Resumo: Considerando a dinâmica observada na conceituação da bioética e sua proeminência na sociedade atual, o presente trabalho, inicialmente, realiza uma breve retrospectiva sobre a transformação da sociedade ao longo dos séculos, e, conseqüentemente, sobre o surgimento de novos ramos do conhecimento científico. Diante disso, oferece uma distinção entre direito, moral e ética, como forma de viabilizar a aproximação de uma definição de biodireito e bioética, tema central do presente estudo. Por último, ressalta a importância da utilização da bioética e do biodireito na solução de conflitos de interesses que envolvem os chamados “direitos da atualidade”, tudo isso visando oferecer uma melhor guarida à sociedade atual, e, sobretudo, a garantia de proteção dos direitos fundamentais do cidadão.
Palavras chaves: interdisciplinaridade, ética; moral; direito, bioética; biodireito.
Abstract: Considering the dynamics observed in bioethics conceptualization and its projection at the current society, this work, initially, provides a retrospective on the transformation of society over the centuries and, consequently on the emergence of new branches of scientific knowledge. Besides, offers a distinction between law, morality and ethics as a way to make the approximation of a definition of biolaw and bioethics, central theme of this study. Finally, emphasizes the importance of the use of bioethics and biolaw in the solution of conflicts of interest involving the so-called “actuality society law”, all aimed at providing better protection for the current society, and particularly to guarantee the protection of fundamental rights for the citizen.
Key words: Interdisciplinarity; ethics; moral; law; bioethics; biolaw;
INTRODUÇÃO
Vivemos hoje em um contexto marcado ao extremo por relações de consumo. Os elevados índices de violência e o absoluto descrédito à espécie humana nos faz crer que enfrentamos, já há algum tempo, uma verdadeira crise de valores.
Infelizmente, é justamente neste contexto atual de crise e contradições, que a sociedade contemporânea vem, cada vez mais, gerando novos avanços científicos e tecnológicos, inclusive inaugurando novas áreas de conhecimento, produção e consumo, como por exemplo, o das Biociências e suas aplicações, as denominadas Biotecnologias.
No seio destas indagações preocupações e discussões que a ética vem à tona, representando o elemento necessário a tomada de posição do homem diante de si mesmo, e, sobretudo, diante da natureza que o cerca.
Se fizermos uma retrospectiva, poderemos atribuir, dentre outros fatores, a Revolução Industrial, fenômeno social ocorrido no continente Europeu, iniciado na Inglaterra, durante o século XVIII, a ocorrência de toda a transformação social que o mundo presenciou e que perdura até os dias atuais.
Desde então, os homens passaram a utilizar os recursos naturais, em larga escala, como matéria prima de suas atividades transformadoras. A sociedade, que anteriormente se caracterizava por ser quase que integralmente sustentada pela economia agrícola e manufatura artesanal, evoluiu a uma sociedade erigida sobre a produção industrial.
A ORIGEM DAS PREOCUPAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS BIOÉTICOS
Durante o processo evolutivo, o homem, elemento de toda transformação, não demonstrou grandes preocupações com a preservação da natureza, usurpando-a de todas as formas. Sua única intenção era alcançar o máximo lucro em suas atividades industriais. Passado algum tempo, especificamente em finais da década de 60, atrelado ao intenso desenvolvimento das ciências biológicas e humanas daquela época, começou a surgir uma enorme preocupação global com a possibilidade de esgotamento dos bens naturais, acompanhado de uma admirável inquietação com as questões morais.
A propósito, pode-se relacionar a conscientização com a possibilidade de esgotamento dos bens naturais ao desenvolvimento das ciências biológicas, porque essa foi, exatamente, a época em que o homem deslumbrado com o desenvolvimento das práticas biológicas e tecnológicas intensificou suas pesquisas, motivado pela possibilidade do mapeamento genético e, posteriormente, encantado com a probabilidade de desvendar os mistérios da vida e da ciência, com o surgimento do Projeto Genoma Humano[1].
Todo esse desenvolvimento gerou uma imensa preocupação mundial com o esgotamento dos recursos naturais e se manifestou em todos os segmentos do pensamento humano, sejam eles: cientistas, antropólogos, sociólogos, psicólogos, religiosos, juristas, entre outros segmentos. Mobilizados, em busca de mecanismos para frear a constante degradação da qualidade ambiental, causada pela grande quantidade de resíduo vertido no ambiente natural, gerado pelos processos químico-biológicos de produção nas atividades industriais.
No mundo globalizado em que vivemos atualmente, toda essa transformação representou uma fase importantíssima, momento de transição para um período interdisciplinar para as ciências do conhecimento, sobretudo as jurídicas, onde passou a imperar uma reforma das estruturas do pensamento, buscando a reconstruir uma sociedade com uma completa cognição social, para que o homem possa ser considerado, simultaneamente, um ser biológico, cultural, psicológico e principalmente, social.
A REGULAÇÃO DA DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS
A consciência ecológica nacional foi coroada com a promulgação da Constituição Federal de 1.988, que reservou seu Capítulo VI, especificamente, ao Meio Ambiente, fato inédito na história jurídica brasileira. Assim, pela primeira vez em todo o ordenamento jurídico pátrio, o meio ambiente recebeu a atenção do legislador originário, que, no artigo 225 da Carta Magna de 1.988, impôs não apenas aos entes de Direito Público, como também às pessoas físicas e às pessoas jurídicas de Direito Privado, a obrigação de defender e preservar o patrimônio natural de nosso país[2].
A disciplina em nossa Carta Magna de um capítulo especial dedicado à preocupação com o meio ambiente demonstrou uma notável atenção ao Direito Ambiental brasileiro e um enorme progresso, conforme se denota da admissão do parágrafo 3º do citado artigo que regula, inclusive, a obrigação do agente de recompor o do meio ambiente quando condutas e atividades a este lesivas alterarem suas características originais que resulte em degradação da qualidade ambiental, além das demais sanções administrativas e criminais cabíveis[3].
Além da inovação constitucional, o legislador ordinário igualmente se incomodou com a degradação do meio ambiente, fazendo com que normas infraconstitucionais surgissem visando sua proteção e recuperação dos danos ambientais[4].
A conseqüência dessa evolução do pensamento jurídico foi um afastamento das concepções individualistas (privativas) arraigadas nas constituições anteriores, oferecendo um lugar de destaque às relações coletivas, as quais contribuíram para o aumento da preocupação com o meio ambiente, dando origem aos chamados interesses difusos, principalmente com o surgimento dos direitos de terceira geração[5], além de ter sido o espaço fecundo para o surgimento da bioética, disciplina que tem como tema central a ética aplicada à vida.
TUDO O QUE É TECNOLOGICAMENTE POSSÍVEL É, TAMBÉM, ÉTICA E JURIDICAMENTE ACEITO?
Que a resposta para essa indagação é um categórico não, isso não há dúvidas, mas para justificarmos essa negativa resulta necessário aprofundarmos nossos estudos em três termos que se correlacionam. São eles: Biotecnologia, Biodireito e Bioética.
A ciência e a tecnologia são duas atividades que se inter relacionam com nosso cotidiano e se encontram em constante evolução. A ciência está associada à ânsia do saber humano, ou seja, ao desejo de compreender, explicar ou prever fenômenos naturais. A tecnologia, por sua vez, decorre de outro anseio: o de encontrar novas e melhores maneiras de satisfazer as necessidades humanas, usando para isso conhecimentos, ferramentas, recursos naturais e energia.
Diante disso, podemos dizer que a Biotecnologia representa o conjunto de métodos aplicáveis às atividades que associam a complexidade dos organismos e seus derivados, conciliadas às constantes inovações tecnológicas, visando prover bens e assegurar serviços.
Por outro lado, não há condições de nos aproximarmos de uma possível definição de Biodireito, sem antes abordarmos, ainda que de forma breve, o Direito como ciência.
“O homem não pode viver sem regras, pois o vazio jurídico torna tudo possível”[6].
Precisamos lembrar que compete ao Estado (Poder Legislativo) regular, legislar, criar as normas encontradas na sociedade para que se atinja um equilíbrio, uma paz social, tudo isso pautado em um princípio elementar e constitucionalmente defendido que o da dignidade humana, onde todos conseguem ter uma convivência harmônica na sociedade.
Assim, Biodireito pode ser definido como o ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativa às normas reguladoras da conduta humana, principalmente dos avanços da biologia, da biotecnologia e da medicina, pois as intervenções científicas sobre a pessoa que possam atingir sua vida e integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos[7].
Nas palavras da nobre professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003), resulta importante frisar que o papel do Biodireito não é o “de cercear o desenvolvimento científico, mas, justamente, o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e, como tal, portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados”.
A palavra Bioética foi utilizada pela primeira vez pelo Prof. Van Rensselaer Potter, doutor em bioquímica e pesquisador na área de oncologia da Universidade de Wisconsin/EEUU, em 1970[8], porém, para conseguirmos o exato alcance do termo, resulta indispensável distinguirmos, previamente, moral, direito e ética.
Digo previamente, pois a intenção do presente não é tratar desta questão do ponto de vista teórico, se assim fosse, teríamos que travar estudos filosóficos intermináveis. Nossa intenção se concentra na análise dos términos na perspectiva concreta. Portanto, a primeira noção elementar é entendermos que não estamos tratando de sinônimos, todos os três termos possuem conceitos distintos, ainda que alguns autores não pensem assim.[9]
Tanto o direito como a moral estabelecem regras para uma ação. Porém, as regras estabelecidas pelo direito são regras coercitivas, impostas pela lei e capazes de gerarem uma sanção em função da sua inobservância, já as morais são aquelas que o indivíduo as assume de forma voluntária, sem que haja nenhuma punição legal caso venha a descumpri-las, representadas pelo conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social.
Por sua vez, embora a ética também traga referência com a ação, se dá de um modo distinto. Neste caso, a regra para conduzir determinadas ações, cede lugar às justificativas, as razões, aos motivos para a prática das mesmas, as quais podem ser consideradas boas ou más, aceitas ou reprovadas para a sociedade.
A ética busca justificativas, enquanto a moral e o direito mostram regras.
Se pudéssemos resumir a definição dos três termos, utilizaríamos a resposta das seguintes interrogações: O direito: O que eu devo fazer? A moral: Como devo fazer? E a ética: Porquê eu devo fazer?
Portanto, quando o indivíduo associa uma reflexão aos seus atos e encontra uma justificativa aceitável para as suas ações ele está exercitando a ética.
Da mesma forma, quando um cientista/pesquisador busca uma justificativa admissível para o desenvolvimento de sua pesquisa biotecnológica ou biomédica, está exercitando a bioética. A bioética representa uma grande área interdisciplinar que busca auxiliar na reflexão dos novos problemas que estão, constantemente, sendo apresentados a todos nós, individual e coletivamente.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE BIOÉTICA
Uma reflexão bioética, porém, não é algo que ocorre de maneira individual, pelo contrário, ela não tem limites. Atualmente vivemos situações inéditas de conflitos, vivenciamos problemas que nossos antepassados, por mais instruídos que fossem jamais precisaram se preocupar.
A bioética acontece quando as pessoas expandem suas mentes em suas reflexões, de forma compartilhada, pois ninguém realiza uma reflexão isoladamente, é necessária a participação de outros seguimentos. Daí decorre sua característica interdisciplinar, onde cada indivíduo, fazendo uso de suas experiências pessoais e profissionais, enfoque a bioética e aprofunde a discussão, sobre prismas diferentes.
Resulta de suma importância a identificação do objeto das reflexões bioéticas. Em realidade essas reflexões de desenvolvem em torno da vida e do viver. Aliás, para a bioética, a importância do viver se sobrepõe ao da vida. Isso se dá em virtude de se zelar por uma boa qualidade de vida, o que vem constitucionalmente protegido pelo princípio da dignidade humana, além de confirmar que em razão do progresso alcançado pelas ciências biológicas, hoje temos uma melhora considerável no modo de viver e de morrer da sociedade.
APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE BIOÉTICA
A Bioética tem uma abordagem secular e global, pois dela participam as diferentes visões de profissionais de saúde, filósofos, advogados, sociólogos, administradores, economistas, teólogos e leigos. A perspectiva religiosa, muito associada às questões morais, é apenas uma das visões possíveis, mas não a única. Da mesma forma, é uma abordagem global, pois não considera apenas a relação médico-paciente. A Bioética inclui os processos de tomada de decisão, as relações interpessoais de todos os segmentos e pessoas envolvidas: o paciente, o seu médico, os demais profissionais, a sua família, a comunidade e as demais estruturas sociais e legais[10].
“Bioética é uma ética aplicada que se ocupa do uso correto das novas tecnologias na área das ciências médicas e da solução adequada dos dilemas morais por elas apresentados” (Clotet J., 1995)
“Bioética é uma nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural e que potencializa o senso de humanidade” (Potter V.R., 1998)
Com grande maestria Volnei Garrafa[11] afirma que a conceituação da jovem bioética está em constante evolução, mas podemos balizar uma grande classificação que situa os diversos temas dos quais ela trata: a bioética das situações persistentes, que analisa aqueles temas cotidianos que se referem à vida das pessoas e que persistem teimosamente desde o Velho Testamento: a exclusão social, o racismo, a discriminação da mulher no mercado de trabalho, a eutanásia, o aborto. A bioética das situações emergentes, que se ocupa dos conflitos originados pela contradição verificada entre o progresso biomédico desenfreado dos últimos anos e os limites ou fronteiras da cidadania e dos direitos humanos, como as fecundações assistidas, as doações e transplantes de órgãos e tecidos, o engenheiramento genético de animais e da própria espécie humana e inúmeras outras situações. Nesse sentido, está claro que a bioética não significa apenas uma moral do bem ou do mal, ou um saber acadêmico a ser transmitido e aplicado na realidade concreta, como a medicina ou a biologia: Pela amplitude do objeto com o qual se ocupa, seus verdadeiros fundamentos somente podem ser alcançados através de uma ação multidisciplinar que inclua, além das ciências médicas e biológicas, também a filosofia, o direito, a antropologia, a ciência política, a teologia, a economia[12].
OBJETIVOS DA BIOÉTICA
O RESPEITO E A CONSERVAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA representam os principais objetivos da bioética, motivo pelo qual se multiplicam a cada dia o número de comitês de ética em pesquisa por todo mundo. Aliás, é de suma importância a aprovação de um projeto de pesquisa pelos comitês de bioética, pois comprova a credibilidade da investigação, além de confirmar que vem coordenada por profissionais gabaritados para sua condução.
O comitê de ética em pesquisa é o órgão institucional que tem por objetivo proteger o bem-estar dos indivíduos pesquisados, tratando-os como sujeitos de pesquisa e não como objetos. São constituídos por representantes de diversos seguimentos da sociedade científica, de ambos os sexos, além de pelo menos um representante da comunidade. Dentre outras, tem a função de avaliar os projetos de pesquisas que envolvam a participação de seres humanos e possuem como lema maior a busca pela vida e o melhoramento do viver. [13]
CONCLUSÃO
É inegável que o progresso intelectual (científico e tecnológico) avança mais rapidamente que o progresso moral (ético) e legal. E desse progresso que surge uma grande inquietação e desassossego social em razão, quiçá, do desconhecimento e do desamparo.
No entanto, hoje em dia, a bioética ampliou muito seu espectro de abrangência, refletindo em um grande interesse repentino dos governantes e das mais variadas instituições públicas e privadas, religiosas ou laicas, com relação ao tema.
O assunto é polêmico e está constantemente em pauta, majorado, logicamente nos últimos dias, sobretudo em virtude da recente e muito festejada definição pela constitucionalidade da lei que autoriza o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas no país.[14]
Mas a importância do tema não se dá de forma casual, mas sim devido aos impressionantes resultados obtidos no campo das pesquisas biomédicas e biotecnológicas.
A presteza das conquistas científicas e tecnológicas resultou em enormes controvérsias e discussões morais, exigindo das ciências sociais e filosóficas uma racionalidade repentina para poder suportar as profundas transformações experimentadas pela atual sociedade.
A bioética é, sem sobra de dúvidas, uma ciência que está voltada para o futuro, porém, já alcançando glórias no presente. Por esse motivo, estará em constante transformação, conduzida pelo desenvolvimento da ciência, da tecnologia e, principalmente, pela evolução da sociedade, visando sempre à proteção da dignidade humana.
Por último, é indispensável que as novas leis que venha dispor sobre o desenvolvimento científico e tecnológico sejam cuidadosamente elaboradas, seguindo ditames de caráter moral, sem estagnar as pesquisas científicas, mas, ao mesmo tempo, proporcionando à sociedade uma evolução com responsabilidade, prudência, tolerância e solidariedade.
Doutora em Direito Administrativo e Processual pela Universidade de Barcelona – Espanha.
Professora do curso de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP. Ministra aulas no Programa de Pós Graduação em Biotecnologia da UNESP, na disciplina de Bioética e os Avanços Tecnológicos
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