Resumo: Após os acontecimentos fatídicos ocorridos a 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, a 11 de Março de 2005, em Espanha e a 21 de Julho de 2005, em Londres, temos obrigatoriamente, que analisar o sistema internacional de protecção dos refugiados. Principalmente, porque, os estrangeiros em geral, independentemente, da nacionalidade passaram a ser vistos como alvos a abater. Estará então, em crise o sistema internacional de protecção dos refugiados? Julgamos que não. Desde que, não confundamos os refugiados, os requerentes de asilo, os deslocados, e os imigrantes em geral com os terroristas.
Palavras-chave: Refugiados, Direito de Asilo, Convenção de Genebra, Conselho da Europa, Terrorismo.
Abstract: After the tragic incidents occurred on September 11th 2001, in the United States, on March 11th 2005, in Spain and on July 21ST 2005, in London, we must necessarily analyze the international system of refugees’ protection. Mainly, because foreigners, in general, despite of nationality, are now seen as targets to kill. Is it, then, the international system of refugees’ protection in crisis? We don’t think so. As long as we don’t mistake the refugees, the asylum seekers, the displaced and the immigrants in general with terrorists.
Sumário: 1. Introdução. 2 – A Historia do Direito de Asilo no Direito Internacional. – 3. O problema dos refugiados e deslocados com a Primeira Guerra Mundial. – 4. A Segunda Grande Guerra e a consciencialização da necessidade de Protecção dos Direitos Humanos. – 5. A Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiados. – 6.O contributo do Conselho da Europa na problemática dos Refugiados. – 7. Conclusão.
I. Introdução
Após os acontecimentos fatídicos ocorridos a 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos[1], a 11 de Março de 2005, em Espanha e a 21 de Julho de 2005, em Londres, temos obrigatoriamente, que analisar o sistema internacional de protecção dos refugiados. Principalmente, porque os estrangeiros em geral, independentemente da sua nacionalidade, passaram a ser vistos como alvos a abater. Estará, então, em crise o sistema internacional de protecção dos refugiados? Julgamos que não. Desde que, não confundamos os refugiados, os requerentes de asilo, os deslocados, e os imigrantes em geral com os terroristas.
A problemática de asilo, dos refugiados, dos deslocados e dos imigrantes em geral, foi sempre um fenómeno transversal da história da humanidade. Perceber a evolução, a história, e as razões de atribuição do estatuto de refugiado e do próprio instituto de asilo, é compreender, definitivamente, o outro enquanto Ser Humano. É aniquilar a ignorância quanto à cultura do outro. É conceber novas formas de viver e pensar. É interiorizar os nossos piores receios, medos, angústias, sofrimentos e estados de alma no requerente de asilo, e simultaneamente, pelo menos, tentar compreender a ratio destes receios e medos, baseados, por vezes, em sistemas políticos, sociais, culturais e económicos distintos dos nossos.
É inexequível a uniformização global dos sistemas políticos, sociais, culturais e económicos, todavia, é exequível a uniformização dos Direitos do Homem. Por conseguinte, compreender a História do Direito de Asilo é possibilitar que o sistema internacional de protecção dos refugiados funcione, mas acima de tudo, é possibilitar a dignificação do Homem, enquanto Homem.
Pelo exposto, o objectivo deste estudo é, essencialmente, traçar uma evolução histórica do Direito de Asilo no seio do Direito Internacional. Pelo facto de existir uma panóplia de literatura que directa e/ou indirectamente, aborda esta temática, faremos referencias a alguns destes textos, e sublinharemos, de igual modo, alguns dos aspectos sociais, internacionais e legais que contribuíram para o desenvolvimento desse instituto de Asilo na Comunidade Internacional e no Direito Internacional. Cônscios, todavia, de não termos esgotado o tema, nem esse era, sequer, o objectivo que presidiu a este estudo, ambicionamos, no entanto, contribuir para uma melhor percepção/distinção entre os refugiados, os requerentes de asilo, os deslocados, e os imigrantes em geral com os terroristas.
II. A História do Direito de Asilo no Direito Internacional
Penso que não será exagero afirmar-se que a ideia de asilo é tão antiga como os primórdios da humanidade. Bastar-nos-á evocar, para tal, um vastíssimo leque de textos que ao longo da história, de uma forma ou outra, relatam situações pontuais de pessoas que, em virtude de variadíssimas circunstâncias endógenas, tiveram que abandonar o seu local de origem.
Se nos referirmos, a título exemplificativo, ao livro Sagrado da história da humanidade do mundo cristão, a Bíblia, poderemos observar inúmeras referências, implícitas e/ou explicitas, ao direito de asilo. Estas aparecem, desde logo, no Livro do Génesis:
“Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal”. [2]
Posteriormente, o Senhor cria o homem e coloca-o no paraíso para cultivar e guardar. E disse que ele “[podia] comer do fruto de todas as árvores do jardim”, mas não o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque “no dia em que o [comesse], certamente [morreria] ”[3]. Todavia, não se conformando com a solidão de Adão que deambulava sozinho e desamparado pelo Paraíso, Deus adormece-o num sono profundo. Então, tomou-lhe uma das costelas e, desta, formou uma mulher para ser a sua esposa, dando-lhe o nome de Eva. Os dois viviam num autêntico Paraíso, tanto no céu como na própria Terra. Porém, no Jardim do Éden, Satanás assume a forma de uma serpente e tenta Eva, dizendo-lhe que certamente não morreria. Contudo, Deus sabia que no dia em que comessem daquele fruto, os seus olhos se abririam e seriam como Ele: conheceriam o bem e o mal[4]. Então, Eva olhou para o fruto da vida e vendo que este era bom para se comer, agradável aos olhos e desejável para dar entendimento, tomou-o e comeu-o, e deu-o também a comer ao marido[5]. Adão, ao comer o fruto proibido, feriu de morte a humanidade, relegando-a a toda a espécie de maleitas. Ao ser expulso, de imediato, de tão idílico lugar, fez com que as doenças, o sofrimento e a morte se abatessem sobre a Terra. Esta visão teológica da legalidade – e, neste caso, à sua infracção – deverá, desde logo, ser vista à luz do seu carácter alegórico e simbólico. Contudo, ela é solidária com o carácter punitivo face à desobediência das leis divinas:
“O Senhor Deus, por isso, os lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden, e ao refulgir de uma espada que se resolvia, para guardar o caminho da árvore da vida”[6]
Através dos factos supracitados, podemos verificar que o homem convive, desde os mais remotos tempos, com o facto de ter de sair da sua terra de origem pelos mais variados motivos. Aliás, a História das Gentes relata uma infinidade de exemplos de rejeição social. A própria Bíblia contém inúmeros doutros casos de pessoas que tiveram que abandonar o seu local de origem. Podemos citar, a título de exemplo, Caim que, em consequência do homicídio do irmão, se viu obrigado a vaguear de terra em terra[7]; Judas que, por ter praticado um acto de traição, “ (…) foi levado cativo para fora de sua terra”[8], e José que se viu forçado a deixar sua casa e terra de forma a salvar seu filho da ira de Heródes,
“ (…) dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto, e permanece lá até que eu te avise; por que Herodes há-de procurar o menino para o matar”[9].
No Direito Internacional, a condição de estrangeiro – conotada, tradicional e estritamente, com a noção de soberania nacional[10] – foi, em grande medida, objecto de tratamento recíproco ou equivalente nas relações bilaterais entre os Estados[11]. O estrangeiro, geralmente, procura abrigo noutro local por motivos endógenos, visto não poder ter uma vida dita normal no seu país de origem. Esta procura é feita na ânsia de ser protegido, tanto pelo crime cometido, como em virtude de privações sentidas no meio onde está inserido. Esta ânsia de protecção é ainda originada por discriminações, perseguições, motivos ideológicos, religiosos, culturais, raciais, filiação ou, ainda, por causa da inserção num grupo social específico que, de alguma forma, o ostraciza. Ao partir, o estrangeiro anseia alcançar noutro país, Estado, comunidade, aldeia, ou simples localidade uma protecção específica aos seus medos e receios. É precisamente essa noção de protecção que a palavra “asilo”[12] representa. Ela deriva do nome grego asylon[13], formado pela partícula privativa a, que significa “não”, e da palavra asyloo, que equivale aos verbos “quitar, arrebatar, tirar, sacar, extrair”.[14] Não é por acaso que se evoca a etimologia deste termo e, em especial, a sua raiz grega, dado que a génese deste significante estava associada a práticas comummente utilizadas na Grécia Antiga, onde os perseguidos e os estrangeiros beneficiavam de uma protecção e de um refúgio invioláveis. Eles beneficiavam, numa palavra, de asilo para as suas vidas graças à concessão deste direito. Essa protecção poderia ser encontrada geralmente, nos templos, mosteiros, bosques sagrados e junto do imperador, sendo, posteriormente, por v.g., na Idade Média, deslocada, com as “Leis das Partidas”, para as igrejas e cemitérios.[15]
Conceder asilo é a autorização legal de entrada num pais, estado/nação, é a permissão de estadia anuída a alguém (refugiado), que se viu obrigado a fugir da sua terra natal, para noutra, iniciar em segurança vida nova, longe das perseguições, da intolerância e da guerra.
Com a submissão da Grécia à soberania Romana [16], o Instituto de asilo passou a ter, para além do carácter religioso, um carácter jurídico[17]. No Direito Romano concedia-se asilo somente àquelas pessoas que não fossem culpadas por crimes cometidos ao abrigo das legislações da época, protegendo, contudo, as pessoas injustamente perseguidas pelo poder público.
No período compreendido entre o século X e XV, o direito de asilo foi objecto de uma forte alteração, consequência da profunda mudança na mentalidade ocorrida na Europa. Passamos de uma sociedade hospitaleira[18] para com o estrangeiro para uma sociedade egocêntrica e proteccionista das suas fronteiras, gentes, cultura e religião. Culminando este estado de espírito na repressão, na perseguição, isolamento e condenação ao exílio. Convém salientar que este estado de espírito se foi desenvolvendo de forma progressiva no sentido da extinção e aniquilamento de um povo, atingindo o seu auge com a expulsão dos judeus, hereges, mouros do estrangeiro.[19] A intolerância, aliada a uma xenofobia, avant-la-lettre, preconceituosa e discriminatória, levaria, por sua vez, a uma reformulação do direito de asilo. Este foi o período das conquistas, da afirmação de um território, de um Estado, de imposição de uma cultura com total abnegação das outras. Enfim, foi o período da afirmação do “eu” e, consequentemente, da negação, da repulsa do “tu” ou, por outras palavras, o período da construção da identidade dos Estados com a consequente estigmatização da diferença, a todos os níveis. Todavia, no século XVI, com a Reforma – e salvaguardadas as devidas diferenças geopolíticas, históricas e culturais, entre outras, desde o Luteranismo ao Calvinismo e Anglicanismo –, o poder eclesiástico foi perdendo a importância que outrora lhe fora atribuída na Idade Média, mais precisamente, no âmbito do Instituto do asilo, graças às “Leis de Partidas”. Assim sendo, neste período, os governantes da Europa assentavam as suas políticas em alicerces universalistas onde reinava a liberdade, a tolerância, a opção religiosa, daí acolherem todos aqueles que, por circunstâncias várias buscavam protecção.[20] O Instituto de asilo deixa de ser competência exclusiva da igreja para dar origem ao que se passou a denominar de laicização do instituto de asilo [21], ou seja, a competência de concessão deste Instituto vai-se transferindo gradualmente para o poder civil.
O século XVII foi culminante para o desenvolvimento do Instituto de asilo. Nesta época, alguns dos percursores do Direito Internacional, como Suarez, Wolff e aquele que foi considerado, posteriormente, o Pai do Direito Internacional, Grotius, viam o instituto do Direito de Asilo como um Direito Natural e, portanto, uma obrigação do Estado[22]. Os Estados que concediam asilo agiam em benefício da comunidade, no estrito respeito do dever humanitário internacional que lhes estava incumbido. Grotius apregoa também que as pessoas expulsas dos seus países ou lares tinham o direito de adquirir residência permanente noutro Estado, devendo, contudo, os seus requerentes de asilo submeter-se ao governo e autoridade legitimamente imposto neste mesmo Estado[23]. Para além disso, Grotius estabeleceu igualmente diferenciação entre ofensas políticas e ofensas comuns, vinculando a posição de que só se deveria conceder asilo às pessoas perseguidas por ideais políticos e ou religiosos[24]. Contudo, até finais do século XVII, o asilo continuou a ser concedido aos fugitivos de crimes comuns, enquanto que no século XVIII, o direito de asilo é, pela primeira vez, proclamado numa constituição europeia, ou seja, na Constituição Francesa de 24 de Junho de 1973, a qual subscreve, no seu artigo 120º, que o povo francês
“ (…) dá asilo aos estrangeiros exilados de sua pátria por causa da liberdade. Recusa-o aos tiranos”. [25]
Não obstante, esta tendência não teve idêntica repercussão nos textos constitucionais no contexto europeu. Muito pelo contrário, o direito de asilo deixa de ser um direito humano individual, passando a ser um direito do Estado de acolher ou não um estrangeiro requerente de asilo[26]. É no início do século XIX que os ideais propostos por Grotius vão, gradualmente, ganhando consistência na comunidade internacional e vão sendo aceites no seio destes aglomerados de Estados nacionais, europeus e soberanos, de modo que, aos poucos e poucos, as pessoas requerentes de asilo – e que tinham praticado graves crimes comuns –, eram entregues aos Estados onde os mesmos foram praticados[27]. Para as pessoas requerentes de asilo, por crimes políticos praticados, vigorava o princípio da não extradição[28], excepto se o crime praticado fosse contra os chefes de Estados. Nasce assim, o precedente à extradição.
Como já foi referido no percurso histórico da humanidade, muitos foram aqueles que tiveram que abandonar os seus lares, cidades ou países, por serem vítimas de circunstâncias várias que os feria na segurança, na integridade física e psicológica ou nos mais elementares direitos humanos, razões plausíveis para aspirarem o refúgio e a segurança noutro local.
Não é novo o fenómeno dos conflitos internos relacionados com divisões étnicas e sociais, violações de direitos humanos, políticas discriminatórias e má governação. Todavia, é um fenómeno pelo qual todos nós somos co-responsáveis, pois nenhuma região do mundo foi poupada deste drama dos refugiados, principalmente com o início da Primeira Grande Guerra.
III. O problema dos refugiados e dos deslocados na Primeira Guerra Mundial
Em finais do século XIX e início do século XX não existiam, ainda, padrões universais para protecção dos refugiados, apesar de, como já foi referido, o drama dos refugiados ser uma das grandes tragédias do nosso tempo e não só. Pois, desde que há guerras, perseguições, discriminações e intolerância, existem refugiados. Este é um estigma que pode afectar todas as pessoas, em qualquer parte do mundo e em qualquer circunstância, independentemente da raça, da religião, do credo ou ideologias.
A lista de horrores é longa. Vivemos num mundo onde centenas de milhões de pessoas são vítimas de um extermínio silencioso provocado pela fome, pela doença e pela miséria. Estas encontram-se em todos cantos do planeta: África, Ásia, Europa e América. Por conseguinte, milhares e milhares de pessoas vítimas, por natureza, de guerras civis, de limpezas étnicas, de assassinatos em massa, e/ou de perseguições em domínios distintos (social, político, religioso, intelectual), vêem-se obrigadas a fugir, a abandonar a casa, a família, o país e imigrar para uma terra desconhecida, ansiando um futuro seguro. Estas têm, todavia, consciência que preferem a incerteza da segurança e de melhores condições de vida num país distinto do seu país de origem do que, a certeza da insegurança humana vivida no seu país de origem, handicap para a existência, num futuro próximo, da paz e da estabilidade.
Antes da Primeira Grande Guerra[29], o problema dos refugiados existentes na Europa não tinha a acuidade necessária para proporcionar a criação de um Direito Internacional para os mesmos. Estes eram resolvidos com a simples concessão do asilo ou pelo procedimento de extradição, conjugado com Direito Penal Internacional[30]. Os esforços envidados no sentido de os proteger e os auxiliar eram, por natureza, localizados e de carácter ad hoc. Com a Primeira Guerra Mundial (1914-18), o problema dos refugiados e das deslocações forçadas assumem uma dimensão social de grande magnitude, agudizando-se por toda a Europa. De facto, este foi o primeiro conflito armado a envolver as grandes potências imperialistas da Europa e, posteriormente, a maior parte dos países do mundo. Esta guerra teve consequências dramáticas: causou a morte de mais de 8 milhões de soldados, 20 milhões ficaram feridos e 5 milhões foram dados como desaparecidos. Para além disso, houve milhões de contingentes de refugiados e vários milhares de movimentos populacionais e deslocações forçadas. Só a título exemplificativo, convém salientar que mais de 3.000.000 russos se dirigiram para o interior e milhares e milhares de belgas e sérvios tiveram que atravessar as fronteiras[31] na busca incessante de um abrigo ou de condições mínimas de dignidade humana. É de referir, ainda, que muitos destes estrangeiros/refugiados não eram apenas refugiados políticos. Eles eram, na sua maioria, massas desenraizadas por mudanças políticas, pessoas civis em nada conotados com a guerra, mas frutos dos danos colaterais desta. De entre estes, os deslocados eram por natureza o grupo mais vulnerável de pessoas, sejam como vítimas de conflitos, de perseguições ou de outras violações dos direitos humanos.
Nesta época, a Europa mergulhou num cenário catastrófico e, para além da destruição massiva dos meios de produção, acompanhada por dificuldades económicas (falta de emprego), surgiram também dificuldades a nível social (a fome e miséria) e a nível político (a paz fragilizada; o poder político desorganizado e a reorganização do mapa político europeu com a formação de novos Estados, constituídos por uma variedade de grupos étnicos, linguísticos e religiosos). Como se isso tudo não bastasse, a adopção gradual por parte dos países de medidas restritas à imigração, dando cada vez mais ênfase à criação de uma “fortaleza europeia”, fechada aos cidadãos estrangeiros, foi talvez a mais crucial visão e preocupação da comunidade internacional, a qual, por razões humanitárias, começou a assumir responsabilidades perante os mesmos, nomeadamente, com a sua protecção e assistência.
A consciencialização gradual da multiplicidade de motivos que levavam estas pessoas a se refugiarem foi o toque angular para a tomada de consciência, por parte dos governos, das organizações e comunidades internacionais, do público em geral, de que era necessário fazer algo e assumir politicamente, de uma vez por todas, a problemática dos refugiados.[32] A Comunidade Internacional, rapidamente, se consciencializou de que as deslocações não eram simples consequências de conflitos, mas eram também geradoras de conflitos. Como tal, estávamos perante um problema crónico que exigia a máxima atenção, sob pena de cairmos, novamente, numa sangrenta guerra. Havia que actuar, rapidamente, e é este o quadro político-social degradante, pós Primeira Guerra Mundial, que servirá de palco para o desenvolvimento da sistematização dos Direitos Humanos.
No período pós Primeira Guerra Mundial, na Conferência de Paz realizada em Paris em 1919, é assinado a 28 de Junho de 1919, o Tratado de Versalhes entre as potências aliadas vencedoras da Primeira Guerra Mundial e a Alemanha derrotada. Este tratado foi, sem sombra de dúvida, a semente de um conflito maior e transformou-se numa verdadeira sentença penal condenatória, pois estabelecia fortes sanções aos alemães, como por v.g.,: o pagamento de reparações de guerra aos países vencedores; a destruição de todos os armamentos e equipamentos de guerra, terrestre, naval ou aéreo; as perdas de colónias alemãs a favor dos países vencedores e partes de seu território; a proibição de formação do exército regular, etc. Todas estas sanções foram, aos poucos, incendiando o orgulho alemão (ao propiciar o ambiente ideal para o surgimento de ideias totalitárias e de partidos políticos de extrema direita) e semeando, no seio da população alemã, o ódio e o desejo de perseguição às minorias raciais. Todavia, o Tratado de Versalhes teve o mérito de estimular a criação de um organismo que deveria zelar pela paz mundial – a Sociedade das Nações[33]. A Sociedade das Nações era constituída por dois órgãos deliberativos: o Conselho[34]e a Assembleia-geral[35] e, estes, eram auxiliados por uma secretaria[36] permanente[37]. A Sociedade das Nações é um organismo político criado entre os Estados signatários do Tratado de Versalhes e pretendia ser um instrumento internacional de controlo e mediação de conflitos entre os Estados, para além de promover a cooperação entre as nações, a paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política de seus membros[38]. Os Estados-membros da Sociedade das Nações “ (…) reconhecem que a manutenção da paz exige a redução dos armamentos nacionais ao mínimo compatível com a segurança nacional e com a execução das obrigações internacionais impostas por uma acção comum”, pelo que “ [comprometiam-se] a trocar, do modo mais franco e mais completo, todas as informações relativas ao quantum de seus armamentos, aos seus programas militares e navais e a condição de suas indústrias susceptíveis de ser utilizadas para a guerra.”[39] Tinham competência, ainda, para estabelecer sanções económicas e militares contra os Estados que violassem as suas obrigações.
A Sociedade das Nações, apesar de traçar os objectivos e procedimentos internacionais de harmonia mundial, a serem adoptados pelos Estados-membros da Sociedade das Nações, não logrou com grande êxito o implemento destes mesmos objectivos. E isto devido, fundamentalmente, à falta de cooperação das grandes potências: os Estados Unidos, logo de início, abandonaram o projecto da Sociedade das Nações, apesar de terem sido um dos grandes impulsionadores da sua criação. Mais tarde, outro país, a Alemanha Nazi, sai da cena da Sociedade das Nações. Por outro lado, a própria Sociedade das Nações não conseguiu acabar com as disputas e com o clima de insegurança e desconfiança que reinava em toda a Europa. Para além disso, não foi capaz de traçar interesses comuns para os Estados e, principalmente, não conseguiu efectivar a aceitação, por parte dos países integrantes da Sociedade das Nações, da noção de protecção internacional dos Direitos Humanos. Não podemos, todavia, esquecer que, apesar deste aparente insucesso na prossecução dos seus objectivos de harmonia mundial, a Sociedade das Nações teve o mérito de aflorar previsões genéricas internacionais de Direitos Humanos, nomeadamente, com a implementação dos sistemas de mandatos e com o brotar de um leque de normas e de princípios genéricos de protecção de minorias.
Quanto ao sistema de mandatos, este consistia em ajudar os povos, ainda incapazes de se dirigirem por si próprios, nas suas dificuldades mais prementes com vista ao desenvolvimento destes e ao bem-estar das suas populações. Era ainda uma “ (…) missão sagrada de civilização (…) ”[40].
A forma eficaz de concretização deste princípio consistia em transferir a tutela destes povos às nações desenvolvidas que exerceriam a tutela na qualidade de mandatários e em nome da Sociedade das Nações, muito embora, o carácter de tutela devesse ser apreciado caso a caso, conforme o grau de desenvolvimento do povo e das suas necessidades prementes.
Outro dos contributos da Sociedade das Nações, para o desenvolvimento dos Direitos Humanos, foi o aflorar de normas genéricas internacionais de protecção de minorias. Assim, foram convencionados alguns princípios para os Estados-membros da Sociedade das Nações. Estes esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o homem, mulher e a criança nos seus territórios, assim como em todos os países com os quais mantenham relações de comércio e indústria; comprometerão a acautelar o tratamento equitativo e justo das populações indígenas dos territórios submetidos à sua administração; encarregarão a Sociedade da superintendência dos acordos relativos ao tráfico de mulheres e crianças, ao comércio do ópio e de outras drogas; comprometerão a encorajar e a apadrinhar o estabelecimento das organizações voluntárias da Cruz Vermelha, como forma de melhorar a saúde e aliviar o sofrimento no mundo, entre muitas outras incumbências. Desta forma, e, face à situação que a Europa vivia pós Primeira Guerra Mundial, em 1921, o Conselho da Sociedade das Nações, no exercício das suas funções, nomeia Fridtjof Nansen Alto-comissário encarregue dos problemas relativos aos refugiados da Rússia na Europa. Dez anos depois (1931), a Sociedade das Nações cria o Gabinete Internacional Nansen para os refugiados e, dois anos mais tarde (1933), nomeia o Alto Comissariado para os Refugiados provenientes da Alemanha. Em 1946, a Sociedade das Nações é oficialmente dissolvida após a derrota do eixo e será substituída pela ONU – Organização das Nações Unidas.
IV. A Segunda Grande Guerra e a consciencialização da necessidade de Protecção dos Direitos Humanos
É por muitos historiadores qualificado como o maior e mais sangrento conflito armado que o mundo jamais presenciou, todavia, diversos foram os factores que determinaram a sua eclosão. Abster-nos-emos de os referir em toda a sua plenitude, mas podemos, contudo, referir que o clima de insegurança e desconfiança mútua que se vivia pós a Primeira Guerra Mundial, a reorganização do cenário político europeu e as severas penas e condições humilhantes impostas à Alemanha, pelo Tratado de Versalhes,[41] foram o caldo necessário à ascensão de Hitler ao poder, bem como à germinação de ideologias racistas, nazistas e xenófobas[42] e o móbil à eclosão deste conflito mundial.
As consequências deste segundo conflito mundial para a Europa foram desastrosas a todos os níveis, pois esta encontrava-se devastada, “ (…) não [era] mais do que um vasto campo de ruínas: exausta espiritualmente, dividida por ódios indizíveis, profundamente endividada e economicamente destroçada”[43], necessitando como tal, urgentemente, de uma vitalização à sua capacidade de produção, a fim de alojar, vestir e alimentar populações famintas. A nível económico, todo o aparelho de produção fora posto, durante os seis anos consecutivos, ao serviço da indústria bélica, outros foram convertidos para a indústria de apoio ao armamento, outros, ainda, foram destruídos durante a guerra. A matéria-prima era inexistente o que impossibilitava o retorno à actividade industrial normal. A nível político, as frágeis democracias europeias temiam o ressurgimento dos velhos nacionalismos e o acesso ao poder pelos partidos comunistas que haviam organizado e emergido durante a guerra. A nível militar, a Europa “ [não] representava (…) mais do que uma soma de fraquezas” [44]. Por fim, a nível social, como o sector mais intimamente ligado ao nosso estudo, é de sublinhar que a guerra provocou milhões de vítimas estimadas em 55 milhões de mortos, 35 milhões de feridos, 20 milhões de órfãos, 40 milhões de deslocados e 190 milhões de refugiados.
Esta movimentação de massas deu-se por toda a Europa, durante e no período imediato ao pós-guerra. [45]/[46] Idêntica movimentação de massas surgiu fora da Europa, no mesmo período, em consequência de outros tantos conflitos armados. Tendo em conta este cenário catastrófico, é sentimento unânime, entre os líderes internacionais e europeus, que a Europa só se poderia erguer dos escombros em que se encontrava, se se unisse em si mesma. Deste modo, criaria um mecanismo de cooperação internacional que construísse a paz, prevenisse as guerras, garantisse os direitos humanos e promovesse o progresso social e económico. Este percurso foi longo e não isento de retrocessos.
Em 1943, ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, é fundada a Administração das Nações Unidas para o Auxílio e Restabelecimento (ANUAR) com o objectivo de prestar assistência de emergência a milhares de refugiados e deslocados, bem como auxílio e reabilitação das zonas devastadas. A ANUAR, após a Segunda Guerra Mundial, concentrou grande parte dos seus esforços no repatriamento, apesar da relutância de grande parte dos refugiados em voltar para os seus países de origem. Deste modo, a questão do repatriamento tornou-se um problema político importante, havendo quem defendesse que em vez do repatriamento se devia dar primazia à reinstalação, visto que as pessoas deviam ter o direito de escolher o seu país de residência, de fugir à opressão e de exprimir as suas opiniões. Por conseguinte, os Estados Unidos, um dos principais financiadores da ANUAR, recusaram manter este apoio financeiro para além de 1947. Desta forma, pressionaram a Comunidade Internacional à criação de uma nova organização para os refugiados com novos princípios, outras políticas e modos de actuação. Neste entretanto, a 26 de Junho de 1945, em S. Francisco, realiza-se uma conferência com a participação de delegações de 50 países, tendo sido firmado, por acordo, a Carta das Nações Unidas[47]. É criada, deste modo, em 1945 a Organização das Nações Unidas (O.N.U). Constituída, inicialmente, apenas por 26 países, tem hoje 191 membros, o que converte a ONU em uma das organizações mais representativas do planeta. Tem como objectivos: servir de mediador nos conflitos entre países; promover os direitos fundamentais do homem e o respeito pela dignidade da pessoa humana; manter a paz mundial e a solidariedade social entre as nações e, acima de tudo, construir um mundo melhor com justiça e livre do terror das Guerras.
Com o “terminus” da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das Nações Unidas, bem como, com as mudanças geopolíticas ocorridas neste período, inquestionavelmente, os Direitos Humanos passam a integrar a agenda do Direito Internacional, resolvidos que estavam os povos das Nações Unidas em “ (…) preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres (…) ”[48]. Nestes termos, e ao abrigo do n.º 3, artigo 1º, capítulo I da Carta das Nações Unidas, os Estados comprometem-se conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de carácter económico, social, cultural ou humanitário, bem como, promover e estimular o respeito aos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Assim sendo, em Julho de 1947, com o fim do mandato da ANUAR, a Assembleia-geral das Nações Unidas cria uma agência especializada, não permanente, das Nações Unidas de carácter internacional denominada Organização Internacional para os Refugiados (OIR), com o fim de, de certo modo, substituir a ANUAR. Esta Organização Internacional para os Refugiados, que limitava a sua actuação à assistência a refugiados europeus, teve o mérito de estender, de forma integrada, os seus objectivos a outros aspectos conectados à questão dos refugiados. E isto por via da identificação, do registo, da assistência médica, jurídica ou política dos refugiados, ou por via da inventariação dos anseios, das carências e das necessidades e, ainda, pelo desenvolvimento de políticas de reinstalação e de reintegração destes na sociedade. Com estas medidas, dava-se já os primeiros passos para a consagração legislativa dos Direitos Humanos. A 10 de Dezembro de 1948, em Assembleia-geral efectuada em Paris, a O.N.U. promulgava a Declaração Universal dos Direitos do Homem. [49] Esta Declaração Universal dos Direitos do Homem veio completar a Carta das Nações Unidas, reconhecendo que a “ (…) dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis [constituem] o fundamento da liberdade, da Justiça e da paz no mundo; (…) que é essencial a protecção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, a revolta contra a tirania e opressão (…); (…) que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla“ [50].
A Declaração Universal dos Direitos do Homem tornou-se o bastião máximo da dignidade da pessoa humana e visava garantir a liberdade, a igualdade, a Justiça, o progresso e a paz no mundo, independentemente, de considerações de sexo, raça, nacionalidade, religião ou estatuto económico e social.[51] Para além disso, alicerça-se no princípio de que o Homem nasce livre e igual entre os seus, munido de direitos e obrigações que fazem parte da sua personalidade e que, quando violado o respeito universal e efectivo destes direitos e das suas liberdades fundamentais, toda a pessoa tem o direito a recurso efectivo para as jurisdições competentes[52] podendo, inclusive, “ (…) beneficiar de asilo em outros países”.[53] Todavia, a OIR não logrou com êxito os seus objectivos, principalmente, porque os deslocados e refugiados continuavam a proliferar pela Europa e os Estados, rapidamente, e constataram que esta questão dos refugiados não era um fenómeno temporário do pós-guerra. Era um fenómeno com causas endógenas e exógenas muito mais abrangentes, pelo que, a inexistência de leis uniformes globais para a questão dos refugiados, de instituições e sistemas capazes, agudizava os Estados face à sua incapacidade de pôr termo a este fenómeno. O ponto de viragem dá-se a 1 de Janeiro de 1951 quando a Assembleia-geral das Nações Unidas institui, como seu órgão subsidiário[54], o Alto – Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) [55]/[56]. Consequentemente, a OIR cessa oficialmente funções em Fevereiro de 1952.
O Alto Comissariado das Nações Unidas “ [terá] um carácter totalmente apolítico; será humanitário e social e, como regra geral, estará relacionado com grupos e categorias de refugiados”[57]. A sua função primordial seria, por um lado, proporcionar protecção internacional para os refugiados por via da reinstalação ou do repatriamento; por outro lado, reintegrar, no seio de novas comunidades nacionais, os 1,2 milhões de refugiados existentes na Europa.
Perante este cenário, a Comunidade Internacional consciencializa-se de que as acções humanitárias, desconexas entre si, eram incapazes de resolver por si só a problemática dos refugiados. Sendo esta também uma questão política, havia que envidar esforços na procura de soluções duradouras para os problemas das deslocações humanas e dos refugiados em geral. Soluções estas que não podiam passar apenas por acções humanitárias, mas também por acções de carácter político-legislativo, sob pena de “[administrarmos] apenas o sofrimento”.[58] Deste modo, em 1951, é adoptada a Convenção das Nações Unidas relativas ao Estatuto dos Refugiados. Para além deste diploma, muitos outros aprofundamentos legislativos da Declaração Universal dos Direitos do Homem foram emanados, pois a opinião pública europeia e os países, em particular, estavam cientes de que nenhum ser humano gostava ou escolhia ser refugiado. Ninguém gostava de viver no exílio ou de depender de outras pessoas para a satisfação das suas necessidades básicas, pelo que cabia aos políticos uma vigorosa acção política. Assim, em 1952, é fundado o Comité Intergovernamental para as Migrações Europeias que veio mais tarde, a dar origem, à Organização Internacional para as Migrações. Esta tinha como objectivo prestar assistência na movimentação dos deslocados e refugiados da Europa para os países ultramarinos. Em 1954, é criado o Fundo das Nações Unidas para Refugiados (UNREF) e, nos anos seguintes, muitos outros instrumentos internacionais foram criados. De uma forma directa ou indirecta, todos abordavam a problemática dos refugiados, reforçando, em geral, os direitos dos estrangeiros, em especial dos refugiados e do homem em particular. Estes instrumentos internacionais centravam sempre os seus alicerces na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
V. A Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados
Existe uma ligação lógica entre a salvaguarda dos Direitos Humanos e a protecção dos refugiados, apesar dos Estados terem demonstrado com frequência, ao longo da história, a falta de interesse político na resolução destes problemas.
Após a Segunda Guerra Mundial, reaparece na Europa o fenómeno das deslocações forçadas que tiveram como causas primordiais as sistemáticas violações dos direitos humanos. Estas englobavam perseguições individuais e/ou em massa e resultavam da pobreza extrema, da discriminação social, racial, étnica, religiosa e política de determinados grupos sociais.
A Convenção de Genebra de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados, aparece como forma de suprimir uma lacuna jurídica existente, pois não estavam fixados os critérios a ter em consideração, aquando da atribuição do estatuto de refugiado. Para além disso, na génese desta Convenção, pesou também a pressão da Comunidade Internacional em pôr termo a este fenómeno caótico de êxodo populacional que assolava a Europa, bem como, a pressão para encontrar soluções plausíveis de controlo para deslocações massivas e incontroláveis. Por outro lado, havia também a necessidade de criar um novo instrumento jurídico que abrangesse, na sua plenitude, a definição do estatuto dos refugiados e a necessidade premente em “[rever] e codificar os acordos internacionais anteriores relativos ao estatuto dos refugiados[59], assim como, alargar a aplicação daqueles instrumentos e a protecção que estes [constituíam] para os refugiados (…) ”[60].
A Comunidade Internacional e os Estados Europeus, paulatinamente, foram reiterando e alicerçando-se nos princípios humanistas proclamados pela Carta das Nações Unidas e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Deste modo, reconheciam “[que] os seres humanos, sem distinção, [deviam] desfrutar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (…) ”[61]. Por conseguinte, começavam a dar especial ênfase ao carácter social e humanitário do problema dos refugiados e, aos poucos, foram exprimindo o desejo de que os Estados fizessem tudo o que estivesse ao seu alcance, a fim de evitar que este problema se tornasse causa de tensão entre os mesmos.
De facto, como vimos, com o fim da Segunda Guerra Mundial, ao contrário do que se poderia esperar, o problema dos deslocados e dos refugiados na Europa agudizou-se, assumindo formas diversas face à incapacidade premente das organizações humanitárias em conduzir o problema dos refugiados ao seu termo. Viver em segurança, em paz e sem medo na sua terra de origem, embora se tratasse de um direito humano fundamental, tornar-se-ia um sonho impossível de almejar para milhões e milhões de pessoas. Desta forma, a 28 de Julho de 1951, em Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários, as Altas Partes contratantes assinam a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, que entrou em vigor a 21 de Abril de 1954. A presente Convenção pretendeu acabar com os habituais acordos internacionais pontuais de resolução de situações específicas dos refugiados em cada momento e, ainda, acabar com a desorganização e com a arbitrariedade que prevalecia na Comunidade Internacional, quanto à caracterização, à definição e aos procedimentos a utilizar na definição dos parâmetros gerais de refugiados. Razão pela qual se optou por um instrumento único, contendo a definição geral das pessoas que poderiam e deveriam ser consideradas como refugiados. A Convenção de Genebra surge, deste modo, como um instrumento jurídico internacional, mas vital para o fenómeno dos deslocados e refugiados, pois, pela primeira vez na história europeia e mundial, é juridicamente definido o conceito de “refugiado”[62]/[63]. Este apresenta-se como sendo alguém fora do seu próprio país e que não pode regressar devido a um receio fundado de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas e pertença a um grupo social. Isto significa que as pessoas deslocadas dentro do seu país não estão cobertas nos termos da definição jurídica internacional de “refugiados”.
Neste momento, convém realçar alguns aspectos doutrinários, distinguindo os refugiados do Instituto de asilo. A noção de refugiado [64]pretende incluir, de facto, no seu conteúdo, tanto aqueles que preenchem os requisitos do artigo 1º-A da Convenção de Genebra, como aquelas pessoas que, não preenchendo estes requisitos, se viram obrigadas a abandonar o seu país, vítimas de violências sistemáticas e generalizadas dos mais elementares direitos humanos e que perderam a protecção do seu Estado de origem, buscando presentemente protecção noutro Estado.
Carlier é apologista de que a noção de asilo não pode nem deve ser confundida com a de refúgio, dado que
“(…) La persona que responde a las condiciones de la noción de refugiado no por ello recibe automáticamente el asilo. El asilo continúa siendo un privilegio de los Estados si bien la noción de un derecho individual al asilo se va desarrollando. Al contrario, también es posible que un Estado decida asilar a una persona que no responda a la definición de refugiado”[65].
A conceptualização jurídica do termo refugiado, assim como a definição dos parâmetros gerais das pessoas que podiam enquadrar-se no âmbito desta definição, contribuíram para afastar a interligação que se tendia em manter entre o refugiado e o grupo, a nacionalidade, a etnia em que, porventura, estes mesmos refugiados estavam inseridos. Serviu também para solidificar a teoria defendida por Carlier de que o refúgio e o asilo são institutos distintos, pois não se trata apenas de preencher os requisitos da definição de refugiados, mas é necessário também que os Estados queiram reconhecer esta situação. Melhor dizendo, é necessário que o Estado queira enquadrar as situações específicas dos requerentes de asilo no âmbito da definição de refugiado. A definição do termo “refugiado” contribuiu para uma mudança de política, pois os Estados passaram a identificar os refugiados, não pelo grupo ou situação em que estavam inseridos, mas através da análise das condições específicas e individuais de cada um dos requerentes de asilo.
A Convenção trouxe também consigo uma limitação temporal. O termo «refugiado» aplicar-se-á a qualquer pessoa, “ (…) [que] tenha sido considerada [refugiado] em aplicação dos arranjos de 12 de Maio de 1926 e de 30 de Junho de 1928, ou em aplicação das Convenções de 28 de Outubro de 1933 e de 10 de Fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de Setembro de 1939, ou ainda em aplicação da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados, (…) ou [que], em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, (…) se [encontrem] fora do país de que tem a nacionalidade e não [possam] ou, em virtude daquele receio, não [queiram] pedir a protecção daquele país (…) ”[66]. Os Estados contratantes podiam, todavia, no momento da assinatura, ratificação ou adesão da Convenção, dar o alcance que pretendiam atribuir a estes «acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951», abrangendo, deste modo, única e exclusivamente os acontecimentos ocorridos na Europa ou fora desta. A Convenção deixará de ser aplicada às situações excepcionais referidas nas alíneas A) e B) do artigo 1º, da presente Convenção, quando por v.g., as pessoas abrangidas por estas disposições, voluntariamente, tiverem (…) [pedido] a protecção do país de que têm a nacionalidade; ou, (…) tendo perdido a nacionalidade, e a [tiverem] recuperado voluntariamente; ou [adquirem] nova nacionalidade e [gozem] da protecção (…), deste país; ou [voltem] voluntariamente a instalar-se no país que [deixaram] (…); ou [tenham] deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foram consideradas refugiadas (…).
Não seria de todo aplicável a Convenção de Genebra quando, “ (…) [as] pessoas (…) [beneficiassem] de protecção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não [fosse] o Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados “; ou quando “ (…) as autoridades competentes do país no qual [estabeleceram] residência [considerarem] com os direitos e obrigações adstritos à posse da nacionalidade desse país, e finalmente quando, “ [existirem] razões ponderosas para pensar, (…) [que] cometeram (…) [crimes] contra a paz, guerra ou Humanidade (…); e ou, [que] cometeram (…) [graves] [crimes] de direito comum fora do país que deu guarida, antes de (…) serem aceites como refugiados (…); e ou praticaram actos contrários aos objectivos e princípios das Nações Unidas.” [67]
A Convenção de Genebra reconhece que a ajuda aos refugiados não deve ser simplesmente uma questão de caridade internacional ou de benefício político, visto que estas pessoas, que se enquadram na definição de refugiados, devem beneficiar de certos direitos e deveres, devendo também acatar as leis e regulamentos dos países onde se encontram. Os refugiados, não devendo ser discriminados nos seus direitos por causa da raça, religião ou país de origem, devem gozar de tratamento favorável no que diz respeito à prática religiosa e devem beneficiar do regime de reciprocidade relativamente aos estrangeiros em geral e, em especial, na aquisição de propriedade mobiliária e imobiliária. Para além disso, devem usufruir de outros direitos como os direitos associativos de acesso aos tribunais, às profissões assalariadas, não assalariadas e liberais; os direitos de bem-estar, de alojamento, de educação pública, assistência pública, legislação de trabalho e segurança social, auxílio administrativo, liberdade de circulação, de acesso aos documentos de identificação e de viagem, de encargos fiscais, entre outros. Estando isentos de medidas excepcionais aplicadas em razão da nacionalidade, podem, todavia, estar sujeitos a medidas provisórias aplicadas em tempo de guerra ou noutras circunstâncias graves e excepcionais, mas indispensáveis à segurança nacional, etc. Esta Convenção representa uma quebra assinalável do estatocentrismo absoluto na concessão do estatuto de refugiados, devendo respeitar, presentemente, os critérios, os objectivos e as normas básicas para o tratamento dos refugiados decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais[68] podendo, no entanto, conceder-lhes um tratamento mais favorável. Deste modo, é crucial, neste momento, distinguir o “Estatuto de Refugiado” do “Estatuto de Asilado”. Assim, toda a pessoa que reúna e preencha os requisitos do artigo 1º da Convenção de Genebra, de 1951, relativa ao Estatuto de Refugiado, poderá requerer o seu pedido de asilo, alegando, para o efeito, a sua condição de refugiado. Se os Estados, após a análise do pedido de asilo, considerarem que o requerente reúne requisitos fixados no artigo 1º da Convenção de Genebra poderão, caso assim o entendam, conferir o Estatuto de Refugiado e, consequentemente, conceder o Direito de Asilo.
No que diz respeito à política de asilo, é de salientar que a Convenção de Genebra, relativa ao Estatuto de Refugiado, não trouxe directamente grandes novidades, apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 asseverar o direito do indivíduo de procurar e de beneficiar de asilo. [69] Na prática, a simples sensação dos Estados perderem um direito soberano de conceder ou não a entrada nos seus territórios levou com que, mesmo os Estados que redigiram a Convenção relativa aos Estatutos dos Refugiados, não estivessem preparados para reconhecer o direito incondicional ao asilo, previsto nesta Declaração Universal dos Direitos do Homem. Razão pela qual, os Estados contratantes da presente Convenção tentavam a todo custo preservar este mesmo direito como um direito do Estado e não como um direito do indivíduo.[70] Desta forma, a Convenção de Genebra, relativa ao Estatuto dos Refugiados, contribuiu com um aflorar de princípios fundamentais a ter em consideração na concessão do instituto de asilo, como por exemplo, os Estados podem ou devem conceder asilo nas situações que preencham ou enquadram a definição de refugiados prevista no artigo 1º da presente Convenção. Apesar da Convenção de Genebra estipular, como já referimos, alguns direitos civis dos refugiados[71] não contém, todavia, qualquer menção ao Instituto de “ Direito de Asilo”, excepto no preâmbulo onde refere “ (…) que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos excepcionalmente pesados para alguns países e que a solução satisfatória dos problemas de que a Organização das Nações Unidas [reconhecem] o alcance e carácter internacionais não pode, nesta hipótese, obter-se sem uma solidariedade internacional.”
Prevalece no seio da Comunidade Internacional a ideia de que o refugiado é sinónimo de encargos avolumados para os Estados. Ainda não se conseguiu generalizar no seio desta Comunidade Internacional a ideia de que o refugiado é sinónimo de violação dos Direitos Humanos e, consequentemente de ajuda internacional. No entanto, uma das disposições-chave desta Convenção foi o estabelecimento de obrigações para os Estados contratantes, sendo o princípio de “ Non-Refoulement” o mais importante, pois segundo o qual os países de asilo se obrigam a não “ (…) [expulsar] ou [repelir] um refugiado, seja de que maneira for para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”[72]/[73]. Para além disso, os Estados contratantes obrigam-se “ (…) a cooperar com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ou com qualquer outra instituição das Nações Unidas que lhe suceda (…) ”[74], no intuito de melhor correlacionarem esforços na resolução desta problemática dos refugiados.
O espírito crítico obriga-nos, todavia, a realçar alguns aspectos negativos desta Convenção de Genebra. Um deles é a adopção de um critério restritivo do termo refugiado, valorizando como fundamento único para a concessão do estatuto de refugiado os direitos civis e políticos, ignorando por completo os direitos económicos, sociais e culturais. Outro é a indeterminação dos pressupostos de atribuição do estatuto de refugiado “receio”, “receio fundado” e “perseguição” que contribuem para uma prática desigual de atribuição deste Estatuto no seio da Europa e no Mundo. Finalmente e, não menos importante, o facto de a definição de refugiado, contida na Convenção de 1951, se limitar apenas às pessoas que se tornaram refugiados em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 Janeiro de 1951. Os Estados contratantes, ao limitarem a definição de refugiado às pessoas que se tornaram refugiados em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 Janeiro de 1951, definitivamente, esqueceram-se de muitas outras situações que, embora preenchessem os requisitos, não lhes eram concedidos o Estatuto de Refugiados. Mormente, se compreenda esta limitação geográfica em 1951, uma vez que surge para remediar as situações catastróficas de êxodo populacional, ocorridas na altura da II Guerra Mundial no território Europeu. Todavia, esta limitação geográfico-temporal facilmente deixa de fazer sentido nos finais dos anos sessenta, dado o leque variado de condicionalismos de êxodo populacional que surge no contexto europeu e na Comunidade Internacional.[75] Como tal, houve a necessidade de alterar esta cláusula geográfico-temporal restritiva, dado que “ (…) surgiram novas situações de refugiados (…) e era desejável que todos os refugiados, abrangidos na definição da Convenção de 1951, pudessem gozar de igual estatuto independentemente do prazo de 1 de Janeiro de 1951”[76]. Daí ter sido elaborado e apresentado à Assembleia-geral das Nações Unidas[77], em 1966, um Protocolo Adicional à Convenção relativa ao estatuto dos refugiados .[78]
A génese deste Protocolo Adicional à Convenção, relativa ao Estatuto dos Refugiados, reside no facto da Convenção de Genebra de 1951 conter uma limitação geográfica-temporal, apenas “ (…) [cobria] aquelas pessoas que se tornaram refugiadas em resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951”[79]. Todavia, como já vimos, o problema dos refugiados é demasiado complexo e não se compadece com nenhuma limitação geográfico-temporal. Pressupondo-se que os refugiados não têm rosto, não têm idade, não têm época para o ser, este é um fenómeno em constante mutação devido a vários condicionalismos políticos, sociais, económicos ou de outra qualquer natureza que afecte integralmente os mais elementares direitos humanos. E porque nos finais dos anos sessenta “ (…) surgiram novas situações de refugiados (…) que [não podiam] cair no âmbito da Convenção de [Genebra, apesar de ser] desejável que todos os refugiados abrangidos na definição da Convenção, independentemente do prazo de 1 de Janeiro de 1951, [pudessem] gozar de igual estatuto.”[80]
A 31 de Janeiro de 1967, é assinado o Protocolo de Nova Iorque. Os Estados aderentes acordaram estender o âmbito de aplicação a todos[81] comprometendo-se a aplicar as disposições fundamentais da Convenção de 1951 (artigos 2º a 34º da Convenção de 1951) a todos os refugiados, sem restrição temporal. Mais, “ (…) obrigam-se a cooperar com o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (…) [facilitando] o desempenho do seu dever de vigilância da aplicação das disposições do presente Protocolo, (…) [neste sentido] obrigam-se [a fazer relatórios e] a fornecer-lhes as informações e dados estatísticos (…) [referentes] à condição de refugiados; à aplicação do presente Protocolo; [e às] leis, regulamentos e decretos que são ou possam vir a ser aplicáveis em relação aos refugiados”[82]. Estes relatórios são de uma importância crucial, pois contribuirão, aos poucos, para o estudo e análise da problemática dos refugiados. Ainda que o Protocolo de Nova Iorque esteja ligado à Convenção de Genebra, conserva um carácter próprio e é um instrumento jurídico independente, pelo que a adesão pura e simples ao Protocolo de Nova Iorque é suficiente para que a maior parte das disposições da Convenção de Genebra se tornem aplicáveis aos Estados aderentes. Contudo, muitos foram os Estados que preferiram ratificar a Convenção e o Protocolo reforçando, deste modo, a autoridade destes dois instrumentos de Direito Internacional relativos aos refugiados e os únicos de carácter universal. Mormente alguns Estados, como por exemplo, os Estados Unidos, optassem apenas por ratificar o Protocolo, sem nunca terem assinado nem ratificado a Convenção de 1951.
Para concluir, temos que referir que o Direito dos Refugiados é, hoje em dia, um Direito não estático, mas em plena evolução.[83] Exige uma sensibilidade especial por parte dos Estados de acolhimento, pois é difícil, por vezes, distinguir as pessoas que efectivamente se enquadram dentro do espírito da Convenção de Genebra e do seu Protocolo de Nova Iorque das que fogem única e exclusivamente por motivos económicos. Para além disso, satisfeitas as necessidades imediatas dos refugiados, outras surgem exigindo o mesmo empenhamento ou talvez mais dos Estados de acolhimento, como por v.g., o repatriamento voluntário; a integração no país de asilo e a reinstalação num segundo país de asilo. Para além disso, há a definição do conceito de “ campos de refugiados”, a sua humanização, os princípios a levar em consideração e, ainda, os apoios subjacentes a uma estrutura desta natureza.
Não basta afirmar que determinadas pessoas reúnem os requisitos previstos no artigo 1º, da Convenção de Genebra para que lhe seja atribuído o estatuto jurídico de refugiado. É necessário mais, muito mais, como por exemplo a reinstalação em campos de refugiados humanizados onde a protecção e a assistência seja facultada de forma segura até ao regresso ou reinstalação noutro lugar. Os refugiados não devem ser reinstalados em campos, pela simples razão de ser mais fácil para o Estado de acolhimento controlá-los facilitando, deste modo, o seu repatriamento. Devem-se encontrar medidas alternativas, para que estes não sejam vigiados, controlados ou discriminados no país de acolhimento, possibilitando a sua reintegração na sociedade de acolhimento.
A Convenção de Genebra de 1951 e o Protocolo Adicional de Nova Iorque de 1967, apesar de não facultarem orientações específicas aos Estados quanto aos padrões de recepção que deverão providenciar aos requerentes de asilo, regem-se segundo os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
VI. O contributo do Conselho da Europa na problemática dos refugiados
Com o termo da Segunda Guerra Mundial (1945)[84], os governos dos Estados Europeus deparam-se com uma incógnita: o que fazer com esta Europa dilacerada? Qual o caminho a seguir para emergir a Europa da caótica situação em que se encontrava?
A palavra de ordem passa a ser “Construir a Europa” e, consequentemente, vários foram os movimentos, associações e organizações que floresceram em prol desta nova Europa.[85] Em 1947, foi constituído um Comité Internacional de Coordenação dos Movimentos para a Unidade Europeia com o intuito de aglutinar todas estas sinergias num único Congresso que se realizou em Haia de 7 a 10 de Maio de 1947. Este tinha como objectivo traçar o rumo e o futuro desta nova Europa. Este Congresso teve o mérito de, apesar das divergências doutrinárias que prevaleciam sobre o caminho a seguir, encontrar um consenso objectivado na sua “Moção Final” que (…) constituiu um indiscutível êxito, na medida em que se conseguira alcançar um hábil compromisso entre as diversas correntes de opinião. Os congressistas decidiram a criação de um «Comité para a Europa Unida» sob cuja égide a maior parte dos movimentos pró-europeus acabaria, em 1948, por se federar no seio do «Movimento Europeu».”[86]
As divergências doutrinárias referidas e, que permaneciam no seio dos congressistas de Haia, eram essencialmente duas: a corrente pragmática ou funcionalista e a corrente federalista. Os seguidores da primeira defendiam que a Europa só se ergueria novamente se houvesse uma cooperação institucional progressiva entre os vários Estados europeus, em vários domínios, mas principalmente a nível militar, económico e político. Todavia, não haveria perda das soberanias nacionais.
Os defensores da segunda corrente acreditavam no diálogo e numa relação de complementaridade entre os poderes locais, regionais, nacionais e europeus. Reiteravam que a Europa só se poderia erguer novamente, através de uma cooperação institucional efectiva entre os Estados, com transferência gradual de poderes para entidade supranacional e com perca parcial de soberanias nacionais dos Estados aderentes, de forma a criar um embrião federal que daria origem ao Estados Unidos da Europa.
A opinião pública Ocidental estava já, nesta altura, consciencializada de que a Europa se iria desenvolver em duas frentes, quer por via da cooperação entre os Estados, quer por via da integração. Mormente, hoje, se estas duas correntes convergem, não é de mais sublinhar que, há cinquenta e tal anos atrás, no período pós Segunda Guerra Mundial, houvesse de facto divergências doutrinárias significativas no caminho a seguir para o futuro da Europa.
Convém sublinhar ainda que essas fases não foram e não são compartimentos históricos distintos, estancados no tempo. Estas foram sendo desenvolvidas e postas em prática na Europa no mesmo período e quase em simultâneo, pelo que, às vezes, é difícil dissociar no tempo os vários eventos que se foram desenrolando na construção europeia ocidental.
Por uma questão de sistematização organizativa do presente estudo, incidiremos a presente análise única e exclusivamente na cooperação política, por estar mais intimamente ligada a questões de direitos humanos e, consequentemente, mais conectada com a problemática do asilo.
Na sequência do Congresso de Haia de 1948 e da sua Moção Final (a 5 de Maio de 1949), no Palácio de St. James em Londres, é assinado por dez países[87] a Convenção de Londres, que institui o Conselho da Europa[88]/[89]/[90]. O Conselho da Europa é uma organização de cariz intergovernamental com objectivos específicos de defesa da democracia, dos direitos fundamentais da pessoa humana, dos valores universais partilhados pelas Partes e do primado do Direito, aliás como previsto no artigo 1º do Tratado fundador[91]. O Conselho da Europa não se limitou apenas a criar laços de amizade, desempenhou sobretudo, um papel-chave no reconhecimento da democracia e dos direitos humanos fundamentais. Na sua essência, o Conselho da Europa não é mais do que uma organização de cooperação internacional e um grande Fórum de discussão política, onde se reafirma o respeito pelo princípio da lei, da liberdade individual e da liberdade política. Para além disso, traçam-se, aí, as directivas a seguir nesta Europa que se pretende alargada, mas restrita e delimitada à Europa Ocidental. Não é mais do que uma aliança em prol da democracia e da salvaguarda nos direitos humanos, “ (…) através de um enquadramento institucional internacional que pudesse influir no desenvolvimento das sociedades da Europa”.[92] Tendo em conta as expectativas, inicialmente, criadas em torno desta organização, temos que admitir, que os resultados foram modestos, apesar de alguns protocolos e convenções de crucial importância terem sido negociados e concluídos no seu seio. Temos o exemplo da negociação de protocolos e convenções no domínio político, de livre circulação de pessoas, no domínio de ensino, a nível social, entre outros.[93] Contudo, para a opinião pública europeia, a Convenção mais visível foi, sem sombra de dúvida, a assinatura da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[94]/[95], cuja salvaguarda, aplicação e interpretação foram confiados ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O Conselho da Europa passa a ser, deste modo, a única organização internacional a dispor de um sistema jurisdicional independente capaz de vigiar e salvaguardar a protecção dos Direitos Humanos. Sendo assim, é de imprescindível importância referir o contributo prestado pelo Conselho da Europa no desenvolvimento da nossa temática de estudo. Uma vez que um dos objectivos fundamentais, proposto no Estatuto do Conselho da Europa, no seu artigo 3º, capítulo II, é de que “ (…) [todos] os Membros do Conselho da Europa reconhecem o princípio do primado do Direito e o princípio em virtude do qual qualquer pessoa colocada sob a sua jurisdição deve gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, comprometendo-se a colaborar sincera e activamente na prossecução do objectivo definido (…).”
Eis, porque o Conselho da Europa, desde a sua criação, [96] se vem preocupando com a protecção dos Direitos Humanos, tentando resolver os problemas dos refugiados em geral e de asilo em particular. Aliás, a protecção e a promoção dos direitos do homem sustentam toda a acção do Conselho da Europa. Deste modo, a 4 de Novembro de 1950, reunidos em Roma, os ministros de quinze países europeus, membros do Conselho da Europa, acordaram em cooperar politicamente e assinam a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e, posteriormente, os seus 11 protocolos adicionais. Esta Convenção constitui um marco na evolução do Direito Internacional, com um alcance sem precedentes,[97]ao instituir um sistema original de protecção internacional dos Direitos do Homem, proporcionando aos particulares a possibilidade de apresentar petições individuais para salvaguarda e respeito dos seus direitos. Deste modo, “ [o] Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos Direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos”[98]
A adopção desta Convenção coincide com o aumento significativo de um número de refugiados e pedidos de asilo recebidos pelos Estados-membros do Conselho da Europa[99]. Apesar de, não ter nenhuma referência explícita ao Direito de Asilo, aflora um conjunto de princípios conexos com este instituto “(…) [reafirmando] o seu profundo apego a estas liberdades fundamentais, que constituem as verdadeiras bases da Justiça e da paz no mundo e cuja preservação repousa essencialmente, por um lado, num regime político verdadeiramente democrático, e, por outro, numa convenção comum e no comum respeito dos direitos do homem.”[100] Todavia, face a este aumento significativo de refugiados, de imigrantes, de deslocados e de requerentes de asilo, os Estados-membros do Conselho da Europa começam por adoptar um conjunto de medidas para controlar e restringir a entrada no seu território. Estes tentam a todo custo proteger as suas fronteiras da imigração não desejada, todavia, defrontam-se com um grave problema: como diferenciar as reais motivações dos requerentes de asilo, face ao fluxo misto do êxodo populacional. Muitos dos migrantes abandonam o seu país por questões políticas, questões económicas, sociais, contudo, nem todos reúnem os parâmetros para serem considerados refugiados, apesar de, todos eles terem um denominador-comum, anseiam melhores condições de vida. Perante esta mistura de motivações, muitos Estados adoptam políticas restritivas de acesso ao seu território a fim de evitarem o abuso generalizado do instituto de asilo, bem como, para escamotearem às obrigações legais internacionais no que concerne à protecção dos refugiados e do Homem em geral. Tendo em conta este cenário de motivações mistas de acesso ao território da Europa Ocidental, cumpre-nos realçar o artigo 2º e 3 do Protocolo nº4, [101] da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, que vem garantir e tutelar a liberdade de circulação das pessoas que se “ [encontrem] em situação regular em território de um Estado tem direito a nele circular livremente e a escolher a sua residência (…), é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio (…), [todavia] o exercício destes direitos não [podem] ser objecto de outras restrições senão as (…) necessárias a segurança nacional, segurança pública e manutenção de ordem pública (…) ”. Nenhum nacional poderá ser expulso do seu país ou proibido de entrar[102], assim como os estrangeiros que se encontrem em situação regular no território de um dado Estado.
O artigo 4º, do referido Protocolo, proíbe ainda as expulsões colectivas de estrangeiros e o artigo 1º do Protocolo n.º 7 [103] contém uma série de garantias processuais devendo ser aplicadas aos casos de expulsão de estrangeiros residindo legalmente no Estado em causa. Garantias processuais essas que se traduzem em alguns princípios fundamentais, nomeadamente: a) Só podem ser expulsos por decisão judicial em conformidade com a lei. Pelo que, a expulsão de um requerente de asilo sem decisão judicial que recaía sobre o seu pedido poderá fazer com que este corra sério risco de vida. Deste modo, a Jurisprudência que se tem desenvolvido no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em torno desta problemática de expulsão de cidadãos estrangeiros, tem considerado que, muito embora, o direito de asilo não esteja previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem nos seus Protocolos Adicionais, a decisão de expulsão de um requerente de asilo pode levantar um problema sério à luz do artigo 3º da Convenção, se existirem fundamentos para acreditar que o requerente corre sério risco de tortura, tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes com a concretização desta decisão[104]; b) Deve, por conseguinte, o estrangeiro ter a possibilidade de fazer valer as razões que militam contra a sua expulsão; fazer examinar o seu caso; fazer-se representar, para esse fim, perante a autoridade competente ou perante uma ou várias pessoas designadas por essa autoridade; c) Finalmente, em caso de expulsão, tem direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, querendo isso significar que tem o direito de fazer examinar o seu processo por uma jurisdição superior. O estrangeiro pode, ainda, beneficiar nos termos do n.º 3 do artigo 6º, desta Convenção, de assistência gratuita de intérprete em processo penal.
Como podemos verificar, face ao aumento exponencial de imigrantes e ao fluxo de refugiados e de deslocados, após Segunda Guerra Mundial, os Estados-membros do Conselho da Europa tiveram necessidade de estabelecer uma imensa rede de tratados e acordos que salvaguardassem os mais elementares direitos humanos. No desenvolvimento desta política, a 13 de Dezembro de 1957, é assinado o Acordo Europeu sobre o regime de circulação de pessoas entre os países membros do Conselho da Europa. Os membros do Conselho da Europa “ (…) desejosos de facilitar a deslocação das pessoas entre os seus países, acordam [que] os naturais das Partes Contratantes, qualquer que seja o país da sua residência, poderão entrar no território das demais Partes e dele sair por qualquer fronteira desde que portadores de documentos [válidos] ” [105], como por v.g. o passaporte válido ou o bilhete de identidade. Como se pode constatar, este acordo foi o embrião do Acordo Schengen, pois visava, essencialmente, reconhecer a obrigação de facilitar aos nacionais dos Estados contratantes do Conselho da Europa, qualquer que seja o seu país de residência, a entrada em qualquer território de qualquer outro Estado contratante, e a possibilidade de o abandonar quando o bem entender. Nesse mesmo período, é assinada em Paris a Convenção Europeia de Extradição [106] os Estados Contratantes são obrigados, aí, a entregar, reciprocamente, as pessoas perseguidas em resultado de uma infracção ou procuradas por decisão judicial, excluindo-se a possibilidade de extradição quando haja razões sérias para se crer que, a mesma, poderá pôr em causa a vida do extraditado [107]. Esta Convenção tinha como objecto criar regras uniformes em matéria de extradição. Dois anos mais tarde, a 20 de Abril de 1959, é assinada no seio do Conselho da Europa, o Acordo Europeu relativo à supressão de vistos para os refugiados.[108] Este acordo visa possibilitar aos refugiados “(…) com residência regular no território de uma das Partes Contratantes, [a faculdade de circular livremente] em regime de reciprocidade, [com dispensa] das formalidades de visto para entrarem no território das outras Partes Contratantes e dele saírem para as suas fronteiras (…)”[109], desde que sejam titulares de título de viagem válido e que a duração da sua estada seja inferior ou igual a três meses.
A 26 de Setembro de 1961, a Assembleia Consultiva do Conselho da Europa aprova uma recomendação (293) onde propõe a inclusão, no segundo Protocolo da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Humanos[110], de um artigo específico sobre o Direito de Asilo[111].
“Considerando que é tradição nos Estados – Membros conceder asilo aos refugiados políticos e julgando que é agora conveniente sancionar juridicamente esta prática, tanto mais que, para os refugiados políticos, o gozo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais pode depender da concessão do direito de asilo;
Considerando que é desejável, na medida em que seja compatível com a salvaguarda dos seus legítimos interesses, que os Estados-Membros confiram a estas pessoas o direito de procurar asilo, de receber asilo e de beneficiar de asilo; “[112]
Como se vê, esta recomendação refere-se somente à possibilidade de almejar o asilo, e de o desfrutar, nos mesmos moldes do artigo 14º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Desta forma, propõe até um projecto do artigo referente ao Direito de Asilo a incluir no segundo Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.[113]
Passados quatro anos, a 1 de Outubro de 1965, é aprovada uma nova recomendação a (434) sobre a “Aplicação do Direito de Asilo aos Refugiados Europeus”. A 29 de Junho de 1967, o Comité de Ministros do Conselho da Europa aprova a Resolução (14) sobre o “Asilo a pessoas em perigo de perseguição”, a qual propõe que os Estados actuem com o espírito humanitário e liberal em relação às pessoas que busquem asilo nos seus territórios devendo, para tal, respeitar sempre o princípio do “Non – Refoulement”.
A 26 de Janeiro de 1970, é aprovada uma outra Resolução (70) sobre a “ Aquisição pelos refugiados da nacionalidade do seu país de residência”. A 22 de Dezembro de 1975, a Assembleia Parlamentar adopta uma interessante comunicação sobre a elaboração de um Acordo relativo à transferência de responsabilidade para os refugiados que atravessam legalmente um Estado-membro do Conselho da Europa para outro Estado. Esta comunicação deu lugar, a 16 de Setembro de 1976, a uma recomendação (775) que, posteriormente, veio dar lugar à Convenção Europeia sobre a transferência de responsabilidade, no que respeita a refugiados. Em 1980, é assinado o Acordo Europeu sobre a Transferência de Responsabilidades relativa a Refugiados [114]. Deste modo, os Estados-membros do Conselho da Europa pretendem melhorar a situação dos refugiados atendendo, em particular, ao caso daqueles que mudem de residência e se estabeleçam com carácter de permanência no território de uma outra Parte Contratante. Os Estados-membros decidem assim regular entre si, pela primeira vez, esta matéria de forma uniforme e acordam que “ [a] transferência de responsabilidade tem-se por verificada no fim de um período de 2 anos de efectiva e ininterrupta permanência no segundo Estado consentido pelas autoridades deste, ou antes, se o segundo Estado permitiu a estada do refugiado no seu território, quer a título permanente, quer por um período que exceda a validade do título de viagem”[115] . Em 1984, é adoptada uma outra Recomendação sobre a Protecção de Pessoas que satisfazem o critério da Convenção de Genebra, não sendo formalmente refugiados. Para além destas, muitas outras recomendações ou resoluções foram adoptadas pelo Conselho da Europa. Todavia, podemos considerar que a mais importante, em matéria de asilo, foi a Recomendação (787) que institui a harmonização em matéria de elegibilidade em conformidade com a Convenção de Genebra de 1951 e com Protocolo de 1967, relativa ao Estatuto de refugiados. Nesta medida, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa,
“ [considerando] que, embora o estatuto de refugiado tenha por base as disposições de diversas convenções internacionais, a elegibilidade para este estatuto é determinada, em casos semelhantes, de acordo com os procedimentos muito diferenciados existentes no vários Estados;
Constando que nem todos os Estados europeus, partes nesses instrumentos, estabeleceram um procedimento oficial para análise dos pedidos, e que os procedimentos nacionais que foram instituídos não seguem um sistema único;
[Preocupados] com a enorme variação das taxas de reconhecimento de Estado para Estado, resultante da adopção de critérios diferentes e, em parte, de decisões fundamentadas numa informação insuficiente;
Registando que o Estatuto de refugiado concedido num Estado não é necessariamente reconhecido nos outros Estados – Signatários das mesmas convenções e que uma maior uniformidade em matéria de elegibilidade favoreceria esse reconhecimento mútuo”[116]
acorda em recomendar, ao Comité de Ministros, a criação “ (…) de um comité ad hoc de peritos responsáveis pela análise dos meios mais apropriados para atingir [a médio prazo os objectivos na área de cooperação jurídica, no que concerne a política], de harmonização em matéria de elegibilidade, [bem como sugerem a elaboração de estudos] novos trabalhos sobre as questões jurídicas relativas aos refugiados”[117]. Na prática, esta recomendação visa estabelecer critérios idênticos para a elegibilidade do Estatuto de Refugiado.
Como se pode verificar, através do preâmbulo desta recomendação, é também defendido uma vez mais, no seio dos Estados-membros do Conselho da Europa, uma uniformização de critérios em detrimento de uma harmonização. Neste caso específico defende-se a uniformização em matéria de elegibilidade do estatuto de refugiado, dado que “(…) nem todos os Estados europeus, partes nesses instrumentos, estabeleceram um procedimento oficial para análise dos pedidos, e os procedimentos nacionais que foram instituídos não seguem um sistema oficial”.[118] No nosso entender, isto deve-se ao facto de que os Estados-membros do Conselho da Europa foram, progressivamente, tomando consciência de que as políticas de harmonização por si só não resolviam determinados problemas, pois, por vezes, continuavam a existir procedimentos muito diferenciados entre os diversos Estados, o que na prática dificultava a própria harmonização de determinadas políticas.
Para concluirmos, podemos afirmar que, no que se refere ao objecto do nosso estudo, o Conselho da Europa é um fórum intergovernamental de importância vital. O Conselho da Europa atingiu resultados notáveis no que concerne a defesa dos direitos do homem, sobretudo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Para além disso, é pertinente referir que este mesmo Conselho não se ficou, apenas por, este documento, instituiu, ainda, diversos órgãos de controlo e instituições de salvaguarda desta legalidade. Assim, temos: a Comissão Europeia dos Direitos do Homem[119], com a incumbência de examinar previamente os pedidos apresentados pelos Estados ou por um particular; o Comité dos Ministros, órgão guardião desta Convenção que tem um poder autónomo de decisão e um poder de resolução política do diferendo nas situações em que determinada questão não tenha sido remetida para o Tribunal. Temos, ainda, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem[120], órgão jurisdicional por excelência, ao qual a Comissão e os Estados-membros podem recorrer. Todavia, esta tripolaridade de órgãos jurisdicionais não favorecia a celeridade processual, face ao avolumar de casos, pelo que se impunha uma reforma urgente dos mecanismos de controlo jurisdicionais. Desta forma, a Convenção é alterada pelo Protocolo n.º 11, que entrou em vigor a 1 de Novembro de 1998. Este elimina os anteriores órgãos coadjuvantes do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nomeadamente a Comissão e o Comité de Ministros, mantendo apenas o órgão jurisdicional por excelência, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Resta-me afirmar que o Conselho da Europa desempenhou uma missão vital na defesa dos Direitos Humanos que, infelizmente, se mantém actual e necessária. Pois, enquanto os Estados não se consciencializarem da importância do Homem, enquanto Homem, o seu papel será sempre fundamental.
VII. Conclusão
A conjuntura geopolítica depois dos trágicos atentados de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, 11 de Março de 2005, em Espanha e a 21 de Julho de 2005, em Londres mudou, drasticamente, no que concerne ao objecto do nosso estudo. O espectro do terrorismo fez com que, a Comunidade Internacional olhasse com suspeita e desconfiança, para os refugiados, requerentes de asilo, deslocados, e os imigrantes em geral. Sobretudo, se estes provinham de determinadas áreas geográficas (Ásia/Africa) e/ ou professassem determinados credos religiosos (Muçulmanos). A concessão do estatuto de refugiado passou a ser mais selectiva, restritiva, e burocrática, em nome de uma “suposta” segurança nacional. A Comunidade Internacional, rapidamente, diagnosticou entre si uma amnésia colectiva relativa à protecção dos Direitos Humanos quando, subitamente, feridos no seu cordão umbilical (Pais/Estado/Nação). Depressa, esqueceram-se do princípio da não discriminação[121] plasmado na Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiados (1951). Depressa, esqueceram-se que, a própria Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiado, distingue, habilmente, refugiados dos terroristas, “ [as] disposições desta Convenção não serão aplicáveis às pessoas acerca das quais existam razões ponderosas para pensar: (a) Que cometeram um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a Humanidade, segundo o significado dos instrumentos internacionais elaborados para prever disposições relativas a esses crimes; (b) Que cometeram um grave crime de direito comum fora do país que deu guarida, antes de neste serem aceites como refugiados; (c) Que praticaram actos contrários aos objectivos e princípios das Nações Unidas.”[122]
Deste modo, podemos qualificar actos de terrorismo, aqueles que constituem uma grave ameaça aos valores democráticos, à paz e segurança internacional, motivados muitas vezes, pela intolerância e/ou pelo extremismo. Desde 1937[123], que o terrorismo é uma preocupação da Comunidade Internacional, e desde então, muitos outros instrumentos legais de carácter universal, sob a égide das Nações Unidas foram adoptados, com intuito de prevenir e repelir o terrorismo Internacional.[124] Mais, recentemente, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, na sua 4385ª sessão, a 28 de Setembro de 2001, adoptou a Resolução nº 1373, relativa à ameaça à paz e segurança internacionais causada por actos de terrorismo. Assim,
“- Reafirmando igualmente a sua condenação inequívoca dos ataques terroristas ocorridos em Nova Iorque, Washington, D.C. e na Pensilvânia, em 11 de Setembro de 2001, e manifestando a sua determinação de prevenir todos os actos desse tipo,
– Instando os Estados a trabalharem urgentemente em conjunto para prevenir e reprimir os actos de terrorismo, nomeadamente através do aumento da cooperação e do pleno cumprimento das convenções internacionais respeitantes ao terrorismo,
– Reconhecendo a necessidade de os Estados complementarem a cooperação internacional através da adopção de medidas adicionais para prevenir e reprimir nos seus territórios, por todos os meios lícitos, o financiamento e a preparação de quaisquer actos de terrorismo,
Agindo ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas,
2- Decide igualmente que todos os Estados:
c) Recusem conceder refúgio àqueles que financiam, planeiam, apoiam ou praticam actos de terrorismo ou que proporcionam refúgio aos seus autores;
3- Exorta todos os Estados a:
f) A adoptar, em conformidade com as disposições pertinentes do direito nacional e internacional, incluindo as normas internacionais relativas aos direitos humanos, as medidas adequadas para se assegurar, antes da concessão do estatuto de refugiado, que o requerente do estatuto de refugiado não planeou, nem facilitou a prática actos de terrorismo nem dela participou;
g) A assegurar, em conformidade com o direito internacional, que o estatuto de refugiado não seja abusivamente utilizado pelos autores de actos de terrorismo, nem pelos que planeiam ou facilitam tais actos e que não seja reconhecida a reivindicação de motivos políticos como fundamento de recusa dos pedidos de extradição de presumíveis terroristas.”[125]
As alíneas c) do nº 2, e f) e g) do nº 3 da presente resolução, nº 1373 das Nações Unidas são sintomáticas de que, a Comunidade Internacional, ainda, não conseguiu diferenciar o refugiado de o terrorista, pois, se estes, “ (…) financiam, planeiam, apoiam ou praticam actos de terrorismo ou proporcionam refúgio aos seus autores”, as disposições da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiado, ao abrigo da alínea f) do artigo 1º, nunca se aplicariam. Em face do exposto, somos da opinião que compete aos Estados/Comunidade Internacional, observar, analisar e dissecar o legado histórico do Instituto de Asilo. Para o efeito, nada melhor do que perceber a evolução histórica do Direito de Asilo no Direito Internacional[126]. Indubitavelmente, perceberão que as questões relativas aos refugiados, aos requerentes de asilo, aos imigrantes e aos deslocados são fenómenos transversais e cíclicos, da História da Humanidade. Não são fenómenos passados, nem futuros. São, perpetuamente, fenómenos presentes. Precipitadamente, compreenderão que os refugiados não têm rosto, idade, etnia, época e/ ou origem, estes podem provir de qualquer parte do mundo, desde que, haja um atentado aos mais elementares Direitos Humanos.
Sejam estes (atentados/violações/perseguições) perpetuados por agentes estatais e/ou por não estatais. Espontaneamente, conseguirão diferenciar um terrorista de um refugiado, tendo apenas, como premissa que o terrorista[127] visa causar o terror e vive para o terror. Enquanto que, o refugiado vive a angústia do terror, da fome, da insegurança, das perseguições políticas, da guerra, da injustiça racial e religiosa, em suma, a angústia sistemática de violações dos Direitos Humanos. Facilmente, compreenderão, que por vezes são (originários/provêm), precisamente, dessas zonas geográficas hoje fiscalizadas à lupa, onde os atentados aos mais elementares direitos humanos ocorrem com maior veemência. Indubitavelmente, compreenderão, como afirmou Zygmunt Bauman[128], “ (…), cada vez más, los refugiados se encuentran entre dos fuegos, o, más exactamente, doblemente atenazados. Son expulsados a la fuerza o se les mete miedo para que dejen su país natal, pero se les niega la entrada en otro país. No cambian de lugar; pierden su lugar en la tierra, son proyectados a ninguna parte, a un desierto que es por definición un terreno inhabitado, una tierra llena de resentimiento frente a los humanos y en la que raramente permanecen.” Depressa, compreenderão que os refugiados de hoje são “Los Nuevos [Globalizados] Intocables”[129] do século XXI.
Doutorando em Direito na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), Assistente na Universidade dos Açores, Departamento de Economia e Gestão
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