Bruna Libânia Siqueli¹
Resumo:
A fiscalização trabalhista é um instrumento relevante para a constatação do cumprimento da legislação vigente que se estende desde a norma constitucional instituída pela nossa Carta Magna e pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos recepcionados nos moldes de Emenda Constitucional, até a CLT, NR´s e IN´s do Ministério do Trabalho. A dignidade do trabalhador é o alvo dessa proteção, muitas pessoas no Brasil, brasileiras ou não, laboram em condições inumanas. Este estudo se fundamenta em análises de leis, dados de órgãos oficiais da esfera trabalhista: OIT, MTB, MPT, obras e relatos de profissionais e pesquisadores da área; tendo como objetivo demonstrar a importância do exercício do Auditor em combate a muitos abusos e descumprimentos ainda existentes no mundo do trabalho.
Palavras-chave: Trabalho Escravo; Função do Auditor Fiscal do Trabalho.
Abstract:
Labor inspection is a relevant instrument for verifying compliance with current legislation that extends from the constitutional norm established by our Constitution and by the International Human Rights Treaties received in the form of Constitutional Amendment, until CLT, NR’s e IN’ s of the Ministry of Labor. The dignity of the worker is the target of this protection, many people in Brazil, Brazilians or not, work in inhuman conditions. This study is based on analyzes of laws, data of official bodies of the labor sphere: OIT, MTB, MPT, works and reports of professionals and researchers of the area; with the objective of demonstrating the importance of the exercise of the Auditor in combat to many abuses and noncompliances still existing in the world of work.
Keywords: Slave labor; Role of the Labor Tax Auditor.
Introdução. 1.A escravidão no Brasil. 2.Fiscalização trabalhista no mundo e no Brasil: O papel do AFT – Auditor Fiscal do Trabalho, previsões normativas e diplomas internacionais. 2.1. AFT – O Auditor Fiscal do Trabalho no combate ao trabalho escravo. 3.Combate ao trabalho escravo no meio urbano. Conclusão. Referências.
Muitos defendem que o trabalho escravo contemporâneo foi também consequência da Revolução Industrial, advindo da ganância da acumulação capitalista criada para garantir a expansão de atividades econômicas, cada vez mais com baixo custo, gerando a desumanização do trabalho, retirando de milhares de pessoas, sua dignidade.
Neste sentido é que se verifica a importância do presente trabalho, que tem o condão de reforçar a importância da necessidade de fiscalização trabalhista para o efetivo cumprimento de toda a legislação relacionada, para alcançar os bens tutelados pela Constituição Federal de 1988, em especial o da dignidade da pessoa humana.
Grande ilusão acreditar que a escravidão foi abolida com a Lei Áurea em 1888 no Brasil porque não foi e o mais contrastante é observar a dura realidade que assola milhares de vidas, incluindo as minorias: crianças, mulheres, negros e idosos nesse país. E o pior: isso tudo para atender uma exígua elite que muito mais por poder do que por dinheiro tem a necessidade de produzir em grande escala, riquezas advindas da exploração humana, da degradação das condições de trabalho, colocando em vulnerabilidade determinados grupos sociais que em condições miseráveis tentam sobreviver.
Jessé SOUZA (2017, p. 11) explana bem a ideia abordada como tema deste artigo, em seu livro A Elite do Atraso:
A questão do poder é a questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ela que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é uma mera convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais.[1]
O tema ganhou notoriedade a partir de 1995 com a efetiva criação dentro do Ministério do Trabalho, do GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão do Trabalho Forçado em decorrência de uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por omissão do Estado Brasileiro em descumprimento com as suas obrigações de proteção dos direitos humanos e direitos fundamentais do trabalho pela não observância da saúde e segurança de seus trabalhadores, dentre inúmeros casos, o mais emblemático foi de um trabalhador, na época com 17 anos, que junto com seu companheiro de trabalho fugiu de uma fazenda, no sul do Pará, mas foram encontrados pelos pistoleiros desta e, acertados com tiros de fuzil e em seguida tiveram seus corpos enrolados em uma lona e abandonados em uma estrada. Um deles faleceu, porém, o menor fingiu-se de morto para pedir socorro, embora gravemente ferido, denunciou o caso a Polícia Federal que retornou a fazenda e encontrou mais de sessenta trabalhadores em condições degradantes e ilegais: trabalhando sem remuneração forçadamente com direito de locomoção cerceado. Por fim, o GERTRAF criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, popularmente conhecido como “Móvel” que com a atuação de Auditores Fiscais do Trabalho até 2013 havia realizado mais de 49 mil libertações com resgates em todos os Estados.
O cenário da escravidão no Brasil era grave demais e exigia urgência. Assim, no dia 27 de junho de 1995 – menos de seis meses após assumir o Governo -, o então presidente Fernando Henrique Cardoso decretou a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) [….] Ao seu amigo e conselheiro, confidenciaria que a parte mais pesada do trabalho viria depois, quando os homens e mulheres do Gertraf começasse a rodar o Brasil para libertar escravos, E a equipe que, mais do que qualquer outra, se encarregaria dessa missão seria o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. Ou, simplesmente, a Móvel. (CAVALCANTI, 2015, p. 133-134)[2]
Em seguida, em 2002, o MPT criou o CONAETE – Coordenadoria Regional de Erradicação do Trabalho Escravo que em parceria com o Ministério do Trabalho, com a Polícia Federal e com a Justiça do Trabalho ganharam força e intensificaram as ações em todo o país não só implementando medidas para atacar o problema como também programas de qualificação profissional para inserir os trabalhadores resgatados no mercado de trabalho evitando “a reincidência, transformando a extrema hipossuficiência desses escravizados em uma nova realidade social, efetivamente libertadora”[3].
E claro, não poderia faltar os pesquisadores que reunidos, nacional e internacionalmente, demonstram que o fenômeno de trabalho escravo está presente inclusive em países mais ricos. Como exemplo desses Pesquisadores, temos a UFRJ que criou em 2007, o GPTEC – Grupo de Pesquisas do Trabalho Escravo Contemporâneo.
Daí a importância da compreensão deste evento que se expande com tamanha força e velocidade: estudar as causas do problema para fornecer bases para a atuação política e social visando ampliar os instrumentos de resistências, cada vez maiores, e combater de fato essa prática abusiva que impede o gozo pleno dos direitos sociais e trabalhistas.
Aliado a todo esse contexto têm-se a agravante da atual instabilidade política, que possibilitou a implantação às pressas de uma Reforma Legislativa que se opõe, em sua maioria, a todas as políticas pró-empregado. Foi mal elaborada tecnicamente e não houve oportunidade manifesta do povo e autoridades competentes: Magistrados, Procuradores, Auditores, Pesquisadores e Juristas, além de contrariar diretamente diplomas internacionais, como por exemplo a Convenção 154 da OIT que trata do incentivo à Negociação Coletiva enquanto a Reforma possibilita que a negociação individual prevaleça à lei.
Essa desregulamentação aliada com outras práticas como a diminuição do poder fiscalizatório estatal indica um enorme retrocesso do país à era colonial com a intensificação da exploração humana desconstruindo os direitos humanos dos trabalhadores reforçados pelas decisões jurisdicionais de instâncias superiores que muitas vezes legitimam essa realidade preconceituosa, dissimulada, excludente e perversa.
Em um breve histórico sobre a fiscalização trabalhista no mundo, verifica-se em que os primeiros registros datam de 1890, coincidentemente, durante a Revolução Industrial que obrigou o surgimento de regulamentação das relações trabalhistas que surgiam a todo vapor e que, portanto, exigiam ser monitoradas dada a exploração humana que também se iniciava com consideráveis abusos de desrespeitos aos limites impostos como jornada e descansos, por exemplo.
Com a criação da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial para atender um fenômeno denominado “dumping social” na qual os países mais desenvolvidos queriam penalizar aqueles que adotando o diploma internacional, permitisse a precarização da legislação trabalhista abaixo do mínimo permitido. A real intenção era evitar a concorrência com preços desleais utilizando-se de emprego de mão-de-obra escrava ou a custo muito baixo, como inclusive, ocorre hoje com o trabalho escravo urbano que atende a região do Brás em São Paulo Capital e as grandes confecções que inclusive constam na “lista negra” do Ministério do Trabalho.
E dentre as convenções da OIT, a de no. 81 regulamenta a Fiscalização do Trabalho no âmbito internacional, tendo como as principais funções, as descritas no seu Artigo 3:
1 – O sistema de inspeção estará encarregado de:
2 – Nenhuma outra função que seja encomendada aos inspetores do trabalho deverá dificultar o cumprimento efetivo de suas funções principais ou prejudicar, de forma alguma, a autoridade e imparcialidade que os inspetores necessitam nas suas relações com os empregadores e os trabalhadores.
Já no Brasil, a criação da fiscalização trabalhista acontece apenas no século XX com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e, mais especificamente, a criação da carreira de Auditor Fiscal do Trabalho em 1955 que para atendimento ao Artigo 6 da respectiva Convenção, passou a ser compostas por funcionários públicos admitidos via concurso pois até então tratava-se de cargos em comissão nomeados pelos governos locais para o exercício fiscalizatório.
Curiosamente, a carreira de Auditor Fiscal do Trabalho está atrelada ao Poder Executivo e atualmente é disciplinada pela Lei 10.593/2002, a mesma da do AFRFB – Auditor Fiscal da Receita e embora vise fiscalizar o fiel cumprimento a legislação trabalhista, tem como ponto forte a defesa da dignidade humana, fundamento da nossa CF88 e, pilar de Direitos Humanos ao constituir sua Segunda Geração baseada na igualdade.
Em suma, o AFT zela pela segurança e saúde no trabalho, checa os registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS, constata o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, fiscaliza o cumprimento aos Acordos e Convenções Coletivas, combate o trabalho escravo e as discriminações nas relações de trabalho em defesa das minorias: mulheres, crianças, adolescentes, idosos e portadores de necessidades especiais; algumas delas em consonância com o Ministério Público do Trabalho; verifica a existência de irregularidades e fraudes à legislação, lavra auto de infração na qual se origina o processo administrativo e havendo condenação, aplicação de penalidade pecuniária: multa como prevê a Consolidação das Leis do Trabalho, CLT[4]:
Art. 634 – Na falta de disposição especial, a imposição das multas incumbe às autoridades regionais competentes em matéria de trabalho, na forma estabelecida por este Título.
A autoridade exercida pelo AFT é vinculada e baseia-se no poder de polícia da Administração Pública que visa obrigar e, se necessário, aplicar penalidades se descumpridas as previsões legais, princípio da autoexecutoriedade.
As previsões normativas que amparam o pleno exercício da profissão, além do referido diploma internacional já citado – Convenção 81 da OIT – são:
Art. 21 – Compete à União:
XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;
Art. 114 – Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
Art. 626 – Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comercio, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.
Parágrafo único – Os fiscais dos Institutos de Seguro Social e das entidades paraestatais em geral dependentes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comercio serão competentes para a fiscalização a que se refere o presente artigo, na forma das instruções que forem expedidas pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio.
Art. 1º – O Sistema Federal de Inspeção do Trabalho, a cargo do Ministério do Trabalho e Emprego, tem por finalidade assegurar, em todo o território nacional, a aplicação das disposições legais, incluindo as convenções internacionais ratificadas, os atos e decisões das autoridades competentes e as convenções, acordos e contratos coletivos de trabalho, no que concerne à proteção dos trabalhadores no exercício da atividade laboral.
Destaca-se que o AFT não pode postular judicialmente, obrigação essa das Advocacias Públicas: AGU, Procuradoria Estadual, Procuradoria Municipal que receberão as demandas, quando necessário, bem como o MPT em se tratando de assunto de interesse difuso ou coletivo; tampouco condenar, o que cabe exclusivamente ao Juiz. O máximo que o AFT poderá é criar uma obrigação administrativa através do AI – Auto de Infração, passível de recurso, sob pena de exceder os limites legais.
Feita todas as considerações anteriores, infere-se que a fiscalização subdivide-se em várias áreas devidamente estruturadas internamente no Ministério do Trabalho para atendimento a todas as demandas, mas no geral o AFT tem que assegurar o cumprimento da legislação trabalhista incluindo as Normas Regulamentadoras – NR´s – instituídas para assegurar a manutenção de um ambiente de trabalho saudável e equilibrado, prevenir agravos à saúde do trabalhador bem como a disseminação de doenças ocupacionais que invalidam o trabalhador retirando deste sua dignidade e criando uma série de outros problemas que acabam onerando a sociedade reiteradamente.
Ressalta-se que o trabalho do AFT não é apenas repreender, mas também prevenir, alertar, orientar, garantir socialmente condições civilizatórias mínimas que permitam a sociedade evoluir.
Outro ponto a destacar, não menos importante, é o combate à discriminação e ações afirmativas que visam impedir, bloquear e até punir que haja distinção ou exclusão fundada em escolhas bem como alterar a igualdade de oportunidades, equiparando grupo de pessoas vulneráveis na sociedade por meio de políticas públicas dirigidas e aqui, talvez, esbarre no maior desafio da carreira já que não há um interesse real que isso aconteça afinal para que o poder continue a ser exercido pela minoria, faz-se necessário que haja uma maioria impotente, que não apenas seja, mas principalmente, que se sinta inferiorizada e com isso, desconheçam seus direitos e como alcança-los.
Pode-se afirmar que o Brasil, infelizmente, engatinha em muitas questões básicas, fundamentais como a garantia efetiva do mínimo existencial dos direitos humanos e o acesso democrático e amplo ao sistema jurisdicional célere e eficiente. E quando, isso ocorre, em sua minoria, as soluções são sempre pacíficas, preocupadas excessivamente com as questões políticas e econômicas enquanto as sociais ficam abandonadas. Com isso, esse novelo, alvo de proteção de inúmeras normas está longe de ser elucidado.
Como já visto, dentre as áreas de atuação do AFT, tem uma voltada para combater o trabalho escravo.
Adentrando na legislação vigente, temos previsão legal no Código Penal que define bem o que é um trabalho escravo, norteando a fiscalização do AFT diante de uma situação dessa:
Art. 149 – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Como vimos caracteriza trabalho escravo:
Abaixo alguns trechos extraídos do livro A Dama da Liberdade (CAVALCANTI, 2015) demonstram faticamente a realidade que o Móvel encontra em suas fiscalizações pelo Norte e Nordeste do país:
O Brasil que A Dama da Liberdade apresenta aos brasileiros é um país de contrastes. Nele, fazendeiros são donos de aviões e de propriedades gigantescas – algumas são maiores do que cidades -, mas que não fornecem alojamento nem alimentação decente a seus “peões”, detêm os salários dos agricultores e os obrigam a beber água suja, tirada de córregos da mata. Nesse país que insiste em existir em pleno século 21, surgem espantos de todos os calibres, como crianças de 9, 10, 11 anos que passam até 14 horas labutando debaixo do Sol e um homem que passou 19 anos vivendo e trabalhando numa fazenda, sem nunca tirar férias e recebendo apenas três ou quatro salários por ano. (CAVALCANTI, 2015, p.21)[5]
(…) Todos os 3.126 homens, mulheres e crianças que derramavam seu suor na Usina Cansação estavam trabalhando irregularmente, sem carteira assinada e, portanto, sem nenhum direito trabalhista. (CAVALCANTI, 2015, p. 142)[6]
(…) Uma criança de 12 anos vivia em condições que seriam inadmissíveis até para um adulto. Por uma semana de trabalho, aquele escravo mirim ganhava R$ 12,50. (CAVALCANTI, 2015, p. 145)[7]
Uma recente polêmica foi instaurada com a Portaria MTB 1.129/2017 em que o Ministério do Trabalho alterou a definição de trabalho escravo restringindo o conceito para fins de concessão de seguro desemprego e, também para a inclusão de empregadores na “Lista Suja”, mas foi parcialmente revogada, por violar princípios constitucionais e tratados internacionais celebrados pelo Brasil.
A legislação penal prevê inclusive aumento de pena quando se trata de criança, adolescente ou por motivos discriminatórios.
Têm-se ainda alguns diplomas internacionais a qual o Brasil é signatário que regulamentam o tema, sendo eles:
A doutrina destaca alguns princípios, em sua maioria de Direitos Humanos, lesados no trabalho escravo: _ liberdade: coação, _ dignidade humana: ausência de respeito e vida digna, _ legalidade: afronta todas as normas legais e _ igualdade: situação que cria uma realidade excludente e perversa, oposta a paridade tanto formal que é aquela assegurada pela lei quanto e principalmente, a material: que é a igualdade de fato ao tornar iguais, os desiguais.
Durante as fiscalizações realizadas, os Auditores não precisam se restringir a tipicidade penal conforme descrita no artigo, podendo então ampliar esse conceito no âmbito administrativo, motivo pelo qual foi criada uma orientação administrativa contendo variáveis de situações fáticas a qual poderão se deparar e sendo assim, caracterizar a situação como trabalho escravo.
Outro ponto a destacar é a ação conjunta entre os Órgãos: MTB – Ministério do Trabalho, MPT – Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal, a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal – competência para julgar crimes contra as organizações do trabalho definida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3684-0 – para reforçar as fiscalizações de resgate de milhares de pessoas em condições bem precárias de trabalho dada o risco, a singularidade e a dificuldade da atividade.
Ao constatar a existência de trabalho escravo, cabe ao Ministério do Trabalho: paralisar imediatamente as atividades; resgatar os trabalhadores exigindo de seus empregadores os direitos que lhe são devidos: anotação na CTPS, recolhimento do FGTS, as verbas rescisórias além de emitir o requerimento do Seguro Desemprego e a inserção dos egressos do trabalho escravo no programa federal do Bolsa Família; II) lavratura do Auto de Infração que se desdobrará em uma decisão administrativa que poderá ou não incluir o nome dos empregadores na “lista suja” – para comunicação aos órgãos públicos e instituições financeiras para medidas cabíveis como a não concessão de empréstimos – além de ser encaminhado ao MPT para propor as medidas abaixo explicitadas, podendo resultar em responsabilização nas esferas cível e criminal.
O Ministério Público do Trabalho, MPT poderá agir extrajudicial ou judicialmente. No primeiro âmbito através de denúncias feitas nas Procuradorias Estaduais, Municipais, no próprio MPT ou as recebidas pelo Ministério do Trabalho, na qual o Procurador analisará essas e determinará diligências, se ainda não houve, para constatar as informações denunciadas ou poderá instaurar um inquérito civil para que se inicie as investigações podendo obter dois resultados, sendo o primeiro a ausência dos ilícitos optando por arquivar o procedimento ou se constatada a denúncia, propor o Termo de Ajustamento de Conduta, TAC onde o empregador assume o compromisso, sob pena de multa, a de se adequar a legislação.
Se descumpri-lo, por se tratar de título extrajudicial, o TAC será executado.
Há ainda uma terceira opção: judicializar a demanda que será uma ação civil pública ou coletiva, onde atuará como fiscal da lei emitindo pareceres circunstanciados dado presente, o interesse público, visando a condenação dos responsáveis que por vez, será determinação exclusiva da Justiça Federal. Abaixo um julgado pela Justiça do Trabalho onde o MPT atuou também como fiscal da lei:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO. O conjunto probatório revela que os trabalhadores que prestavam serviços ao Réu não apenas não tinham CTPS assinada, mas também estavam sujeitos a condições absolutamente indignas a qualquer laborista, seja pela inexistência de equipamentos de proteção, primeiros socorros a despeito da atividade desenvolvida estar impressa de possibilidade de lesões, seja pela moradia absolutamente sem estrutura, ausência de água potável, direito à intimidade, seja, ainda, pela formação de truck system configurado na indução do trabalhador a se utilizar de armazéns mantidos pelos empregadores em preço, em regra, superfaturado, inviabilizando a desoneração da dívida. Nesse passo, devem ser julgados procedentes os pedidos afetos a obrigações de fazer e não-fazer, sob pena de multa diária. A indigitada situação deve ser veementemente combatida; considerar o trabalho em condições aviltantes como normal em face das circunstâncias de determinada região do País é transgredir a finalidade ontológica do Judiciário e fazer letra morta a legislação tutelar do trabalho. A dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes pilares do Estado Democrático de Direito. (TRT-10 – RO: 11200481110006 TO 00011-2004-811-10-00-6, Relator: Desembargadora FLÁVIA SIMÕES FALCÃO, Data de Julgamento: 09/12/2004, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/05/2005)[9]
Para reforçar a inibição a tal prática, em 2014, foi promulgada a Emenda Constitucional no. 81 que prevê expressamente a expropriação em propriedades que explorem o trabalho escravo ou cultive ilegalmente plantas psicotrópicas.
A atuação do Ministério do Trabalho através de seus Auditores é um instrumento de grande valia para concretizar essa luta de combate a essa mazela social ainda presente na sociedade. E em conjunto com outros órgãos: MPT, PF e a Justiça sua atuação ganha força efetiva à repressão dessa prática ilegal.
O trabalho escravo contemporâneo ocorre em sua esmagadora maioria, no meio rural, no entanto, com o aquecimento da economia na última década que acelerou crescimento do ramo de construção civil e do comércio nos grandes centros somado a emigração – do campo para a cidade e, à imigração; o país tem aumentado o registro de casos também no meio urbano, onde há concentração de renda com uma disparidade social impactante, especialmente nas seguintes áreas:
O trabalho escravo urbano, diferente do que ocorre no meio rural, não é combatido pelo Móvel, Grupo do Ministério do Trabalho, mas por AFTs designados pelo Superintendente Regional e suas ações também contam com o apoio da PF e do MPT, se os acionarem. E se o assunto é ainda tenro no meio rural com registro efetivo de combate apenas a partir de 1995; no meio urbano, pode-se dizer que é embrionário.
Alguns defendem que a terceirização mascara o trabalho escravo urbano mas há controversas já que para a caracterização deste faz-se necessário atender aos requisitos do art. 149 do Código Penal que é muito mais literal, se comparado à terceirização, ademais pós Reforma. Inadmissível negar que na cidade há infindáveis irregularidades trabalhistas com diversos direitos suprimidos, mas a escravidão é algo inconcebível e arcaico que sequer poderia ainda subsistir, motivo pelo qual merece uma atenção redobrada.
No meio urbano ou rural, é incontestável admitir que o número de casos de trabalho escravo aumentou significativamente assim como a fiscalização que tem se apresentado ostensiva e fortalecida através da parceria entre os órgãos federais, da implantação de políticas públicas e pela mudança na legislação para aumentar a punição dos infratores.
Destaque para a atuação do AFT que foi a primeira carreira a ser designada a combater esse fenômeno no campo e tem sido substancial para fazê-lo na cidade e no material de pesquisa restou bem destacado que embora com atribuições limitadas legalmente, as repercussões obtidas tem sido satisfatorias.
Pelo fato do assunto ter ganhado prestígio recente, não há muita doutrina ou artigos abordando o assunto, se comparado com outros temas, no entanto, nota-se que há muitos levantamentos e estudos a respeito, colhidos por pesquisadores de Direitos Humanos das universidades federais pelo Brasil, que são discutidos em conferências nacionais e estrangeiras, fonte esta de futuros diplomas internacionais como tantos a qual o Brasil é signatário.
Apesar da delonga em iniciar a fiscalização em embate à escravidão, a implementação de políticas públicas necessárias que efetivaram o intento sobreviram de modo vertiginoso remanescendo meramente o fiel cumprimento à lei, pelo Judiciário, sem o intervencionismo político e que o Governo mantenha como causa basilar de suas políticas, essa luta. Do contrário, corre-se o desastroso risco de um imensurável retrocesso social, totalmente oposto aos anseios de toda a sociedade, que aspira consumar com esse abismo sócio econômico que persevera há séculos.
O trabalho escravo contemporâneo muito se difere da escravidão na era colonial. Antigamente: a lei permitia a escravidão; os escravos eram cuidados e alimentados porque refletia em prejuízo se adoecessem ou viessem a óbito, já que eram tidos como bens; era difícil obter um escravo, daí a necessidade do tráfico negreiro; os escravos geralmente eram os indígenas e negros e eram severamente castigados e até assassinados para servir de exemplo aos demais. Hoje: é crime passível de punição, manter alguém para prestar trabalho escravo; as pessoas não possuem valor algum, são exploradas até adoecerem quando são “descartadas” (já que demitidas seriam se recebessem as verbas rescisórias), ou falecerem; dado o cenário econômico e político e principalmente o cenário social de desigualdade e exclusão no Brasil, facilmente se alicia trabalhadores com promessas nunca cumpridas; não importando a idade e tampouco a etnia, são pessoas miseráveis que são severamente castigadas e até assassinadas.
Percebe-se que prevalecem apenas os castigos perversos, o restante muito mudou, a situação se agravou, infelizmente.
O combate ao trabalho escravo é uma luta antiga, mas que vem ganhando espaço e força pela a abertura de consciência social da última década. No entanto há um longo caminho a ser percorrido, inclusive de postura e resgate social.
Ao que tudo indica as pessoas influenciadas pelo discurso midiático de inferioridade em relação ao restante do mundo e da necessidade de se ter dinheiro e poder, mascaram a força que o povo desconhece possuir e, enquanto permanecer nesse estado hipnótico, a elite que hoje domina o país continuará usufruindo dos privilégios conquistados sob a inépcia coletiva.
Contudo, é gratificante colher os resultados dessa união entre as organizações como Ministério do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho e as ONGs como, por exemplo, a CPT – Comissão Pastoral da Terra, que juntas tem colhido excelentes resultados. Incontestável que seria muito mais efetivo se houvesse grande colaboração das autoridades em punir os infratores de fato, se os resgatados fossem reinseridos no mercado de trabalho dignamente com políticas públicas legítimas onde em um primeiro momento: houvesse amparo a esse ser humano e trabalhador que perdeu inclusive a sua identidade, através de capacitação profissional e acompanhamento psicossocial como também e principalmente a oportunidade de um novo emprego digno que lhe devolva sua identidade, sua dignidade e à sociedade um indivíduo saudável e gregário.
Portanto, embora o Brasil ainda seja muito principiante no assunto afinal a escravidão foi abolida há 120 anos e encontra-se ainda presente na atualidade; o Estado não pode recuar no incentivo a essa luta, mas sim, avançar sentido eliminar efetivamente esse tipo de conduta de forma a permitir que todos os seus cidadãos tenham o patamar civilizatório mínimo.
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Organização Internacional do Trabalho. Conferência Internacional do Trabalho. Convenção 105. Abolição do Trabalho Forçado. Brasília, DF: Ratificada em 18 jun. de 1965. Disponível em: < http://www.trtsp.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/ OIT/OIT_105.html>. Acesso em 04 jun. 2018.
Repórter Brasil. Trabalho Escravo Urbano. São Paulo: 13 fev. 2015. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2015/02/13.-fasciculo_trabalho_esc _urb_web01.pdf>. Acesso em 14 ago. 2018.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro, 2017.
TORQUES, Ricardo. Aula16: Auditoria Fiscal do Trabalho e Direitos Humanos. São Paulo, 2014
TRT-10 – Recurso Ordinário: RO 11200481110006 TO 00011 2004-811-10-00-6, Relator: Desembargadora FLÁVIA SIMÕES FALCÃO, DJ: 09/12/2004, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/05/2005.JusBrasil. Acesso em: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/570324113/andamento-do-processo-n-00120-2008-019-10-00-2-ro-24-04-2018-do-trt-10?ref=topic_feed>. Acesso em: 14 ago. 2018.
Bruna Libânia Siqueli[1]
Acadêmica do Programa de Pós-graduação Lato Sensu em “Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Previdenciário” da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS.
[1] E-mail: brunasiqueli@gmail.com
[1] SOUZA, Jessé. A Elite da Escravidão. São Paulo, 2017.
[2] CAVALCANTI, Klester. A Dama da Liberdade – São Paulo: 2015
[3] BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Cartilha do Trabalho Escravo. Brasília, 2011
[4] A competência de aplicar condenação administrativa – multa pecuniária, é atribuição do Superintendente Regional do Trabalho – autoridade -, e não do AFT, conforme artigo citado.
[5] CAVALCANTI, Klester. A Dama da Liberdade – São Paulo: 2015
[6] Idem, ibidem
[7] Idem, ibidem
[8] TORQUES, Ricardo – Aula16: Auditoria Fiscal do Trabalho e Direitos Humanos – São Paulo, 2014
[9] TRT-10 – Recurso Ordinário: RO 11200481110006 TO 00011 2004-811-10-00-6, Relator: Desembargadora FLÁVIA SIMÕES FALCÃO, DJ: 09/12/2004, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/05/2005.JusBrasil. Acesso em: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/570324113/andamento-do-processo-n-00120-2008-019-10-00-2-ro-24-04-2018-do-trt-10?ref=topic_feed>. Acesso em: 14 ago. 2018.
[10] Repórter Brasil. Trabalho Escravo Urbano, São Paulo: 2015.
[11] Idem, ibidem
[12] Repórter Brasil. Trabalho Escravo Urbano, São Paulo: 2015.
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