Resumo: O presente artigo aborda a questão do conflito entre normas de jus cogens (especialmente os Direitos Humanos) e a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro tanto em cortes domésticas quanto em recentes decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, enfatizando-se o paradigmático caso Prefecture of Voiotia v. Germany. Assim, inicialmente se examinará a origem da demanda e seu tratamento nas cortes gregas, com ênfase na diferenciação entre atos de império e de gestão e a prevalência das normas de jus cogens sobre a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro, assim como a chamada exceção de responsabilidade civil. A seguir, será analisado o procedimento perante a Corte Européia de Direitos Humanos, sua decisão e o impacto para o Direito Internacional.
Palavras-chave: jus cogens- imunidade de jurisdição- Direitos Humanos.
Sumário: Introdução; 1 Procedimentos nas Cortes Nacionais Gregas; 1.1 A Origem da Demanda; 1.2. Procedimentos perante a Corte de Primeira Instância de Leivadia; 1.2.1 Atos de Império e Atos de Gestão; 1.2.2 Normas de jus cogens versus Imunidade de Estado estrangeiro; 1.3 Procedimentos perante Areios Pagos; 1.3.1 O instituto da Imunidade de Jurisdição; 1.3.2 A Exceção de Responsabilidade Civil; 1.4 Desdobramentos; 2. Procedimentos Perante a Corte Européia de Direitos Humanos; 2.1 Argumentos das Partes; 2.2 A Decisão da Corte Européia de Direitos Humanos; 2.2.1 Em relação à Grécia; 2.2.2 Em relação à Alemanha; Conclusão; Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A emergência do indivíduo no plano internacional é um fenômeno que, apesar de não tão recente, ganhou notável impulso nas últimas décadas. O cenário internacional, antes ocupado de maneira quase exclusiva pelos Estados soberanos, teve seu panorama alterado com a entrada em cena de novos atores. Esta nova configuração trouxe importantes alterações nos planos político, sociológico e, em especial, no plano jurídico. As demandas Estado-Estado perante os foros competentes são hoje acompanhadas pelo fenômeno da litigância Indivíduo-Estado perante as cortes nacionais que, não habituadas a lidar com tal espécie de conflito, muitas vezes encontram dificuldade em proferir uma decisão satisfatória e condizente com o Direito Internacional.
Um empecilho notório à consecução dos objetivos almejados pelos indivíduos que ingressam com demandas contra os Estados é justamente a imunidade soberana destes, vista como um obstáculo que impediria, em tese, as cortes nacionais de proferirem decisões nestes casos. Fundamentada no tradicional adágio “par in parem non habet imperium”, o instituto da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro apregoa que um ente soberano não pode ser julgado por um igual, devendo, caso consinta, submeter-se à jurisdição de um mecanismo de solução de controvérsias, como, por exemplo, a Corte Internacional de Justiça.
Entretanto, o papel cada vez mais saliente do indivíduo no plano internacional, e a defesa cada vez mais veemente dos direitos humanos, trouxeram significativas alterações neste quadro. A necessidade de defesa de elevados valores da ordem internacional- como a proibição à tortura, ao genocídio, etc. – levaram à construção de bases cada vez mais sólidas para justificar a não-outorga de imunidade de jurisdição a um Estado estrangeiro violador de direitos humanos.
É justamente com este problema que as cortes gregas se depararam no notório caso Prefecture of Voiotia and others v. Federal Republic of Germany, também conhecido como “Caso do Massacre de Distomo”, em referência à vila grega na qual os atos alemães tiveram lugar. Em uma sentença paradigmática e bastante fundamentada no Direto Internacional, as cortes gregas justificaram a não concessão da imunidade de jurisdição à Alemanha, em uma decisão que já inspirou – e deverá inspirar ainda mais – o desenvolvimento de doutrina e jurisprudência condizente com o papel atualmente desempenhado pelo indivíduo em todos os planos, e que será analisada na primeira parte deste trabalho.
Entretanto, particularidades do sistema jurídico grego – assim como pressões políticas – levaram à constituição de uma corte especial para analisar novamente o caso, que acabou tendo, perante esta instância, um desfecho desfavorável para os autores. Inconformados com a decisão, os reclamantes ajuizaram uma demanda perante a Corte Européia de Direitos Humanos, desta vez com Grécia e Alemanha figurando no pólo passivo. Esta decisão será o objeto de exame da segunda parte deste artigo, que tentará demonstrar que, malgrado a atual proeminência da questão do indivíduo como sujeito de direito internacional, muitos obstáculos ainda devem ser ultrapassados para consolidar, de fato, a proteção dos Direitos Humanos na ordem internacional.
1 PROCEDIMENTOS NAS CORTES NACIONAIS GREGAS
A parte inicial deste artigo esboçará um panorama dos acontecimentos que levaram à instauração do litígio, seguido de uma análise do caso perante a o Tribunal de Primeira Instância de Leivadia. Finalmente, abordar-se-á a decisão da Suprema Corte Helênica, Areios Pagos, e as questões por ela levantadas.
1.1 A Origem da Demanda
Em 10 de junho de 1944, tropas alemãs invadiram a vila de Distomo, no distrito grego de Voiotia, como forma de retaliação a uma ofensiva da resistência grega ocorrida no mesmo dia. O ataque alemão a Distomo, cujos habitantes não possuíam qualquer forma de envolvimento com a resistência grega, culminou no assassinato brutal de 218 moradores[1], em sua maioria idosos, mulheres e crianças (RAU, 2005), além da completa destruição de suas propriedades (BARTSCH;EBERLING, 2003). O relato fiel e chocante da ação alemã é trazida pela placa memorial em honra às vítimas, localizada no museu de Distomo:
“Eles mataram os anciãos os homens e mulheres, eles apunhalaram e pisotearam crianças e bebês dentro de seus berços. Eles decapitaram o padre, cortaram os peitos de mulheres jovens–depois de as terem estuprado–e empurravam estes nas bocas desfiguradas dos bebês. O desejo irrestrito para assassinar era aliado a toda forma de apetência de animal e a impulsos completamente imorais. Eles saquearam as casas, ateando fogo nas melhores delas, e destruíram todos os pertences que eles não podiam levar consigo, e mataram os animais. O objeto exclusivo de sua passagem selvagem era a morte e a destruição. Estas descrições curtas são apenas pequenos detalhes de suas exasperantes atividades que duraram menos de uma hora, mas entrarão na história mundial como uma das mais profundas depravações humanas” (DISTOMO MUSEUM).
Como resultado desta série de atrocidades, os sobreviventes perderam seus pais e parentes, mortos de forma cruel pelas SS, e tiveram suas propriedades completamente destruídas, o que lhes trouxe como conseqüência uma série de danos de caráter psicológico e material.
Finalmente, em novembro de 1995, a prefeitura de Voiotia, juntamente com outros indivíduos – sobreviventes, vítimas e seus descendentes- ajuizaram uma ação de indenização contra a Alemanha perante a Corte de 1ª Instância de Leivadia. Na ação, os autores buscavam compensação pelos danos materiais e imateriais sofridos em virtude dos assassinatos e da destruição de suas propriedades (BATENKAS, 1998). A demanda foi encaminhada ao Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, que a rejeitou e a remeteu novamente à embaixada grega, afirmando que a ação atentava contra a soberania alemã (BATENKAS, 1998).
1.2. Procedimentos perante a Corte de Primeira Instância de Leivadia
Ao examinar os fatos e os argumentos trazidos à sua apreciação, o Tribunal de Leivadia desenvolverá sua fundamentação utilizando essencialmente os institutos de Direto Internacional Público, uma realidade pouco comum para uma corte nacional. A decisão deste tribunal é notável em inúmeros aspectos, mas sua característica de destaque é o afastamento da imunidade de Estado, à qual a Alemanha faria jus, em virtude desta ter violado de jus cogens[2].
No julgamento, ocorrido à revelia alemã, a Corte de Primeira Instância declarou possuir jurisdição sobre a matéria em virtude do disposto no código processual grego que, em seu artigo 3º estabelece que à jurisdição das cortes cíveis gregas estão sujeitos gregos e estrangeiros, desde que a corte grega possua jurisdição, exceto os estrangeiros que gozem de imunidade (GAVOUNELI, 1997). Da mesma forma, o artigo 4º do mesmo diploma declara que as cortes investigam proprio motu a ausência de jurisdição, não recebendo a demanda, se for o caso (GAVOUNELI, 1997).
1.2.1 Atos de Império e Atos de Gestão
Ao iniciar a abordagem da questão da imunidade, o Tribunal de Leivadia inicialmente recorda a clássica distinção entre atos de império e atos de gestão, e a hodierna aceitação quase unânime da doutrina restritiva. Cassese (2005, p.100), ao referir-se à questão em sua obra, explica:
“No passado, a imunidade dos Estados estrangeiros era absoluta. Então, gradualmente, no final do século XIX, uma visão restritiva ganhou forma. Vislumbrou-se uma exceção para atos praticados jure gestionis ou jure privatorum, ou seja, realizados por um Estado em sua capacidade privada como uma pessoa jurídica de direito privado.[…] É fato que a tendência adquiriu uma importância crescente após a Primeira Guerra Mundial, particularmente após o aumento da participação das autoridades soviéticas em transações comerciais, uma prática que também se espalhou por todos os Estados modernos.[…] A doutrina atualmente prevalente sustenta que atos jure gestionis, ou seja, transações privadas ou comerciais dos Estados, estão sujeitos à jurisdição estrangeira. Em contraste, atos jure imperi, praticados pelo Estado estrangeiro em sua capacidade como soberano, são imunes”.
A Corte de Primeira Instância de Leivadia afirma que a classificação de atos como sendo de jure imperi ou gestionis é reservada ao Estado-foro, ou seja, cabe ao Estado julgador decidir se, de acordo com os seus critérios, os atos praticados gozam ou não de imunidade. Entretanto, o Tribunal de Leivadia não deixa claro, em sua sentença, que baseia a não concessão de imunidade na distinção entre atos jure imperii/gestionis, preferindo uma abordagem baseada na ilegalidade do ato, decisão que parece mais coerente em se tratando de violações aos direitos humanos. A distinção entre os atos jure imperii ou gestionis não é clara, e este critério pode mostrar-se demasiadamente “rígido e inoperante nos casos de graves crimes internacionais, e a evolução histórica da doutrina restritiva da imunidade coloca em evidência a artificialidade da distinção entre a aplicação da imunidade sobre o fundamento dos atos jure imperii e dos atos jure gestionis.”(REDRESS ORGANIZATION, 2005, p. 28)
Após realizar tais distinções, a Corte passa, como será visto a seguir, a abordar especificamente a questão da oposição entre as normas imperativas de Direito Internacional e o instituto da imunidade soberana.
1.2.2 Normas de jus cogens versus Imunidade de Estado estrangeiro
Em seu notável exercício de aplicação do Direito Internacional, a corte prossegue afirmando que, segundo o art. 43[3] do Regulamento anexo à Convenção da Haia de 1907[4] sobre Leis e Costumes de Guerra em terra, o Estado ocupante de território estrangeiro deve respeitar tanto as leis do território ocupado como as regras de direito internacional sobre beligerância, entre elas o art. 46 do Regulamento da Convenção da Haia, que impõe o respeito a certos direitos como a honra da família, suas vidas e suas propriedades[5]. Tais determinações constituem, no entendimento do Tribunal de Leivadia, normas de jus cogens que teriam sido desrespeitadas pelas forças ocupantes alemãs no massacre de Distomo.
Portanto, a Corte assevera que a violação de normas de jus cogens pela Alemanha significa, na prática, que este Estado não pode invocar sua imunidade de jurisdição, tendo implicitamente declinado tal prerrogativa ao cometer as violações alegadas pelas vítimas gregas[6]. Segundo a Corte, esta exceção emana da decisão do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, que consagrou a inaplicabilidade do direito à imunidade para atos que sejam proibidos pelo direito internacional (GAVOUNELI, 1997, p. 599), fundamentando-se em alguns pressupostos elencados a seguir.
Primeiramente, a Corte alega que um Estado violador de normas de jus cogens não poderia invocar imunidade de jurisdição, pois teria tacitamente renunciado a ela, e garante também que atos do Estado que violem normas de jus cogens não possuem características de atos de soberania, não usufruindo, desta forma, do privilégio de imunidade (BATENKAS, 1998, p. 767). Portanto, mesmo que tais atos tenham sido perpetrados pelas forças-armadas alemãs, eles não poderiam ser considerados como exercício de soberania estatal- e assim protegidos pela imunidade de jurisdição- pois o fato de atentarem contra normas de jus cogens os descaracterizaria.
Este argumento de que um Estado que infringe normas imperativas de direito internacional renuncia implicitamente à imunidade de jurisdição à qual ordinariamente faria jus foi esboçado inicialmente como uma “proposta de interpretação evolutiva” (GAUDREAU, 2005, p. 27) do artigo 1605 (a)(1) do Foreign Sovereign Immunities Act de 1976[7], estatuto dos Estados Unidos da América que regula a concessão de imunidade perante as cortes nacionais americanas. Trazendo a outorga de imunidade como regra, o estatuto prevê algumas exceções, entre elas a do supracitado artigo, que estatui que um Estado estrangeiro não será imune à jurisdição das cortes dos Estados Unidos quando este Estado tiver renunciado à sua imunidade de maneira explícita ou implícita. Em 1989, Belsky, Merva e Roth-Arrianza (1989, p. 394) propuseram que
“A existência de um sistema de regras que os Estados não podem violar significa que, quando um Estado age violando tal regra, o ato não é reconhecido como soberano. Quando o ato de um Estado não é mais reconhecido como soberano, o Estado não tem mais direito a invocar a defesa da imunidade soberana. Portanto, ao reconhecer um grupo de normas imperativas, os Estados estão implicitamente consentindo em renunciar à imunidade quando eles violarem uma destas normas.”
Propondo a inclusão das chamadas “constructive waivers by operation of international Law” entre as hipóteses de negativa de outorga de imunidade a um Estado estrangeiro do FSIA, os autores consagraram a teoria da renúncia implícita. É importante ressaltar que, constatando-se que a gênese da teoria restritiva fundamenta-se no estatuto americano, “o Tribunal de Leivadia transpôs uma etapa suplementar ao aplicar a mesma teoria além dos limites de qualquer sujeição estatutária” (GAUDREAU, 2005, p. 29), consagrando o argumento da renúncia tácita em um país sem legislação específica sobre o tema.
A Corte de Leivadia concluiu, igualmente inspirada na decisão de Nuremberg, que os atos contrários às normas de jus cogens são nulos, não podendo, conseqüentemente, serem fonte de direitos ou privilégios (BATENKAS, 1998). Assim, o privilégio da imunidade de jurisdição geralmente conferido aos Estados soberanos não poderia originar-se de uma violação grave de normas imperativas de direito internacional, como no caso em tela. O argumento baseado no princípio de direito ex injuria non oritur jus[8] possui algumas incongruências na presente demanda, visto que, conforme salientado por Gaudreau (2005, p. 56), a nulidade é a sanção normalmente reservada aos atos jurídicos, “e não aos fatos e situações criados pelos Estados”. Além disso, a aplicação tradicional do princípio visa impedir a convalidação de um ato ilícito frente ao direito internacional, e não significa, como sustentado pelo Tribunal de Leivadia, que um Estado não possa se beneficiar de direitos que lhe seriam normalmente reconhecidos, não tendo o instituto da imunidade o condão de tornar lícita uma violação de direitos humanos pelo mero fato de sua outorga ao Estado estrangeiro (GAUDREAU, 2005).
A Corte argumenta igualmente que o reconhecimento da imunidade alemã frente à violação de normas de jus cogens equivaleria a contribuir com um ato que é fortemente condenado pela comunidade internacional (BATENKAS,1998). Este raciocínio parece estar baseado no disposto no artigo 41(2) do Projeto de Artigos sobre Responsabilidade dos Estados por Ilícitos Internacionais da Comissão de Direito Internacional[9], que coíbe o reconhecimento, assistência ou manutenção de atos realizados em violação ao direito internacional. Enquanto parte da doutrina crê que a interpretação de que outorga de imunidade a um Estado estrangeiro equivaleria a contribuir com o ato ilícito seria excessivamente extensiva (GAUDREAU, 2005), não sendo razoável supor que a concessão de imunidade significasse um ato de reconhecimento da violação, autores como CAPLAN (2003, p.769) vêem tal cenário como “um passo à frente” da teoria normativa hierárquica.
Prosseguindo em sua fundamentação, o Tribunal de Leivadia declara que a invocação de imunidade por parte do Estado para atos cometidos em violação a uma norma de jus cogens representaria um abuso de direito (BATENKAS, 1998). Embora o argumento de que um Estado invoque sua imunidade apenas com o intuito de prejudicar o indivíduo demandante possa parecer exagerado (GAUDREAU, 2005), a constatação de que, “ao requerer imunidade para encobrir atos praticados em flagrante violação aos direitos humanos, o Estado deixará a vítima sem outro fórum para pleitear justiça” (GAUDREAU, 2005, p. 58), mostra a força deste ponto quando analisa-se a questão sob a ótica do acesso à justiça.
Continuando seu raciocínio, a Corte declara que, uma vez que o princípio da soberania territorial é superior ao da imunidade estatal, um Estado que viola o último através da ocupação ilegal de um território estrangeiro não pode, portanto, fundamentar-se no princípio da imunidade para afastar possíveis demandas concernentes a atos cometidos durante a ocupação ilegal (BATENKAS, 1998).
Finalmente, para fundamentar a sua decisão, a Corte de Leivadia invocou ainda o art. 3º da Convenção de Haia de 1907 sobre Leis e Costumes de Guerra em terra, que estatui que o Estado que viola as determinações contidas no Regulamento anexo (art. 46) deve estar sujeito ao pagamento de compensação, sendo responsável por todos os atos cometidos por integrantes de suas forças-armadas.
Como resultado, a Alemanha foi condenada, à revelia, ao pagamento de uma indenização de aproximadamente 28 milhões de euros pelos abalos psicológicos sofridos pelos autores, uma vez que não restou provado o dano material. Inconformada, a ré apelou da decisão perante a Suprema Corte Helênica, Areios Pagos.
1.3 Procedimentos perante Areios Pagos
Diferentemente da decisão da Corte de Leivadia, a sentença proferida por Areios Pagos, a Suprema Corte Helênica, baseou-se principalmente na existência de uma exceção de responsabilidade civil costumeira que, consagrada no artigo 11 da Convenção Européia sobre Imunidade Estatal de 1972[10], estabeleceria a não concessão de imunidade aos Estados-parte em procedimentos relativos a reparações por danos físicos ou materiais ocorridos no território do Estado-foro se o autor do dano estivesse presente no território quando os fatos ocorreram (GAUDREAU, 2005). Assim, segundo CAPLAN, “o caso é notável por seu avanço na chamada exceção delitual civil à imunidade” (CAPLAN, 2003, p. 779), mas a decisão aborda também outros aspectos, como será visto a seguir.
1.3.1 O instituto da Imunidade de Jurisdição
A Suprema Corte Helênica começa a desenvolver sua fundamentação a partir do artigo 28(1) da Constituição grega, que estatui que uma regra de direito internacional aceita de forma geral pela comunidade internacional integra a ordem legal grega, prevalecendo, portanto, sobre qualquer determinação legal em contrário (GAVOUNELI; BATENKAS, 2001). O instituto da imunidade estatal, de acordo com Areios Pagos, inclui-se neste rol, sendo “conseqüência da soberania, independência e igualdade dos Estados, visando evitar qualquer interferência nas relações internacionais” (GAVOUNELI; BATENKAS, 2001, p. 198). Assim, os tribunais de países monistas, tais como Grécia e Itália[11], têm interpretado a imunidade dos Estados e as normas de jus cogens como regras de direito internacional diretamente incorporadas ao direito interno através das disposições de suas respectivas constituições e, enfrentando duas regras de direito internacional distintas – as normas de jus cogens e a imunidade-, os tribunais têm recusado a outorga de imunidade de Estado em casos relativos às violações de normas de jus cogens em razão de seu valor imperativo no direito internacional (REDRESS ORGANIZATION, 2005).
Retomando a distinção entre acta jure imperii e acta jure gestionis, e a prevalência, na ordem internacional, da conseqüente concessão de imunidade absoluta ou relativa, respectivamente, o Tribunal de Areios Pagos afirma que “a distinção entre atos jure imperii e atos jure gestionis é feita com base na lei do Estado-foro, utilizando o critério básico na natureza do ato realizado pelo Estado estrangeiro, ou seja, se ele envolve ou não o exercício de um poder soberano”(GAVOUNELI; BATENKAS, 2001, p. 199). Fundamentando-se no arrazoado de da Corte de Primeira Instância de Leivadia, o Tribunal de Areios Pagos afirma que os atos cometidos pela Alemanha em território grego não se enquadravam em atos de império, pois eram delitos que violavam normas imperativas de direito internacional. Isto significa dizer que a Alemanha, ao perpetrar tais atos, renunciava tacitamente à imunidade de jurisdição (BARTSCH; EBERLING, 2003).
1.3.2 A Exceção de Responsabilidade Civil
Entretanto, a grande inovação da sentença proferida pelo Tribunal de Areios Pagos com relação à de Leivedia reside, como anteriormente mencionado, na tentativa de configurar a exceção de responsabilidade civil, que requer um nexo territorial entre o delito cometido pelo Estado estrangeiro e o território do Estado-foro para a não-outorga de imunidade, como regra costumeira internacional incorporada, por força do art. 28(1) da Constituição grega, ao ordenamento jurídico deste país. A Suprema Corte baseia-se fundamentalmente no art. 11 da Convenção Européia de Imunidade de Estados de 1972, ratificada pela Alemanha, mas não pela Grécia, que estatui que um Estado não pode alegar imunidade de jurisdição perante a corte de outro Estado em procedimentos de reparação por danos a pessoas, independente de o delito ter sido perpetrado como ato de jure imperii ou gestionis. Esta visão é reforçada pelo art. 12[12] do Projeto de Artigos sobre Imunidade Jurisdicional dos Estados e suas Propriedades de 1991, de autoria da Comissão de Direito Internacional da ONU, que traz previsão semelhante, além do art. 2.2 (e)[13] da Resolução sobre “Problemas Contemporâneos acerca das Imunidade dos Estados em Relação a Questões de Jurisdição e Execução” do Institut de Droit International, sessão da Basiléia de 1991.
Finalmente, após ter confirmado a aplicabilidade da Convenção de 1972 a título de direito internacional costumeiro, o Tribunal “identificou o que percebia como um obstáculo à aplicação da exceção delitual civil neste caso: as atrocidades em questão haviam sido provavelmente cometidas no curso de um conflito armado, uma situação na qual o estado estrangeiro, mesmo como ocupante, geralmente conservaria sua imunidade”(CAPLAN, 2003, p. 770). Assim, a Corte viu-se obrigada a abordar o artigo 31[14] da referida Convenção, que estipula a sua inaplicabilidade em respeito a todo o ato ou omissão das forças armadas de um Estado ou em relação com estes, quando eles se encontrem no território de outro Estado. Com relação a esta exceção, “a Corte rejeita a aplicação do referido artigo recorrendo aos argumentos desenvolvidos pelo Tribunal de Leivadia, baseando-se na natureza imperativa das regras violadas pelos nazistas” (GAUDREAU, 2005, p. 23).
O Tribunal de Areios Pagos ainda analisou a jurisprudência dos Estados Unidos no tema, reportando-se especialmente aos casos Letelier v. Republic of Chile e Liu v. Republic of China[15]. Segundo a Corte, a prática constante nas referidas decisões consagra um costume internacional que restringe a concessão de imunidade estatal nos casos de violações cometidas no território do Estado-foro por pessoas presentes neste território, mesmo que tais atos enquadrem-se na classificação de acta jure imperii.
É interessante notar que a “condição territorial” presente na exceção de responsabilidade civil é, em regra, característica dos tribunais de Common Law[16], sendo que nos países de tradição romano-germânica a regra é que o tribunal determine inicialmente sua competência e examine a questão da imunidade para descartar esta competência inicial (REDRESS ORGANIZATION, 2005). Assim, conforme GAVOUNELI (2005), o local de cometimento do delito civil, em países romano-germânicos como a Grécia, só importa no momento da determinação da competência, não sendo mais analisado na decisão sobre imunidade, razão pela qual não haveria, em tese, óbice à aplicação do arrazoado da presente decisão para casos de violações ocorridas fora do território do Estado-foro, pois o nexo territorial influenciaria a questão da competência e, uma vez superado este ponto, chegando-se na imunidade, a questão do local do delito não seria mais levantada (REDRESS ORGANIZATION, 2005).
A decisão da Corte de Primeira Instância de Leivadia foi, portanto, confirmada pela Suprema Corte Helênica. Entretanto, como será visto a seguir, esta sentença não encerrou o processo e nem possibilitou aos autores a obtenção das reparações devidas.
1.4 Desdobramentos
As pretensões dos autores esbarraram nas determinações do código de processo civil grego que, em seu artigo 923, declara que o Ministro da Justiça deve consentir com a constrição de bens do Estado estrangeiro situados na Grécia para a realização dos termos do julgamento. Mesmo sem tal autorização, os autores lograram acesso a propriedades alemãs, o que levou a Alemanha a pedir a suspensão de tais procedimentos, concedida por Areios Pagos em 2002.
Ainda em 2002, Suprema Corte Especial Grega proferiu julgamento final acerca do mérito dos demandantes contra a Alemanha, decidindo, por 6 votos a 5, que a Alemanha gozava de imunidade e, portanto, não poderia ser processada perante as cortes gregas pelos delitos cometidos. Segundo a Suprema Corte Especial, não existe ainda uma norma de direito internacional que exclua certos atos da proteção da imunidade.
Esta sentença final interrompeu uma série de decisões favoráveis às vítimas sendo, obviamente, alvo de críticas. Restava aos autores ainda uma última instância – o Sistema Europeu de Direitos Humanos –, e as conclusões da Corte Européia à respeito do caso Distomo serão objeto da segunda parte deste artigo.
2. PROCEDIMENTOS PERANTE A CORTE EUROPÉRIA DE DIREITOS HUMANOS
Inconformados com a decisão final que lhes negou o direito à reparação pelos danos sofridos em virtude do ataque alemão, os autores buscaram a tutela do Sistema Europeu de Direitos Humanos, cujo Tribunal “tem capacidade para ordenar compensações econômicas às vítimas de violações dos direitos amparados pela Convenção Européia” (MASSICCI, 2007, p. 204), prerrogativa elencada no artigo 41 do documento[17]. A Convenção Européia de Direitos Humanos constitui, no entender de BRÖHMER (1997, p. 160), “o mais desenvolvido e melhor observado entre os tratados internacionais de diretos humanos existentes” e, baseados nos direitos e obrigações elencados neste documento, os autores apresentaram sua demanda.
2.1 Argumentos das Partes
Em sua ação perante a Corte Européia de Direitos Humanos, as vítimas gregas fundamentaram seus pedidos na afirmação de que a recusa das autoridades gregas e alemãs em obedecer aos ditames da decisão nº 137/1997 da Corte de Primeira Instância de Leivadia violava o seu direito à proteção judicial efetiva de direitos civis relevantes e seu direito ao gozo pacífico das propriedades, com base no disposto no artigo 6 § 1 da Convenção e no artigo 1 do Protocolo nº1 (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000), que estatuem:
“Artigo 6.º da Convenção Européia de Direitos Humanos – (Direito a um processo equitativo)
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
Artigo 1.º do Protocolo Adicional nº 1 – Proteção da propriedade
Qualquer pessoa singular ou colectiva tem o direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.
As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.”
Além disso, houve também a reclamação, por parte dos autores, de que o caso relativo aos procedimentos de execução havia sido examinado pelo presidente do Tribunal de Cassação grego, que tinha apreciado o caso previamente no curso da ação de reparação por danos, introduzindo, assim, uma parcialidade inadmissível nos procedimentos em revisão (BARTSCH; EBERLING, 2003).
O governo grego, por sua vez, realizou sua defesa baseando-se especialmente no fornecimento de uma análise detalhada do direito internacional relativo à imunidade estatal, justificando, assim, sua alegação que o Ministro de Justiça havia agido corretamente ao recusar a permissão aos autores para que executassem os bens alemães. O Estado grego também argumentou que a limitação imposta aos direitos dos autores era prescrita em lei (artigo 923 do Código de Processo Civil grego) e visava a um fim legítimo, isto é, evitar perturbações nas relações internacionais, sendo proporcional a esta finalidade. O governo grego salientou que a recusa em executar o julgamento não era absoluta e que, embora não pudesse ser executado na Grécia, ele poderia, no entanto, ser executado na Alemanha (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000).
A tônica da defesa alemã foi, por sua vez, a ênfase no fato de que os autores não estavam sujeitos à jurisdição das cortes alemãs no que diz respeito aos direitos elencados no artigo 6 § 1 da Convenção e do artigo 1 do Protocolo nº1, ou seja, que “nem todo ato ou omissão de um Estado parte da Convenção capaz de afetar adversamente os direitos de outros indivíduos automaticamente submete estes indivíduos ao poder soberano do Estado em questão”(EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000, p. 06), e que o critério para definir tal situação consiste em avaliar se no exercício de seu poder soberano em um caso particular, o Estado-parte submeteu os indivíduos em questão ao âmbito da esfera de sua jurisdição. Por ter sido parte nos procedimentos de execução, em igualdade teórica com os autores e sem poder de decisão, esta análise restaria negativa no caso em tela, ou seja, a Alemanha não estava em uma posição de infringir, autonomamente, os direitos dos autores sob a Convenção (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000).
Outro argumento importante foi levantado pelo governo alemão, que salientou que, se a imunidade soberana fosse ser removida neste tipo de caso, conflitos armados passados dariam origem ex post facto a inúmeras demandas individuais por prejuízos, tornando obsoletas as soluções políticas há muito tempo adotadas. Como resultado, “a coexistência pacífica seria consideravelmente deteriorada, com conseqüências imprevisíveis para qualquer Estado que tenha se envolvido em um conflito armado” (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000, p. 06).
Esboçadas as principais teses de defesa, tanto dos reclamantes como dos réus, cumpre agora abordar a sentença da Corte Européia para o caso em tela.
2.2 A Decisão da Corte Européia de Direitos Humanos
2.2.1 Em relação à Grécia
O Tribunal inicia seu arrazoado com a afirmação de que
“O direito de acesso a um tribunal seria ilusório caso o sistema legal de um Estado-parte permitisse que uma decisão final e vinculante restasse inoperante em detrimento de uma das partes. A execução de um julgamento proferido por uma corte deve ser visto como parte integral da decisão para efeitos do artigo 6” (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000, p. 07).
A Corte reconhece que, no caso em tela, a recusa do Estado grego em permitir os procedimentos de execução contra a Alemanha equivaleria a uma restrição imposta aos autores em seu direito de acesso ao tribunal, restando à Corte analisar se tal limitação perseguia um fim legítimo. Neste tocante, a Corte identifica o desenvolvimento da imunidade soberana dos Estados com o princípio par in parem non habet imperium, concluindo que “a concessão de imunidade de jurisdição a um Estado, em procedimentos civis, persegue o fim legítimo de cumprir com as determinações de direito internacional para promover a cortesia e as boas-relações entre Estados” (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000, p. 08).
A análise da proporcionalidade da medida também é realizada pela Corte, afirmando, com base no artigo 31 § 3 (c) da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados[18], que a Convenção Européia de Direitos Humanos não pode ser interpretada isoladamente. As normas de direito internacional, em especial aquelas relativas à concessão de imunidade de Estado, devem auxiliar, portanto, na interpretação do artigo sexto da Convenção (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000). Assim, as medidas adotadas por um Estado-parte da Convenção não podem presumir-se, prima facie, como uma restrição desproporcional ao direito de acesso à justiça elencado no artigo 6º. Da mesma forma, algumas limitações devem ser consideradas inerentes a este direito, tais como aquelas aceitas de forma geral pela comunidade das nações como parte da doutrina de imunidade estatal, cristalizadas, por exemplo, no julgamento do caso Al-Adsani v. United Kingdom[19], que discutiu o mesmo tema. Para concluir a questão, a Corte considerou que, embora as cortes gregas tenham ordenado o pagamento da dívida pelo Estado alemão, isto não obriga necessariamente a Grécia a assegurar aos autores a obtenção do crédito através de procedimentos de execução em território grego.
Este posicionamento é criticado por diversos autores, em especial por aqueles que, como Bartsch e Eberling, acreditam que a norma material de jus cogens já traz, em si mesma, uma norma procedimental correspondente, o que vedaria a imposição de certos limites à sua execução. Segundo a visão das referidas autoras[20], “pode-se deduzir diretamente, a partir do próprio conceito de jus cogens, que a existência de uma norma imperativa para execução processual é resultado do caráter peremptório da regra substancial”(BARTSCH; EBERLING, 2003, p. 502). Toda a norma de jus cogens conteria, assim, uma norma procedimental que assegura a sua execução judicial.
Esta opinião parece ser compartilhada por BRÖHMER, que, ao analisar os artigos 6º e 13 da Convenção, afirma:
“Os artigos 6º e 13 da Convenção Européia de Direitos Humanos também são aplicáveis em casos envolvendo a imunidade de Estado. Existem poucas evidências acerca de limitações de caráter inerente aos direitos providos pela Convenção. Mesmo no caso de se supor a existência de tais limitações inerentes, elas só poderiam ser invocadas se servissem aos propósitos e objetivos da Convenção como, por exemplo, aqueles elencados em seu preâmbulo. A imunidade jurisdicional de Estado, como um privilégio especial, não é compatível com nenhum destes objetivos. O privilégio da imunidade não adota “a observância dos Direitos Humanos” ou favorece a causa da “democracia política efetiva” (BRÖHMER, 1997, p. 186)
A doutrina conclui, assim, estar equivocada a decisão da Corte de considerar que os supracitados artigos são inerentemente limitados por normas internacionais que não contemplem os princípios elencados no preâmbulo da Convenção. Da mesma forma, a natureza das normas de jus cogens garantiria, ao contrário do afirmado pela Corte, a sua auto-execução.
Em uma parte deveras importante do julgamento, a Corte analisa a alegação dos autores de que o direito internacional relativo aos crimes contra a humanidade seria tão fundamental que equivaleria a uma norma de jus cogens, tendo precedência, portanto, sobre outros princípios de direito internacional como, inter alia, a imunidade de Estado estrangeiro (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000). A Corte conclui esta parte do julgamento afirmando que ainda não há, no direito internacional, aceitação da proposição de que Estados não fazem jus à imunidade em relação a demandas cíveis iniciadas em outro Estado por crimes contra a humanidade, o que não preclui um possível desenvolvimento da questão, no âmbito do direito internacional costumeiro, futuramente (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000).
Tal passagem é, igualmente, é alvo de críticas pela doutrina, em especial pelo seu caráter extra petita e pela confusão da corte entre imunidade de execução e de jurisdição (ZARBIEV, 2004). Segundo Gaudreau, “a Corte se pronunciou muito rapidamente sobre uma questão fundamental que não lhe dizia respeito no caso, mas evitou fazê-lo em relação à outra questão, muito mais importante, que lhe havia sido colocada” (GAUDREAU, 2005, p. 24).
Desta forma, a Corte decide pela improcedência da ação em relação ao Estado grego, passando, a seguir, à análise da questão quanto à Alemanha.
2.2.2 Em relação à Alemanha
Para analisar a demanda quanto à Alemanha, a Corte afirma que deve, inicialmente, determinar se os fatos alegados pelos autores levariam à responsabilização alemã, estabelecendo se eles encontravam-se ou não sob a jurisdição daquele país (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000), no sentido disposto pelo artigo 1 da Convenção[21].
Tomando o elemento territorial como critério inicial para a determinação de competência de um Estado, a Corte afirma que somente em casos excepcionais se admite que um Estado exerça sua jurisdição extraterritorialmente. A jurisprudência da Corte consolida a idéia, como no caso McElhinney v. Ireland and the United Kingdom[22], de que a participação de um Estado em procedimentos de defesa contra outro Estado não equivale, por si só, a um exercício extraterritorial de jurisdição.
Como conseqüência, a mera participação alemã na posição de réu em procedimentos de execução iniciados pelos autores não é suficiente para caracterizar o exercício de jurisdição, pois o processo foi conduzido exclusivamente na Grécia, país cujas cortes foram os únicos órgãos com poder soberano sobre os autores (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2000).
Assim, a demanda foi julgada improcedente pela Corte Européia de Direitos Humanos também quanto à Alemanha, e, como resultado final, as vítimas, familiares e sobreviventes do massacre de Distomo restaram sem reparação. Assim como no passado, as pretensões dos autores foram obstaculizadas pelo instituto da imunidade de jurisdição dos Estados, em uma decisão que parece não mais refletir o atual papel desempenhado pelos indivíduos no plano internacional.
CONCLUSÃO
A decisão das cortes gregas é paradigmática em diversos aspectos. Inicialmente, é notável o esforço desprendido, em especial pela Corte de 1ª Instância de Leivadia, para fundamentar sua sentença com base no direito internacional. Ao aplicar a teoria da renúncia implícita, um instituto de origem estatutária, em um país de Civil Law e sem legislação específica, esta corte deu um passo adiante na promoção e salvaguarda dos direitos humanos.
A decisão da Suprema Corte Helênica também é digna de nota, não só por desenvolver ainda mais a fundamentação da Corte de Leivadia como, em especial, pela tentativa de consagração de uma exceção delitual civil baseada no costume internacional. É importante salientar que, sem possuir legislação específica no tema, os juízes gregos decidiram de forma bastante autônoma, integrando o seu ordenamento aos mais elevados parâmetros internacionais. Como afirmou Maria Gavouneli, trata-se de uma bela decisão, “se pelo menos pudesse ser executada” (GAVOUNELI, 1998, p. 608).
Com relação ao julgamento da Corte Européia, a sua decisão pode ser criticada em diversos pontos. Inicialmente, ela não parece se coadunar com o pronunciamento de um órgão que visa essencialmente à promoção e proteção dos direitos humanos, e também distancia-se da prática hodierna de não mais permitir que regras anacrônicas impeçam a prevalência da justiça e da dignidade humana. Além disso, a Corte, ao impor limites à aplicação dos dispositivos da Convenção, retira muito de sua credibilidade, pois não se podem conceber limitações inerentes que colidam com os princípios elencados em seu preâmbulo.
Por fim, é necessário salientar que instituto da imunidade de jurisdição dos Estados já sofreu uma série de mitigações em virtude do desenvolvimento das relações e dos valores da comunidade internacional. Se o caráter inderrogável das normas de jus cogens, juntamente com a importância de se salvaguardarem os direitos humanos, não constituírem justificativa suficiente para, uma vez mais, repensarmos o papel do instituto da imunidade face à emergência do indivíduo no plano internacional, condenaremos o Direito Internacional a uma estagnação nada condizente com a sua evolução histórica e com o hodierno panorama mundial.
Resta-nos finalizar este artigo com as palavras dedicadas às vítimas do Massacre de Distomo, expostas em uma placa memorial no museu local, e esperar que elas inspirem decisões mais condizentes com os elevados valores que a comunidade internacional deve salvaguardar:
“Distomo, um lugar entre Delphi e Helikon, a montanha das Musas, uma comunidade calma e resignada, vivenciou este massacre incompreensível, este apocalipse durante um tempo de declínio assustador na cultura européia, “quando os lobos estavam calados, porque a humanidade estava gritando.” Hoje, agora que ideologias parecem antiquadas, nós desejamos colocar novamente estas figuras amadas ante nossos olhos, esses que tiveram que nos deixar então sem um adeus […]Eles nos pedem que outorguemos para a humanidade um lugar importante dentro de nós mesmos, para que possamos sonhar mais uma vez debaixo do céu estrelado e perceber os passos infinitos da liberdade” (DISTOMO MUSEUM).
Ex-aluna de graduação em Direito na UFRGS. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Arbitragem e a Convenção de Viena sobre Compra e Venda de Mercadorias, sob orientação da Prof. Dr(a) Véra Fradera. Estudante de pós-graduação, no Programa de Pós Graduação em Direito UFRGS, Área Fundamentos da Integração Jurídica – profª Drª Martha Jimenez. Bolsista CAPES. Membro da Equipe UFRGS para o Vis Moot 2008/2009 em Vienna, Áustria
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