Resumo: Trata a presente reflexão de um breve estudo sobre a fundamentação econômica das relações negociais no direito privado brasileiro, a partir das contribuições de Adam Smith. O objetivo do trabalho é perquirir quais foram as principais contribuições filosóficas do pensador escocês ao regime jurídico contratual brasileiro, acompanhando, sobretudo, as recentes releituras das obras do pensador escocês, que conferem maior importância à dimensão política e ética de seu pensamento do que propriamente às suas análises econômicas. Descortinando, a partir daí, uma relação intrínseca entre a confiança e simpatia expostos na filosofia moral de Smith e os princípios da boa-fé e função social regulados no Código Civil de 2002. Além do mais, vislumbraremos que a boa-fé é condição de validade das relações negociais no direito brasileiro.
Palavras-chave: Relações negociais. Fundamentos econômicos. Adam Smith. Código Civil de 2002.
Abstract: This is a reflection of this brief study on the economic basis of business relations in Brazilian private law, based on the contributions of Adam Smith. The objective is perquirir what were the main philosophical contributions of the Scottish thinker Brazilian legal contract, following in particular the recent reinterpretations of the works of the Scottish thinker, which give more importance to political and ethical dimension of his thought than actually to their economic analysis. Unveiling, thereafter, an intrinsic relationship between confidence and kindness exhibited by Smith on moral philosophy and principles of good faith and social function regulated by the Civil Code of 2002. Moreover, we see that good faith is a condition of validity of dealings in Brazilian law.
Keywords: Business relations. Economic fundamentals. Adam Smith. Civil Code of 2002.
Sumário: 1 – Introdução. 2 – Adam Smith: vida e re (leitura) de sua obra. 3 – A principiologia das relações negociais no direito privado brasileiro. 4 – Conclusão.
1 – INTRODUÇÃO
A ética e os corolários da boa-fé, honestidade e confiança são temas cada vez mais recorrentes nas discussões do mundo contemporâneo.
A consolidação desmedida do sistema econômico capitalista no orbe terrestre, impulsionada pelo pensamento utilitarista formatado no início do século XVII, levou o gênero humano a uma séria crise de identidade.
Crise essa impulsionada pelos recentes abalos no mercado financeiro internacional, que acabou afetando a economia real dos países ricos, em desenvolvimento e, de modo mais significativo, dos mais pobres.
Muitos imputam a responsabilidade moral desse caos ao escocês Adam Smith, que, para alguns é o pai da economia moderna, ou seja, principal difusor do liberalismo econômico.
De fato, o filósofo e economista da era das luzes goza da reputação bem difundida de ser o fundador da ciência econômica. As transformações metodológicas e conceituais que marcaram a evolução da teoria econômica ao longo deste período não foram suficientes para retirar o estatuto canônico da Riqueza das Nações, que segue sendo apontada como modelo original e fonte de inspiração de sucessivas gerações de economistas.
Entretanto, estudos mais recentes sobre o pensamento de Smith têm contribuído para perceber o que há de equívoco nessa visão. Relegando a segundo plano as análises econômicas para enfocarem a dimensão política e ética de seu pensamento, a partir da (re) interpretação de sua primeira grande obra Teoria dos Sentimentos Morais, publicada em 1759.
Numa oportunidade, em Teoria dos Sentimentos Morais (1999), Adam Smith demonstrou uma insatisfação quanto à visão amoral da vida econômica e priorizou o sentimento de simpatia no esforço de explicar a vida em sociedade como harmonia e equilíbrio social.
Ademais, em A Riqueza das Nações (2003), já reconhecia que somente o trabalho cria a riqueza e que o equilíbrio natural dos egoísmos podem enriquecer as nações.
De outro norte, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil brasileiro de 2002 souberam dar guarida aos referidos ensinamentos, ao regulamentarem, por exemplo, o princípio da boa-fé objetiva (CC – arts. 113 e 422; CDC – arts. 4º, III e 51, IV)
Insculpido por princípios socializantes, o Código Civil trata de delimitar a vontade das partes ao atendimento de uma função social. Também é assim com a cláusula geral da boa-fé objetiva, que ultrapassa o tecnicismo jurídico para se considerar um princípio ético, pelo qual devem os indivíduos se orientar.
Como visto, o presente estudo buscará relacionar as lições de Adam Smith conjuntamente com a nova sistemática do direito privado brasileiro, notadamente quando impõe às partes contratantes a observância do princípio ético de confiança para a validade das relações negociais.
2 – ADAM SMITH: VIDA E RE (LEITURA) DE SUA OBRA
Adam Smith foi um filósofo e economista escocês (6/1723-17/7/1790). Um dos teóricos mais influentes da economia moderna, responsável pela Teoria do Liberalismo Econômico.
Duas grandes revoluções fruto do pensamento iluminista têm lugar durante sua vida: a revolução americana e a revolução francesa. Na primeira, a França ajuda os americanos na guerra pela independência, contra os ingleses, que foram derrotados em Saratoga em 1777; o tratado de Versalhes de 1783 reconhece a independência americana, restitui a Flórida à Espanha e o Senegal à França. Na segunda, triunfam as idéias dos enciclopedistas franceses, principalmente as de Rousseau, que levam à instalação da república na França em 1789.
Nas raízes desse conturbado período, Adam Smith publica em 1759 um importante tratado sobre moral, Teoria dos Sentimentos Morais, e, em 1776, a Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. Nela, define os pré-requisitos para o liberalismo econômico e a prosperidade das nações, como o combate aos monopólios, públicos ou privados; a não-intervenção do Estado na economia e sua limitação às funções públicas de manutenção da ordem, da propriedade privada e da justiça; a liberdade na negociação do contrato de trabalho entre patrões e empregados; e o livre comércio entre os povos.
Na Teoria dos Sentimentos Morais, toma uma natureza humana imutável como base para as instituições sociais. Aquela é dominada pelas paixões e os instintos de auto – preservação e auto – interesse, porém controlada por uma capacidade de simpatia ou solidariedade moral, e por uma presença interior que aprova ou desaprova as ações do indivíduo. Essa estrutura joga os homens uns contra os outros, mas lhe dá também a faculdade de criar instituições através das quais esse conflito é mitigado e transformado em bem social.
Apesar da Riqueza das Nações ter se tornado sua mais conhecida obra, Adam Smith foi na verdade um filósofo social, não um economista.
Rubem Queiroz Cobra foi bastante feliz ao discorrer sobre as obras de Smith: “Quando se examina o contexto de seu pensamento que inclui o seu The Theory of Moral Sentiments (A Teoria dos Sentimentos Morais), de 1759, além da obra que almejava publicar sobre os princípios gerais da lei e do governo e as diferentes revoluções que ocorreram em diferentes épocas e períodos da sociedade, vê-se que sua obra prima ‘Riqueza das Nações’, não é meramente um tratado de economia mas uma peça dentro de um sistema filosófico amplo que parte de uma teoria da natureza humana para um concepção de organização política e de evolução histórica”.
Como delineado acima, para o autor escocês existe um diálogo muito próximo entre ética e economia, que foi relegado a segundo plano por seus sucessores. Se apegaram cegamente aos postulados econômicos, para benefício de alguns e prejuízo de muitos, sem observarem o contexto de sua obra; os fundamentos mais intrínsecos de seu pensamento.
O economista Alexsandro R. Bonatto comentando alguns tópicos do pensamento exposto no livro A Riqueza das Nações, aduz que: “Honestidade: para Smith, a honestidade é a melhor política na condução dos negócios. Quando há um cenário de confiança entre os agentes, as operações se dão de forma mais fluída sem a participação de intermediários ou ferramentas que atestem a validade do que esta sendo proposto. Em outras palavras ganha-se tempo e dinheiro. Para Smith: ‘A natureza, quando formou o homem para a sociedade, dotou-o de um desejo original de agradar e de uma aversão original a ofender os irmãos. Ela lhe ensinou a sentir prazer quando o avaliam de maneira favorável e dor quando o avaliam de maneira desfavorável’. Ele ainda acrescentou: ‘O êxito da maioria (…) quase sempre depende da simpatia e da opinião favorável dos semelhantes; e sem uma conduta toleravelmente regular, é raro obtê-las. O bom e velho provérbio, portanto, segundo o qual a honestidade é sempre a melhor política, se mantém, em tais situações, e quase sempre é verdadeiro’ Como vemos, são princípios simples, mas descritos com a genialidade de Smith, que nortearam o pensamento liberal e a forma de fazer negócios nos últimos 200 anos de economia capitalista. Infelizmente de tempos em tempos parece que alguns desses ensinamentos são esquecidos e acabam sendo substituídos por outros nem tão brilhantes. O resultado é conhecido: escuridão do pensamento, pobreza e crises financeiras”. (2009, pág. 04),
Pois bem, é justamente no seu primeiro trabalho, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, que ele lança os fundamentos psicológicos sobre os quais o “Riqueza das Nações” foi depois construído. Na Teoria dos Sentimentos Morais Smith descreveu os princípios da “natureza humana” os quais, juntamente com Hume e outros filósofos da época, ele tomou como universais e imutáveis, e a partir dos quais supõe que as relações sociais do homem, tanto quanto seu comportamento pessoal, poderiam ser explicados e previstos.
Então, qual seria o ponto nevrálgico de sua filosofia moral? Certamente passa pela idéia de simpatia ou solidariedade moral. Para referido pensador, o homem seria uma criatura guiada por paixões e ao mesmo tempo auto-regulada pela sua habilidade de raciocinar e – não menos importante – pela sua capacidade de simpatia. Esta dualidade tanto joga os homens uns contra os outros, quanto os leva a criar racionalmente instituições pelas quais a luta mutuamente destrutiva pode ser mitigada e mesmo voltada para o bem comum.
Ele escreve na sua Teoria a famosa observação que seria repetida mais tarde no Riqueza das Nações, ou seja, que o homens interesseiros, egoístas, são freqüentemente levados por uma mão invisível sem que o saibam, sem que tenham essa intenção, a promover o interesse da sociedade.
3 – A PRINCIPIOLOGIA DAS RELAÇÕES NEGOCIAIS NO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO
O Código Civil brasileiro, preocupado com ideais socializantes, estabeleceu a boa-fé como fundamento absoluto das relações negociais (art. 113: os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração e artigo 422: os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.), chegando, inclusive, a estabelecer a invalidade absoluta do pacto caso fosse verificado sua inobservância (art. 166, II, CC).
No dizer de Roberto Senise Lisboa: “A magnitude da norma (cláusula geral da boa-fé objetiva), alcança ainda o equilíbrio da relação, buscando a igualdade entre os contratantes. O contrato, cujo papel no desenvolvimento social é deveras importante, age também como instrumento de cooperação mútua entre as partes, as quais, embora com interesses distintos, têm como finalidade justamente a promoção do crescimento social.” (2009, pág. 777).
Claro que, antes disso o Código de Defesa do Consumidor já estabelecia a boa-fé como postulado máximo da principiologia obrigacional (CDC – arts. 4º, III e 51, IV).
Nesse desiderato, Claudia Lima Marques assim preleciona acerca da regulamentação da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor: “A boa técnica legislativa ordenaria que norma tão importante e ampla estivesse contida em artigo próprio e não escondida, talvez por medo de veto, em uma lista de quinze incisos. Mas, seja como for, a cláusula geral da boa-fé, da equidade e do equilíbrio nas relações contratuais está presente no sistema do CDC, representando uma das mais importantes inovações introduzidas por esta lei no direito contratual brasileiro. Segundo o inc. IV do art. 51, são nulas as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, ‘que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade’. Três são, portanto, os parâmetros: 1) o conhecido princípio da boa-fé, de inspiração alemã (§242 do BGB), grande ausência no Código Civil brasileiro de 1916, que agora, após os esforços da jurisprudência e da doutrina, encontra-se positivado no sistema jurídico brasileiro; 2) a equidade, significando aqui mais a necessidade do chamado equilíbrio contratual (na expressão de Raiser, Vertragsgerechigkeit) do que inspiração inglesa da decisão caso a caso na falta de previsão legal anterior, uma vez que as normas do próprio CDC, nos seus artigos iniciais, básicos, já instituem linhas mestras para este equilíbrio; 3) a noção de vantagem exagerada, que vem complementada no §1º do art. 51, o qual institui alguns casos de presunção de vantagem exagerada, nitidamente inspirados na alínea 2 do § 9º da Lei alemã de 1976, hoje alínea 2 do §307 do BGB reformado.” (2006, pag. 701/702)
Não obstante, é justamente a partir do Código Reale que a boa-fé assumiu a posição de princípio estruturante de toda relação negocial no direito privado brasileiro. Dela deriva o princípio da proteção da confiança, que tem por escopo a defesa das legítimas expectativas que nascem entre os contratantes, quando pactuadas as obrigações que mutuamente são assumidas, criando entre ambos um vínculo contratual. Os motivos da contratação, quando razoáveis e advindos da boa-fé, integram a relação contratual, protegendo as legítimas expectativas dos consumidores.
Senão vejamos comentários do próprio reformador quando tratou da boa-fé objetiva: “É que está em jogo o princípio de confiança nos elaboradores das leis e das avencas, e de confiança no firme propósito de seus destinatários no sentido de adimplir, sem tergiversações e delongas, aquilo que foi promulgado ou pactuado”. E, indo mais longe, o grande jurista brasileiro ponderou: “Donde se conclui que quando o art. 104 dispõe sobre a validade do negócio jurídico, referindo-se ao objeto lícito, neste está implícita a sua configuração conforme a boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite”. (Miguel Reale – 2005, pág. 7),
Pois sim, registre-se novamente que a ética, a boa-fé, a honestidade e a proteção da confiança são postulados que se completam.
Nesse desiderato, é possível visualizar uma relação direta entre os dogmas de Adam Smith e a principiologia das relações negociais no direito privado brasileiro.
4 – CONCLUSÃO
Um movimento de re (leitura) da obra de Adam Smith tem demonstrado que suas preleções sobre economia não estavam dissociadas dos fins sociais e éticos necessários para o harmônico convívio social.
Apesar de a Riqueza das Nações ter assumido o papel de principal obra do referido autor, é justamente com a leitura da Teoria dos Sentimentos Morais que percebemos a completude de seu pensamento econômico e filosófico. Mas do que um economista, estamos diante de um grande filósofo.
A partir dessas constatações, e do estudo das bases normativas exigidas no trato negocial no Brasil, constata-se que o pai da economia moderna inspirou nossos legisladores no sentido de estabelecer a ética, a boa-fé e a proteção da confiança como dogmas absolutos do direito obrigacional brasileiro.
Seria possível negociar com um mínimo de conteúdo ético? Nossa legislação diz que sim; aliás, determina que a boa-fé seja a base de todo o trato negocial.
Visualiza-se, desse modo, todo um processo de fundamentação econômica nas disposições negociais encontradas no direito privado brasileiro. De forte inspiração iluminista, fruto do pensamento arguto e tenaz de um dos mais célebres pensadores de todos os tempos, Adam Smith.
Advogado, coordenador do EAJ (Escritório de Assistência Jurídica) e professor de Direito Civil e Direito Internacional, ambos na Faculdade Objetivo de Rio Verde/GO. Pós-Graduado em Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho pela Universidade de Rio Verde/GO e Mestrando em Direito e Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Goiás (PUC/GO)
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