal, referente aos direitos sociais, que se encontra o art. 5º, XXIII, que estabelece que “toda propriedade atenderá a sua função social”.

Ou seja, a idéia de função social de propriedade é oriunda de uma concepção errônea e retrógrada sobre o papel do estado para a sociedade, tendo nascido já de forma obsoleta.

3. O elemento “função” e a raiz socialista da “função social da propriedade”

O termo função advém da palavra latina functio, denotando um uso especial para o qual algo é concebido. Disso se extrai que primeiro existe a razão, o uso em que se necessita da função e, só então, o objeto que desempenha esta função.

O uso da palavra “função” é recorrente para fazer menção à distribuição de atividades, quando se almeja mais qualidade ou produtividade em uma cadeia funcional qualquer.

Assim, trazendo para a “função social da propriedade”, tem-se a equivocada idéia de que primeiro existiu a sociedade e, só então, a propriedade para cumprir os anseios daquela. De fato, pelos termos acima apresentados, sabe-se que, se ambos não forem contemporâneos, a propriedade antecede a sociedade. De todo modo, não há razão para subordinar um ao outro.

Ademais, como explicitado e demonstrado alhures, desde os primórdios, a partir do momento em que se passou a viver politicamente, sempre coexistiram o homem, a propriedade privada e a sociedade, sem que um excluísse o outro.

Esse fato perdurou incontestável até o surgimento do pensamento socialista que, como o próprio nome evoca, insurgiu-se contra o privado/particular, buscando uma massificação de bens e indivíduos, nivelando economicamente os cidadãos, deixando de lado princípios político-democráticos básicos, impondo governos necessariamente ditatoriais, apontando para a sua impraticabilidade (cf. REISMAN, George. Por Que o Nazismo era Socialismo e Por Que Socialismo é Totalitário. Disponível em < http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=98>).

Disso, somando-se os dados históricos, pode-se perfeitamente concluir que o socialismo, para constituir-se, deve apelar ou à força, ou à imoralidade. E é desse meio que surge a “função social da propriedade”.

4. Da identificação ideológica da função social da propriedade

É raro encontrar quem se aventure na árdua e capciosa tarefa de conceituar “função social da propriedade”.

Contudo, ante tudo o suso aduzido, pode-se afirmar que a “função social de propriedade” transmite a idéia de que a propriedade, ainda que privada, deve buscar atender anseios sociais, respeitando o proprietário, para tanto, a certos limites de usufruto estatuídos em lei, conforme requisita a Constituição Federal.

Porém, cabe ressaltar que a noção de tal instituto é vaga e deveras abrangente, abarcando os mais diversos comportamentos – majoritariamente abusivos, por parte da autoridade – em detrimento do pleno uso (mas não absoluto) da propriedade privada.

De fato, o Estado, quando no uso de seu poder de polícia, é dotado de enorme discricionariedade para coibir atos que ele próprio considera abusivos, o que, inevitavelmente, confere uma tônica da ideologia do governante às práticas do Estado, e que nem sempre corresponde à função social da propriedade propriamente dita.

Assim o é em virtude de a Carta Magna requerer tratamento do tema em legislação específica que, por vezes, peca por se valer de termos igualmente abstratos, de carga semântica enorme, conferindo, desse modo, ao Estado, o poder-dever de estreitar a matéria de que trata a lei.

Tais práticas discricionárias do Estado, por assim serem, dão margem à prática de verdadeiros abusos, sob o fito de regulamentar, por via de decreto, a lei regulamentadora, infraconstitucional, como ocorre no consentido aumento progressivo do Imposto Predial Territorial Urbano para áreas não-construídas que não cumpram com seu adequado aproveitamento, nos termos empregados no art. 184, §4º, II.

Para tal exemplo elencado, é cediço que existem terrenos não-construídos que se valorizam mais que imóveis, considerando-se elementos como localização, tamanho, etc., não sendo impossível de se imaginar que seu proprietário deseje que o mesmo continue sem construções. Ademais, a depender da constituição do terreno, como a presença de muro, sequer se cogita de interferência à vontade social.

Portanto, percebe-se que o fato de o terreno ser não-construído complementa a vontade do proprietário, não influindo na vontade da sociedade; todavia, por não cumprir com o aproveitamento adequado ao Município, nos termos de seu plano diretor, sobre tal propriedade haverá progressão do valor do IPTU.

Ora, por mais elementar que seja esta noção, repete-se: o interesse do Estado não se confunde com o interesse da população!

Desta feita, percebe-se que, por ser termo deveras abrangente, a “função social da propriedade” requer uma complementação legal e, não raras vezes, infra-legal, a fim de ter sua aplicabilidade realizada no mundo fático, o que culmina em excessos não condizentes com a situação política global atual, pois se busca cada vez mais desincumbir o Estado de suas atribuições, e não aumenta-las, sob pena de perecimento econômico, como recentemente ocorreu com os Estados Unidos da América e seu iminente calote, e com a Grécia e sua absurda dívida externa – ambos os acontecimentos decorrentes do crescimento do Estado.

Portanto, percebe-se ser ilógica e anacrônica a figura da “função social da propriedade” no Ordenamento Jurídico pátrio.

5. Da identificação do instituto da função social da propriedade com as normas programáticas, de aplicabilidade diferida

Da leitura dos arts. 186 (que aponta quando a função social da propriedade rural é atingida) e 182, §2º (que trata das propriedades urbanas), ambos da Carta Magna, tem-se que, necessariamente, deve haver legislação sobre o tema e, não raras vezes, ainda uma regulamentação infra-legal.

Assim é que se requer a observância do plano diretor do município para a propriedade privada, e os critérios e graus de exigência estabelecidos em lei ao rol constitucional, no art. 186, para propriedades rurais. Nessa senda é o tratamento principiológico dispensado à “função social da propriedade”, incluída no rol de princípios do art. 170 da Constituição Federal.

Portanto, a “função social da propriedade”, por seu vazio normativo e amplitude semântica, que necessita de complementação legal, deve ser caracterizada como uma norma programática. Nos precisos dizeres de Jorge Miranda (1996; 244-245):

“As normas programáticas são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras explicitam comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial – embora não único – o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, maxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjetivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados.”

Correlacionando a “função social da propriedade” como norma programática e o pensamento socialista, com o arrogante brado por “direitos” ecoados por adeptos desta ideologia, Plínio Corrêa de Oliveira (2011), em lição de precioso quilate, assim assevera:

“A esse respeito [das divagações sócio-sentimentais em torno de uma mal compreendida função social da propriedade], cumpre notar que o tônus dessas divagações vai mudando. De dulçuroso e declamatório, mas pacífico, como "corresponde" à caridade, ele se foi tornando reivindicatório, ácido e até agressivo, como "corresponde" à justiça. E a melopéia algum tanto lamurienta do sentimentalismo de outrora vem sendo substituída gradualmente por um grito de guerra. O grito de guerra da luta de classes.”

Ora, em sendo normas programáticas, que visam precipuamente orientar o Legislador quando de sua atividade legiferante, infere-se que do mesmo modo que o particular não pode invocar aplicação da “função social da propriedade” pelo Poder Judiciário, de igual modo, por sua conduta, não pode o proprietário feri-lo.

Buscar a concretização de um interesse invocando uma norma programática como a da “função social da propriedade” seria medida tão inócua quanto buscar um indivíduo indenização junto a uma empresa por lhe privar do direito a um “meio-ambiente ecologicamente equilibrado”, nos termos da norma programática do art. 225, caput, da Constituição Federal.

Para o exemplo acima, a empresa não estaria violando a norma programática, mas sim aquelas elaboradas para seu real cumprimento, eis que estas têm um conteúdo oponível, enquanto aquela não.

Decerto, em abusando o proprietário de seu direito por sobre a coisa, não estará indo de encontro com a “função social da propriedade”, mas sim a eventuais normas erigidas sob seu conceito pelo Legislador.

Nesta senda, por ser idéia, de conteúdo abstrato, a “função social da propriedade” é inferível, nem tampouco direito oponível contra terceiros.

Conclusão

Por todo o exposto, em sendo sociedade e propriedade elementos não-excludentes entre si, e a “função social da propriedade” uma idéia intangível, que guia o Legislador nas sendas de sua atividade, oriunda de um pensamento ilógico e imoral, pode-se concluir que o único modo de se conceber uma “função social da propriedade” condizente com o atual momento histórico-político mundial, seria se se servisse o proprietário de sua propriedade como bem entendesse.

Em outras palavras: a verdadeira função social da propriedade é atender à vontade do proprietário, enquanto indivíduo politicamente considerado.

De fato, caso o proprietário atinja interesse alheio quando do usufruto de sua propriedade, não atingirá a “função social da propriedade”, eis que norma programática, inoponível, mas sim eventual norma erigida sob a batuta do direito.

Ainda, caso houvesse um conflito de interesses entre o proprietário e a sociedade, a “função social da propriedade” seria redundante, já que é uma das razões de existência do Estado é justamente dirimir conflitos de interesses.

Assim sendo, conclui-se que, para atender a “função social da propriedade”, bastaria ao proprietário que vivesse em sociedade. Buscar a efetivação de tal instituto, tornando-a norma cogente, apenas seria possível num mundo onde o Estado/Governo imperaria onipresentemente, como na obra-prima de George Orwell, 1984.

Referências
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Informações Sobre o Autor

Caio Ricardo Gondim Cabral de Vasconcelos

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba


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Equipe Âmbito Jurídico

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